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sexta-feira, 26 de abril de 2024

BONNIE E CLYDE, de Arthur Penn


por Nuno de Bragança

Houve quem perguntasse que espécie de filme pretendeu fazer o autor de Bonnie and Clyde. Tratava-se de uma pessoa muito ponderada e que parecia inquieta, não só por ter o vício das arrumações como por se encontrar baralhada com o filme.

Como eu estava perto, ouvi a resposta. E porque me pareceu uma boa resposta, fixei as linhas gerais e vou tentar reproduzi-la:

«Meu velho», disse o respondente. «Você lembra-se da novidade de filmes como The Roaring Twenties, do Walsh, ou The Asphalt Jungle, do Huston? Pois sabe o que isso quer dizer? Muito simplesmente que você tem mais anos em cima do pêlo do que pensa, porque essa novidade, hoje, é passado.

«Você viu neste Bonnie and Clyde coisas dignas dos melhores filmes negros norte-americanos (todas as cenas de violência e perseguição, por exemplo; toda a montagem delas; e a movimentação de objectos dentro dos planos de grande conjunto filmados para as cenas de perseguição). Por outro lado, encontrou ligeireza ritmada do vaudeville fílmico com que os americanos, por razões de sobrevivência, entre outras, satirizam e satirizarão (espera-se) o american way of life.

«Você vem positivamente chocado por esbarrar num verdadeiro filme negro verdadeiramente colorido, e adivinho que está quase a dizer asneiras como «que história é essa de abordar figuras do milieu como quem está frank-capreando uma família quase inglesa?»

«Poderia responder-lhe com palavras duras e difíceis, tais como «quem é bandido é homem (e vice-versa)». Poderia recordar-lhe a irrupção de certo cinema europeu nas ex-coutadas de Hollywood (lembra-se de Touchez pas au Grisbi, do Becker?). Poderia - em resumo - arremessar-lhe com este bule à testa, e talvez devesse fazê-lo, porque pressinto o cartesianismo aos saltos dentro do seu bojo.

«Limitar-me-ei, contudo, a chamar a sua atenção para o final de outra obra desconcertante: Jesse James, de Nicholas Ray. Assim como, no final a que me refiro, se passava directamente (no mesmo plano, com movimento de câmara) da cena da morte do Jesse para o cantar dessa morte por interposto cego de guitarra, e se demonstrava desse modo que a era dos pistoleiros do Oeste só podia já ser re-vivida (em balada, entenda-se; assim, digo eu, Bonnie and Clyde assinala que é já só em mito recreado que hoje se pode fazer algo em louvor e simplificação do significado moral de certas personagens dos assaltos dos anos 30.

«Não franza a alma e não transpire. Reveja a conversa cinematográfica do jovem casal com a família desapossada pelo BANCO. Reveja o recurso - por parte dos bandidos em fuga e feridos - ao pão e água a que a conjuntura keynesiana condenava alguns migrantes. Recorde o alcance de planos desses quando cotejados com certas obras com relevo na cultura americana (U.S.A., As Vinhas da Ira - que importa que Dos Passos e Steinbeck hoje estejam tão mortos que até cheiram mal?). Tenha presentes as personagens que, no filme em questão, encarnam A LEI, e releia o primeiro livro do Chessman ou a Epístola aos Hebreus de S. Paulo.

«Deixe-me acabar, que é para já. A última coisa que lhe queria assinalar é a primeira que eu assinalei: Bonnie and Clyde, reune numa mesma fórmula os frutos de toda uma tradição de comédia e violência que até há pouco os cineastas americanos mantinham dormindo em canteiros separados, para gáudio solitário do tio Buñuel. Deste canteiro de casal resulta uma criança excelente, que dá sinal de vida num cinema que passa a vida a fingir que morre. E se você me objectar que talvez Arthur Penn não premeditou a fecundação a que me refiro, disparo contra si as palavras de Renoir, mais ou menos isto: «Comment arrive-t'on à un enfant magnifique? Bien, on va dejeuner dans un champ, on boit un peu, on chante beaucoup et on finit par se rouler sur l'herbe. Et soudain, le voilà qui est fait, l'enfant magnifique!»

«Desculpe, deixe-me acrescentar um último pormenor, como diria o meu velho amigo Vítor. Bonnie and Clyde, na certeira e adequada juventude de que se reveste, consegue ainda sublinhar que a onda de crime que hoje obriga os nova-iorquinos a irem para a cama às oito da noite nada tem de comum com o excesso de energias históricas que foi a explicação de alguns pistoleiros do Oeste, e de alguns gangsters. Boa noite e pazoviet, como se diz ou devia dizer na Ucrânia.»

in «O Tempo e o Modo», n.º 56, 1.ª Série, Janeiro de 1968.

quinta-feira, 14 de julho de 2022

A QUADRILHA SELVAGEM (1969)


- Y por qué se ve esto tan triste? 
- Son los tiempos, señor. 

in «Pedro Páramo», Juan Rulfo. 
 
A Quadrilha Selvagem é uma obra que deve ser revista. Uma e outra vez. Como com quase tudo o que se relaciona e associa ao seu talentoso realizador, David Samuel Peckinpah, o filme é alvo de muita incompreensão. Foi incompreendido por grande parte da geração que amou os westerns de John Ford, Howard Hawks, Raoul Walsh, Jacques Tourneur, Nicholas Ray, Anthony Mann ou Delmer Daves: João Bénard da Costa falou de “sacrifício da caracterização dos personagens à concepção totalitária da acção e do espectáculo”[1], Jacques Lourcelles escreveu que, com A Quadrilha, “o western torna-se uma ópera sangrenta, um turbilhão frenético em que os jactos de hemoglobina e as quedas em câmara lenta de personagens atingidas mortalmente pontuam uma acção descontínua e sem linhas de força.”[2] Muitos dos admiradores, discípulos e continuadores de Peckinpah também não ajudaram muito ao enaltecer nos seus elogios e homenagens precisamente aquilo que os detractores reprovavam, enchendo-se então os ecrãs com banhos de sangue cada vez mais estilizados e muito distantes das imagens originais, ficando a paródia e a cópia como a imagem de marca: “Oh, raios, eu consigo matar e enterrar dez gajos no tempo que lhe leva a matar um,”[3] disse Howard Hawks a Peter Bogdanovich. 
 
Peckinpah, então, é ainda um artista a defender. Como com vários outros realizadores que se recusavam ou recusam a revelar a fraqueza da intelectualidade e da inteligência, soltando monossílabos ou insultos a entrevistadores, escondendo livros de Stendhal das câmaras, usando óculos de sol para esconder as janelas da alma e a comoção, não se costuma falar muito sobre o seu trabalho: sobre as horas, dias e meses que perdeu a escrever, re-escrever e voltar a re-escrever guiões de raíz ou que precisavam de muito polimento antes e durante as rodagens; sobre as dezenas de posições de câmara e as várias câmaras em várias velocidades de captação diferentes que utilizava para rodar as sequências violentas que concebia como antídoto necessário para a normalização televisiva da violência; sobre aquilo por que fazia o próprio corpo passar com dias de dezenas de horas de trabalho a encontrar ritmos e cadências nas imagens dentro da sala de montagem; sobre os resgates na margem da lei que teve de fazer a bobinas de filmes seus, feitas reféns em caves de estúdios e condenadas ao esquecimento; sobre o poder de adaptação ao terreno e às circunstâncias apesar de todo este trabalho e sobre a abertura em aceitar ideias novas vindas de outras pessoas que achasse que podiam acrescentar algo aos filmes. 
 
Quem era este homem que descansava de arma em punho e conhecia Shakespeare e Tennessee Williams de fio a pavio? Que serviu nos Fuzileiros mas encontrou a redenção e o propósito na universidade numa cadeira de encenação? Que era introvertido e usou a bebida e os estupefacientes para ir contra a própria natureza e lidar com consórcios de administradores, produtores e assistentes de produção até o álcool e as drogas tomarem conta dele? Que tem uma pequena série chamada “The Westerner” em que os episódios vão da comédia mais leve e mais solar à tragédia absoluta? Em Passion & Poetry: The Ballad of Sam Peckinpah de Mike Siegel, L.Q. Jones, que Siegel tanto penou para conseguir entrevistar, conta que uma vez o realizador lhe perguntou porque é que as pessoas o odiavam tanto. Jones respondeu-lhe que era principalmente por ser “a pain in the ass”. Peckinpah perguntou-lhe a mesma coisa como quem não quer acreditar e obteve a mesma resposta, com o acréscimo sincero de que tinha que lidar com a realização de que simplesmente não era boa pessoa e se metia sempre com os mais pequenos, mesmo que não gostasse e não quisesse ouvir. O realizador decidiu ouvir e pediu ao actor que o pusesse na linha se o visse a antagonizar os seus subalternos. Toca o telefone e é uma rapariga do guarda-roupa que estava à espera que Peckinpah lhe telefonasse há dezassete horas com informações e actualizações em relação ao trabalho dela. Salta a tampa a Sam, que grita os maiores impropérios à pobre rapariga até lhe desligar o telefone na cara e voltar a pedir a L.Q. que o avise se o vir a maltratar as pessoas que trabalhavam para ele. “Now, that's Peckinpah,” remata o actor. 
 
