"Somos anjos duma asa só e só podemos voar quando nos abraçamos uns aos outros."

Pensamento de Fernando Pessoa deixado para todos os que estão na lista abaixo e àqueles que passam sem deixar rasto. Seguimos juntos!

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quinta-feira, 30 de agosto de 2012

DESCREVER E LER O MEU PAI...


Eu e o meu pai


Desde que apurei o gosto pela escrita que se aguçou em mim a vontade de escrever as histórias da história de vida do meu pai.
O seu carácter sensível e bondoso, frágil e lutador, aliado à criança que preservou dentro de si, foi talvez a fórmula certa que usou para atravessar os inúmeros e áridos desertos dos seus 87 anos. Um poço de vivências repletas de sabedoria que transporto e guardo dentro de mim.
Há algum tempo que comecei a juntar este espólio sem lhe esconder o propósito, embora ache que ele nunca me levou a sério – até porque nunca se apercebeu que eu escrevo – mas os seus olhos brilham de cada vez que o levo a desfiar as suas memórias e esses momentos vão recheando de conteúdo a minha própria história.
Pelo meio informo-o dos avanços da minha escrita, mas, porque nunca gostei de ler em voz alta para ninguém – por ser lamechas e emotiva – também nunca lhe li na íntegra o que já escrevi sobre ele…até ontem…

Veio visitar-me e atacou assim:
-“Uma vizinha disse-me que me viu no computador”
Em alerta mas escondendo o pânico interior, retorqui com a calma que pude:
 “O pai sabe que eu estou registando em escrita a sua história, não sabe? E também sabe que eu partilho com amigos, no “computador” as mesmas…”
“Pois…sei…mas como é isso, mostra lá…”
Senti que o momento que adiei consecutivamente tinha chegado. Enquanto fui em busca do computador exercitei e estimulei a minha coragem ao mesmo tempo que tentava abrandar as batidas do meu coração, mas cá dentro só dizia: e agora?

Poisei o computador e abri as fotos ao mesmo tempo que ia identificando cada uma com a respectiva história, até que me disse:
- “Lê essa”
Era precisamente a que escrevi contando de forma sucinta a sua história desde menino. Respirei fundo e comecei – pensava eu – cheia de coragem.
Ainda mal tinha começado, o meu pai interrompeu-me com um choro convulsivo, profundo e sentido que me cortou a coragem em pedaços…afaguei-o já sem me esforçar para ser forte e ficámos os dois ali, abraçados com longos intervalos entre os parágrafos para nos recompormos, mas chegámos ao fim. Um fim que – sei – foi um início.
Levei-o à porta num abraço e na despedida disse-me assim:
“O pai já te contou aquela, de como se escondia do avô para não levar “porrada”?”
Respondi que não…
“Atão dexa tar que quando cá vier vou contar…eu fui um menino muito maltratado…”
Com a lagrimita a assomar, mas orgulhoso, finalizou:
“Mas ainda cá tô e tenho as minhas três filhinhas que foi a melhor coisa que Deus me deu”

Obrigado pai…

Dulce Gomes

sexta-feira, 22 de junho de 2012

OS SAPATINHOS CASTANHOS



Ele teria à volta de quinze anos e os seus pés nus até então, nunca se tinham enfiado nuns sapatos.
Pés calejados, tão calejados como a sua própria alma. Diferiam apenas na forma de calejo. Os seus pés haviam – à força – de se tornar resistentes e à prova de todo o piso.
A alma – essa – apesar de calejada, não enrijou nem com as pisadelas da vida. Pelo contrário, era sensível e permeável aos poucos rasgos de luz que espreitavam pelas nesgas da sua infância, mas que habilmente fazia deles uma estrada iluminada, alimento da sua contagiante alegria. Uma alma tão maleável como os galhos dos pinheiros que – vergados pelo vento – balanceavam os seus sonhos num vaivém de esperança, numa espera de bonança que o verão haveria de repor.

