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segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Da figueira e seus contornos - notícia do lançamento

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Correu bem. Quero dizer, não aconteceu nada de especial; nem um apelo ao crime ou à subversão da ordem instituída, nem um viva a anarquia ou um morra o dantas pim, nem sequer qualquer espécie de tumulto ou terramoto. O evento, anunciado durante semanas para a Biblioteca Pública Municipal e transferido na véspera para o Auditório, decorreu na mais perfeita normalidade.

O Auditório Madalena Biscaia Perdigão esteve cheio como um ovo – de calor humano e da mais selecta audiência, que ouviu com elegante e circunspecta urbanidade o meu amigo Daniel Abrunheiro dizer coisas que talvez eu não mereça.

Daniel, que é o melhor escritor português do século vinte e um e arredores (ele sabe - e disse-o – que eu sou tão parco em elogios como inflexível com a verdade) desvaneceu-me ao aceitar apresentar o meu pobre feixe de rabiscos e tentar disfarçar a minha irracional incapacidade para falar em público. “Fazemos assim” - disse-me ele: “tu grunhes como o de Niro e eu faço como o Billy Crystal”. Assim foi. E não podia correr mal. Não houve croquetes mas figos pingo-de-mel. No fim até assinei autógrafos. Os livros que sobraram estarão disponíveis à entrada dos espectáculos do EnCantar pela Paz, que acontecerão até ao fim do mês no Auditório Madalena Biscaia Perdigão.

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Daniel Abrunheiro, de cuja generosidade incompreensivelmente sou alvo desde os tempos em que ele foi cronista do jornal A Linha do Oeste, foi também o “padrinho” deste blogue (a posta inaugural, em 2007, foi um soneto que ele escreveu para ilustrar um desenho meu). O texto que escolhi para epígrafe do livro que lançámos também é de sua autoria e foi escrito para o folheto da minha primeira exposição de caricaturas em 2012 no tubo d'Ensaio d'Artes. Quanto aos seus livros, podeis encontrá-los nos sites das melhores livrarias ou em qualquer biblioteca pública que se preze.

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Nos cem anos do Zé

No passado dia 15 José Penicheiro teria celebrado cem anos. Os serviços culturais da Câmara Municipal da Figueira da Foz assinalam a efeméride (ou a oportunidade, ou lá o que é) com duas exposições no CAE que, confesso, ainda não visitei.

Se há vantagem em morar longe é que sempre se poupa algumas decepções.                                                    Porque se este tributo for o reflexo do press-release mil vezes repetido por todos os órgãos de informação, receio que a homenagem seja, como de costume, a meia dúzia de lugares-comuns mil vezes repetidos, mais umas quantas banalidades e a exposição de outras tantas peças sem critério nem contextualização – o serviço mínimo habitual nuns serviços culturais que se auto-justificam numa rotina da celebração de oportunidades (ou de efemérides, ou lá o que é).

A verdade, porém, é que o centenário do nascimento de José Penicheiro seria de facto uma oportunidade ideal para uns serviços culturais que tutelam um museu municipal  com responsabilidade e verdadeira vocação pedagógica organizarem “a grande exposição” que pudesse ilustrar o xelentíssimo publico-zinho, mas também as novas gerações, sobre o contexto e circunstâncias  da sua formação, influências, maturidade e sobretudo sobre a dimensão exacta da grandeza, sempre ferozmente independente de qualquer academia, de uma das obras criativas mais originais e fecundas produzidas por um artista que não trouxe a glória de fora (do estrangeiro e das grandes capitais) porque soube sempre merecê-la entre nós, onde viveu toda a vida.

Aquando da sua morte, em 2014, dediquei-lhe uma posta, com caricatura e tudo e até um linguado, que reproduzo ipsis verbis.

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Louvor e simplificação de José penicheiro