Outra resposta possível a estas perguntas pode ser mesmo A Quadrilha Selvagem. A história é conhecida: um punhado de renegados, no rescaldo de um assalto a um banco que corre muito mal, é perseguido por uma milícia contratada pelos caminhos-de-ferro, acabando por fazer um trato com um general mexicano sanguinário chamado Mapache em plena revolução mexicana. Pike Bishop, Dutch Engstrom, Deke Thornton e Freddie Sykes sentem-se todos já uma sombra do que eram, embrutecidos e levados para o outro lado da lei por verem apenas cinismo, traição e violência à sua volta. Sente-se tudo isso na distorção completa de início do filme. Homens de uniforme chegam a uma pequena cidade do Oeste e devíamos sentir-nos seguros, mas a banda-sonora e o aspecto gasto e suado dos homens parecem contar uma história diferente. Os tambores militares do genérico são interrompidos por violinos distorcidos e ameaçadores, as panorâmicas são congeladas em cartões castanhos com os nomes do elenco e da equipa técnica, o cântico Shall We Gather at the River é massacrado pelas vozes esganiçadas da população, um grupo de crianças mete um escorpião por cima de uma colónia de formigas e assiste contentíssimo ao massacre. É o descalabro, no final dessa sequência já não temos dúvidas de onde estamos, a falência moral e do mundo é evidente, os representantes da lei dispararam sobre inocentes, homens usaram mulheres como escudos, houve cadáveres reclamados e saqueados por recompensas e haveres. 
 
No entanto – e esta é a parte que pode escapar quando se vê o filme pela primeira vez, se formos jovens e nos deixarmos imergir e contagiar demasiado pela violência – há uma personagem chamada “Angel”, e a escolha do nome não pode ser acaso nenhum. A seguir ao assalto, ele leva a quadrilha para a sua aldeia depois de atravessarem a fronteira e comem lá todos, dançam e bebem, conversam e pensam no futuro talvez pela primeira vez em muito tempo. A páginas tantas, a reviravolta. “We all dream of being a child again,” diz o pai de Angel, “even the worst of us... Perhaps the worst most of all.” E um grupo de assassinos, oportunistas e selvagens fica com o bichinho da esperança, de que talvez seja possível reclamarem para si uma fatia deste mundo e quem sabe ter uma casa a que possam chamar sua, alcançar o paraíso perdido da sua infância. Percorrem a desolação revolucionária enquanto esta se consome e se renova, com a milícia liderada pelo Deke Thornton de Robert Ryan ainda no seu encalço, e refugiam-se nos domínios do general Mapache. E, aí, o Pike Bishop de William Holden depara-se com a necessidade de tomar uma posição, escolher a vida de sempre ou dar asas aos sonhos. O tão citado “let's go” deste filme não é simplesmente – para não dizer de todo – um apelo às armas ou um incitamento à acção, é a descoberta de um propósito para a vida, de que há outros que precisam de nós, que há mais no mundo que tristeza e podridão, que é possível acreditar em alguma coisa. Ainda que se acabe como os escorpiões entre as formigas, essa centelha é inspiradora e não se apaga. Que o digam Deke Thornton e o Freddie Sykes de Edmond O’Brien, os sobreviventes desta aventura. Cortam os laços com o seu país e juntam-se aos revolucionários. Um filme sobre valores, dignidade e amor próprio, afinal. Honra e camaradagem reencontradas entre ladrões e patifes, só que a ressonância é universal. Pode-se lembrar a história de Ernst Borgnine, que interpreta Dutch Engstrom neste filme, contada também no documentário de Mike Siegel. Tinha acabado de rodar uma cena lindíssima com William Holden e Sam Peckinpah estava a demorar imenso a interromper as filmagens. O actor espera um bom bocado e mantém-se na personagem até ouvir um “Corta!” muito agudo dito pelo realizador, como se estivesse a chorar. Borgnine ouve e vira-se de lado. Peckinpah estava mesmo a chorar. “That son of a bitch… You know, he was human after all. That bastard!” E parte-se a rir, como o bando de Pike do mundo dos mortos, eternizados no rasgo de inspiração que encontraram no Outono das suas vidas: Pike. Dutch. Lyle e Tector Gorch. Angel. The wild bunch.

[1] in “Os filmes da vossa vida”, Suplemento Vida, 17 de Novembro de 1995.
[2] in “Dictionnaire du Cinéma – Les Films”, 1992.
[3] in “Who the Devil Made It”, Peter Bogdanovich, 1997.

texto escrito para o catálogo dos Encontros Cinematográficos de 2022.

sexta-feira, 16 de julho de 2021

O RIO VERMELHO (1948)


Depois dos cavalos europeus se espalharem pelo continente americano e servirem os índios nas suas grandes caçadas e viagens, chegaram os primeiros colonos com éditos do governo para ocupar as terras a Oeste, onde os índios seguiam as manadas de búfalos nas grandes pradarias. Encontraram obstáculos naturais que os fizeram tremer e vacilar e a história do Oeste é a história da travessia por essas muralhas áridas e, à primeira vista, impenetráveis. Também é uma história de grande violência e, por muito que os “caçadores de mitos” da actualidade o neguem, o cinema soube contá-la e às vezes com grande desprendimento. Há grandes filmes que se imergem a fundo nos mitos e os narram como se verdade fossem (Jesse James de Henry King e They Died With Their Boots On de Raoul Walsh), há grandes filmes que os questionam e os desmascaram (Forte Apache de John Ford e Matei Jesse James de Samuel Fuller), como há grandes filmes que se documentam e tentam ir de encontro à verdade, falando de um tempo de transições complexas e determinantes para o futuro da América (Canyon Passage de Jacques Tourneur e O Rio Vermelho). 
 
O Rio Vermelho é o primeiro western de Hawks (depois faria Céu Aberto, em 1951, Rio Bravo, em 1959, El Dorado, em 1966, e Rio Lobo, em 1970, admitindo que também considerava Hatari!, de 1962, como um western[1]) e narra a primeira movimentação de gado pelo Caminho de Chisholm, abordando ao mesmo tempo – e através dessa maravilhosamente concisa introdução – a migração para Oeste, a presença centenária dos espanhóis e dos nativos americanos e a violência da conquista do que hoje se chamam os Estados Unidos da América. Depois da Guerra Civil, o Estado do Texas, por ter estado isolado do conflito, manteve intactas as suas grandes manadas (uma mistura de raças que, ao longo dos séculos, deu origem ao longhorn do Texas), enquanto o Norte as viu ser dizimadas, oferecendo as quantidades absurdas de dinheiro que motivaram essas imensas conduções que atravessaram grande parte da América no século XIX e ainda durante o século XX. Rio Vermelho descreve tudo isto com uma grande sobriedade, e quando acabamos de o ver, assistimos, além de outras coisas, ao que foram essas enormes e árduas conduções. 

