Pequenos exércitos estaduais
As Forças Públicas dos estados do Brasil já foram chamadas de "pequenos exércitos" estaduais na Primeira República (1889–1930) por seu caráter marcial, participando nas diversas lutas e rebeliões do período juntamente, e às vezes contra, o Exército Brasileiro. Seu caráter era híbrido, policial e bélico. Elas emergiram no federalismo da Primeira República como escudos do poder estadual contra o poder central, representado pelo Exército, e foram desmontadas pelo governo federal na Era Vargas (1930–1945) em diante, perdendo suas capacidades de guerra convencional.
O Império Brasileiro já tinha forças policiais militarizadas, mas suas províncias não eram autônomas. Somente na República os presidentes estaduais (governadores) precisaram de forças militares nas suas relações entre si e com a União. Seu fortalecimento evitava a intervenção federal e garantia o poder das oligarquias estaduais, conservando o sistema político da Primeira República. Em 1920, metade dos estados tinham milícias maiores que as guarnições federais do Exército. Os três mais importantes, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, tinham os “pequenos exércitos” mais fortes. A maior, a Força Pública de São Paulo, era prestigiada, contratou uma missão de instrução francesa anos antes do Exército e tinha artilharia e aviação. Os estados mais pobres tinham forças modestas. O Exército federal, por sua vez, ainda era pequeno e fraco na virada do século. A existência das Forças Públicas, Guarda Nacional e “batalhões patrióticos” significava que ele não era a única força militar terrestre, uma situação condenada por muitos de seus oficiais. Numa guerra externa as Forças Públicas aumentariam o poderio brasileiro, mas elas também podiam obstruir a projeção de poder internacional do Brasil.
Após a Revolução de 1930 e especialmente no Estado Novo (1937–1945), Getúlio Vargas promoveu a centralização política e o Exército realizou sua ambição de hegemonia sobre as forças de segurança. O poder central controlou as forças estaduais e expropriou suas armas pesadas. O novo papel das Polícias Militares, como as Forças Públicas se tornaram conhecidas, era de forças auxiliares e de reserva do Exército. Mesmo após 1945, quando a centralização não era tão grande, seu foco gradualmente passou da guerra convencional à ordem pública. À época da Campanha da Legalidade de 1961 e do golpe de Estado de 1964 elas ainda tinham um caráter bélico. Várias, notavelmente a Brigada Militar gaúcha e a Polícia Militar de Minas Gerais, se prepararam para combates, que não chegaram a ocorrer, com as Forças Armadas, que agora tinham poder de fogo muito maior. A ditadura militar (1964–1985) confirmou o controle do Exército sobre as polícias.
Motivos da militarização
[editar | editar código-fonte]O sistema político na Primeira República Brasileira deixava extensos poderes nas mãos das oligarquias estaduais e do coronelismo municipal. O poder de São Paulo e Minas Gerais, a política do café com leite, era preponderante. A Constituição de 1891 tinha o federalismo como princípio e permitia aos estados negociar entre si e legislar sobre qualquer assunto que não lhes tivesse sido negado — inclusive a organização da força militar.[1] Mesmo na década de 1920, ainda não havia consciência nacional, e as identidades estaduais eram fortes.[2]
O Exército, um dos braços armados do poder central, estava quase em colapso ao final dos anos 1890.[3] Ele era pequeno, despreparado[4] e de pouca capacidade operacional.[5] Estava divorciado das elites civis, especialmente de São Paulo e Minas Gerais,[6] e ainda não era uma “organização nacional capaz de efetivamente planejar e executar uma política de defesa no seu sentido amplo”. Ele gradualmente se aproximou dessa ambição ao longo do período.[7] O sistema político deixava um papel secundário ao Exército, que deveria solucionar o que as forças locais não davam conta. Ainda havia teoricamente a Guarda Nacional, e em tempos de crise os coronéis locais mobilizavam “batalhões patrióticos” com seus peões e capangas.[8][9] Dessa forma, havia outras tropas armadas além do Exército.[10]
Desde o Império policiais já haviam servido como uma espécie de reserva do Exército, participando da Guerra do Paraguai e dos conflitos internos.[11][12] Entretanto, as províncias imperiais não eram autônomas e nem tinham necessidade de força militar para se relacionar entre si e com a União. O policiamento era local e estava em grande parte a cargo da Guarda Nacional. Somente na República os presidentes dos Estados (governadores) construíram seus pequenos exércitos, capazes de rivalizar com o Exército federal,[13] em meio a tensões com a União.[14]