Todos os quadros têm teias de aranha no cu
Marcel Duchamp

Nos anos oitenta do século passado, o chuveirinho de fundos perdidos proveniente da então CEE achou em Portugal solo fértil para o milagre económico e sociológico do novo-riquismo, que ficou popularmente conhecido por “cavaquismo”. Mas também acabou por proporcionar um outro fenómeno sociológico, e económico, inaudito na história de Portugal: a eclosão de um mercado de arte na província.
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É verdade. De repente, num país atrasado e atavicamente pouco dado a coisas do espírito - acabadinho de sair de uma ditadura de quatro décadas, de um pequeno sobressalto “revolucionário” e de duas intervenções assistenciais do FMI - pessoas acabadas de ascender a uma próspera e inesperada classe média-alta descobriram em si um ideal abstracto e, num inusitado interesse plo espírito das coisas, o amor acrisolado pela arte. Foi assim que médicos, engenheiros, advogados, magistrados, altos funcionários e pequenos empresários com poder aquisitivo e alma de connoisseurs, de coleccioneurs ou de investideurs criaram as condições para que um pequeno núcleo de artistas, alguns já activos desde os anos 40 e 50, se pudesse dedicar à arte a tempo inteiro. Foi o caso de José Penicheiro.
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O poder autárquico, pla aquisição de obras e encomendas de arte pública, também deu um valioso contributo para a consagração destes petits maitres regionais; assim como o Serviço Nacional de Saúde que, com o seu generoso patrocínio das multinacionais do medicamento, permitiu a impressão mecenática de sucessivas e copiosas edições limitadas de serigrafias e litografias cujos exemplares, assinados e numerados pelos artistas, reproduziam originais e eram distribuídas, como oferendas, em alegres congressos médicos pla província - num contributo precioso, e definitivo, para a divulgação das suas obras e para a sua imensa popularidade.
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Na Figueira, por exemplo, não há casa nem casebre que não possua as paredes engalanadas com uma destas (já desbotadas, no caso das litografias) reproduções. O povo tinha mesmo os seus artistas preferidos. Contudo, nunca houve unanimidade. A admiração popular, tal como no futebol, ainda hoje se divide plos três grandes: Cunha Rocha, Mário Silva e José Penicheiro.
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E contudo, dos “três grandes”, Penicheiro era o artista menos óbvio para agradar ao novo gosto dos novos burgueses emergentes - o seu trabalho era prejudicado pela má qualidade dos suportes (cartão ou platex) e dos materiais (o guache e a tinta plástica) e o seu imaginário, enraizado ainda em modelos neo-realistas, era povoado de gente humilde e anónima numa paisagem ribeirinha sempre ligada ao universo do trabalho árduo e penoso: no salgado, na pesca, na lota, em andaimes e estaleiros - os novos-ricos, mesmo de origem humilde, não gostam que lho recordem. Também desprezam o trabalho duro, que acham desqualificado, e desconfiam da arte que o representa: invariavelmente acham-na subversiva ou, no mínimo, inconveniente. 
Mas foi isso mesmo que Penicheiro fez: encheu-lhes as paredes das vivendas e dos palacetes de trolhas e marnotos, costureiras, pescadores, moliceiros, lavadeiras e cavadores.
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A grande arte de Zé Penicheiro
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Filho de um carpinteiro, Zé Penicheiro começou pela caricatura em madeira. Bonecos em volume, como ele dizia. Auto-didacta orgulhoso (quase até à arrogância) aprendeu o desenho e aprimorou o traço na tarimba do humor gráfico e da caricatura de imprensa, nos anos de chumbo da censura. Desenhador compulsivo, o seu traço vigoroso, sintético e eloquente era alicerçado num sentido da composição rigoroso, numa sensibilidade de colorista requintado – adquiridos ao longo de muitos anos de trabalho na publicidade e na decoração – e num instinto ornamental que se foi tornando cada vez mais sofisticado e exuberante.
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Quando o conheci, em 1981, trabalhei com ele em publicidade. Aprendi imenso (a relevância do seu contributo para a linguagem desta arte de comunicação dava para escrever um tratado, um capítulo à parte na sua vasta obra criativa (só semelhante ao de outro figueirense, Cândido Costa Pinto. Este até com obra teórica publicada sobre o assunto, embora nunca tenha exercido actividade na região). Mas em 84 (ou 85), quando trabalhei para ele - na impressão serigráfica dos seus trabalhos – já ele se dedicava finalmente, em exclusivo, à sua paixão de toda a vida, a pintura. Tinha mais de sessenta anos.
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Numa idade em que a maior parte dos homens calça as pantufas e se senta ao borralho a olhar para ontem, Penicheiro preparava-se para começar outra vida. Criativa. E para consumar a sua obra – uma obra que teria, contudo, um carácter sempre reminiscente, também a olhar para ontem, numa espécie de interminável “Amarcord”. 
Todavia, ao contrário de Fellini, não existe em Penicheiro o conflito, o pormenor, o improviso, a blasfémia, o humor (ou o sarcasmo), a revolta, a gargalhada, a obscenidade, a subversão, o grito. 
Não há rostos, nem olhares, nem expressões na sua obra. Nem se vêem das mãos as linhas da vida, ou as unhas negras e as calosidades. Apenas vultos. Os homens, de chapéu; as mulheres, de lenço na cabeça, sempre curvada. Tudo sob um manto intrincado de manchas opacas, numa densa bruma esquartejada de harmoniosas decomposições tonais atenuadas. E uma indelével impressão de nostálgica e solene mansidão resignada. 
Penicheiro não pinta o que vê, pinta o que viu. Ou melhor, a impressão com que ficou.
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Foi esta visão sentimental, silenciosa e velada pela distância do tempo que talvez tenha tranquilizado os novos (e até os velhos) burgueses. A-do-ra-ram. Penicheiro tornou-se mesmo o artista mais premiado e homenageado  pelos “clubes de serviço”.  Arrematavam tudo, em alegres e selectas jantaradas. À peça ou à molhada. 
A consagração popular veio depois, naturalmente. O povo, como é sabido, aplaude sempre os vencedores.
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Porém, a coroa de glória de Zé Penicheiro, a verdadeira consagração, surgiu já quase no fim da sua vida (e carreira, que os artistas trabalham sempre até ao fim), em 2004: a encomenda de um mural monumental pela Universidade de Aveiro, para comemoração dos seus trinta anos.
Nada mal. Para um homem que se tinha feito a si próprio, que se gabava de nunca ter ido à escola e de toda-a-vida ter nutrido um sincero desprezo pelo conhecimento académico.
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sábado, 5 de junho de 2021

Ai Weiwei ou o excessivismo dos tótós


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O sonho do capitalismo é criar valor sem criar riqueza, 

fazer dinheiro eliminando a ideia de trabalho 

- a "arte contemporânea" realiza isto.

 Franck Lepage

 Ai Weiwei é um artista. Mas Ai não é um artista qualquer. Ai não faz nada com as suas próprias mãos. Ele delega. Ai tem assim uma espécie de fábrica cheia de colaboradores que lhe fazem as maravilhas com que ele encanta os connoiseurs.

Mas Ai não é um artista qualquer porque ele é também um activista político. Oh sim. No Ocidente, em geral, o activismo plítico não costuma ser bom para o artista (enfim, para a sua boa cotação no mercado). Não é o caso de Ai. Porque Ai é um artista capitalista. Mais do que apenas isso, Ai é um artista anti-comunista. Ai preocupa-se com o ambiente. Ai é um sábio de bons sentimentos. Ai é o artista-escuteiro. Ai é o artista candidato a miss que deseja sol na eira do género humano e chuva no nabal do manuel germano. Assim, Ai tem sempre aquilo que se costuma chamar boa imprensa. Digamos que a sua cotação no mercado é directamente proporcional ao seu activismo plítico. Recentemente Ai foi declarado o artista mais popular do mundo pela The arts Newspaper, uma publicação que quase ninguém que eu conheço conhece.