Quando o cinema nasceu, e mesmo depois de começar a prosperar (com a estreia do Nascimento de Uma Nação, de D.W. Griffith, em 1915), a fronteira americana ainda não tinha sido totalmente fechada. Isto permitiu à indústria imbuir-se do espírito pioneiro: contratando artesãos que, de outra maneira, não arranjavam trabalho (a procura de certos objectos e serviços ia-se tornando cada vez mais escassa); trazendo velhos heróis do Oeste como Wyatt Earp para várias rodagens como conselheiros técnicos e históricos[2]; ou filmando os próprios colonos com as próprias caravanas, anos depois das suas aventuras e das suas travessias, como aconteceu com The Covered Wagon de James Cruze (1923), em que a rodagem foi um empreendimento comparável às travessias impossíveis do Velho Oeste[3]. Rio Vermelho recupera estes empreendimentos loucos, filmando o que foi uma verdadeira condução de gado, encabeçada por verdadeiros profissionais e que resultou na venda das vacas depois de terminada a rodagem do filme. Talvez convenha, portanto, prestar atenção a Raoul Walsh, outro americano que além de contar a História do seu país, das grandes migrações em The Big Trail (1930) às próprias conduções de gado em The Tall Men (1955), foi mesmo um cowboy e sentiu isso no pêlo. No segundo capítulo da sua fascinante auto-biografia, Each Man in His Time, Walsh, acabado de viajar com o tio a Cuba, decide separar-se dele e entrar ao serviço de um texano chamado Zack James. Começa então a descrever uma condução de gado ao pormenor, dizendo que 
O capataz do Texas tinha uma manada de cerca de seiscentas vacas e novilhos misturados, longhorns de todas as espécies, com bezerros aos pés e outros a caminho. Até para os meus olhos inocentes, era aparente que íamos demorar a chegar ao Rio Grande, com tão pouca gente e com tamanha viagem à nossa frente. Tinha razão. Foi quatro meses depois de termos deixado Veracruz que o rio apareceu. Por essa altura já me tinha tornado um encarregado amadurecido, capaz de me fazer valer à frente dos outros cavaleiros (cinco em número, além de James, e todos do Sul do Texas). O rapaz que queria ver um cowboy era agora um. 
Quaisquer ideias românticas que tivessem ficado dos meus livros do Oeste desapareceram no nosso primeiro dia. Eu fui enviado para a traseira para empurrar o gado que se estava a atrasar, engolir poeira durante as próximas duas semanas. Pela altura em que o capataz me deixou cavalgar no flanco, já tinha comido uma porção valente do nordeste mexicano. 
Também descobri que embora conseguisse aforquilhar um cavalo, atirar uma corda, enrolar um cigarro com uma mão e dizer palavrões como os melhores, não sabia nada sobre condução de gado. O conhecimento veio da maneira difícil, afastando a manada dos centros populosos onde o gado disperso local se podia juntar e arranjar problemas; ficando de vigia durante a noite; aprendendo a cantar e a falar para a manada que descansava, e bater nas minhas calças, para que o gado não se assustasse com o silêncio em que o uivo de um coiote os podia lançar em debandada. Há truques em todos os ofícios e havia mais na condução de gado para além de cantarolar “Vamos, canito, vamos”. Além de manter a manada a mexer-se havia a patrulha à frente para encontrar água e pastagem, viagens à parte até cidades no caminho para regatear por mantimentos, um novilho ou uma vitela para matar e tirar a pele, carne para ser cortada e estendida por cima das proas das carroças para secar em carne curada, cavalos para tratar e calçar, vitelas caídas para transportar em selas até descobrirem as patas. Entre estas e outras tarefas lá conseguíamos arranjar algumas horas de descanso para nós. 
Recordando essa condução, ainda me pergunto porque é que mais vaqueiros não perdiam a razão. Ou talvez sentissem como eu: preferiam cuidar de uma manada de gado a fazer outra coisa qualquer. Quando julgassem que já não podiam aguentar mais, podiam sempre sair dos seus cavalos e saltar com os chapéus. 
Com o vento por trás, o gado acabava por andar demasiado rápido e cansar-se e recusar-se a ir para a frente. Contra o vento, podiam percorrer duas milhas por dia. Às vezes não faziam progresso nenhum, quando o vento soprava e moía a gritar e a carregar sobre cavalos e cavaleiros. Oito a dez milhas por dia era andar bem.
Quando chovia, como acontecia muitas vezes, os cavaleiros ficavam encharcados ou punham os impermeáveis, por baixo dos quais suavam e se molhavam, de qualquer maneira. Eu lembrei-me duma regra da minha mãe que era tirar toda a roupa húmida o mais rápido possível. Seguir este conselho resultou muitas vezes em cavalgar de corpo nu, o que era duro para as partes de baixo durante o tempo necessário para as minhas calças e a minha camisa de sobra secarem por cima da carroça da comida, quando o sol aparecia depois da tempestade. Além de lesões da sela, tinha que aguentar o gozo dos outros condutores por ser um tipo da cidade, mas nunca tive uma recaída por arrepios e febre, como alguns deles tiveram. 
Isto tudo e mais fazíamos nós por trinta por mês e “achado”. O “achado” eram feijões, às vezes bacon bolorento que me dava cólicas de estômago, e café forte o suficiente para derreter a colher. Era uma vida dura, mas eu tinha-a pedido. Anos mais tarde, iria receber cem vezes mais só para dizer às pessoas como devia ser feito. Antes de chegarmos ao rio, estava castanho como um índio e duro como uma pedra.[4] 
John Wayne, que como Raoul Walsh assistiu aos empreendimentos épicos do cinema para fazer jus às grandes aventuras do Oeste (e Walsh e o ‘Duke’ trabalharam juntos em The Big Trail e Dark Command), só aceitou fazer o filme quando Hawks, que nunca tinha feito um western, lhe garantiu que ia contratar verdadeiros profissionais e verdadeiros cowboys para os ajudar na rodagem e que ia aumentar consideravelmente o orçamento. Era a primeira vez que Hawks trabalhava com Wayne, antes de o abordar queria fazer o filme com Gary Cooper no papel de Dunson e Cary Grant no papel de Cherry Valance, personagem cuja importância era muito maior no guião inicial. John Ireland, o actor que acabou com o papel, não caiu nas graças de Hawks e viu o seu papel muitíssimo reduzido[5]. Aconteceu o contrário com a personagem de Montgomery Clift, de quem Wayne e Hawks gostaram imenso[6]. No final da rodagem, que durou cinco meses, Hawks disse que venderam o gado e “ganhámos imenso dinheiro”. Mas o empreendimento não foi lucrativo e Hawks teve que dissolver a Monterey Productions, companhia fundada para a produção do filme. Devido a vários processos judiciais, incluíndo um de Howard Hughes, que acusava Hawks de plágio, o filme, terminado em 1946 e registado em 1947, só se estreou em 1948. 

Desde que começa, com a canção de Dimitri Tiomkin que se transformaria depois na My Rifle, My Pony and Me de Rio Bravo, com um genérico esculpido a montanhas e vales intemporais, Rio Vermelho transporta-nos imediatamente para um tempo e para um lugar, muito antes das legendas em forma de livro nos situarem no Texas, em 1851. Os primeiros minutos do filme, além de conterem neles quase todos os processos históricos que vão transformar a América nesses anos (com a Guerra Civil no fundo e referida apenas como “the war”, por Wayne), são essenciais para todas as batalhas e decisões posteriores dos heróis do filme, ficando também connosco as palavras da personagem de Coleen Gray (aparição curta, mas estonteante), Fen, que quer seguir o Tom Dunson de Wayne para onde quer que ele vá: “The sun only shines half the time, Tom. The other half is night.” Cai a noite e o grupo em que ela ia já tinha sido dizimado por índios. Quando um pequeno grupo de guerreiros vai atrás de Dunson e do amigo, Groot (fabuloso Walter Brennan, metade do tempo com dentes e outra metade, sem[7]), e estes os matam, Dunson descobre a pulseira que deu à amada no braço de um deles. Acolhem Matt, um miúdo que sobreviveu ao ataque, e assentam bem a sul do Rio Vermelho. Depois de passarem os anos que vão ver a enorme herdade da marca “Red River D” crescer e multiplicar-se e receber a “guerra” que oporá amigos e irmãos, numa transição brilhante que oculta uma elipse dolorosíssima, Dunson reaparece-nos com uma cicatriz na face direita, como os heróis marcados dos filmes de Hawks (“Scarface”, mito e tema mais misteriosos da sua obra). Os dados estão lançados. 
 
A oposição entre a noite e o dia (como existem várias no filme, também, entre Matt e Dunson, entre os homens e as mulheres, entre o Norte e o Sul) vai contaminar e pontuar todo o filme, expressa principalmente pelo medo das garras da noite e a obrigação à vigília, começando como um receio muito prático, a preocupação com a manada, nessas horas mais propensa à debandada (e muito se poderia dizer da sensibilidade de Hawks em descrever e filmar o silêncio e a imobilidade, neste filme, que é com certeza uma das razões para provocar um fascínio tão grande, nunca diminuído por quantas vezes se veja, com uma noção de ritmo exemplar, de saber onde abrandar e onde acelerar – lição perpétua de realização), e transformando-se depois num medo quase metafísico, medo dum inimigo invisível, em verdadeiro terror – como diz Matt a Groot, quando o filme já vai bem avançado e Groot repara que é “funny. Funny what the night does to a man, you’re allright during the day”, “during the day they can see”. Veja-se a noite de vigília de Harry Carey, Jr., veja-se como a escuridão afecta o gado e os homens, ainda o medo é muito prático e consciente, só uma preocupação. Ou a noite das brumas na floresta, quando Tess (Joanne Dru, também fabulosa) vai ter com Matt, justificando as palavras de Fen a Dunson no princípio do filme. O consolo e os cuidados tocantes dela com ele, que passa a ser o que também diz palavras ao vento e ao desbarato, como ela fazia ao princípio (tudo o que envolve o namoro deles, mesmo conhecendo a obra de Hawks, é absolutamente impressionante).Vai ser ela, ainda, que vai dar uma segunda oportunidade a Dunson, por interposta pessoa. 
 
É quando Dunson percebe que Tess está apaixonada por Matt — e pode-se e deve-se prestar muita atenção ao olhar de Wayne quando percebe isto — que decide não matar o filho adoptivo. A importância que Hawks dá a esta cena não está só na encenação desse olhar, mas também na escolha do cenário (o primeiro interior usado no filme, pouco antes dos últimos, em Abilene, onde Matt olha estupefacto para o tecto do escritório da personagem de Harry Carey, por ter passado os últimos meses ao ar livre e ao “céu aberto” – lembra a história do falecido Andrea Tonacci, que disse que quando tinha voltado de uma viagem prolongada na Amazónia para a “civilização”, via imensos defeitos nas paredes, que eram totalmente brancas para o resto das pessoas: habituado à escuridão da selva, começou a ver muitíssimo melhor), na iluminação muito intimista e focada nos rostos de Wayne e Dru. Nessa conversa, Dunson lembra-se — palavra por palavra — do que Fen lhe tinha dito na triste despedida dos dois, vê que Matt repetiu o mesmo erro que tinha cometido e quando Tess lhe pede para ir com ele pode dizer o tão repetido “...and there’s nothing you can say or do...” mas já não o diz a sério, como também já não leva a sério a sua demanda homicida. Mas isto tudo é para dizer que não há qualquer problema e inconsistência formal ou narrativa com o final, que tantas polémicas ainda hoje parece levantar — tudo se encaminha para esse desfecho. 

João Bénard da Costa lembrou muitas vezes que as contendas entre amigos na obra de Hawks não são de somenos, dando como exemplo o desfecho de O Tigre dos Mares, que as assombraria a todas. Montgomery Clift, antes de nos garantir que está tudo bem com os começos de um sorriso, é ferido por uma bala no mesmo sítio que Wayne (fechando o ciclo e completando a transferência de percursos pessoais entre os dois, também encarnada nas trocas da pulseira de Wayne, que começa o filme no pulso de Fen e acaba no pulso de Tess), ficando também marcado e tornando-se noutra “scarface” (como Paul Muni no filme do mesmo nome, Edward G. Robinson no já citado O Tigre dos Mares e Wayne). E o desfecho de Rio Vermelho só é enternecedor e sempre surpreendente porque estes fantasmas nos perseguem, porque foi possível uma “guerra” virar irmão contra irmão e porque amamos tanto estas personagens. 
 