Foi num desses dias de verão que ele se escapou – por uma fresta rígida da opressão da vida que o obrigava a trabalhar de sol a sol e posteriormente nas rochas (à pesca) ao “acejo” da noite (fim do dia) – e foi para a praia.
Cansado, nem se livrou dos “trapos” que o cobriam e estirou-se refastelado – debaixo duma rocha – na areia fina ajeitando-a para si. O sol quente repassou-o até aos ossos e o seu corpo exausto adormeceu por tempo indeterminado. 
Quando acordou, já do sol restavam apenas algumas pinceladas vermelhas varridas pela brisa suave e mal vislumbrava o horizonte.
Aflito e receoso pelo atraso para a pesca ao acejo com o seu pai, levantou-se como se movido por uma mola mas caiu sem forças. Ficaria ali, não fora alguém o reconhecer e levá-lo num esquife para casa.
Pela primeira vez na vida não foi recebido com o cajado que sistematicamente lhe caia em cima do “lombo” ao mais pequeno motivo.

O pai chamou o único médico da terra que o internou no hospital durante um mês com uma pneumonia. Esteve à beira da morte, mas nunca tinha sido tão bem tratado, nem nunca tinha visto o pai tão brando. Pela primeira vez (apesar de não o tratar por filho) lhe chamou pelo nome.

Quando finalmente teve alta hospitalar, o médico disse ao seu pai:
- “Vá buscar a roupa e uns sapatos para o moço. Ele não vai daqui descalço”
Mas o moço não tinha sapatos, nem o pai tinha dinheiro para os comprar.
Perante a firmeza do médico e o embaraço do seu pai, o moço disse a medo que há algum tempo estava a pagar uns sapatos a prestações na mercearia da Mariana Godinho. Custaram 120 escudos, mas ainda faltavam 50 para os poder trazer. Surpreendido ma sem alternativa o seu pai foi busca-los e pagou o restante.
No dia seguinte, pela primeira vez, ele tinha nas suas mãos a caixa dos sapatos tão almejados. E agora deixo aqui as suas palavras:
«Era uma caixa de papelão…novinha… até tinha medo de a agarrar…
Abri-a devagarinho e vejo os meus sapatinhos castanhos a “rir” para mim...deitavam cá um cheirinho a novo…eu que nunca tinha pegado nuns sapatos, quanto mais calça-los, não sabia o que havia de lhes fazer. Até que o médico com um olhar enternecido, me disse:
-“Calça-os filho…”
Desajeitado lá os calcei a medo e pus-me de pé à beira da cama, mas não sabia andar com os sapatos. Parecia uma criancinha a aprender a andar…O chão era de soalho antigo e rangia debaixo dos pés e os sapatinhos brilhavam mais do que o soalho. Devagarinho dei uns passinhos e o soalho fazia: trrrtttt…trrrttt…até tinha medo daquilo…Fui até ao fim do quarto e voltei…e andei às voltinhas. Mas depois, já parecia o Fred Astaire a rodopiar e quanto mais olhava os meus pés, mais contente ficava. Senti-me tão importante... Sai do hospital todo “inchado” de sapatos novos nos pés…»
E arrematou dizendo: O que era a vida…

Nesse dia, os sonhos deste menino (meu querido pai) couberam todos numa caixa de papelão e sentiu pela primeira vez o mundo a seus pés através dum simples par de sapatos, aos quais soube arrancar um “sorriso” e passos de dança à Fred Astaire.


