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sábado, 11 de outubro de 2025

«Os nossos heróis do Desporto» de Rui Miguel Tovar


Este livro de 119 páginas ilustrado por Andrea Ebert conta 50 histórias de 51 figuras do Desporto em Portugal: Alexandre Yokochi, Armando Marques, Carlos Lopes, Carlos Resende, Cristiano Ronaldo, Diogo Ganchinho, Duarte Bello, Edite Fernandes, Elisabete Jacinto, Emanuel Silva, Eusébio, Fernanda Ribeiro, Fernando Bello, Fernando Gomes, Fernando Pimenta, Figo, Filipa Martins, Frederico Morais, Fu Yu, Gustavo Lima, Hugo Chapouto, João Sousa, Joaquim Agostinho, José Mourinho, Livramento, Luciana Dinis, Madjer, Marcelino Sambé, Marco Freitas, Michelle Brito, Miguel Maia, Miguel Oliveira, Naide Gomes, Nelson Évora, Nuno Delgado, Obikwelu, Pedro Fraga, Peyroteo, Ricardinho, Rosa Mota, Rui Bragança, Rui Costa, Sandra Bastos, Sérgio Paulinho, Telma Monteiro, Teresa Bonvalot, Tiago Pires, Ticha Penicheiro, Tomaz Morais, Vanessa Fernandes e Vítor Hugo. A explicação é que Duarte e Fernando Bello são irmãos. Nuno Delgado (n.1976) está na página 82: «Como é uma criança com energia para dar e vender, os pais inscrevem-no na Casa do Benfica de Santarém, onde vive. Rapidamente chega a tricampeão nacional.» Para Diogo Ganchinho a página 22: «Nascido e criado em Santo Estevão, o atleta dá os primeiros passos aos 6 anos no meio rural de uma vila pertencente ao concelho de Benavente. O Clube de Futebol Estevense tem apenas um minitrampolim e um colchão». Sobre Cristiano Ronaldo lê-se na página 20: «A sua vida já deu dois filmes e uma série interminável de livros. Ronaldo é Aquário. Como Eusébio, aliás.» Se o livro tivesse outra disponibilidade poderia integrar António  Bessone Basto, Joaquim Fiúza, Francisco Rebelo de Andrade, José Manuel Quina, Mário Quina, Hugo Rocha e Nuno Barreto. Entre outros, claro. Um belo livro.

(Editora: Nuvem de Tinta, Prefácio: José Manuel Constantino, Edição: Diana Garrido, Revisão: Cristina Correia, Paginação: Maria Alves, Capa: Pedro Aires Pinto)

[Livros e Autores 32]

 

domingo, 11 de maio de 2025

«Sala de espelhos» de Urbano Bettencour


É provável que Urbano Bettencourt (n.1949) tenha ouvido a advertência - «Se quer ser alguém nas Letras, não perca tempo a escrever sobre os livros dos outros». Ensaísta, poeta e ficcionista, a sua obra é um «não» a esse aviso; este «Sala de Espelhos» vem confirmar o seu (digamos) lugar de ser. O ponto de partida destas 427 páginas lê-se na página 9: «Aquilo que aqui se propõe, longe der ser uma história literária, é muito simplesmente a análise de autores e textos particulares, mas sem perder de vista o seu contexto, as condições em que lhes foi possível existir, ganhar visibilidade e a realização plena no contacto com o leitor.» Os autores estudados são os seguintes: Florêncio Terra, Roberto de Mesquita, Manuel Zerbone, Luís Francisco Bicudo, Armando Côrtes-Rodrigues, Raul Brandão, Vitorino Nemésio, Maduro Dias, Manuel Ferreira, Natália Correia, Dias de Melo, Pedro da Silveira, Eduíno de Jesus, Fernando Aires, Fernando de Lima, Manuel Lopes, Resendes Ventura, José Martins Garcia, Daniel de Sá, Álamo Oliveira, J.H. Santos Barros, João de Melo, Mário Machado Fraião, Ana Ferraz da Rosa, Joel Neto, Alexandre Borges, Nuno Costa Santos, João Pedro Porto e Carlos Nogueira Fino. Mas o livro não se esgota nos autores e nos temas sugeridos na página 427; integra o seu autor que se salvou pelos livros e ainda bem. Vejamos como era o tempo de meados da década de 50 no Pico: «A camioneta arrancava às cinco horas. Às nove horas, depois de quarenta quilómetros de ilha e amais nove de Canal, desembarcávamos na Horta, a cidade em frente.» Se eram complicadas as viagens na estrada e no mar, as viagens nas Letras não o eram menos; em casa não havia Odisseia nem Os Lusíadas nem Guerra e Paz nem Bíblia. Numa pequena loja vendia-se açúcar, farinha, tecidos, petróleo, sal, botões, cadernos e lápis para ardósias; havia também um livro nunca lido de Max du Veuzit (John chauffer russo) mas mesmo assim a peça chave na formação do autor. Sala de espelhos - um livro a não perder.