E ainda ficam por contar a cirurgia cénica da debandada, preparada desde que se vê a personagem de Ivan Parry a meter o dedo no açúcar pela primeira vez, ilustrada pelo nervosismo de todos os cowboys com o silêncio cortado pelos uivos dos coiotes, a atenção dada ao personagem de Harry Carey, Jr. (filho de Harry Carey) com os seus cânticos e os seus sonhos; o conflito que resulta de opor três gerações e escolas de actores que vão de Harry Carey a Montgomery Clift, passando por John Wayne, e que é usado e aproveitado para o plano mais amplo da história que se tem para contar – Rio Vermelho é também dos primeiros westerns (com Canyon Passage, Forte Apache ou Pursued) a colocar muitas dúvidas e reticências às lições da história, aos ídolos consagrados, aos actos heróicos e às decisões charneira; a mítica partida de madrugada com aquele plano de 180º fabuloso e os gritos de todos os cowboys que estão prontos para a aventura, na retina e no inconsciente de todos os grandes cinéfilos, com o mesmo impacto e a mesma surpresa, com a mesma desenvoltura e o mesmo fascínio. O Rio Vermelho é ainda um dos filmes essenciais de toda a história do cinema. 
 
Pode-se ainda lembrar que é o último filme visto pelos jovens sem saída e sem escolhas em A Última Sessão de Bogdanovich e Larry McMurtry. E que foi o amigo de McMurtry, Grover Lewis, quem melhor descreveu o fascínio dessa geração pelo filme, em Old Movies in My Mind, escrevendo que “nós banqueteávamo-nos com Butterfingers e víamos carradas de sessões duplas juntos, tanto filmes crocantes, dos velhos tempos, como semi-novos. Gritávamos de terror com O Túmulo da Múmia e chorávamos como crianças com Of Mice and Men e cantávamos juntos com a bola saltitante. Falávamos sobre o suspense de entorpecer o coração de Foreign Correspondent durante dias, e discutíamos se Jimmy Cagney tinha virado cobarde a caminho da cadeira eléctrica nos Anjos de Cara Negra. Durante A Floresta Petrificada, o LaZell adormeceu no meio da cavaqueira geral, e eu apaixonei-me até à inconsciência com a jovem Bette Davis. O velho e eu vimos O Rio Vermelho três vezes seguidas, e o LaZell bateu palmas até ficar em sangue no início da condução de gado: “Levós pró Missouri, Matt!” gritava ele ao meu ouvido em alturas estranhas, sempre, daí em diante...” 

Não somos originais: “Take ‘em to Missouri, Matt!

[1] in «Hawks on Hawks» de Joseph Mcbride, University of California Press, 1982, p. 141. As restantes citações de Hawks neste texto vêm todas desse livro.

[2] Earp terá visitado rodagens de Raoul Walsh, Allan Dwan e John Ford, tornando-se ainda amigo de William S. Hart ou Tom Mix, com quem queria fazer filmes que contassem a sua “verdadeira” história (a sua fama, nesses tempos, ainda não era comparável à de hoje). Isso só aconteceu no rescaldo da publicação de Wyatt Earp: Frontier Marshall, de Stuart Lake, em 1931, que deu origem a Frontier Marshal (Dwan, 1938) e My Darling Clementine (Ford, 1946), desses belos filmes que narram os mitos como se verdade fossem. Earp terá dito ainda ao filho de Ford, Patrick, que “a única maneira de ser um marshal bem sucedido naqueles tempos era carregando uma espingarda de cano duplo, calibre 12, e não disparar até se ter a certeza que não se podia falhar.”

[3] Impulsionado pela vontade de Jesse L. Lasky (produtor) e James Cruze (realizador), apaixonados pelas histórias dos seus antepassados, The Covered Wagon marcou a primeira tentativa em tornar o western na epopeia americana por excelência. Rodado nas grandes planícies do Oeste, foi também uma aventura ao ar livre, conduzida como uma travessia do passado e exactamente com as mesmas dificuldades, desde levar a vida quotidiana no meio da natureza a atravessar rios com animais e caravanas. Interpretado maioritariamente por actores não profissionais, que atiravam ideias e iam improvisando cenas pelo caminho, iniciou a grande série de epopeias do Oeste, prosseguida com O Cavalo de Ferro (1924) e Três Homens Maus (1926) de John Ford, The Winning of Barbara Worth (1926) de Henry King, The Big Trail (1930), O Rio Vermelho e culminando em Heaven’s Gate (1980) de Michael Cimino.

[4] in «Each Man in His Time – The Life Story of a Director», Farrar, Strauss and Giroux, Nova Iorque, 1974, pp. 27-29.

[5] Acreditando em Hawks, isto aconteceu porque Ireland fumava erva e se embebedava constantemente durante a rodagem, acreditando em Borden Chase, o autor da história publicada no Saturday Evening Post em que se baseia o filme e da primeira versão do argumento, foi porque Ireland e Hawks estavam ambos interessados em Joanne Dru (Dru e Ireland acabaram por se casar). Mas as más-línguas valem o que valem, e sabendo que Hawks e Chase se passaram a odiar desde que se desentenderam por causa do argumento, é difícil saber quem é que está a dizer a verdade. Se é que interessa.

[6] Parece que não foi mútuo. A Ben Bagley, Clift disse que “eles riam e bebiam e contavam piadas porcas e davam palmadinhas nas costas uns aos outros. Tentaram-me atrair para o círculo deles, mas eu não me conseguia dar com eles. A coisa do machismo repeliu-me porque parecia tão forçada e desnecessária.” (in «Montgomery Clift: A Biography», de Patricia Bosworth, Limelight Editions, 1978) Mas Clift surpreendeu Hawks e o ‘Duke’ com a sua dedicação ao filme, acordando todos os dias muito cedo para praticar com revólveres e levando um profissional para o ensinar a andar a cavalo.

[7] Palavras de Hawks a Joseph McBride sobre Walter Brennan: “Mal se olha para ele, começa-se a rir. Quando estava a escolher actores para Barbary Coast, um produtor bem inteligente disse-me: ‘Lembra-se daquela personagem de que estávamos a falar noutro dia? Conheço uma pessoa exactamente assim.’ Eu disse, ‘Bom, porque é que não o vejo?’. ‘Este tipo nunca fez nada. Acho que até nunca disse uma linha de diálogo. É só um um figurante. Mas, meu Deus, é mesmo o que descreveu. Não sei se consegue representar ou coisa do género.’ Eu disse-lhe, ‘Traga-o cá, mas ponha-o nas roupas da personagem, dê-lhe umas frases para ele decorar. Poupa-se tempo. E não tenho que falar com ele duas ou três vezes.’ Foi assim que ele me apareceu com Walter Brennan. Olhei para ele e desatei a rir. Disse-lhe: ‘Senhor Brennan, deram-lhe o diálogo para decorar?’. Ele disse, ‘Yeah’. Eu perguntei: ‘Decorou-o?’ ‘Uh-Uh’. ‘Importa-se de o dizer?’ E ele disse, ‘Com ou sem?’ ‘Com ou sem o quê?’, perguntei eu. ‘Dentes’, respondeu ele. Já estava escolhido. Já nem precisava de dizer o diálogo. Ri-me outra vez e disse, ‘Sem’. Ele virou-se, tirou a dentadura, voltou-se para a frente outra vez e começou a falar para mim. Era suposto ter trabalhado três dias e eu fiquei com ele um mês a fazer o ‘Old Atrocity’. No filme que depois fiz com ele [Come and Get It] o argumentista descrevia-o como ‘o homem mais poderoso das florestas do Norte’. E cá estava o pequeno Brennan. Ganhou um Óscar com esse papel. Fez seis filmes comigo e só em dois desses filmes é que estavam previstos papéis para ele. No resto das vezes, chamei-o à última hora. Não se importou nada com isso – fazia tudo o que lhe pedissem para fazer. Dizia-lhe, ‘Walter, tenho um filme.’ ‘Óptimo,’ respondia ele, ‘amanhã apareço.’ E aparecia e perguntava-me, ‘Onde está o contrato?’ Eu dizia, ‘Ainda não tenho contrato.’ ‘Oh, eu quero assinar um contrato.’ Eu dizia ‘Ok’ e no dia seguinte ele vinha, assinava o contrato e pedia, ‘Agora conta-me a história.’ E eu dizia-lhe ‘Agora, tu assim e assado. Não tenho nada que te contar a história.’ Ia ler a história, voltava e dizia: ‘Chiça, que grande história. Qual é o meu papel?’. ‘Oh,’ dizia-lhe eu, ‘há uma frase no argumento que diz, ‘O cozinheiro chama-se Groot.’ É esse é o papel que vais fazer.’ E ele perguntava, ‘O que é que fazemos?’ ‘Lembras-te como nos conhecemos, aquilo do ‘com ou sem dentes?’ Bom, no princípio da viagem da manada, vais perder os dentes a jogar póquer com um índio. Assim, de cada vez que quiseres comer, tens que conseguir que o índio tos dê.’ ‘Oh,’ disse ele, ‘não podemos fazer isso.’ Isso foi O Rio Vermelho. Inventamos as cenas todas em que ele aparecia.” Mas como diz João Bénard da Costa nas suas notas a estas histórias (no catálogo da Cinemateca dedicado a Howard Hawks), Brennan não era só um figurante quando conheceu o cineasta, mas já um secundário muito respeitado em Hollywood.

in «Uma Viagem Pelo Cinema Americano», OLIVEIRA, José, PALHARES, João, A.23 Edições, 2018.