Ai é um cidadão chinês que, aleivosamente perseguido no seu país por fraude fiscal, vive agora livre em Portugal, onde adquiriu uma herdade. No Alentejo.

Ai abriu recentemente um grande showroom das suas obras na Cordoaria Nacional. A coisa é produzida pela promotora de eventos Everything is new, do empresário de variedades Álvaro Covões. A imprensa não fala de outra coisa. Ai o Aiweiwei, ai o Aiweiwei. Entre as obras de arte que Ai expõe está um enorme bloco de mármore de Estremoz em forma de rolo de papel higiénico cuja transcendência é um enlevo para os connoiseurs. Tem também uma pirâmide de bicicletas que é um espanto.

Integrado num movimento que dá pelo capitoso nome de excessivismo, o segredo (bem visível, aliás) da sua obra é a monumentalidade (é tudo em grande, para que não escape nada aos papalvos) mas também a diversidade: Ai esculpe, Ai pinta, Ai desenha, Ai tricota, Ai instala, Ai performa, Ai amassa, Ai escreve, Ai filma, Ai fotografa, Ai projecta – ai perdão, Ai não, os seus colaboradores. Ai é uma espécie de Joana Vasconcelos hirsuta e de olhos em bico. Ai é o artista preferido por aqueles que não fazem a mínima ideia do que é a arte.
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sábado, 30 de julho de 2016

Cunha Rocha e o fim de uma época

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Artistas – Todos uns estouvados. 
Ganham rios de dinheiro, mas atiram-no pela janela fora. 
São, muitas vezes, convidados para jantar fora. 
O que eles fazem não pode dizer-se que seja  trabalhar.
 Gustave Flaubert, in Dicionário das ideias feitas
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O desaparecimento do pintor António da Cunha Rocha, aos oitenta e quatro anos, é um sinal do tempo. Um toque a finados de uma época que se desvanece. E que não volta mais. Um fenómeno (ao qual já me referi aqui) que permitiu a um pequeno núcleo de talentosos artistas, locais ou radicados, viver honesta, decente e exclusivamente do seu trabalho numa cidade de província.
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O António foi um dos que descobriu mais cedo as preferências de uma clientela muito exclusiva. E servia-lhes sempre o prato cheio, em doses generosas. 
Nas suas aguarelas o céu é sempre azul, as casas sempre brancas e as árvores sempre verdes; o céu está sempre por cima das casas, as árvores sempre por detrás destas e as águas sempre transparentes por baixo dos barcos. Não há sobressaltos nem fantasias na arte de Cunha Rocha. 
A sua arte parece, à primeira vista, muito menos ousada (do que os arroubos geometrizantes do sintetismo hierático de Zé Penicheiro ou do que a figuração tumultuosa e expressionista de Mário Silva, por exemplo) e muito mais complacente com o gosto do pitoresco dessa burguesia que preza tudo, reconhecível, no seu lugar.
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Cunha Rocha não o fazia contudo por oportunismo ou cinismo calculista, não. Ele não pintava o mundo como ele é, ou como o via, mas como gostava que fosse. Nas suas paisagens não há céus cinzentos nem águas turvas ou revoltas, nem barcos de recreio, nem automóveis, nem plásticos, nem casas roxas, nem cabos eléctricos, nem eucaliptos ou cepos, nem sequer pessoas. António detestava o feio (não era uma simples implicância, era ódio mesmo, frio e obstinado). A Beleza era o seu ideal. Passou toda a vida a pintar a Arcádia; e a mostrá-la às pessoas. A ordem era o seu método. “a aguarela é fácil” - dizia ele, na sua voz funda de barítono tonitruante, entre gargalhadas - “é muita água e pouca rela”. E sempre sem tons dissonantes, nem cores sujas, nem gestos imprecisos ou pinceladas fortuitas. Não há, aliás, acasos, acidentes, em toda a sua obra. É tudo premeditado, como um crime perfeito. Como dizia Degas que toda a arte devia ser.
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Confesso, no entanto, que a sua capacidade de agradar à clientela endinheirada que lhe admirava a perícia na reprodução de imagens que podia facilmente identificar me enfurecia (o meu conceito de arte é outro). Mas tenho hoje que reconhecer que talvez esses burgueses não fossem afinal tão beócios e obtusos como eu pensava e que adquirir-lhe uma aguarela talvez fosse uma forma de levarem para casa um registo - ainda que diáfano porque pintado com simples água lisa, mas por isso mesmo precioso e indelével - da sua própria consciência de uma certa harmonia perdida, a nostalgia da Arcádia.
E é isso que não existe mais. Os burgueses endinheirados de hoje já não compram arte - agora compram gadgets e aplicações, automóveis de prestigio e telemóveis de aparato; os pobres vandalizam a arte pública ou roubam os bronzes dos bustos para refundir:  Renderam-se todos à técnica, dando razão a Flaubert que, no seu Dicionário das ideias feitas do nosso tempo registou: “Arte – leva ao hospital. Para que serve se pode ser substituída pela mecânica, que faz melhor e mais depressa?
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Cunha Rocha viveu muito e intensamente. Sobreviveu a moléstias que costumam ser funestas e a tragédias demolidoras (como se resiste à morte-matada de um filho?) e nunca permitiu, entre litros e litros de café e quilos e quilos de tabaco, que nada contaminasse a sua arte, o seu ideal.
Além disso  era de uma generosidade genuína e desconcertante. Admirador do meu talento (só os verdadeiramente grandes podem ver alguma grandeza num simples pentelho), várias vezes mo reiterou pessoalmente; contudo, porque era conhecedor do meu parco êxito, digamos assim, comercial achava-o mal-empregado. Uma vez, numa inauguração, chamou minha mulher Isabel à parte e tentou convencê-la a persuadir-me a mudar de assunto, de temas, de motivos; ainda o ouvi (o António não sabia falar baixo) dizer-lhe “com o talento que tem, ele pode fazer qualquer merda que estes gajos gostem e queiram levar para casa” (”estes gajos” eram os seus próprios clientes).