(Editora: Companhia das Ilhas, Direcção: Carlos Alberto Machado, Assistência editorial: Sara Santos, Foto do autor: Eduardo Bettencourt Pinto, Design: Inês de Matos Machado)

[Livros e Autores 29]


segunda-feira, 18 de setembro de 2023

«Bernardo Santareno – da nascente até ao mar» de José Miguel Noras


José Miguel Noras (n.1956) está já a trabalhar num novo volume («Santareno do mar ao fim do mundo») pois a vida de Bernardo Santareno (1920-1980) não podia caber num livro de 389 páginas mais 48 de fotografias a cores sobre o seu percurso escolar, académico, cultural, cívico, literário e artístico. As fotografias constituem uma excelente «fotobiografia» com fotos únicas e legendas com valor acrescentado. O resumo da sua vida está na página 39: «Infância traumatizada. Adolescência dolorosa. Filho único. Liceu em Santarém. Solidão. Faculdade em Lisboa. Crise mística profunda. Interrupção dos estudos. Faculdade em Coimbra. Melhor, menos solidão. E poemas. Quando tive dinheiro para editá-los, editei-os. Poemas maus. Um primeiro livro de Teatro, já formado em Medicina: «A promessa, O Bailarino, A excomungada» Edição do autor, paga com o que ia ganhando como médico da frota bacalhoeira.» Sobre a vida no mar lê-se na página 301: «Queria de todo o coração ser útil a esta gente, os pescadores, pois eles são bons, humildes, e extraordinários de coragem e trabalho.» Sobre si Bernardo Santareno afirma: «Um indivíduo como eu, é claro, tem de sofrer mais que os outros pois sente mais fundo, todos os inevitáveis achaques do mundo. Mas é a vida.» Na página 251 outra afirmação: «A única coisa de que gosto é de escrever. Todas as outras actividades me conduzem a essa, que é fundamental para mim. Escrevo em qualquer lado e tudo o que me rodeia me é totalmente indiferente quando estou a escrever.» Em 1956 afirma ao pai: «Nada é firme nem seguro nesta vida. Não fazemos outra coisa que não seja experimentar caminhos, nunca chegaremos a um fim. É preciso muita coragem para se viver, sobretudo num país como o nosso, neste tempo e quando não se é de todo estúpido e inculto.» Fica o convite à leitura. Um livro grande que é também um grande livro.

(Editora: Âncora, Capa: Sofia Travassos, Revisão: António Carmo, Carlos Oliveira e Rejane Wilke. Nota de abertura: António Ramalho Eanes, Prefácio: João Luís Madeira Lopes, Posfácio: Joaquim Martinho da Silva, Apoio: Municípios de Santarém, Alcanena, Almeirim, Alpiarça, Golegã, Lamego, Nazaré e Tomar, Instituto Politécnico de Santarém e Associação Industrial Portuguesa)              

[Livros e Autores 13]

  

sexta-feira, 7 de julho de 2023

«Montes da Senhora – Freguesia, Vida e História» de Victor Neto


O ponto de partida do livro de 172 páginas, 57 fotos, um mapa e vários anexos é, segundo Victor Neto (n.1949) «para quem nos quiser conhecer melhor, para reavivar a memória dos mais velhos e para quem nos suceder na procura do conhecimento dos seus antepassados.» Os Montes da Senhora são seis: Monte Baixo, Monte Meio, Monte Cima, Aldeia Cimeira, Monte Trigo e Monte Barbo. Logo na página 12 o poema de José Fernando Delgado Mendonça afirma «A minha aldeia /É feita de gente». O volume poderia ter como segundo título «A Terra e o Homem» pois regista uma dupla inscrição – Geografia e História. O mesmo é dizer público e privado. De um lado o lugar «No Pico do Galego se pode observar, em dia claro, a cidade de Castelo Branco e as serranias de Espanha a nordeste e sudeste, as serras do Muradal e da Gardunha e da Estrela a norte, a serra de Alvelos e o Picoto Rainho a nordeste, a serra da Melriça a oeste, a serra de São Mamede e o norte alentejano a sul.» Do outro lado o Homem que habita o espaço. Tanto pode ser lembrado por Baptista-Bastos («Eu gostava de conversar com os velhos, bebia com eles o vinho da terra e tentava apreender essa sabedoria milenar criada pelas rotinas desgraçadas do tempo. Recordo dois deles: o tio João Garrido e o tio Canhoto.») como por Bernardino Páscoa sobre o pai («Todos os soldados, polícias, guardas-republicanos em gozo de licença ou férias passavam lá por casa para assinar  o passaporte») ou Manuel Sequeira sobre o avô: «O oficial de dia era o responsável máximo pelo quartel mas confiava no cabo de dia e decidiu pernoitar em casa da namorada. Na noite da morte de Sidónio Pais o cabo de dia assumiu o comando do quartel e nunca mais se livrou da alcunha dada pelos companheiros – Comandante Beirolas». Sem esquecer a legenda da foto 57. «No já longínquo tempo das ceifas, os Homens ajoelhavam-se pedindo à Nossa Senhora do Pópulo a sua protecção para não encontrarem por lá doenças que naquele tempo eram letais. Muitos ficaram por lá.»

 (Capa: José Luís Ribeiro, Paginação: Gráfica 99, Revisão: Sérgio Fernandes)

 [Livros e Autores 11]


domingo, 12 de dezembro de 2021

Para acabar de vez com a violência doméstica

Neste trabalho de «Ler e depois» como lhe chamou o ensaísta Óscar Lopes, recebo livros desde Agosto de 1978 quando comecei no «Diário Popular». Estes anos passaram num instante Um dos mais recentes livros que me chegou às mãos foi «Poemas para acabar com a violência doméstica» de Anne Quetzal, edição da Rosmaninho-Editora de Arte de Santarém. O título precipita em mim uma dissertação que engloba a chamada violência contra idosos – a que eu conheço melhor. Um certo jornalismo de castanholas e pandeiretas usa e abusa na Imprensa, na Rádio e na TV da expressão «violência doméstica» aplicada apenas e só a um dos lados da questão como se só existisse agressão da parte do homem contra a mulher ou do jovem contra o mais velho. No caso da chamada violência contra o idoso quero lembrar dois factos do meu conhecimento. Uma senhora de Penedono desloca-se com frequência com a filha e o marido para tratar de análises no Centro de Saúde onde a filha vive. Faz força e finca-pé para levar com ela uma galinha dizendo que «Os ovos do supermercado não prestam e só como ovos da minha galinha!» Claro que os tapetes do automóvel são obrigatoriamente lavados pois o cheiro e a porcaria são insuportáveis. Outro caso é o de um idoso que durante quatro anos recebeu a visita de um dos três filhos todas as segundas feiras para almoçar com ele. A recepção era invariavelmente esta: «Nunca esperei ser tão desprezado!» Com algum esforço se chega à ideia de que ele referia os outros filhos que estavam a trabalhar em Lisboa e não podiam deslocar-se numa segunda-feira de manhã. Conclusão provisória: a violência existe mas tem um sentido muito diferente do que as pandeiretas e as castanholas teimam em afirmar.      