domingo, 4 de abril de 2021

His name was Raoul (III)



O HOMEM E A OBRA

Diálogo com Raoul Walsh, por Louis Skorecki
- Entrevista com Raoul Walsh, por Oliver Eyquem, Michael Henry e Jacques Saada
- Notas sobre dois filmes de Raoul Walsh, por Jacques Lourcelles
Ó Caminho de Vida Nunca Certo, por Jorge Silva Melo
Raoul Walsh, por Edmond T. Gréville
WALSH, Raoul (1887-1980), por Jean-Pierre Coursodon e Bertrand Tavernier
Um olhar sobre Raoul Walsh, por Jean-Claude Biette
Raoul Walsh, por Jean Douchet
Raoul Walsh. O Oeste Torrencial, por Miguel Marías
Raoul Walsh: A Fase James Dean, por João Bénard da Costa
- A Grande Aventura de Raoul Walsh, por Peter von Bagh
Todas as Bobines de Raoul Walsh, por Philippe Garnier
- Raoul Walsh (1887-1980), por Jean-Pierre Coursodon
Raoul Walsh: O precipício da vida, por Jorge Silva Melo
- Raoul Walsh, por Edgardo Cozarinsky

OS FILMES

- Viva Villa!, por Raoul Walsh
- The Thief of Bagdad (1924), por Jacques Lourcelles
- What Price Glory? (1926), por Jacques Lourcelles
- What Price Glory? (1926), por Kevin Brownlow
- The Big Trail (1930), por Jacques Lourcelles
- High Sierra (1941), por Jacques Lourcelles
- They Died With Their Boots On (1941), por Jacques Lourcelles
- Desperate Journey (1942), por Jacques Lourcelles
- Gentleman Jim (1942), por Miguel Marías
- Gentleman Jim (1942), por Jacques Lourcelles
- Uncertain Glory (1944), por Jacques Lourcelles
- Objective, Burma! (1945), por Jacques Lourcelles
- Pursued (1947), por Jacques Lourcelles
- Silver River (1948), por Jacques Lourcelles
- Colorado Territory (1949), por Jacques Lourcelles
- White Heat (1949), por Jacques Lourcelles
- Captain Horatio Hornblower (1951), por Jacques Lourcelles
- Along the Great Divide (1951), por Miguel Marías
- Distant Drums (1951), por Jacques Lourcelles
- The World in His Arms (1952), por Jacques Lourcelles
- Blackbeard, the Pirate (1952), por Jacques Lourcelles
- Sea Devils (1953), por Jacques Lourcelles
- The Revolt of Mamie Stover (1956), por Jacques Lourcelles
- The King and Four Queens (1956), por Jacques Lourcelles
- Band of Angels (1957), por Jacques Lourcelles
- The Naked and the Dead (1958), por Jacques Lourcelles
- Esther and the King (1960), por Jean Douchet
- A Distant Trumpet (1964), por Miguel Marías

OS ACTORES

Carta a Gloria Swanson, por Raoul Walsh
- Errol Flynn: Galanteria a Toda a Sela, por João Bénard da Costa

NOTAS SOBRE DOIS FILMES DE RAOUL WALSH


por Jacques Lourcelles

I. - OBJECTIVE, BURMA! (Objectivo Burma) 1945.

Não conseguiríamos enumerar o que Walsh não quis que o seu filme fosse: cântico de vitória lírico ou cruel, apelo cerimonial pela paz ou pela guerra, conflito simbólico de caracteres..., Objectivo Burma não é nada disso; mas talvez seja isso tudo junto, numa trama tão cerrada que as virtualidades se destroem umas às outras. Efectivamente tudo acontece como se se tratasse de um apologista que tivesse perdido a moral e se tivesse afogado definitivamente na sua matéria narrativa, como se fosse necessário esclarecer o seu olhar até não discernir mais, desses múltiplos caminhos da narrativa, do que a linha fundamental que lhes é comum e por sua vez os devia ter tornado possíveis se não fosse descrita a um nível de pureza primitiva e de aceitação global que por si só são suficientes. Aqui o êxito não é a prova de uma causa justa qualquer, mas o seu próprio espelho. Ponto de falha na continuidade dos actos, ponto de inépcia que informaria sobre a «verdadeira» natureza de um personagem ou a sua oposição a outro qualquer. Há uma imparcialidade soberana a estabelecer a submissão de movimentos dispersos à beleza e à eficácia quase inertes do conjunto, enquanto o equilíbrio complexo dos planos gerais na mise en scène se constrói e se ordena a partir do frenesim um pouco sumário dos planos aproximados. Se há ainda alguma ansiedade a animar o indivíduo, eis a sua acção integrada de imediato a um projecto mais geral, feito de momentos e de esforços idênticos. Ao agir, o homem vê-se a actuar no vizinho prestes a executar os mesmos gestos e descobre neste modelo uma abordagem de repouso.

A cada segundo, a mise en scène tem em consideração todas as variações possíveis sobre essa vocação inesperada do indivíduo em se juntar a um Todo que o acalma e o justifica. Na sequência do salto de pára-quedas, a repetição de alguns gestos vitais da operação equivalem à decomposição do movimento, explicado e ao mesmo tempo desenvolvido no tempo próprio dos seus participantes. Portanto é compreensível que concebido assim o episódio, perdendo em progressão dramática, pode em contrapartida constituir o arquétipo de toda a narrativa guerreira: assim, a vida e a morte dependem apenas de um maior domínio em ritmar a sua acção, de uma apreciação mais ou menos justa do tempo que passa. Para cada um, a honra consiste em silenciar as suas obsessões pessoais, em dar aos outros apenas o aspecto mais tranquilizador, e mais tranquilizado, de si próprio. Quanto àqueles que são afastados dos outros e especialmente feridos por um azar desfavorável, também esses se esforçam por fazer esquecer a excepção da sua angústia generalizando-a, fazendo-a servir aqueles que ainda têm a própria salvação nas mãos. Se não se vir o homem torturado no seu breve diálogo com Flynn mas apenas o rosto deste último, é isso que importa acima de tudo, sobre a superfície lisa de uma matéria em que toda a aspereza de sentimento e de carácter foi apagada, o prolongamento extremo do traço frágil, sempre ameaçado de ruptura, ligando o homem que sucumbe a um outro que para contribuir para viver vai ter de elucidar o seu último testemunho. Dez anos mais tarde, encontro uma mesma imagem de sacrifício e de palavra transmitida (uma das mais belas que um homem pode mostrar a outros homens) durante Sea Devils. Um homem vem a correr do fundo de um corredor; atingido mortalmente por uma bala, cai ao chão: mas teve ainda tempo para soltar um pombo-correio já pronto que, saltando por uma janela aberta, sobe muito alto pelo ar e vai levar a sua mensagem para o outro lado dos mares.

Admitimos que noutras alturas a austeridade desta perfeição monótona (mantida constantemente ao mesmo nível) possa cansar. Aqui, no entanto, e em plena guerra, a regra é unir o próprio ser por inteiro, rasurar a sua diferença para que o confronto do homem com o seu contrário, o inimigo, que tem de desfazer, se revele vitorioso. Um só objectivo: repelir o desconhecido através dos meios mais seguros e comprovados, proteger-se com um mecanismo irreflectido de nobreza. A inteligência, de facto, não é suficiente; porque no terreno onde os heróis se colocam, a surpresa não é o resultado de uma vigilância traída ou de um cálculo errado. Pelo contrário, e a cada ocasião, ela é a definição rigorosa do inimigo, que só se manifesta através dela, às vezes como durante um plano sublime, na trajectória luminosa de uma tocha lançada em plena noite na sua direcção. Vê-se então como a preocupação do cineasta se aplica em construir uma linha simples de narrativa apoiada pelo fervor e ímpeto comuns, depois em desfazê-la com explosões repentinas de sangue e de ruído, e por fim, com as forças dispersas reagrupadas, em prosseguir com ela aparentemente intacta no seu movimento. O vigor de uma arte assim não detalha as feridas, vê-as estancar-se lentamente. O filme, no seu todo, pretende de resto retratar o movimento dessa cicatrização; durante a luta, também nos apoiamos sobre a certeza da igual repartição de hipóteses: os companheiros de armas avançam igualmente hábeis, igualmente expostos.

Assim, no silêncio, pode-se estabelecer entre eles um contacto fugitivo e quase inconfessado que não deve nada aos jogos furtivos e complicados dos debates morais, às crises e às efusões que a urgência do combate não solicita. Faz-se finalmente o acordo lúcido das consciências, e cria-se uma espécie de comunidade moral, desprovida de artifícios (a única comunidade que Walsh alguma vez admitiu e apresentou). A salvação torna-se possível na coincidência exacta entre os meios e os fins, o conhecimentos e os actos. Levada já a um ponto de perfeição que se pode dizer que não será ultrapassado, um cinema triunfo, que apenas se digna a deter-se sobre um rosto para aí encontrar, para lá das lágrimas, fadigas e alegrias contraditórias, a unidade virgem e imaculada da impassibilidade. Eis a sua força e a sua graciosidade.