Obrigada Pai
da tua filha caçula



segunda-feira, 29 de agosto de 2011

CONVERSAS DE PAI






Já aqui falei muito do meu pai. Homem curtido pelo salgadiço do mar e coração doce, fruto de muitas vivências que ele soube arrecadar e usá-las para seu crescimento enquanto ser humano. Esta mistura dá-lhe um toque temperado e genuíno que transparece sempre nas suas atitudes e palavras.
Hoje fui com ele ao hospital para que lhe fosse feito um exame. A sala estava repleta de gente mas o silêncio era ensurdecedor, quebrado apenas pela televisão que todos fingiam ver e pelo tilintar do chamamento electrónico que nos faz levantar da cadeira como autómatos. Ao nosso bom-dia foram poucos foram os que retribuíram. Sentamo-nos e o meu pai – como é hábito – não demorou muito tempo até quebrar o gelo silencioso do ambiente. Começou com uma frase circunstancial endereçada para mim, mas rodou um olhar extensível aos presentes, numa espécie de convite à conversa. Um senhor olhou-o atentamente e sorriu e depressa se deu aquele contágio falante tão peculiar na sua presença. 
O meu pai, agora já encorajado pela adesão, voltava as atenções para os mais renitentes e o silêncio foi substituído por uma acesa troca de experiências de vida onde não faltou a emoção.
Ele é um contador das histórias que fazem morada na sua própria história. Conta-as com uma simplicidade que lhe é característica onde não cabe nem vaidade nem receio, muito menos alguma espécie de azedume ou complexo pelo que foi ou é.
Calmamente passeou pela sua infância e adolescência; pela sua experiência enquanto filho e enquanto pai. E foi precisamente neste último patamar que os seus olhos ficaram marejados e olhando para mim disse: “as minhas filhas são a melhor coisa que Deus me deu”
Olhei para o lado tentando disfarçar…
É que o meu pai raramente se refere a Deus como um dador de graças, até aqui dizia o mesmo mas referindo-se à sorte como sua aliada e isto comoveu-me...
Sim, somos uma graça de Deus. E veio de Deus a graça de ter um pai assim...
Com tudo isto escusado será dizer que quando nos despedimos a sala ficou de conversa bem implementada e a despedida do meu pai foi feita um por um como se conhecesse todas as pessoas desde sempre. 

terça-feira, 26 de julho de 2011

O SALVAMENTO (MEU PAI)



Ele teria uns dez anos, a pele bem curtida pelo sol. As duras solas dos pés contavam as traquinices e os tropeços nas pedras do caminho.
Seria um miúdo como tantos outros, não fora ter sido vitima do abandono irreversível da mãe - ainda em tenra idade - e ter ficado à mercê dum pai que o maltratava. 
Cresceu à força, facto que não lhe empederniu o coração - pelo contrário - tornou-o mais sensível a tudo o que o rodeava.
As brincadeiras eram improvisadas com a arte e o engenho de quem nada tinha e um dos lugares de eleição, era a praia de Sines. 
Em grupo, deliciava-se nos concursos de mergulho onde cada um tentava exibir a destreza e o fôlego, nos saltos para a água do mais apropriado rochedo do pontal surdindo até que os pulmões dessem o alerta.
Um dia, juntou-se ao grupo um menino de cinco anos que escapou sorrateiramente do seu pai,  quando se aperceberam, ele havia saltado para a água imitando os "grandes". Esta façanha deixou-o em perigo de vida e depressa começou a afogar-se perante a inércia dos muitos que olhavam aterrorizados do areal. Foi aí que o menino de dez anos (meu pai) se atirou à agua decidido a salvá-lo.

– “Agarrei-o pelas pernas e com toda a força levantei-o e nadei, nadei… até à areia. O gentio era aos magotes na beira da maré à nossa espera para nos agarrar. Estendi-o na areia e vi que ele estava bem. O pai do menino quis saber quem lhe tinha salvado o filho. Apontaram para mim. Quando ele me olhou e eu vi que era o cabo Custódio, o cabo da guarda…tremi de medo e antes que me agarrassem, fugi dali a “sete pés”.”  