Está bem, António. Ela nunca tentou, porque sabe o que a casa gasta. Mas eu nunca me esqueci. 
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domingo, 3 de abril de 2016

O caso Ferreira da Silva

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Em 1968, num texto-panfleto generosamente editado por si próprio, Luiz Pacheco, reconhecendo o impasse artístico do escultor e ceramista Luis Ferreira da Silva no meio provinciano  das Caldas da Rainha de então, incitava publicamente o artista (a quem já na época reconhecia talento e potencialidades), a aceitar uma bolsa de especialização em Paris - “porque o que faz um Artista interessa a todos”.
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Ferreira da Silva foi. Mesmo não tendo tirado nenhum proveito artístico ou especialização pessoal dessa bolsa, o facto é que o que ele fez depois disso e até hoje interessa a todos. Ferreira da Silva tornou-se um dos mais notáveis artistas portugueses do século vinte, um artista que não gostava de museus, preferia a arte pública - ao ar livre. Foi o autor, entre outras maravilhas, dessa obra-prima (inacabada e em muito mau estado de conservação actual) de ousadia, humor livre, experimentalismo engenhoso e desmesura, pouco comuns entre nós, que é o jardim da água no centro hospitalar de Caldas da Rainha.
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Soube hoje que o Mestre morreu. No passado dia oito de Março, num hospital das Caldas. Soube-o por acaso. Os grandes meios de comunicação não julgaram que interessava a todos a mais leve referência.
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Eis o que me deu para reflectir no interesse público da arte. E no interesse do público pelo que faz um artista, hoje, no país de Luiz Pacheco. E de Luís Ferreira da Silva.
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Ao alto (a foto é da minha Carolina) estou eu, na minha janela virada a norte, a pensar.
É óbvio, puta que os pariu a todos, que não cheguei a nenhuma conclusão redentora.
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terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Porto, carnaval 2016

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Vejo agora que tanto as minhas viagens como o próprio acto de escrever têm sido maneiras de me evadir... Escrever é uma forma de terapia. Por vezes pergunto a mim próprio como é que aqueles que não escrevem, compõem ou pintam, conseguem fugir à loucura, à melancolia e ao medo inerentes ao género humano
Graham Greene, in Caminhos de evasão
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A páginas tantas de um dos seus magníficos romances, o escritor norte-americano Ross Macdonald põe na boca de um personagem esta frase notável: “não gosto da lei no seu estado primitivo actual”.
Tal como o personagem de Macdonald eu também não. Mas o meu triste descontentamento não se limita apenas à lei vigente, o estado da justiça - estende-se também ao actual estado primitivo de quase tudo, à realidade tout court. Este desconforto com o meu tempo deixa-me, não raro, prostrado num estado de melancolia para o qual só encontro paliativo através da arte ou da evasão - pela leitura ou pela viagem.
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Tal como em Graham Greene, a minha necessidade de evasão nunca é apenas uma fuga, mas também uma busca. Uma demanda, por vezes desesperada reconheço, de algo que eu próprio nunca sei. Talvez da surpresa. Do encantamento. Em todo o caso, de uma saída do beco absurdo em que desemboca por vezes um quotidiano obsessivamente ensimesmado.
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De modos que desta vez, para salvaguardar alguma sanidade mental e me livrar do espírito sazonal de uma cidadezinha de província possuída pela volúpia tropical de um carnaval de pacóvios, dei uma escapada ao Porto. Há alguns anos que lá não ia.
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Encontrei-o como de costume, com o seu ar grave e sério, e o seu timbre pardacento
Mas isso é só por fora. Por dentro é outro o filme: parece um de Fellini. Penso que foi outro italiano, Nicolo Nasoni, que melhor lhe soube captar o espírito, na sua obra mais acabada. O Porto é como a igreja dos Clérigos: austero e bruto por fora, feito quase só de pedras sujas e gastas; por dentro é feérico e barroco, repleto de artifícios engenhosos e alusões subtis, e de mármores rosas e verdes e de madeiras exóticas talhadas até à abstração e revestidas de ouro do Brasil.
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Este espírito encontrei-o na impávida espampanância do voo dos pavões do Palácio de Cristal, do alto dos cedros do Líbano para os jardins, onde passeiam a sua exuberância tranquila entre os visitantes. Mas também nos portuenses, na maneira como falam e como gostam de se ouvir dizer tudo com um humor rebarbativo, sem eufemismos nem concessões ao recomendável.
Não gostei da progressiva gentrificação da baixa e da ribeira, tomadas pelo espírito gurmê e pelos turistas (chineses, espanhóis, brasileiros) nem de alguns atentados ao bom gosto e ao bom senso, como por exemplo o execrável monumento a Camilo Castelo Branco, em frente à Cordoaria e à Cadeia da Relação, que é um  escarro na memória do genial escritor: os portuenses deviam envergonhar-se de exibir uma merda tão infame e grotesca, pastiche notório e mal enjorcado da bela peça de escultura que Teixeira Lopes (um portuense) dedicou a Eça de Queiroz.
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Mas quanto ao espírito de Carnaval, o verdadeiro espírito de Carnaval, também o encontrei no Porto. Foi essa a surpresa desta viagem. E curiosamente, ou talvez não, numa exposição de arte sacra.
No espaço das antigas sacristias da igreja dos clérigos está uma bela exposição de pinturas e esculturas oriundas de várias proveniências do norte da península, sobre o corpo de Cristo - o Corpus Christi. Foi lá que, entre dezenas de peças medievais, renascentistas, barrocas, neo-clássicas, de pau, de pedra, de marfim, até de jade, representando o corpo nu de Cristo na cruz, encontrei a pequena obra, que reproduzo acima, da autoria de um obscuro e hoje anónimo artista medieval, talvez portuense.
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A obra representa o mistério central do Cristianismo e um dos seus dogmas fundamentais: a Santíssima Trindade. A crença no mesmo deus, dividido em três pessoas; o pai, o filho e o espírito santo; "é o Pai quem gera, o Filho quem é gerado e o Espírito Santo quem realiza".
O artista construiu a sua peça numa estrutura piramidal, como era o cânone medieval. No entanto a seriedade do dogma parece-me desde logo comprometida pela factura ingénua, de cunho popular, quase infantil, e pelo estranho eixo diagonal em que dispôs os personagens, que introduz a falha que desequilibra todo o conjunto.
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Deus pai, o criador coroado – de olhar algo perplexo e sorriso meio aparvalhado, cujo imenso corpo ocupa toda a composição, coberto por um  imenso manto apenas esboçado - segura com as mãos ambas e entre os joelhos, apenas sugeridos, a cruz com o corpo de seu filho morto; entre as cabeças de ambos, nesse estranho eixo diagonal, paira esse bizarro pássaro surrealista que é o espírito santo – como que sublinhando o cómico, ou o absurdo, da situação.
É esta revelação, ou exibição, pública do absurdo, através da imaginação, do humor, da derisão e da subversão dos códigos aceites, que relativiza o absoluto e que eu chamo espírito de Carnaval.
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O artista parece ter sido inspirado pelo espírito santo, pois a sua obra chegou incólume até nós. Mas o seu espírito também; continuou a inspirar Rosa Ramalho, Mistério e todos os outros oleiros ainda activos em Barcelos, seus bastante óbvios e legítimos descendentes, ou herdeiros.
É Carnaval, ninguém leva a mal. Pelo menos o espírito santo não tem levado.