[Crónicas do Tejo 296]


quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Dissertação para uma fotografia a preto e branco na eira

Há um homem a sorrir que pega na joeira e, com toda a perícia, faz saltar o feijão e a sua palha para que o vento os separe no ar e assim o regresso à joeira seja apenas dos feijões depois de a palha ter sido levada pela brisa. Esse gesto tem sido repetido ao longo do tempo mas as mais recentes gerações já não o dominam sem sequer o lembram; basta neste caso uma fotografia a preto e branco tirada por uma jovem arquitecta portuguesa nascida em Lisboa no ano de 1978. O protagonista da fotografia nasceu em 1927 e é o avô paterno da autora deste retrato em movimento a aproveitar a brisa do Oceano Atlântico que vem do lado de São Martinho do Porto para limpar a palha do feijão em Santa Catarina. Os tempos modernos alteraram essa gramática de sementeira e colheita, esse calendário da terra entre a chuva do Inverno e o sol do Verão, essa regularidade muito antiga e, afinal, de todos os anos; hoje o feijão aparece nas prateleiras das grandes superfícies em latas com origem na China ou na Tailândia. Passa-se com o feijão o mesmo que acontece com os caracóis: descobriram alguns que os mais baratos são os de Marrocos e, por isso, dão mais lucro a quem os cozinha com cebola e orégãos para os vender em pratinhos nas esplanadas ou à beira do mar. O sabor perdeu-se mas o lucro aumentou em termos exponenciais. Apanhados ao romper do dia nas searas e nos canaviais à beira das linhas de água, os velhos caracóis da minha juventude tinham um travo genuíno que se perdeu para sempre com a chegada de toda esta modernidade comercial. Não há nada a fazer contra isso. Basta o pranto e a lamentação desta crónica povoada de nostalgia e de palavras.       

[Crónicas do Tejo 294]

 

terça-feira, 31 de agosto de 2021

As buganvílias de Marta na ADECO

Passaram já trinta e quatro anos mas tudo permanece igual no recreio da ADECO com as paredes caiadas e os pneus dos meninos em sossego mas por pouco tempo. As buganvílias de Marta são uma afirmação do calendário; o seu esplendor está no coração do mês de Maio prestes a despedir-se do Mundo entre o Dia da Mãe e as primeiras cerejas tão vermelhas como as flores. Aqui, no recanto do recreio dos meninos, só os pneus podem dialogar com a exuberante beleza das buganvílias. Com uma diferença: os pneus precisam de perícia, de velocidade e de destreza mas as flores não precisam de nada; elas já são só por si o maior valor acrescentado à luz da manhã no Jardim Infantil.

Na grande seara de lágrimas e de sangue pisado, de saudade e de distância, as buganvílias de Marta na ADECO são mais que uma imagem e uma memória, são o adubo da nova sementeira que todos os anos se repete no pátio onde os meninos velozes correm ao lado dos velhos pneus. Depois do frio e da chuva no Inverno vem o Sol e o calor da Primavera. Como se fosse também um relógio, o tempo dá a sua luz ao esplendor das buganvílias. É assim como a Música, uma melodia com princípio, meio e fim mas que, mesmo depois do último acorde, não se perde mesmo quando se deixa de ouvir. E continua a cantar, como se fosse um leve sussurro, no coração de cada um de nós. (escrito sobre uma foto de Ana Isabel)

[Crónicas do Tejo 286]


quinta-feira, 15 de julho de 2021

«Como se eu tivesse asas – As memórias perdidas» de Chet Baker

O arco temporal desta biografia de Chet Baker (1929-1988) decorre entre 1946 (Washington) e 1963 (Barcelona) o mesmo é dizer entre a recruta no Exército americano e mais uma recaída  - «tudo recomeçou uma vez mais». Na introdução deste livro Carol Baker em 1997 afirma: «Chet Baker não pode ser descrito apenas como músico, toxicodependente, marido ou lenda» pois a sua vida aqui contada em 112 páginas foi «um irremediável caos impregnado de puro génio». No resumo possível deste livro podemos realçar os encontros com as mulheres na vida do músico: Cisella, Sherry, Charlaine, Liliane, Halema e Carol.
Com treze anos Chet passa do trombone para a trompete «porque não conseguia chegar bem às posições mais em baixo» o que prova que o acaso tem muita força. Terá sido por acaso que descobriu a droga: «O Andy foi também a primeira pessoa que me fez descobrir a erva, abençoado seja.» Em 1946 entra com 16 anos para o Exército americano, torna-se amigo de um companheiro de instrução e sente a sorte do seu lado: «Eu e o Dick fomos os únicos destacados para a Europa no nosso regimento; todos os outros foram enviados para o Japão e para a Coreia.» Na sua viagem para Bremerhaven descobre a loucura: «Como não havia álcool para beber, alguns tipos misturavam Aqua Velva e sumo de frutas. De tanto engolirem aquele cocktail tóxico à base de aftershave alguns ficaram cegos.» Na Alemanha tudo era possível: «Qualquer soldado podia mandar para um Volkswagen conduzido por um alemão (desde que o motorista estivesse sozinho) e este levá-lo aonde quer que fosse por cinco ou seis cigarros.» É em Berlim que descobre Cisella: «Ela e a irmã tinham sido enviadas para lá pelos pais na esperança de que viessem a conhecer um soldado – de preferência um oficial. O plano era casarem ou, no mínimo, receberem comida, roupa e dinheiro desse militar.» Forte o encontro com Charlie Parker no Tiffany Club : «Senti-me pouco à vontade e muito nervoso quando ele perguntou à assistência se eu estava lá e se podia subir e tocar alguma coisa com ele.»
Fica apenas uma ideia deste magnífico livro de memórias que não se pode perder.