II. - A PRIVATE'S AFFAIR (Casamento por Engano) 1959.

Este filme, depois de tantos outros, não parece ter sido julgado pelo que vale, nem sequer pelo que é. Não digo pela crítica, que mal existe, mas por esses pequenos grupos dispersos de familiarizados com o cinema, na maior parte das vezes em conflito, por vezes de acordo e cujo único ponto em comum até ao momento é examinar e inventariar as riquezas do cinema onde elas se apresentam, na América, e no que com ela se relaciona. Mas talvez este filme sem cavalgadas e sem glória evidente, vindo do cineasta das cavalgadas, das glórias e dos ímpetos heróicos, tenha simplesmente surpreendido, e sabe-se que a surpresa nem sempre é recompensada. No entanto, nesta obra, encontram-se reunidas algumas das características mais nítidas do cinema americano, ao mesmo tempo que se exerce o génio específico de um autor que chegou ao termo de uma evolução que desenvolveu durante vários anos. Só que isso está tudo organizado numa síntese divertida, discreta e honesta, qualidades que na arte aspiram a tudo menos persuadir, e sobretudo em persuadir que se é sério e bem alerta. Aqui, a discrição e a honestidade fazem um só: trata-se de não trair o público e, para além dele, as leis de um género e de um país enquanto ilustra e acarinha esse género. O título e o cartaz anunciam uma comédia: haja comédia. E as suas qualidades não virão de um suposto recuo do autor em relação ao conteúdo, de um escárnio secreto pelos materiais trabalhados. A esse respeito, nunca me lembro sem um certo embaraço como o «génio» de obras como A Dama de Xangai ou Kiss Me Deadly costumava ser apregoado no domínio do policial. O que era principalmente elogiado não estava na obra mas na atitude que se supunha ser a do autor para com ela. O que nos convidam a admirar, nestas circunstâncias, é o esgar eloquente do artesão cujas mãos muito afastadas se ocupam em prosseguir - porquê? - um trabalho considerado miserável. Semelhante conduta não é a do artista, que modela ao seu desejo a matéria que for e que, tendo de lidar de momento com esse instrumento milenar de expressão humana, a comédia e toda a sua tradição, se aplica antes de mais em não a subestimar. Portanto, compreendam: o que conta no filme, aquilo por que gostamos dele, é por exemplo a dinâmica dos acontecimentos, uma entrada num cenário, a entoação de uma personagem, etc., em suma o que está no ecrã, e não atrás, por cima, além ou ao lado.

***

Se se disse a verdade e que esta comédia se insere numa tradição de que não é indigna, não deve ser difícil encontrar lá as constantes que se conseguem salientar num Menandro ou num Feydeau, digamos; e é mesmo o que acontece aqui, na verdade. De uma certa linha de grandes cómicos, reconheça-se portanto em primeiro lugar, neste filme, a arte da introdução, a ciência dos preparativos por onde todos os elementos, materiais ou psicológicos, não vão deixar de se instar e convocar uns aos outros. Os mais anedóticos, os mais isolados, os mais aparentemente acidentais, os que menos se esperaria ver entrar numa lógica recebem a sua utilidade para, cada um à sua maneira, fazer progredir a acção e fazer as personagens percorrer o campo das suas possibilidades. Nessa perspectiva, o gag (ou o efeito, simplesmente) vai-se repetir em duas ou várias sequências e situações diferentes; claro que assegura a continuidade e a inteligibilidade mas - facto mais importante - é ele que muitas vezes torna a existência possível e admissível dentro da história. Pode-se então acompanhar um gag que, nascido numa situação, se desenvolve numa segunda em que se instala um novo efeito que, por sua vez, recebe a consagração de uma terceira cena em que o eco do primeiro ainda ressoa... Criam-se imediatamente vastas imbricações de factos e de observações. Eis um exemplo, entre os mais simples, e portanto mais fácil de descrever, já que é tirado mesmo do início do filme e onde as coisas já são bem claras.

Três jovens militares recentemente alistados, os heróis do filme, voltam cansados dos seus primeiros exercícios. Deitam-se nas camas durante um bocado. Subitamente, soa a voz do sargento. Ei-los então, apesar do cansaço, levantados à pressa e a correrem para se porem em sentido. Os olhos deles percorrem a sala sem ver sargento nenhum, e descobrem finalmente um desnorteado amável, sentado com um gravador; conseguiu gravar o primeiro discurso do sargento e vem como brincadeira, passar a fita (o que deu lugar a uma segunda audição, já que tínhamos assistido à primeira numa cena anterior). Os jovens não gostam nada e vão-se deitar novamente. Surge o sargento, desta vez em carne e osso, que faz a sua voz ser ouvida pela terceira vez. Mas os nossos heróis, nas camas, supõem que é uma repetição da dita brincadeira e não se mexem: um deles imita mesmo o tom e as palavras do sargento que, ao aproximar-se, lhes é revelado. Salto para fora da cama: o imitador e os seus vizinhos vão ser punidos. O gravador que controla aqui uma série de cenas, e de efeitos repetidos, sendo ao mesmo tempo a sua causa e o seu instrumento, fará também ele a sua reaparição um pouco mais tarde. Jim Backus, organizador de um espectáculo militar («a really, really big show») deixa a caserna, depois de ter feito audições entre os recrutas; mas nada era interessante, e ele vai-se embora. De repente, chegam-lhe aos ouvidos os ecos de uma canção executada em trio, - a dos nossos três heróis - improvisada durante os trabalhos forçados obtidos na cena descrita acima. Seguindo o som, Backus entra no quarto e encontra lá o nosso gravador de há bocado: aquele que não sabe fazer mais além disso, gravou a canção dos três soldados e ouve-a, enquanto varre. Vivamente interessado, Bakus pergunta-lhe o nome dos cantores. O encontro destes dois desnorteados, um com o seu bloco de notas, o outro com a sua vassoura, ambos de uma humanidade muito semelhante e que nunca se devem ter conhecido, constitui assim um segundo de cinema cujo valor mal se saberia avaliar em palavras.

Arte da introdução? Assinale-se de passagem a desse mesmo Jim Backus na trama da narrativa, verdadeiramente imperial. Noite de licença na caserna. Salão de festas, baile e bolinhos. O acaso deu aos nossos jovens amigos uma companheira, tirando àquele de entre eles que é o sedutor de serviço (Gary Crosby). Portanto ele não tem mais que fazer além de ir ver televisão numa sala ao lado. O pequeno ecrã apresenta por enquanto uma selva de raparigas monótonas. Depois aparece no quadro das suas funções e até do próprio cargo, Jim Backus que, no final do seu espectáculo e antes de dirigir aos espectadores uma pequena saudação inimitável, anuncia: «Soldados, vocês que assistem ao espectáculo, lembrem-se: vou passar pelas vossas casernas para fazer audições. Boa noite a todos, boa noite». É então com grande naturalidade que o vamos ver alguns minutos depois, dentro da caserna, a assistir a dois militares terminar uma dança à Gene Kelly...


***

Sabe-se que a comédia devidamente entendida pode existir segundo duas direcções opostas e responder a necessidades bastante diferentes: seja apontando para a proliferação do gag, inumerável e constantemente novo, que aqui não é desejado, seja empreendendo uma busca sistemática de repetições, não dualidades simétricas em que os efeitos se respondem com ordem mas numa intriga em que se inauguram séries que correm o risco de ser infinitas. As séries, nos diversos pontos do seu desenvolvimento, comunicam ao espectador impressões progressivamente mutáveis e servem, como em re-transmissão, objectivos sucessivos e diferentes. Para que servem efectivamente estas repetições, senão para nos iniciar a uma melhor visão das coisas, exactamente aquela para onde nos quer levar o autor? E é assim que vai a comédia. Não proclama paradoxos, ou afirmações vigorosas; progride lentamente, ligação após ligação, sabendo para onde quer ir, nunca revelando o seu objectivo sem no entanto o esquecer. O ataque visível e a demonstração de força não são o seu forte, mas antes o envolvimento. Quer-se dirigir apenas à atenção, que retém através de analogias. Veja-se um bocado a forma e a ousadia.

A primeira aparição do gag (ou do efeito) ataca de forma suave, quer reconciliar o nosso público, o seu recurso é a surpresa, ou mesmo uma ingenuidade aprazível, quase infantil: o primeiro gag do gravador, a primeira cena do psiquiatra. Durante a sua primeira repetição, revela-se um valor de premonição e de ameaça, assim como um primeiro ataque em geral à liberdade das personagens e ao movimento das suas acções. Ao mesmo tempo especifica-se a natureza do seu destino e dos laços que os unem ao seu mundo. Segunda cena do psiquiatra, que entende o seu erro (e diz genialmente: «Estava apenas a fazer o meu trabalho, sabe. Não me leva a mal?») confessando com isso que fazer esse género de erros e interpretar o seu papel idiota são a garantia da sua segurança e das suas ilusões. As repetições posteriores do efeito, se houver, vão tecer percursos e, ao construí-los, devem-nos levar ao coração do Labirinto. Percurso complicado, efectivamente, o do périplo de Barry Coe na sua cama de rodas no hospital; percurso também complicado o das viagens de ida e volta entre Nova Iorque e Washington. Chegadas a este estado, as séries já não têm razão para parar. Só neste momento, e a partir do ritmo e da habituação que instalaram dentro de nós, é que a euforia, pequena porta aberta para o júbilo, pode começar. Também é aqui que Walsh abandona a comédia, e se reencontra. Eis Sea Devils, o seu «vai e vem nocturno sobre a Mancha» segundo a excelente definição de Jacques Saada, a simples música, o espaço e as cores (tudo isto já preparado na obra por uma abundância de cenários feitos de superfícies planas e de uma só cor, como que relutantemente figurativos). No ecrã, um avião atravessa a noite e avança na chuva, iluminada de repente por um relâmpago. Em que filme é que nós estamos? Tudo é esquecido, tudo o que tinha sido até aqui constatado e pacientemente examinado no mundo inferior, o riso, e até a amargura.