Já quanto a Deus, não estou certo que tenha sequer pisgado alguma coisa.
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domingo, 22 de novembro de 2015

Luis Dourdil

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Em França, Sarkozy defende a reinstauração da pena de morte, ainda que apenas para os suicidas. Hollande, por sua vez, declara guerra a uma obscura e claramente mafiosa entidade muito mais do que apenas vagamente patrocinada pelo seu maior aliado. Assim vai a doce França. O cumprimento das sacrossantas metas do défice vai às urtigas por via das novas prioridades da segurança e da gastança militar. As acções das empresas de armamento sobem em flecha. Que se foda o tratado orçamental, n’est ce pas, monsieur le president? Os mercados estão esfuziantes.
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Entretanto, na república das bananas de portugal, o rei aníbal cavaco reuniu os lordes. Banqueiros, ex-ministros das finanças e outros ex-notáveis mais ou menos aposentados. Em câmara ardente. De olhos vermelhos e pingo no nariz lá desfilaram um após outro na ante-câmara do salão do palácio de Belém, todos muito tementes a deus e aos mercados, todos muito preocupados com o cumprimento das metas do défice, dos tratados internacionais, e igualmente ciosos das suas pêpêpês e outras prorrogativas e propriedades, agora ameaçadas plos avanços dos comunistas.  
Tudo indica que suachelência, que já tinha estudado todos os cenários e previsto todas as possibilidades, quer saber se há-de dar posse a um governo legitimado por uma maioria absoluta em uma assembleia acabadinha de ser eleita. A verdade é que nem foi preciso convocar a  bruxa Maia para consultar o zombie de Santa Comba. No país do cavaco, esse anibal-político, a democracia é uma batata: o povo vota e no fim é o senhor presidente do conselho que decide quem governa, aconselhado pla brigada do reumático dos mercados.
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Mas a vida não é só telenovela. Há mais. E muito melhor. Há Shakespeare. E ópera. E a pintura, claro. Esta “antes de tudo”, como dizia o pintor Luis Dourdil.
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À divisão de cultura da Câmara  Municipal da Figueira da Foz deve ter sobrado algum do que habitualmente destina a entreter o pagode, à animação de massas.
Assim, depois da grande noite dos esqueletos (que em monumental autedór halloweenesco prantado à entrada da cidade pretendia cativar os fedelhos para as maravilhas do entretenimento no museu) tudo indica que ainda foi possível reunir algumas sinergias para trazer à Figueira uma das exposições que comemoraram, ao longo deste ano em Lisboa, o centenário de Luis Dourdil. Uma exposição de pinturas e desenhos (e que desenhos!) de um pintor cujo percurso “construído fora da academia” e voluntariamente “excluído dos circuitos comerciais” lhe permitiu construir - “longe do reconhecimento do grande público”, de forma quase silenciosa, ao longo de décadas - uma obra densa, exigente e coerente, de uma sensibilidade reflexiva contida mas exuberante e sofisticada.
Na cidade que habitualmente se rebola de regozijo na sazonal mediocridade das manualidades da arte de pequeno formato e se deleita com outras manifestações do mesmo canhestro amadorismo armado aos cágados, isto é uma tijolada no charco; um despropósito irreverente, uma excêntrica bizarria. É uma prenda. Um luxo – isto lava os olhos a um homem.
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Ide ver. Até 31 de Janeiro. No Museu Municipal Dr. Santos Rocha, na Figueira da Foz. Ainda por cima é de borla.
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sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Leonardo Padura