A mando das oligarquias estaduais, as polícias mantinham a influência estadual na política nacional, evitavam a intervenção federal e preservavam a política dos governadores e o próprio sistema político da Primeira República.[13][15] Desde o Império elas já tinham o rigor da hierarquia e disciplina, tornando-se ainda mais militarizadas na República. Ainda assim, a segurança pública não deixou de ser atribuição, e o caráter da força era híbrido, tanto militar quanto policial.[15] Dentro dos estados, as Forças Públicas serviam de guardas pretorianas dos grupos no poder e podiam ser usadas contra os inimigos internos.[16][17]
Em 1909 o presidente de São Paulo Albuquerque Lins definiu sua Força Pública como um “pequeno exército paulista”, e antes dele outros observadores já notavam o fenômeno. O jornalista Oliveira Torres escreveu da existência de “um Exército Nacional e duas dezenas de exércitos estaduais”.[18] Outro termo é a milícia estadual.[19][20] A denominação oficial de “Força Pública” não era padrão em todos os estados e épocas, e no Rio Grande do Sul permaneceu o nome “Brigada Militar”.[21]
Capacidades das forças
[editar | editar código-fonte]Panorama nacional
[editar | editar código-fonte]Em 1926 as forças estaduais tinham um efetivo autorizado de 39.516 homens, mas a inteligência militar americana estimava um número real de 45 821. Enquanto isso, em meados de 1925 o Exército federal tinha 36 mil praças e 3 045 oficiais. Os estados mais fortes teriam um exército formidável se enfrentassem o governo central.[22] Em 1920, os policiais superavam em número as guarnições federais em metade dos estados, incluindo Bahia, Pernambuco e São Paulo; em 1930, Minas Gerais também estava nesse grupo.[23] Para os países vizinhos, as forças estaduais eram exércitos de reserva, tornando o Brasil mais militarizado do que dizia ser nas conferências internacionais. Porém, o poder estadual impedia o governo brasileiro de eficazmente projetar sua influência além das fronteiras.[22]
Efetivos estaduais e federais em 1920[24] | ||
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Estado | Polícia | Exército |
Acre | 347 | 79 |
Amazonas | 347 | 394 |
Alagoas | 1 064 | 428 |
Bahia | 3 019 | 1 545 |
Ceará | 858 | 657 |
Distrito Federal | 3 987 | 11 236 |
Espírito Santo | 289 | 703 |
Goiás | 483 | 222 |
Maranhão | 399 | 756 |
Mato Grosso | 734 | 1 116 |
Minas Gerais | 2 874 | 3 787 |
Pará | 827 | 1 418 |
Paraíba | 1 061 | 409 |
Paraná | 670 | 2 581 |
Pernambuco | 1 402 | 706 |
Piauí | 371 | 514 |
Rio de Janeiro | 694 | 2 241 |
Rio Grande do Norte | 535 | 170 |
Rio Grande do Sul | 2 052 | 9 034 |
Santa Catarina | 589 | 727 |
São Paulo | 7 538 | 3 675 |
Sergipe | 422 | 254 |
As Forças Públicas participavam intensamente dos conflitos e revoltas.[25] Na Revolta Paulista de 1924, contingentes policiais do Rio Grande do Sul à Bahia convergiram na cidade de São Paulo.[26] Na subsequente Campanha do Paraná (1924–1925), o coronel legalista Cândido Rondon preferiu usar policiais contra os rebeldes tenentistas, pois oficiais do Exército poderiam simpatizar com seus pares entre os rebeldes.[27]
A capacidade combativa das milícias dependia muito das condições financeiras de seus estados: São Paulo era pujante, enquanto estados como Paraná, Santa Catarina e Bahia tinham forças mais modestas.[28] A maior Força Pública era a paulista, mas Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia também tinham grandes números.[22] Os três estados mais fortes (São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul) tinham as polícias mais destacadas. Bahia e Pernambuco foram citadas por Rui Barbosa como capazes de enfrentar a União em 1898, mas não aparecem como tendo “pequenos exércitos” na historiografia. Há divergências sobre se todos os estados tinham “pequenos exércitos” ou apenas os mais fortes.[29]
Forças específicas
[editar | editar código-fonte]A partir de 1891, com a ameaça do Exército ao federalismo, os políticos paulistas desenvolveram sua força militar.[30] A utilidade da militarização não era unanimidade e ela foi questionada na imprensa e nos debates parlamentares. A força oscilou entre as prioridades marciais e policiais até o predomínio das marciais de 1901 em diante. Ela tomou a dianteira sobre o Exército federal na criação de escolas preparatórias de oficiais e praças e na contratação de uma missão militar de instrução francesa, obtida em 1906 para São Paulo e somente em 1919 para o Exército federal.[31] De uma força de oito companhias de infantaria em 1891, com 2 267 homens, ela cresceu a 14.254 em 1926. Em 1927 organizava-se em sete batalhões de infantaria, dois regimentos de cavalaria, um batalhão de bombeiros e uma esquadra de aviação.[32] Além da incipiente aviação, tinha artilharia, excedendo em número, poder de fogo e operacionalidade a 2ª Região Militar do Exército.[33]