(Editora: VS Vasco Santos, Design: João Bicker, Revisão: Carina Correia, Tradução: Sofia Castro Henriques)


[Um livro por semana 671]
 

domingo, 7 de março de 2021

«Ulisses» de James Joyce ou um dia que simboliza a vida

 


Embora a referência óbvia do livro «Ulisses» seja a «Odisseia» de Homero do qual James Joyce «aproveitou» os episódios de Telémaco, Nestor, Calipso, Nausica, Circe, Ítaca e Penélope (entre muitos outros). O ponto de partida do livro é o dia 16 de Junho de 1904 que é afinal para Stuart Gilbert «um dia muito semelhante a qualquer outro» mas o resultado é, segundo João Palma-Ferreira, autor da tradução portuguesa, dois anos de trabalho entre 1987 e 1989, «um texto difícil que por vezes deixa o leitor perplexo, tal a forma deliberadamente elaborada e exaustiva com que evita as ciladas da narrativa convencional».

Para quem gosta de sínteses pode ficar esta síntese do autor do livro em 1920 numa carta a Carlo Linati: «a história de um dia que simboliza a vida». Vejamos a página 55 do Ulisses de James Joyce (1882-1941) Edição Livros do Brasil: «Feio e fútil: pescoço esticado e cabelo encrespado e uma nódoa de tinta, um rasto de caracol. Não obstante, alguém o tinha amado, levara-o nos braços e no coração. A não ser por isso a corrida do mundo tê-lo-ia calcado a pés, caracol esborrachado e sem ossos. Ela amara-lhe o sangue aquoso e fraco que do dela fora escoado. E isso então era real? A única coisa verdadeira na vida?»

Livro escrito entre Trieste, Zurich e Paris nos anos de 1914 a 1921, o pano de fundo da acção inicial é a Torre Martello, debruçada sobre a baía de Dublin, a capital da Irlanda. Claro que a página 55 é apenas a página 55 mas como convite à leitura julgo estar bem para o assunto, afinal um dos livros mais importantes do século XX. Um grande livro que por acaso é também um livro grande…    

[Crónicas do Tejo 255]

 

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Lugar de Ser ou 70 anos em 20 linhas

 


A vida é um mistério, não um negócio. Nasci a 13-2-51 em Santa Catarina (Caldas da Rainha) em casa dos meus avós maternos e os meus pais só casaram no Verão – a casa não estava pronta. Fui pinto balseiro. Tive uma infância feliz: o dinheiro era escasso mas sobejava ternura e não havia preço para os beijos ou para as lágrimas. Saltei do carro de bois em 1956 na aldeia para o eléctrico de Lisboa em 1966 e para o avião em 1976 quando fui a Londres. Tirei o Curso Geral do Comércio porque o tempo exigia: «Os filhos dos motoristas não vão para o Liceu». Na véspera do dia em que comecei a trabalhar morreram 25 rapazes na Serra de Sintra. O meu destino sempre esteve ligado aos outros; nunca me quis separar e fingir que podia fazer tudo sozinho. Vivi na minha terra, no Montijo, em Vila Franca de Xira e em Lisboa. Casei em 1977, os meus filhos nasceram em 1978, 1981 e 1985. Há cem anos entre o meu avô materno e o neto mais velho. O meu primeiro livro (1971) foi produzido a stêncil, o segundo 1981 foi composto a chumbo, os posteriores já foram a computador. Meu pai começa a trabalhar com 7 anos, eu com 15 e os meus filhos com 25. Há um progresso mas sem esquecer as palavras de Raúl Brandão: «Ser diferente dos outros é já uma desgraça; ser superior aos outros é uma desgraça muito maior». Em 2005 acabei de pagar a hipoteca de uma casa com janelas para o Tejo. Há destinos simétricos: eu tenho duas irmãs e o meu filho tem duas irmãs. A vida é um mistério, nunca um negócio. Fui delegado sindical de 1972 e 1996, tenho uma reforma pequena mas posso sorrir: todos os dias morre gente que chamava Marcha do Benfica ao Hino da Eurovisão.

[Crónicas do Tejo 274]

(Óleo de Wislow Homer)