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   (...)“Antes de molhar o pincel deves ter uma ideia de aonde queres chegar, mesmo que não saibas como fazê-lo... Eu hoje gostaria de chegar à tristeza que existe na alma de um homem de quarenta anos. Gostaria de a revelar, porque é uma tristeza nova... A dor e a tristeza não são a mesma coisa, sabias? Tenho muita experiência da dor, tal como da ira, do desengano, da frustração... e também do prazer do sucesso, mesmo quando os outros não o entendem e me deixam na beira do caminho... O que não é estranho... Mas a tristeza é um sentimento profundo, demasiado pessoal. A alegria e a dor, a surpresa e a ira são exultantes, alteram o rosto, o olhar... mas a tristeza marca-o por dentro. Onde achas que posso encontrar a tristeza?” Elias Ambrosius respondeu de imediato, satisfeito com a sua sagacidade: Nos olhos. Está tudo nos olhos.” O Mestre negou, abanando a cabeça. Ainda achas que sabes alguma coisa...? Não, a tristeza está para lá dos olhos... É preciso chegar ao pensamento, à alma do homem, para a ver; e falar com essas profundezas, para tentar reflecti-la...” O Mestre molhou o pincel no pigmento amarelo e começou a marcar as linhas do que rapidamente se transformou numa cabeça. “Por isso muito poucos homens conseguiram retratar a tristeza... Um homem triste nunca olharia para o espectador. Procuraria alguma coisa que está para lá de quem o observa, um vestígio remoto, perdido na distância e, ao mesmo tempo, dentro de si próprio. Nunca olharia para cima, à procura de uma esperança; também não o faria para baixo, como alguém envergonhado ou receoso. Deve ter o olhar fixo no insondável... O rosto ligeiramente voltado para dentro, a luz não muito brilhante na face virada para o espectador, as pálpebras bem visíveis... Para fazer com que o rosto sobressaia e se possa concentrar aí a força, o melhor sempre foi um fundo castanho-escuro, mas nunca preto: a profundidade do ambiente corresponderia à profundidade dos sentimentos, reiterá-los-ia e acabaria com o seu mistério... Diz-me, rapaz, sentes-te capaz de pintar a minha tristeza?” “Vou tentar, com a sua licença...”(...)
Leonardo Padura, Herejes (O Livro de Elias, pag.297)

Um amigo deu-me a conhecer um grande livro; de um grande, e verdadeiro escritor. Trata-se de Herejes, de Leonardo Padura.
A leitura desse livro denso e complexo - susceptível de muitas leituras - sobretudo da sua segunda parte, O Livro de Elias, da qual destaquei o trecho em epígrafe, não deixou de me fazer recordar uma das minhas primeiras tentativas de fixação da tristeza - uma ingénua e canhestra porém atrevida aventura nas profundezas desse misterioso e movediço território que é o do retrato: a representação, para além da verosimilhança e das evidências, dos vestígios que a dor, a ira, a decepção e a frustração deixam, indeléveis, nos rostos humanos.
É disso que tratam os retratos. De História. De salvados das ocorrências. De vida. Da vida que sobra.
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No entanto na vida, e na História, acontecem por vezes estranhas confluências de factos, aparentemente desligados no tempo e no espaço, carregados de significados misteriosos, surpreendentes ou inexplicáveis. Como o detective Mário Conde, também eu me interrogo “sobre as formas como se criam, avançam, torcem e até confluem os caminhos da vida de pessoas tão diferentes e distantes” como, por exemplo, um aclamado escritor cubano da actualidade e um obscuro pintor sem-eira-nem-beira nem futuro como eu.
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Por isso não é sem algum assombro que verifico que o meu pobre quadro de 1988 parece ilustrar exactamente o que Padura descreve em 2013. Só que o jovem judeu Elias Ambrosius, aprendiz de pintor, ouvindo uma lição de anatomia, ou de pintura, do mesmo Mestre, sou eu.
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terça-feira, 9 de setembro de 2014

João Sotero e a norma da arte pública

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Without deviation from the norm, progress is not possible
Frank Zappa
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O meu amigo João Sotero acaba, receio, de cometer uma obra-prima.
João é um escultor figueirense que, como muitos outros figueirenses, teve que procurar longe da sua terra as oportunidades e o reconhecimento que o seu talento merece. Fixou-se, há mais de vinte anos, no Alentejo. Acaba aí de inaugurar um monumento. Na localidade de Igrejinha, que pertence ao concelho de Arraiolos, onde reside.
Trata-se de um monumento aos combatentes da guerra colonial. Ora João, tal como aliás é habitual na sua obra, desviou-se da “norma”. A solução estética que ele concebeu não podia estar mais distante da retórica habitual em monumentos do mesmo género por esse país fora.
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O habitual, neste tipo de encomendas, é a glorificação beata do “heroísmo” - ou pior ainda, do seu irmão mais imbecil, o “patriotismo” – de maneira que o povo entenda; isto é, num formato que, embora com variantes adaptáveis aos terroirs locais, já vem do século dezanove. Diga-se de passagem, que o povo só gosta do que entende e os encomendadores da arte pública em Portugal ou gostam imenso de agradar ao povo ou então têm muitas dúvidas da capacidade deste para discernir soluções mais elaboradas (o que não deixa de ser irónico, e sintomático, tratando-se de autarcas eleitos). Em suma, para muito bom povo e para muitos dos seus representantes, um monumento é um “equipamento” colocado ao ar livre, constituído invariavelmente por um corpo em pose sobre um pedestal – ou seja, algo onde, por norma, de cima cagam as pombas e em baixo mijam os cães; salvo uma vez por ano - no dia da efeméride – em que há sessão solene, com procissão de dignitários, marcha lenta, discurso inflamado e deposição de flores.
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Como referi acima, a solução estética achada por João Sotero não podia ser mais contra esta “norma”. Não tem pedestal, nem grandiloquência, nem pose de aparato. As três figuras que João concebeu parece que as tirou (não sei se conscientemente) do imaginário do cristianismo: os seus três combatentes parecem arrancados do gólgota e pousados suavemente sobre um aterro circular empedrado, num largo de Igrejinha. As três cruzes, todas amputadas de um braço, transfiguram-se em estranhas formas parecidas com o algarismo “sete”, amparam-se mutuamente num cambaleante e solidário amplexo e constituem assim uma arrebatante composição cuja austera simplicidade de ferros torcidos não deixa, de certo modo, de evocar Chillida. 
Não há ali mau-ladrão, nem bom-ladrão, nem ladrão assim-assim - nem sequer herói da raça ou mártir da pátria ou outra qualquer palermice - só vítimas. É o que parece que nos diz João: na guerra, em qualquer guerra, todos são vítimas.
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Peço desculpa ao João se extrapolei na interpretação. Bem sei que a arte é uma linguagem que se dirige àquela parte do intelecto que não entende línguas, mas também sei (ambos sabemos) que quando soltamos uma obra no mundo, ela deixa de nos pertencer, passa a estar aberta a todas as interpretações. Por isso não resisti a verbalizar o meu entusiasmo e a partilhá-lo aqui. Confesso que há muito que uma obra de arte não me atingia tão em cheio.
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Munícipe que sou da terra de João Sotero (onde o povo nutre um verdadeiro culto pla preguiça e os seus representantes encomendam, como monumentos, merdinhas como a homenagem aos escuteiros e o busto de Aguiar de Carvalho) não é sem inveja que congratulo o povo de Igrejinha e os autarcas de Arraiolos, cuja visão tornou possível esta obra magistral de João Sotero. Eles devem saber que só mesmo pelo “desvio à norma” algum progresso ainda é possível.
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Acima, João Sotero, Monumento aos Combatentes, aço corten. Igrejinha, Arraiolos (imagem daqui)
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segunda-feira, 24 de março de 2014