Que tal palavra, amargura, possa ser pronunciada a propósito de um filme de Walsh faz-nos recordar atempadamente a ampla evolução que a sua obra sofreu nos últimos vinte anos. Essa obra, como a maior parte das grandes obras, parte de uma questão simples, e colocada de forma resoluta. Como é que se pode viver de forma nobre, em equilíbrio com o universo, formar alianças, levar a cabo empreendimentos que garantem à pessoa humana o seu desenvolvimento pleno, sem reprimir nem acentuar exageradamente nenhuma das suas possibilidades? Que essa obra se tenha então construído e tenha triunfado nestes dois domínios privilegiados: o filme de guerra (não a guerra dos grandes discursos mas a dos pequenos comandos atirados directamente para o terreno) e o filme de aventuras que traça geralmente uma figura e uma carreira exemplares, também isso não poderá ser um dado insignificante. Estes dois domínios favoreciam efectivamente um certo tipo de relação, sempre igual, entre o herói ou o pequeno grupo heróico que actua em uníssono e o resto do mundo. Nas tonalidades mais jubilosas (Gentleman Jim) como nas tonalidades mais sombrias (Pursued - Colorado Territory) o ponto de vista do herói em relação àquilo que o rodeia permanece idêntico: nenhum ponto de contacto verdadeiro, nenhuma paragem durável num meio ou numa sociedades definidos. Aponta-se sempre ao topo, pela conquista e pela vitória, bem como à aniquilação do passado, com um salto em frente. Todo o ser, em corpo como em espírito, é envolvido neste ímpeto e nesta corrente. O herói é o não-especialista por excelência. Lembre-se que James Corbett, no início da sua ascensão, no nível mais baixo da escada social, quer-se tornar um grande pugilista e ao mesmo tempo um cavalheiro. Os dois objectivos, para ele, são inseparáveis e servem-se mutuamente. Assim, a experiência base do herói walshiano pode-se caracterizar com uma palavra: ambição. É ainda preciso especificar, para o período de que falamos, que não é tanto uma questão de acumular bens materiais como atingir o máximo de comodidade e felicidade neste mundo, ou garantir apenas a salvação, numa situação de conquistador. O autor observa, aceita e trabalha para unir com a sua mise en scène esse movimento de conquista e essa busca resoluta e uniforme.

Depois vieram obras em que se iria desmoronar a pouco e pouco a condição heróica da personagem central. Desta feita, um retrato dos excessos do herói, do impasse para onde esses excessos o impelem e que, retirando-lhe toda a humanidade, o fazem reencontrar, no final da viagem, o mal-estar de que queria sair: eis o que agora nos propõem obras como Fúria Sanguinária, Barba Negra, o Pirata, The Revolt of Mamie Stover ou Os Nus e Os Mortos, que inauguraram uma mutação do olhar no autor. Foi para ele a oportunidade de reconsiderar e examinar com um olho mais crítico as suas próprias criações e o seu entusiasmo. Durante esse exame e contrariamente ao que antes se passava, surgem as semelhanças do herói com as personagens circundantes que adquirem com isso um relevo e uma importância de que outrora costumavam carecer. Acontece então que a meditação do autor acompanhe a da personagem e que já não seja raro ver, em O Mundo nos Seus Braços ou Band of Angels, o herói, retirado um momento da sua acção, conversar durante bastante tempo com um antigo cúmplice ou uma companheira amorosa, e pesar o seu destino como se o quisesse retomar ou corrigir. O herói já não é um ser em marcha, provando segundo a segundo a força pela força; só se mantém ele mesmo por alguns vestígios indeléveis do seu passado ou da sua raça: a extrema distinção da postura e dos traços, o cepticismo, e sobretudo a memória, a memória inalterável do herói que gera a melodia de Band of Angels, cântico de recordação e ao mesmo tempo forma de testamento.

A ideia da própria ambição, anteriormente meio de libertar os ímpetos mais preciosos do homem, torna-se um critério para escrutinar e comparar as suas intenções: no seguimento da cena da cabana em The Tall Men, Clark Gable e Jane Russell separam-se para ter representações bem diferentes dessa ambição e dos meios de a satisfazer. Da mesma forma, toda a biografia de Mamie Stover é levada a escrutínio, e examinada em função dessa obsessão devastadora e das agitações que ela criou com a sua conduta. O tom muda, logicamente, e também a forma de apresentar as personagens. Deixa de existir o grande silêncio clássico, a margem de admiração e de aprovação que o autor protegia entre si e os seus heróis empenhados na realização dos seus projectos, - e de que Colorado Territory nos dá o melhor exemplo. O tom torna-se mais desapegado, ganhando (talvez) em precisão o que perde em fervor, agora mais inclinado a considerar cada personagem na sua definição pitoresca. Compare-se por um momento Objectivo Burma e Os Nus e Os Mortos, filmes, à partida, com a mesma base e o mesmo sistema. Veja-se primeiro como, no segundo destes filmes, a apresentação das personagens é quase cómica em essência: contrariamente ao que acontece em Objectivo Burma, cada uma surge ligada e soldada à sua pequena diferença, recebendo dela apenas o que tem a aparência de um debate, tomando a forma do comando, a crença que inspira o poder e o poder que pode abrigar uma tal crença, etc., debate que algumas pessoas se preocuparam em saber se diria verdadeiramente respeito a Walsh. É possível responder a essa interrogação de duas formas. O mundo, de Burma a Nus, mudou, bem como as circunstâncias. Este género de debate, cuja inclusão aqui nos surpreende, faz correr muita tinta e palavras, e tornou-se inseparável de toda a crónica guerreira. Walsh nota nisso e, ao fazê-lo, corrobora o que foi dito da sua honestidade e do seu esforço de precisão. Por isso mesmo se desapega de cada uma das personagens e adopta um ponto de vista em que as suas ideias, as suas intenções e os seus actos se podem iluminar entre si e projectar sem dúvida uma luz nova sobre a situação que lhes é imposta. Finalmente, todo esse debate serve de contraponto ao carácter de Croft (Aldo Ray) que, por sua vez, prolonga perfeitamente a meditação walshiana. Este Croft, de facto, produto perfeito do seu trabalho, e que ao cumpri-lo se vê sempre a ter razão, vai encontrar finalmente aí a sua maldição. Ainda que a sua acção esteja longe de servir qualquer auto-realização, ele mergulha nela, esconde-se lá como num refúgio e em última análise deixa-se engolir. Um tal carácter mereceria por si só um longo desenvolvimento e não posso insistir nele senão para notar a seu propósito uma semelhança narrativa com um processo balzaquiano: recusar as nuances e toda a veleidade de comentário ou de julgamento na atitude do narrador em relação àquilo que conta, rejeitar toda essa subtileza no próprio tema e confrontá-lo com reflexões fornecidas por outras personagens vindas também da narrativa, manter finalmente um ar natural de simples adaptador, um ar de confiança nos factos relatados que permita conservar em partes iguais uma grande objectividade, o recuo, a crença e as mil implicações do tema.

Isto leva-nos até ao presente e à nossa comédia. O presente: reconheçamos que o nosso cineasta só raramente se ocupa dele, já que o essencial da sua obra consiste, dizia eu, ou de biografias dos grandes aventureiros do passado (James Corbett, John Wesley Hardin, Horatio Hornblower, etc.), ou de narrativas guerreiras em que os heróis vivem pelas suas qualidades milenares, a destreza, a precisão e a paciência. Quando Flynn, em Burma, sincroniza o seu relógio com os dos seus companheiros ou quando Ulisses, apesar do sono, continua a ouvir o navio sem tirar os olhos do horizonte, quem é que vê alguma diferença? Mas por vezes, e sobretudo recentemente, houve um escrúpulo de exactidão contemporânea a invadir o cineasta; e é um encontro bastante feliz, finalmente, o que teve lugar em A Private's Affair entre uma matéria sussurrada quase relutantemente, precisamente com essa amargura que põe em dúvida e rompe com os equilíbrios melhor estabelecidos, por um lado, e por outro essa forma bastante invulgar no autor, a comédia, pela qual ele sente estranheza a todo o momento. Encontro que contribui de resto para esclarecer uma ou duas características do actual estilo de Walsh, e aquilo que o liga ao cinema mais moderno. Para se ficar convencido é preciso contar ainda mais uma cena, que é o centro da obra.

Os três jovens soldados, no dia seguinte aos exercícios, acordam e depois realizam a sua higiene matinal. Dirigindo-se aos seus amigos, Barry Coe apercebe-se então que tem uma perda de voz, catastrófica para o número musical que têm de ensaiar no próprio dia no estúdio de televisão. Coe é examinado por um médico, ingere às escondidas uma dose tripla dos comprimidos indicados para se curar mais rápido e depois é dirigido até ao hospital. Os seus dois companheiros partem sozinhos para Nova Iorque e o carro deles afasta-se enquanto chega o de Jessie Royce Landis, Ministra da Guerra, que começa a visitar o hospital da caserna. Mas este, quem se havia de surpreender, está lotado e agora Coe está à espera num corredor por um lugar e uma cama. A Senhora Ministra, prosseguindo a sua visita, vê uma menina ao pé da cama, já envolvida por uma cortina, onde se encontra o pai moribundo, vítima de um acidente de automóvel. A criança que também perdeu a mãe nesse acidente vai portanto ficar órfã em breve e, como os pais são de nacionalidade holandesa, terá de regressar devido às leis no seu país natal. A Ministra fica preocupada e retira-se para deliberar: «Que se há-de fazer», pergunta ela, «para que a pequena fique na América, já que não há ninguém para se ocupar dela na Holanda?». «Seria preciso», responde o general que a acompanha, «que a mãe dela fosse americana.» «Que não seja por isso», pondera a Ministra, «o pai dela agora está viúvo e se eu me casar com ele rápido, antes que morra, a pequena é salva.»