Os oficiais da Força Pública de São Paulo (FPSP) eram prestigiados.[33] Ela era “símbolo e orgulho do Partido Republicano Paulista”, acumulando uma reputação de invencibilidade nos anos 1920. Isso se devia mais ao ufanismo e propaganda do que à realidade. Ela “taticamente era insuperável, bem equipada, com efetivo numeroso, aguerrido e excelentemente treinado”, mas sofreu diversas derrotas aos revolucionários tenentistas, que em geral tinham lideranças melhores.[34] Muitos oficiais aderiram ao tenentismo, notavelmente Miguel Costa.[35]
A Brigada Militar gaúcha teve foco marcial desde o início da República e fazia pouca atividade policial. Ela era bem armada, embora sem corpo de artilharia, e tinha mais experiência bélica que a FPSP.[36] O Rio Grande do Sul tinha cultura militarizada e forte presença do Exército.[37] Uma Missão Instrutora do Exército Nacional, ativa a partir de 1909, manteve a Brigada atualizada nos moldes federais.[38] Seu efetivo variava de 1.500 a 3.200 homens na Primeira República. Em 1895, um inimigo do governador Júlio de Castilhos calculou que ele poderia mobilizar de sete a oito mil homens através de corpos provisórios e guardas municipais.[39]
A Força Pública de Minas Gerais era inferior à paulista em tamanho, treinamento e organização, e não houve equivalente à missão de instrução francesa. Ela também teve suas derrotas nos anos 20,[40] mas na Revolução de 1930, mal armada e com um efetivo de cerca de 5 mil homens, saiu vitoriosa ao enfrentar a guarnição federal da 4ª Região Militar e frentes com todos os estados vizinhos.[41]
A Força Pública paraense derrotou os tenentistas em 1924 e 1930. Após 1930 o tenentista Magalhães Barata chegou ao poder e extinguiu a força, mas precisou rescuscitá-la em 1932 para enfrentar uma revolta constitucionalista em Óbidos.[42] O Regimento Policial pernambucano tinha estrutura de um exército, mas não dava conta nem mesmo de derrotar o cangaço.[43] Em Mato Grosso, estado de menor importância e financeiramente dependente do governo federal, a guarnição do Exército superava a Força Pública.[44]
Desmonte pelo poder central
[editar | editar código-fonte]Os exércitos estaduais foram o “grande problema militar legado pela Primeira República”. Sem nem mesmo o controle militar interno, o Exército não podia concretizar seu conceito de defesa nacional. O problema só foi resolvido depois da Primeira República.[45] Por décadas, oficiais do Exército temiam as polícias estaduais como ameaças à integridade nacional e ao próprio Exército. O tema era discutido no periódico A Defesa Nacional e apresentado até mesmo como um risco separatista.[46] A subordinação dessas forças ao poder central foi realizada ao longo das décadas pela ação conjunta do Exército e governo federal.[47]
Antes de 1930
[editar | editar código-fonte]O serviço militar obrigatório, implantado com base na Lei do Sorteio em 1916, permitiu a expansão física do Exército.[48] As guarnições federais em São Paulo e Minas Gerais, respectivamente na 2ª e 4ª Regiões Militares, foram reforçadas em 1919. As Forças Públicas reagiram também expandindo,[49] mas o ímpeto de crescimento do Exército se manteve nas décadas seguintes.[50] A longo prazo a vasta expansão de sua presença numérica, graças ao sorteio militar, fortaleceu o poder central à custa das plutocracias locais e regionais.[51]
O primeiro passo para o controle federal sobre as Forças Públicas veio em 1917. Com o consentimento dos governadores, as polícias militarizadas passariam a ser auxiliares do Exército. Sua hierarquia seria equivalente à do Exército (mas sem nenhum posto acima de tenente-coronel), com ascensão gradual e sucessiva. Se os governadores não concordassem, seus militares estaduais estariam sujeitos ao serviço militar obrigatório no Exército.[52][53][54] O controle central sobre as polícias aumentou, mas sua militarização nos moldes do Exército também foi acentuada, pois havia intenção de usá-las como força bélica.[55]
Após 1930