louvor e simplificação de José Penicheiro




todos os quadros têm teias de aranha no cu
Marcel Duchamp
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Nos anos oitenta do século passado, o chuveirinho de fundos perdidos proveniente da então CEE achou em Portugal solo fértil para o milagre económico e sociológico do novo-riquismo, que ficou popularmente conhecido por “cavaquismo”. Mas também acabou por proporcionar um outro fenómeno sociológico, e económico, inaudito na história de Portugal: a eclosão de um mercado de arte na província.
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É verdade. De repente, num país atrasado e atavicamente pouco dado a coisas do espírito - acabadinho de sair de uma ditadura de quatro décadas, de um pequeno sobressalto “revolucionário” e de duas intervenções assistenciais do FMI - pessoas acabadas de ascender a uma próspera e inesperada classe média-alta descobriram em si um ideal abstracto e, num inusitado interesse plo espírito das coisas, o amor acrisolado pela arte. Foi assim que médicos, engenheiros, advogados, magistrados, altos funcionários e pequenos empresários com poder aquisitivo e alma de connoisseurs, de coleccioneurs ou de investideurs criaram as condições para que um pequeno núcleo de artistas, alguns já activos desde os anos 40 e 50, se pudesse dedicar à arte a tempo inteiro. Foi o caso de José Penicheiro.
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O poder autárquico, pla aquisição de obras e encomendas de arte pública, também deu um valioso contributo para a consagração destes petits maitres regionais; assim como o Serviço Nacional de Saúde que, com o seu generoso patrocínio das multinacionais do medicamento, permitiu a impressão mecenática de sucessivas e copiosas edições limitadas de serigrafias e litografias cujos exemplares, assinados e numerados pelos artistas, reproduziam originais e eram distribuídas, como oferendas, em alegres congressos médicos pla província - num contributo precioso, e definitivo, para a divulgação das suas obras e para a sua imensa popularidade.
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Na Figueira, por exemplo, não há casa nem casebre que não possua as paredes engalanadas com uma destas (já desbotadas, no caso das litografias) reproduções. O povo tinha mesmo os seus artistas preferidos. Contudo, nunca houve unanimidade. A admiração popular, tal como no futebol, ainda hoje se divide plos três grandes: Cunha Rocha, Mário Silva e José Penicheiro.
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E contudo, dos “três grandes”, Penicheiro era o artista menos óbvio para agradar ao novo gosto dos novos burgueses emergentes - o seu trabalho era prejudicado pela má qualidade dos suportes (cartão ou platex) e dos materiais (o guache e a tinta plástica) e o seu imaginário, enraizado ainda em modelos neo-realistas, era povoado de gente humilde e anónima numa paisagem ribeirinha sempre ligada ao universo do trabalho árduo e penoso: no salgado, na pesca, na lota, em andaimes e estaleiros - os novos-ricos, mesmo de origem humilde, não gostam que lho recordem. Também desprezam o trabalho duro, que acham desqualificado, e desconfiam da arte que o representa: invariavelmente acham-na subversiva ou, no mínimo, inconveniente. 
Mas foi isso mesmo que Penicheiro fez: encheu-lhes as paredes das vivendas e dos palacetes de trolhas e marnotos, costureiras, pescadores, moliceiros, lavadeiras e cavadores.
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A grande arte de Zé Penicheiro
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Filho de um carpinteiro, Zé Penicheiro começou pela caricatura em madeira. Bonecos em volume, como ele dizia. Auto-didacta orgulhoso (quase até à arrogância) aprendeu o desenho e aprimorou o traço na tarimba do humor gráfico e da caricatura de imprensa, nos anos de chumbo da censura. Desenhador compulsivo, o seu traço vigoroso, sintético e eloquente era alicerçado num sentido da composição rigoroso, numa sensibilidade de colorista requintado – adquiridos ao longo de muitos anos de trabalho na publicidade e na decoração – e num instinto ornamental que se foi tornando cada vez mais sofisticado e exuberante.
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Quando o conheci, em 1981, trabalhei com ele em publicidade. Aprendi imenso (a relevância do seu contributo para a linguagem desta arte de comunicação dava para escrever um tratado, um capítulo à parte na sua vasta obra criativa (só semelhante ao de outro figueirense, Cândido Costa Pinto. Este até com obra teórica publicada sobre o assunto, embora nunca tenha exercido actividade na região). Mas em 84 (ou 85), quando trabalhei para ele - na impressão serigráfica dos seus trabalhos – já ele se dedicava finalmente, em exclusivo, à sua paixão de toda a vida, a pintura. Tinha mais de sessenta anos.
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Numa idade em que a maior parte dos homens calça as pantufas e se senta ao borralho a olhar para ontem, Penicheiro preparava-se para começar outra vida. Criativa. E para consumar a sua obra – uma obra que teria, contudo, um carácter sempre reminiscente, também a olhar para ontem, numa espécie de interminável “Amarcord”. 
Todavia, ao contrário de Fellini, não existe em Penicheiro o conflito, o pormenor, o improviso, a blasfémia, o humor (ou o sarcasmo), a revolta, a gargalhada, a obscenidade, a subversão, o grito. 
Não há rostos, nem olhares, nem expressões na sua obra. Nem se vêem das mãos as linhas da vida, ou as unhas negras e as calosidades. Apenas vultos. Os homens, de chapéu; as mulheres, de lenço na cabeça, sempre curvada. Tudo sob um manto intrincado de manchas opacas, numa densa bruma esquartejada de harmoniosas decomposições tonais atenuadas. E uma indelével impressão de nostálgica e solene mansidão resignada. 
Penicheiro não pinta o que vê, pinta o que viu. Ou melhor, a impressão com que ficou.
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Foi esta visão sentimental, silenciosa e velada pela distância do tempo que talvez tenha tranquilizado os novos (e até os velhos) burgueses. A-do-ra-ram. Penicheiro tornou-se mesmo o artista mais premiado e homenageado  pelos “clubes de serviço”.  Arrematavam tudo, em alegres e selectas jantaradas. À peça ou à molhada. 
A consagração popular veio depois, naturalmente. O povo, como é sabido, aplaude sempre os vencedores.
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Porém, a coroa de glória de Zé Penicheiro, a verdadeira consagração, surgiu já quase no fim da sua vida (e carreira, que os artistas trabalham sempre até ao fim), em 2004: a encomenda de um mural monumental pela Universidade de Aveiro, para comemoração dos seus trinta anos.
Nada mal. Para um homem que se tinha feito a si próprio, que se gabava de nunca ter ido à escola e de toda-a-vida ter nutrido um sincero desprezo pelo conhecimento académico.
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terça-feira, 4 de março de 2014