No outro lado do hospital, o cirurgião decide então operar o ferido; levam-no; o que cria um lugar livre para Barry Coe que sobe para cima de uma cama e que, começando a adormecer sob o efeito da dose massiva do medicamento, é transportado para a sala dos doentes. «Um verdadeiro motel!» constata uma enfermeira. O interno que vigia os corredores, absorto na leitura de bandas-desenhadas, não viu nada. A Ministra, toda virada para a sua missão de beneficência, ordena neste momento que conduzam o moribundo para a sala de radiografias para proceder de forma mais cómoda ao casamento. E, naturalmente, é o nosso soldado que é levado. Vendo voltar a partir a cama que chegou há alguns segundos, a enfermeira comenta de forma lacónica, como sempre: «Rápido, este». Sala de radiografias: está lá a ministra, e um padre holandês que pergunta: «Aceita tomar como esposa Elisabeth Chapman aqui presente?». O nosso herói, agora completamente adormecido, lança um longo ronco. «Ele disse que sim», afirma solenemente a Ministra. É só bem mais tarde, e depois de múltiplas idas e vindas pela América fora, que o jovem vai conseguir desfazer este mal-entendido matrimonial...

Talvez nunca o tumulto e a desordem das leis, dos costumes, das instituições, e até das tendências benfeitoras do homem tenham tido um encontro tão populoso num filme; e esta história que nos obriga a reconhecer os traços da nossa própria vida também nos obriga a reconhecer a sua combinação inextricável e, chegado o momento, a sua insanidade. Vai-se exclamar que não passam de coincidências de argumento, e de fantasia literária particularmente bem conseguida? Mas como não ver que elas se desintegrariam e ficariam bem rápido em cinzas, se não fossem sustentadas e conduzidas pelo tom do cineasta que, se desejarem, chamaria de mise en scène. Aquilo que nos esforçamos acima de tudo em elucidar é a ligação dos acontecimentos entre eles, a forma como os factos se encadeiam, e esse tom, sem nunca deixar de ser imperturbável, deixa-os amontoar-se e provocar-se como eles próprios. Essa noção de encadeamento dos factos, como nos únicos filmes verdadeiramente modernos que até aqui se viram, impede particularmente o cineasta de proceder a uma hierarquia entre os acontecimentos apresentados concedendo a alguns deles uma importância privilegiada. Aos olhos do autor, tudo se equivale e mesmo os incidentes menores, no papel, a partir do momento em que se escolhem mostrar e ocupam o seu lugar na duração, podem ser deste modo causa ou presságio do que se vai seguir. E ver-se-á isso, numa das primeiras cenas do «Tigre de Eschnapur» de Fritz Lang o herói perde vários segundos a brigar com um pequeno macaco escarnecedor por um tubo de pasta dos dentes, depois esconder esse tubo atrás das costas quando aparece Debra Paget, finalmente a instalar no rosto essa máscara de desconforto e de respeito e de desejo que nunca mais o deixará. E ver-se-á isso, numa cena única mas de que não se tira os olhos, um carácter inteiro revelado até nos seus entrincheiramentos mais misteriosos: em Psycho, no final da longa cena, após o assassinato de Janet Leigh, em que Perkins «limpa a casa» e elimina todos os vestígios do crime, ficamos a saber quem ele é, se não formos pequenas múmias estendidas nas nossas poltronas. Este cinema, fundado numa atitude de humildade e atenção extrema pela parte do autor, só tem um defeito, que é pedir tanto do espectador; mas o quê, vamo-nos queixar por ter de lidar com filmes mais inteligentes do que nós?

Em A Private's Affair, as inúmeras cenas do género que resumi, - e onde surge um estado de civilização em grande nudez - entram plenamente de acordo, de resto, com outra tendência que se torna cada vez mais nítida nos filmes de Walsh, refiro-me à recusa do paroxismo. Essa recusa, que talvez parta apenas de uma reacção saudável perante o cinemascope, e que sustenta os mais belos efeitos de The Revolt of Mamie Stover, tende a interiorizar, ou antes a conter a violência, a expandir e a repartir a força do plano ou da sequência sobre toda a sua duração. Dois exemplos, tirados deste último filme. Durante uma viagem, Jane Russell e Richard Egan jogam ao lançamento de argolas sobre um pequeno pedaço de madeira fixado no chão. Jane Russell tenta três vezes: pode-se ver a progressão que qualquer cineasta teria traçado, fazendo-a falhar das duas primeiras vezes e depois conseguir na terceira e encerrando a sequência com a sua alegria ou um sorriso dela. No plano de Walsh: ela falha a primeira vez, consegue na segunda e falha outra vez, depois aproxima-se da câmara para pegar nas argolas, empurrando ironicamente o seu parceiro pelas costas. Final do filme: Mamie, no seu bungalow, acaba de ver todas as suas maquinações frustradas, e o que era a essência da sua vida desmoronar-se; passa um disco muito ritmado, que tinha posto para criar a atmosfera havaiana. É com essa música que continua que Walsh encadeia essa sequência com a seguinte (essa de noite e a última do filme) em que Mamie regressa ao porto e deixa definitivamente a cidade. É pouco, dirão vocês, mas a descoberta, vista no movimento das duas cenas, tira-nos o fôlego.


***

Devo finalmente tentar concluir e dizer porque é que este filme é especificamente walshiano e nos toca, em que é que é diferente, por exemplo, das fábulas hawksianas com o apoio das quais podia apresentar alguma afinidade. Já disse algumas palavras sobre esse júbilo que alimenta tantos momentos das melhores obras de Walsh (e particularmente de Sea Devils) e que ele aqui esboçava como término, quase alcançado, das repetições cómicas.

Neste filme, obra de um velho cineasta a reflectir sobre as suas criações passadas e sobre o presente, de um homem de setenta anos a reflectir sobre a juventude e o destino que lhe foi reservado, neste filme em que tudo fala portanto de experiência, a atenção vai incidir sobretudo naquilo que se pode manter de heróico em tal mundo. E através deste aspecto o nosso cineasta marca bem a sua presença. O que, ao longo de todo o filme, vai ser observado com uma grande atenção inquieta, é a cara quase lisa com que Barry Coe se opõe aos acontecimentos que se insurgem contra ele, e a consciência tímida que nasce em si dos perigos que o rodeiam. Note-se que, em relação aos velhos da intriga, aos homens no poder que a pensam dirigir, os nossos jovens são bem poupados. E os velhos recursos da comédia, a inconsciência e a impotência provisórias induzem-nos agora a animar não fantoches mas jovens cercados à custa dos quais serão produzidos muito poucos efeitos cómicos. No próprio seio do grupo dos três amigos, vai ser Barry Coe que será observado de forma mais atenta. No mundo contraditório para onde é lançado, toda a actividade visa forjar armas, consolidar uma civilização que se quer rigorosa, criar uma organização infalível: mas a própria organização, encarregada da protecção dos seus membros, segrega a ferida que, desamparada, não pode então nem tratar nem impedir que se propague. E quando a desgraça lhes cai em cima, estes jovens soldados modelos já não tem legalmente o direito nem a iniciativa da defesa. Ferida fútil, talvez, esta que é aqui apresentada: mas que importa, se nos consegue introduzir a uma visão mais global da sociedade que a produz e a inflige. Não nos surpreende que dos três amigos, seja Barry Coe, o mais indefinido psicologicamente e o menos munido de defesas contra os ataques que recebe, aquele que o autor acompanha com mais atenção e guia ao coração do labirinto. Os seus dois companheiros têm efectivamente uma tendência para se especializar, um na sua condição de filho de família numerosa, o outro na de sedutor atarefado, que, embora ainda ligeira, os desqualificaria desde o início para o papel e a herança heróica que deveriam receber.

Marc Bernard disse com justeza acerca de Exodus: «O objectivo de um cineasta não pode um só instante ser outro que não o de mostrar aos homens que vivem no mesmo tempo que ele aquilo que existe de mais importante nesse mundo presente». É verdade; e A Private's Affair fá-lo de forma admirável, melhor do que cem documentários inúteis e câmaras-olho e olhos sem cabeça. Mas também é verdade que o autor deve sugerir que tudo aquilo que existe e parece fatal, poderia ser de outra forma, se assim o quiséssemos. Aqui as convenções da comédia são particularmente práticas e representam o seu papel: o seu jogo das escondidas com a morte de que chega perto sem a querer alcançar, o seu esforço visível, - e visivelmente inútil - para dar como excepcional uma história quase quotidiana, em todo o caso amassada pelo material mais comum dos nossos hábitos, tudo converge a que os factos sejam propostos e submetidos à nossa reflexão, mais do que impostos; e tão pouco impostos que alguns pura e simplesmente os ignoram. Nessa perspectiva, a comédia não surge como a irmã pobre da tragédia; nem sequer é sua igual, ou sua correspondente. Supera-a: porque contém um material de factos que facilmente alimentariam várias tragédias, o sorriso do homem que as descreve e as conhece, o sorriso da vida que continua, da sabedoria e do distanciamento.


in «Présence du Cinéma» nº 13, Maio de 1962, pp. 23-32.