domingo, 20 de dezembro de 2020

Escritos sobre Freud» de Fernando Pessoa

Organizado por Cláudia Souza e Nuno Ribeiro, autores da edição e do estudo introdutório do recente «A família Crosse» (Apenas Livros), este livro de 76 páginas integra múltiplos registos da leitura que Fernando Pessoa fez sobre Freud. Damos relevo apenas a alguns aspectos pois o espaço não permite mais. Primeiro uma observação sobre a crítica literária: «Grande parte da crítica moderna, desde que se intoxicou com freudismos (com ou sem Freud) é uma maneira de se tornarem inutilmente complicadas coisas por vezes simples, outras vezes já de si complicadas e que exigiam antes simplificação que outra complicação.» Depois o excerto dum poema de Álvaro de Campos datado de 17-8-1930: «A liberdade, sim, a liberdade! / A verdadeira liberdade! / Pensar sem desejos nem convicções. / Ser dono de si mesmo sem influência de romances! /Existir sem Freud nem aeroplanos, /Sem cabarets, nem na alma, nem velocidades, nem no cansaço!» Em terceiro lugar uma citação da carta a João Gaspar Simões de 11-12-1931: «Ora a meu ver (é sempre «a meu ver») o Freudismo é um sistema imperfeito, estreito e utilíssimo. É imperfeito se julgamos que nos vai dar a chave, que nenhum sistema nos pode dar, da complexidade indefinida da alma humana. É estreito se julgamos, por ele, que tudo se reduz à sexualidade pois nada se reduz a uma coisa só nem sequer na vida intra-atómica. É utilíssimo porque chamou a atenção dos psicólogos para três elementos importantíssimos na vida da alma e, portanto, na interpretação dela: o subconsciente, a sexualidade e a conversão de certos elementos psíquicos em outros por estorvo ou desvio dos originais» No fim uma citação na qual a ironia de Fernando Pessoa vem ao de cima: «A humanidade divide-se em três classes sociais verdadeiras: os criadores de arte, os apreciadores de arte e a plebe. Julgar que ter automóvel é ser feliz é o sinal distintivo do plebeu.» 

(Editora: Apenas Livros, Capa: Imagem do Espólio de Fernando Pessoa na BNP)

[Um livro por semana 657]

 

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

O fascismo ou «tirou a carta mas vai puxar terra para os pés»

Meu pai não tinha sandálias de vento. No ano de 1956 meu pai tinha uma bicicleta cor de cinza e eu sempre soube distinguir, na pequena descida da Várzea do Lameirão, o som inconfundível da sua roda pedaleira em descanso. Para os outros era apenas mais uma bicicleta; para mim era a bicicleta. Não havia outra. Foi nessa bicicleta que ele fez viagens repetidas até Santarém para tirar a carta de condução. Eram noventa quilómetros por semana, por estradas péssimas, debaixo de chuva, levando batatas e azeite de casa para comprar todos os dias o peixe mais barato no mercado de Santarém. Pedalou sacrifícios, suores, poupanças, vento agreste e o mais que natural desejo de fugir ao seu destino traçado de cavador. Ou como dizia o senhor padre Castelão na missa de Domingo anunciando futuros casamentos, «profissão jornaleiro». Porque viviam, fingiam que viviam, da jorna paga aos Domingos de manhã no largo maior da terra depois da missa e antes da ida à taberna. Quando meu pai voltou orgulhoso da sua carta de ligeiros, pesados e serviço público, o patrão resolveu contratar um motorista nascido numa aldeia perto da Alcobaça. Vingou-se assim do seu analfabetismo total: como não conseguiu tirar a carta de condução, pagou uma fortuna a uns aldrabões que o receberam num café das Caldas da Rainha. Saíram pelas traseiras e deixaram-no só, sem dinheiro e sem carta de condução. Foi assim, na trilogia Deus/Pátria/Autoridade, em Santa Catarina, uma pequena aldeia da Estremadura, que aprendi o sentido exacto e total da palavra fascismo. Afinal uma palavra ainda desconhecida para mim nesse já distante ano de 1956. Bastaram dez palavras assim pronunciadas: «Tirou a carta mas vai puxar terra para os pés».   

[Crónicas do Tejo 240]

(Fotografia da Colecção de JCF)


domingo, 22 de novembro de 2020

Saudação breve a Ana Carolina


Eu te saúdo oh! Ana Carolina, menina pequenina envolta em cor-de-rosa numa alcofa de ternura entre o olhar doce da tua mãe e a força do teu avô, entre o frio da tarde a anunciar hipóteses de chuva e a minha pressa em te conhecer. Tu não sabes mas minutos depois de te ter conhecido, eu comprei uma embalagem de beijinhos a fiz-me à estrada a caminho de Lisboa. Tu não sabes mas nessa tarde choveu muito. As terras por fim encharcadas fizeram deslizar essa água fértil para as valetas. Passei pelas Gaeiras, pela Ponte Seca, pela Sancheira Grande, pela Palhoça, pelos Carreiros e pelo Cercal, sempre debaixo de uma chuva que nos anunciava e nos trazia de facto a fertilidade. E tu dormias descansada nos braços do teu avô dando à tua mãe um pouco de descanso nas rotinas e nas tarefas diárias perante um recém-nascido. Tu não sabes ainda mas a fertilidade começa pela água e eu já não via chover assim desde 2003. Aquilo a que chamamos «vida» começa com um momento que se define como «o rebentar das águas». Pequena e indefesa, oh! Ana Carolina tu não sabes como gostei de te conhecer e de fazer esta viagem entre as Caldas da Rainha onde ficaste e Lisboa onde te escrevo esta saudação breve e emocionada. Vejo, naquela chuva que caiu poucos minutos depois de te conhecer, um anúncio de vida e de alegria contra a aridez hostil da seca do ano que passou. As valetas da estrada velha entre as Caldas e Lisboa ficaram cheias de água nessa tarde em que te vi pela primeira vez. E os meus olhos cansados ficaram com uma neblina de júbilo. Graças a ti oh! Ana Carolina e à tua alegria cor-de-rosa dentro de uma alcofa de ternura. Porque o teu rosto envolto em rosa foi uma presença efectiva no espelho do meu velho Citroen, cinzento e cansado. E cheirava a maçãs no pequeno habitáculo entre a pressão da chuva e o negro asfalto da estrada velha das Caldas até ao Cercal.      