O mistério do carnaval

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O carnaval pode ser bem mais do que a imbecilidade ridícula e triste que alguns mirones lúbricos gostam de apreciar da berma da avenida, de guarda-chuva e agasalho alarve, em todos os santos fevereiros húmidos, gelados e ventosos deste país merdoso do hemisfério norte.
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Pode ser, por exemplo, o que a minha filha fez com uma simples máscara de papel prensado (99 cêntimos, na loja dos chineses) e uma caneta preta:
- uma maravilha - de imaginação, humor delicado e meticulosa paciência; e um mistério - nunca pára de me espantar, a minha pequena.
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Ao alto: máscara de carnaval – Carolina Campos, Fevereiro 2014
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quinta-feira, 6 de junho de 2013

A arte-viegas

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Já se sabe porque Francisco José Viegas, esse lírio de Israel transmontano (sobre quem já me debrucei aqui) se dedicou à política. Foi por amor à Arte.
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A razão porque o escritor, editor, gastrónomo, comentador da bola, e líder d’opinião (é colunista do correio da manha) saiu da sua zona de conforto e se meteu em canseiras - fez-se eleger deputado por Bragança e depois secretário-d’estado-da-cultura – foi o amor à Arte. Nem mais.
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É claro que também deve ter pesado nisto a sua confessada devoção plo funcionamento dos santos mercados e - notável como judeu-novo - pla livre circulação dos santos propriamente ditos (mais exactamente dos santos católicos Emídio, Sebastião, Roque, Francisco de Assis e do beato Tiago da Marca).

É natural que tenha sacado uma boa comissão ao Pais do Amaral, esse verdadeiro connoisseur - da natureza humana. 
Receio que já sei de que bolsos vai sair a indemnização que, se for caso disso, será paga à família que se sente lesada pelo Estado.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Filinto no Tubo

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O meu amigo Filinto Viana vai inaugurar uma exposição de pintura no Tubo d’Ensaio d’Artes, no número 1A da Rua do Pinhal, na Figueira da Foz. Sábado, às 16 horas.
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Em Abril de 2007, a propósito de uma visita que fiz ao seu atelier, escrevi neste blogue: “Filinto Viana vai se libertando da figuração estereotipada do seu início, através dum instintivo e anárquico método e de um critério colorista requintado, criando uma figuração difícil de catalogar, suportada por acordes de cores e tonalidades sofisticados que demonstram uma Arte cada vez mais reflectida.
Agora, Filinto continua apaixonado pela vida e pela pintura e está mais experiente, em plena maturidade criativa.
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Trata-se portanto de uma oportunidade única de poder apreciar boa pintura. Nada de merdinhas conceptuais ou lambidinhos amáveis e decorativos. Quadros verdadeiros, pintados com tinta (muita) e ainda mais talento por um verdadeiro pintor, um autêntico, um pintor raro, cujos devaneios delirantes de colorista o levam a criar composições sempre surpreendentes, cada vez mais sofisticadas e complexas.
Eu lá estarei para lhe dar um abraço e apreciar as suas maravilhas. Sábado, no Tubo d’Ensaio d’Artes, às 16 horas.
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