Este episódio passou e ficou adormecido na rotina da sua penosa infância. Até que um dia…


Quando o sol descambava, era hora de dar asas a outra brincadeira: consistia em alisar bem uma tábua nas rochas, resultando uma espécie de Skate artesanal que os iria levar desde a vila até à praia, descendo a pique, os muitos lances de escada que lhe dão acesso. Claro que quando acabava essa trajectória alucinante nem sempre estavam intactos. Por isso faziam-no à socapa, não fosse a guarda apanhá-los e dar-lhes uma sova. Até que um dia foram mesmos "caçados" e como forma de coação, levados para o posto da guarda com o intuito de que o medo lhes travasse o arrojo desmedido e perigoso.
Eram uns quantos, o mais novo era o meu pai.
Cabisbaixo e encolhido a um canto esperando a sua vez, nem ousava olhar os guardas enquanto os amigos escutavam um sermão com algumas chapadas à mistura. Foi quando dois pés enormes estacaram à sua frente, o que o fez estremecer mais ainda... uma mão levantou-lhe o queixo para o identificar....O ar austero do guarda mudou radicalmente de expressão quando o reconheceu e disse:
– “ Ó filho, tu também aqui…metido neste sarilho…e agora? O que é que eu vou fazer contigo…”
Quando o meu pai o fitou, reconheceu-o de imediato: era o cabo Custódio. O pai do menino que ele tinha salvado.
“ Eu tremia que nem varas verdes, mas ele afastou-se de mim e foi falar com os outros guardas. Passado pouco tempo voltou e disse:
- “ Vocês podem ir, mas podem agradecer aquele gaiato que salvou a vida do meu filho. Vão e nunca mais cá apareçam.”
Olhando o meu pai, falou-lhe com ternura:
– “ E tu filho, não te metas mais em sarilhos. Eu nunca vou esquecer o que tu fizeste”


(Recolhendo as histórias do meu querido pai...)


segunda-feira, 6 de junho de 2011

RETALHOS DE EXISTÊNCIA (O MEU PAI)

Olhar esta foto (tirada no domingo de Crisma da minha sobrinha) foi o arranque para reviver uma história entre eles – avô e neta – há três anos atrás.


Revisitar os retalhos da vida do meu pai é como trazer para o presente, pedacinhos vivos da sua/nossa existência que continuam prontos para ser reciclados de modo a aproveita-los para receber deles verdadeiras lições de amor sempre atuais e das quais não me quero despegar muito menos esquecer.
O meu pai foi fumador desde os seus tempos de criança. Durante toda a sua vida foram várias as tentativas para deixar esse vício e todas elas saíram infrutíferas.

Decorria o ano de 2007 quando ele foi vítima duma paragem cardíaca que o obrigou ao uso dum pacemaker. Saiu do hospital com a advertência sobre o uso do tabaco e a sua proibição. Durante uns tempos conseguiu privar-se mas aos poucos e conforme se ia restabelecendo, recomeçou a fumar à socapa até que um ano depois foi surpreendido por mais um incidente que o levou ao coma. Mas Deus quis dar-lhe mais uma oportunidade e ele, contra todos os prognósticos recuperou e veio para casa.
Todos, incluindo ele, sabíamos que se voltasse a fumar estaria a assinar a sua sentença de morte e se não fosse capaz de se agarrar à vida, mudando os seus hábitos, poderia não resistir.
A minha sobrinha Ana Lúcia, que nunca conheceu os avôs paternos e a quem a vida já levou o pai e a avó materna, foi a sua casa e surpreendeu-o desta forma:
Olha “Joquenito”, se não quiseres parar de fumar por ti, fá-lo por mim – tua neta – pensa que eu já perdi o meu pai, a avó e não me apetece nem está nos meus planos perder-te também a ti. És o único avô que me resta e se não parares de fumar perco-te também e eu não quero de forma alguma, perder-te.
Surpreso com esta atitude da neta, o meu pai ficou sem capacidade de resposta. Acabaram os dois num afectuoso abraço e entre lágrimas.
A partir desse dia, o nosso “Joquenito” nunca mais fumou e depois de refeito deste embate confessava que nunca pensou que a neta fosse capaz de lhe falar daquela forma.
Falar-lhe daquela forma foi o “tratamento de choque” como lhe viria a chamar a minha sobrinha, que o levou a superar um vício que até então não tinha conseguido erradicar. Conseguiu-o por se sentir extremamente amado pela neta, o que o levou a superar-se e a retribuir com o mesmo amor que recebeu.
Olhando-os, dei por mim a reflectir que se o amor não saísse vencedor, esta foto não existiria.
Louvo por estes pedacinhos de existência que Deus nos proporciona: são eles o oxigénio que nos fazem respirar e acreditar que vale a pena investir e preservar os valores familiares - tantas vezes rotulados fora de moda - e deixar que as nossas ações e gestos diários sejam movidos por eles.