[Crónicas do Tejo 239]

(Óleo de Gary Melchers)


quinta-feira, 5 de novembro de 2020

O cais dos soldados em Londres


Estamos em Blackheath. Na Morden Road passamos à porta da casa do compositor Charles Gounod que aqui viveu nos tempos da guerra entre a França e a Prússia. Vinha à tarde no comboio de Charing Cross e alugava uma carruagem à porta da estação dos comboios. Mais à frente, no planalto, ficamos a saber que a actual A2, um dos itinerários principais de Inglaterra foi, em tempos recuados, a estrada romana para Canterbury. Henrique VIII, entre pompa e circunstância, aqui recebeu Ana de Cléves como futura esposa, no ano de 1540. Por sua vez Wat Tyler juntou em 1381 uma assembleia de camponeses revoltados nesta mesma estrada. Hoje o coração desta imensidão verde recebe mães com crianças, passeadores de cães, papagaios de papel, carrinhos de choque e jogatanas intermináveis de futebol –muda aos seis, acaba aos doze. Os circos, tal como as caravanas de ciganos, já são mais raros. Foi neste relvado sem fim à vista que nasceram alguns clubes de rugby e de futebol. Um deles, o Blackheath Football Club, fez parte dos pioneiros que, em 1863, na Freemason´s Tavern, criaram as leis do moderno futebol, tornando a sua prática independente do rugby. Cruzando em diagonal o Greenwich Royal Park, cedo chegamos à zona do mercado a funcionar em grande aos sábados e domingos. Muito perto das antigas cozinhas onde os velhos marinheiros, sem família e sem dinheiro, vinham às sopas reais, surgem as mais inesperadas lojas. De antiguidades, lhes chamamos em Portugal. São coisas ditas efémeras: mapas, cartazes, postais ilustrados, livros antigos, fotografias, discos LP e EP, pequenos móveis úteis às costureiras antigas, no tempo das libras se dividirem em xelins e em dinheiros. Nessa rua descubro o conceito activo e prático de fundo editorial: compram-se cinco livros por cinco libras, cada livro mais barato do que uma viagem de autocarro. Vejamos um conjunto: uma história breve do Jazz, um livro da Penguin sobre pássaros, uma biografia de Frank Sinatra, a vida do guarda-redes mais lendário do vizinho Charlton Athletic e um guia da Londres, bairro a bairro, de Barnet e Merton, de Ealing a Lewisham.  Mas apetece voltar atrás como se o efémero se pudesse suspender e transformar em permanente, algures numa estante. Não resisti e trouxe uma gravura mostrando Portugal como um leão e Espanha como uma mulher. Gravura antiga, percebe-se pelas bandeiras. Século XIX, sem dúvida. Há lojas de roupa em segunda mão, boa e barata, devidamente limpa e reclassificada que as pessoas já se habituaram a procurar uma vez por semana para ver as novidades. Os lucros dessas lojas revertem para apoio da investigação e da luta contra o cancro. Os ingleses de aqui ao pé da porta gostam de conservar os objectos do passado. Em Blackheath, Age Exchange é o nome desta loja especial na qual se reproduz o ambiente de um estabelecimento comercial dos anos 40, com balcão, balanças e moedas da época da II Guerra Mundial. Já passei férias em Southwark, na City (Barbican) e em Blackheath; faço sempre aproximações a Lisboa. A Southwark chamava Terreiro do Trigo, ao Barbican chamava Gulbenkian e a Blackheath chamo Restelo. No primeiro caso o rio ali mesmo à beira, no segundo os jardins e os prédios com o brutalismo dos anos 60 e 70, no terceiro caso as grandes avenidas com casas bonitas e árvores frondosas. Há uma comum curiosidade. Entre o Terreiro do Trigo e Santa Apolónia havia em temos o Cais dos Soldados. Tal como em Greewich havia o cais de onde partiam jovens marinheiros, soldados da Rainha, os mesmos que anos mais tarde, sem família e sem dinheiro, terão a sua sopa diária nos edifícios da Escola Naval. É dessa rua, do outro lado dessa rua de Greenwich que trago como memória de uma memória, a gravura onde Portugal é um leão e a Espanha uma mulher.

     

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Há sempre coisas que ficam por dizer



Uma crónica é um contrato entre o jornalista, o director do Jornal e os leitores. Os termos podem não ser reduzidos a escrito mas, como nos velhos tempos, vale sempre o aperto de mão e a palavra de honra. O jornalista dá o seu melhor, o director do Jornal concede-lhe um espaço que vale ouro e os leitores dão ao texto a melhor atenção possível. Ao chegar à crónica nº 200 dei por mim a reler algumas delas - desde logo porque queria fazer uma escolha para a edição de um futuro livro no qual se reúnem cinquenta. Na crónica nº 165 publicada em 10 de Maio de 2019 gostaria de ter acrescentado «A tua voz tem o registo da mais alta Poesia, instável mas feliz ponto de encontro entre a saudade e o sonho, entre o passado e o futuro, entre a sombra e a luz. Porque, tal como numa liturgia urbana, há no ouro das alfaias da tua voz um tempo de celebrar, de convocar, juntar e harmonizar de novo tudo aquilo que, no nosso coração, a morte acabou por separar.»Continuo a pensar que o Jornalismo é uma disciplina da Literatura porque o Jornalista é o Historiador de todos os dias. Agora no momento em que escrevo faltam poucos dias para que Cristiano Ronaldo celebre 35 anos mas tudo teria sido diferente se no dia 24 de Outubro de 1999 um grupo de Homens (árbitro, enfermeiro, delegado) não tivesse dado o melhor de si para o salvar de uma taquicardia grave no decurso de um jogo de Iniciados Casa Pia-Sporting. E o jornalista que relatou com fidelidade e pormenor a situação fui eu porque eu estava lá nessa manhã de Domingo. O Jornal «Sporting» foi o único que referiu o problema mas compreende-se: o jogador ainda não era famoso nem em Portugal nem na Europa nem no Mundo. E porque há sempre coisas que ficam por dizer é que desde 1978 ainda não parei de escrever nos jornais. E espero continuar.    