[editar | editar código-fonte]Após a Revolução de 1930, as forças militares estaduais eram ameaça ao novo regime. Em 1931, o Código dos Interventores enfraqueceu os governos estaduais, limitou os gastos com suas forças e sua quantidade de armas e munição e proibiu que tivessem artilharia e aviação.[56] No poder, Getúlio Vargas promoveu a centralização política e o desmantelamento dos aparatos bélicos estaduais, especialmente após a participação da Força Pública paulista na Revolução Constitucionalista de 1932 contra seu governo.[25] O próprio Governo Provisório de Vargas usou forças policiais de 18 estados contra os paulistas.[57] A centralização política, que exigia esse desmantelamento, já era defendida desde a década passada pelos revolucionários tenentistas.[58]
Para realizar o golpe de Estado de 1937, Vargas precisou neutralizar ou se aliar às polícias.[59] No subsequente regime autoritário, o Estado Novo (1937–1945), Vargas tentou controlar as elites regionais, nomeando interventores no lugar dos governadores, fiscalizando as finanças estaduais e transferindo os poderes do Legislativo ao presidente.[60] As Forças Públicas tornaram-se instrumentos de sustentação do governo federal.[21] O Exército ganhou a luta pela hegemonia entre as forças de segurança. O crescimento das polícias foi praticamente interrompido. Com o monopólio das armas pesadas, o Exército tinha superioridade inquestionável. Nunca houve retorno à situação de antes de 1930.[61]
As elites regionais não foram destruídas, mas a centralização não foi totalmente revertida na Quarta República (1945–1964). Os governadores eram relevantes,[60] mas não mais afrontando o governo federal.[62] A Constituição de 1946 confirmou o papel das Polícias Militares, como as Forças Públicas se tornariam conhecidas, como forças auxiliares e de reserva do Exército. Às vezes elas foram comandadas por oficiais do Exército. Gradativamente seu foco passou das atividades militares à segurança pública e manutenção da ordem.[47] O ambicioso Departamento Federal de Segurança Pública, precursor da Polícia Federal tentou, com sucesso limitado, a centralização das polícias, especialmente nas áreas de investigação e polícia política.[63]
Após 1960
[editar | editar código-fonte]As Polícias Militares ainda apareceram nas crises políticas do final da Quarta República. Na Campanha da Legalidade em 1961, as forças estaduais do Rio Grande do Sul e Goiás prepararam-se para enfrentar as Forças Armadas, mas já não podiam competir com seu poder de fogo. A Brigada Militar teria apenas armas leves para enfrentar tanques, artilharia e bombardeamento aéreo.[64][65] O espírito ainda profundamente militar dos oficiais se manifestou, e a Brigada Militar foi momentaneamente um exército estadual de novo.[66] Nas operações militares no golpe de 1964 o enfrentamento às Forças Armadas foi pretendido, em maior ou menor grau, pelas polícias do Rio Grande do Sul (em Porto Alegre e após a Operação Farroupilha),[67] Guanabara (nos eventos do golpe no Rio de Janeiro),[68] Pernambuco (contra a deposição de Miguel Arraes)[69] e especialmente Minas Gerais (na Operação Popeye).[70]
Na administração do governador Magalhães Pinto a polícia mineira contrariou a tendência nacional, concentrando-se no preparo bélico. Ainda assim, suas metralhadoras e morteiros não eram páreo para a força do I Exército.[70] Para o general Antônio Carlos Muricy, comandante de forças mistas do Exército e polícia mineira em 1964, mesmo com os esforços do governo mineiro, os policiais militares não suportariam o combate prolongado.[71] As polícias militares ainda tinham potencial bélico considerável, mas foram importantes também por sua capacidade de ser usadas contra civis.[72]
A ditadura militar (1964–1985) completou a centralização das polícias militares, subordinando-as ao Exército, que criou a Inspetoria Geral das Polícias Militares. Em 1969 um decreto-lei determinou “o controle e a coordenação das Polícias Militares por intermédio do Estado Maior do Exército em todo o território nacional, pelos exércitos e comandos militares de áreas nas respectivas jurisdições”. Segundo os preceitos da ideologia de segurança nacional, as Polícias Militares deveriam ser forças auxiliares no combate à luta armada contra a ditadura. As Guardas Civis foram fundidas às Forças Públicas.[73] As Polícias Militares ganharam caráter mais policial, recebendo o monopólio do policiamento ostensivo. Até então elas eram “marcadamente aquarteladas” e focadas na guarda de pontos sensíveis. Entretanto, o policiamento ostensivo não foi uma novidade em sua história, já tendo uma longa tradição desde antes da República.[74][75]
Notas
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Referências
[editar | editar código-fonte]Citações
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Ligações externas
[editar | editar código-fonte]- Correlação de forças entre os estados. Atlas Histórico do Brasil.