Dulce Gomes


“Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e o amor; mas a maior de todas é o amor.” Cor 13, 13

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

MAIS UMA HISTÓRIA DO MEU PAI

ALMIRANTE DAS HISTÓRIAS

Gosto de puxar pelas estórias do meu pai. Ontem já ao cair do sol fez-nos uma visita. Sabendo a sua propensão natural para rebuscar na memória as suas douradas vivências, eu e o meu marido estimulámos mais uma conversa amena que iria converter-se num momento único que guardarei para sempre, onde não faltaram as lagrimitas intercaladas entre os silêncios para repor a coragem de continuar.
Esta foi uma das que contou ontem.
Ainda na sua juventude, vivendo com uma madrasta/mãe como faz questão de mencionar e com um pai que lhes dava maus tratos, o meu pai, nessa altura já exímio na arte de pescar à cana e única fonte onde ia buscar o sustento no inverno, foi a caminho das rochas para pescar às salemas. Como sempre levava uma cana suplente não fosse o mar levar-lhe alguma ou partir-se.
Mal tinha começado a pescar e vê chegar o "Ti Pardina" com o filho ainda jovem. Iam à pesca dos burrinhos (um peixe que facilmente se deixava apanhar e que abundava por ali). O "Ti Pardina" era forneiro mas, para além de estar desempregado não tinha a perícia nem a destreza dos que como o meu pai faziam da pesca o seu ganha-pão.
O meu pai depois duma breve conversa chamou-o para junto dele e disse-lhe:
-“Ó Ti Pardina venha práqui homem, eu empresto-lhe uma cana e você pesca aqui comigo, aí você não apanha nada.”
O "Ti Pardina" depois de dizer que não sabia pescar lá aceitou a cana já emparelhada. A pesca fluiu e correu tão bem que nos dias seguintes voltaram ao mesmo pesqueiro e a pescaria ainda deu para vender.
Passou o tempo e o meu pai que entretanto começou a namorar a minha mãe e queriam casar, resolveu ir à tabacaria para começar a juntar tábuas das caixas do tabaco para fazer uma casinha (fiquei a saber que as casas eram feitas dessas caixas que depois de despregadas e livres de pregos, serviriam para com muita arte, fazer as paredes para as barracas existentes). Um dia e em conversa o meu pai disse ao "Ti Pardina" que tinha intenção de construir uma casinha. Dotado de boa vontade adiantou com toda a veemência que queria participar na sua construção. Quando chegou a altura o meu pai indeciso, não se sentia à vontade para o chamar mas receando ofendê-lo acabou por lhe dizer.
No dia marcado vê chegar o "Ti Pardina" com dois martelos e pregos na mão, pronto para trabalhar. A tarefa foi árdua para todos mas o empenho do Ti Pardina era notório. Pregou todas as tábuas das paredes. Quando chegou ao telhado foi ele que se prontificou para o construir. Quando acabaram olharam para a casinha erguida, orgulhosos da sua obra. O meu pai acercou-se do "Ti Pardina" (imagino eu de olhito brilhando) e quis saber quanto lhe devia por tanto trabalho, ao que o "Ti Pardina" lhe disse que o meu pai nada lhe devia e acrescentou:
-“ Eu é que te agradeço Joaquim: Lembras-te daquele dia que me deste uma cana, me chamaste para o teu pesqueiro e me ensinaste a pescar? Sabes porque é que fui à pesca mesmo sem saber pescar?”
Esticando a mão vazia, continuou:
-“Porque na minha casa havia tanto para comer como tenho aqui na palma da minha mão. Os meus filhos tinham fome e eu desesperado fugi para as rochas na esperança de apanhar alguns burrinhos. Graças a ti aprendi a pescar, matei a fome lá em casa e ainda vendi 10 salemas.”