[Crónicas do Tejo 225] 

(Fotografia de Vinicius Carriço)   

sábado, 4 de julho de 2020

Vítor Lambert – só agora percebi o peso específico da sua amizade



Somos feitos do que somos até aos sete anos, o resto são apenas remendos. Quis o Destino que o meu neto António seguisse agora (em 2017) as pisadas da minha filha Marta (em 1987) e frequentasse com uma diferença de trinta anos o mesmo Jardim Infantil – a Adeco, ali em Lisboa, ao Príncipe Real. Mas dizer Destino não é pensar no Acaso pois nada acontece por acaso na Vida; foi o Victor Lambert que ao longo do tempo foi mantendo a ligação entre nós e nunca deixou de me enviar as convocatórias para as Assembleias Gerais da Adeco. Sem mais e com a devida vénia transcrevo o texto da «Folha Informativa» nº 20 da Associação Conquistas da Revolução: «A ACR perdeu, em 15 de Fevereiro de 2018, um dos seus sócios fundadores e até à data membro da Direcção da nossa Associação. Além do trabalho que prestou na Direcção e nas iniciativas da nossa Associação, colaborou nos livros «Vasco, nome de Abril» e «Conquistas da Revolução». O funeral, com honras militares, realizou-se no dia 17 de Fevereiro no cemitério dos Olivais. Na altura o presidente da Direcção da ACR proferiu uma intervenção sublinhando: «Honraste a Marinha e os Marinheiros. Vamos sentir a tua falta, nunca estarás só. Sei que caminhas ao nosso lado, nunca deixando de ser um de nós. Até sempre companheiro!» Associaram-se nas despedidas Maria João Gonçalves que leu uma intervenção em nome de um conjunto de amigas, relatando as vivências comuns que ao longo dos anos partilharam, sublinhando as qualidades morais e cívicas de Vítor Lambert e o «Cabo» Geraldo Lourenço, na qualidade de praça mais antiga dos saneados do 25 de Novembro, proferindo u m improviso em que relembrou os tempos da fundação da CDAP e do Clube de Praças da Armada, elogiando a personalidade e a perseverança de Vítor Lambert.» (fim de citação)

[Crónicas do Tejo 124]

terça-feira, 30 de junho de 2020

Dissertação para a voz de Maria Flor Pedroso



Quase nada sei das origens da tua voz, seu timbre e sua altura, seu calor e sua extensão, seu peso e seu rigor. Chamo-lhe calorosa pois sinto nela o calor que sacode o dia, aquece o pão, ferve o leite e convida ao pequeno almoço com ovos e bacon. Quando ouço a tua voz sinto nela o rumor ritmado das ondas de todas as praias e as melodias de todas as orquestras. Melodia, harmonia, contraponto – o que quer que seja musical nas manhãs de Rádio. Porque toda a minha infância cabe numa telefonia Schaub Lorenz. O senhor Messias, o Compadre Alentejano, o Teatro das Comédias, o romance da hora do almoço, o telefone toca do Matos Maia. E também os discos pedidos dos doentinhos dos sanatórios – Serviço 6, Sala 2, Cama 4. Sem esquecer os anúncios: «Candeeiros bem bonitos / modernos, originais / compre-os na Rádio Vitória / não se preocupe mais.» A tua voz é clarim, bandeira, estandarte.  Primeiro avisa, depois convoca, de seguida vem guiar os ouvintes como numa antiga romaria entre o sol que brilha e o pó que não assenta. Havia a Rádio Graça, a Rádio Peninsular, o Clube Radiofónico de Portugal e a Rádio Voz de Lisboa. A Voz de Lisboa era essa mistura feliz do vagar dos eléctricos e da pressa na espuma dos rebocadores, o vagar do sinaleiro e a pressa das fragatas do outro lado do Tejo. Vivi no Montijo entre 1957 e 1961; por isso ser fragateiro era um dos meus destinos possíveis. Aos Domingos à tarde os eléctricos levavam bandeiras de estádios: Luz, Restelo, Tapadinha, Lumiar. À noite saía nos jornais o resumo da jornada com a classificação e os melhores marcadores. Os ardinas voavam nas Escadinhas do Duque. Era a voz de Lisboa. Quase nada sei das origens da tua voz. Sei que nela passa o coração do Mundo. As sombras e as luzes, as sementeiras e as colheitas, a terra e o mar. Tudo cabe na tua voz que não termina e que continua. 
      
[Crónicas do Tejo 117]

terça-feira, 9 de junho de 2020

Saudação breve a Ana Carolina


Eu te saúdo oh! Ana Carolina, menina pequenina envolta em cor-de-rosa numa alcofa de ternura entre o olhar doce da tua mãe e a força do teu avô, entre o frio da tarde a anunciar hipóteses de chuva e a minha pressa em te conhecer. Tu não sabes mas minutos depois de te ter conhecido, eu comprei uma embalagem de beijinhos a fiz-me à estrada a caminho de Lisboa. Tu não sabes mas nessa tarde choveu muito. As terras por fim encharcadas fizeram deslizar essa água fértil para as valetas. Passei pelas Gaeiras, pela Ponte Seca, pela Sancheira Grande, pela Palhoça, pelos Carreiros e pelo Cercal, sempre debaixo de uma chuva que nos anunciava e nos trazia de facto a fertilidade. E tu dormias descansada nos braços do teu avô dando à tua mãe um pouco de descanso nas rotinas e nas tarefas diárias perante um recém-nascido. Tu não sabes ainda mas a fertilidade começa pela água e eu já não via chover assim desde 2003. Aquilo a que chamamos «vida» começa com um momento que se define como «o rebentar das águas». Pequena e indefesa, oh! Ana Carolina tu não sabes como gostei de te conhecer e de fazer esta viagem entre as Caldas da Rainha onde ficaste e Lisboa onde te escrevo esta saudação breve e emocionada. Vejo, naquela chuva que caiu poucos minutos depois de te conhecer, um anúncio de vida e de alegrai contra a aridez hostil da seca do ano que passou. As valetas da estrada velha entre as Caldas e Lisboa ficaram cheias de água nessa tarde em que te vi pela primeira vez. E os meus olhos cansados ficaram com uma neblina de júbilo. Graças a ti oh! Ana Carolina e à tua alegria cor-de-rosa dentro de uma alcofa de ternura. Porque o teu rosto envolto em rosa foi uma presença efectiva no espelho do meu velho Citroen, cinzento e cansado. E cheirava a maçãs no pequeno habitáculo entre a pressão da chuva e o negro asfalto da estrada velha das Caldas até ao Cercal.      

[Crónicas do Tejo 239]

(Óleo de Gary Melchers)

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Baptista-Bastos - Das capuchas, das piçarras e dos calhabardais



Esta crónica é dedicada a Cecília Milheiro e Manuel Sequeira. A primeira porque diz sempre «bem haja» e faz do balcão da Farmácia na Estrada de Benfica um altar de paz onde as angústias de quem leva na mão uma receita se dissipam devagar; o segundo porque sendo taxista e autor de um Blog («o fogareiro») viaja pelas ruas de Lisboa como quem corre pelos calhabardais dos Montes da Senhora que são seis: Aldeia Cimeira, Monte de Cima, Monte do Meio, Monte de Baixo, Monte do Trigo e Monte do Barbo. A crónica de Baptista-Bastos surge no livro «As palavras dos outros» (Editorial Futura) e começa com estas palavras: «Escrevo no balcão da casa das piçarras negras, no último dos meus dias beirões. O vento da tarde arrasta consigo odores de urze velha e de pinhos novos – e percebo, de repente, que estou a despedir-me. Dobro os olhos para leste, onde a serra de Moradal se rasga num desfiladeiro logo baptizado de Ocreza e a ideia de ficar impõe-se-me de tal força que a ideia de partir vira num sentimento penoso. Pelas taipas de janela da loja, ao lado, saem os fumos do meu jantar da tarde; a miúda Martinha está a observar-me, em silêncio, do terreiro coberto de mato; Chico Canhoto veio com as bestas dos campos de arroteio e ofereceu-me uma saudação fraterna e sorridente; ontem, no largo junto à fonte, vi bandos de raparigas tristes, sem rapazes, na mesma hora em que Carminda, viúva de um vivo que reside temporariamente em Lisboa, depunha flores pobres na campa rasa do filho Armando, morto de tétano, com 2 anos – e, ao fazer o balanço das minhas recordações, percebo, de repente, que estou a despedir-me. Despeço-me destas terras poderosas, verdes como esmeraldas, destas terras cerdosas de cardos, de fetos, de raízes, de xistos – não fecundadas pelo braço jovem que está longe.»         
         
[Crónicas do Tejo 154]

sexta-feira, 3 de abril de 2020

«Antologia Poética» de Frei Agostinho da Cruz



Organizada por Ruy Ventura (n.1973) este livro de 290 páginas reúne epigramas, epitáfios, odes, sonetos, elegias, éclogas, cartas e outros poemas bem como uma introdução, um glossário e uma bibliografia selecionada. Frei Agostinho da Cruz (1540-1619) era irmão do poeta Diogo Bernardes (1530-1596) e dele escreve Teixeira de Pascoaes em «Os Poetas Lusíadas»: «Camões é o poeta que eu mais admiro. Frei Agostinho da Cruz é o poeta que eu mais amo: o poeta mais sincero e lusíada que Deus abençoou.» Na Introdução o organizador adverte: «trata-se de um veículo que pretende pôr à disposição de um público abrangente uma selecção representativa da obra do frade que viveu numa época conturbada de Portugal e do mundo, com vários pontos cuja semelhança com o nosso tempo qualquer olhar atento descobrirá. Este livro está desprovido de aparatos críticos que uma obra com outra índole, nunca poderia dispensar. Por essa razão, se apresenta apenas um rol selecto de alguma bibliografia de e sobre Frei Agostinho da Cruz, à qual o leitor poderá recorrer, caso esse percurso seja do seu interesse, aí encontrando uma multiplicidade de leituras e a indicação de outros livros e artigos onde terá a oportunidade de beber águas distintas.»
Este livro pode ser lido também como um diário íntimo de alguém que organiza o seu discurso poético num duplo triângulo (Natureza-Palavra-Deus ou Mundo-Poesia-Amor). Nascido em Ponte da Barca, terá vivido em Guimarães e Vila Viçosa; veja-se o poema da página 21: «Nasci e renasci na casa em dia/De Santa Cruz, da Cruz o nome tenho.» Mas viveu também em Sintra, na Serra da Arrábida e em Vale Figueira (Santarém): «Nestes campos do Tejo onde cheguei /Achei graça, bom rosto e gasalhado / Que noutros meus amigos não achei. / E tanto me senti mais obrigado /Quanto mais fraco e enfermo me senti /Sem nunca me sentir desamparado.»  No poema da página 107 se percebe melhor essa pessoal cartografia: «Na ribeira do Lima fui nascido /Na do Mondego e Tejo fui criado / E na serra em que vivo envelhecido / Onde esperando estou o desejado / Fim dos meus longos anos mais vizinho /Quanto de cada vez mais alongado.»

(Editora: Licorne, Contracapa: Nuno Matos Duarte, Retrato do autor: João Salvador Martins, Apoios: Diocese de Setúbal, Fundação Oriente, Câmara Municipal de Ponta da Barca, União das Freguesias de Azeitão - São Lourenço e São Simão)   

[Um livro por semana 643]