Este foi o momento em que o silêncio pesou…o meu pai fez intervalo para arranjar coragem para arrematar a estória, enquanto nós olhávamos para o lado disfarçando a emoção.
Até que o meu Almirante rematou assim:
-“O Ti Pardina era boa pessoa e se ele não apanhasse nada levava os peixes que eu já tinha pescado!”

Quando ele foi embora veio-me à memória aquele provérbio chinês:
"Se queres matar a fome a alguém, não lhe dês o peixe mas ensina-o a pescar”
Lembrei também Jo 21,6
Estavam os discípulos cansados depois duma noite em que lançaram as redes ao mar sem nada pescarem e apareceu Jesus que lhes disse:
"Lançai a rede para o lado direito da barca e achareis peixe."
Obedientes, assim fizeram e a pesca foi abundante.
Jesus não lhes deu o peixe mas disse-lhes onde pescá-lo...
A primeira opção do meu pai também não foi dar o peixe mas ensiná-lo.
Dar: essa virtude que serve de base a tantas outras quando bem aplicada. Dar o que se tem e o que se sabe mas dar sem humilhar nem se enaltecer.
Quando "dar" é o fruto dum grande coração torna-se saboroso com mel e de inesquecível paladar...
Orgulho-me de ti, pai!


A tua filha caçula
Dulce

sábado, 17 de julho de 2010

PARA TI PAI


Hoje olhei-te pai.
Mas não com o olhar com que te olho todos os dias, não com aquele olhar vago e inquieto que levo quando te visito, objectivando apenas o saber se estás bem para poder voltar para casa tranquila e com a sensação do dever cumprido.
Não! Hoje olhei-te mesmo!
Tirei a névoa da pressa que não me deixa descortinar para além do que está visível e olhei-te com o coração...
Do teu metro e meio, os teus olhos eram dois faróis de ternura a olhar-me, como se quisessem reter-me para sempre dentro deles e foi nesse momento que os meus te fitaram.
Agarrei as tuas mãos com o pretexto de te perguntar por elas mas só queria afagá-las. Trémulas e deformadas, são a narrativa fiel duma vida dura pela qual lutaste com todas as tuas forças e empenho e há qual nunca renegaste. Pelo contrário, contas todos os seus episódios com o orgulho de quem a viveu intensamente e com muita honestidade. Elas falam de como atravessaste os temporais da tua existência, da bravura com que enfrentaste o mar, aquele que tanto amas, de onde tiraste o sustento mas que não te isentou de perigos... Contam os detalhes de como não deixaste que esse mesmo mar te engolisse, nas várias tentativas que fez para te arrebatar e da forma como o fintaste num dia de Maio, quando ele medindo forças contigo pôs à prova a tua destreza de "lobo do mar" e a tua fé. Nessa luta desigual, ganhaste. Puseste a salvo a tua vida e a de todos os homens que de ti dependiam, levando para bom porto aquele barquinho que mais parecia uma casca de noz ao sabor dos seus caprichos. Eu, a tua menina, fiquei de olhos arregalados na amurada como se estivesse à janela a viver um pesadelo, esperando o pior desfecho.
Tantas estórias têm as tuas mãos para contar...
Foram elas, outrora fortes, que me ensinaram a nadar e que me abraçavam logo pela manhã quando eu fugia da minha cama para me aninhar nos teus braços em busca de protecção...
As tuas mãos pai, eram o meu porto de abrigo e as tuas sensatas palavras eram o bálsamo para todos os momentos difíceis. Lembro que nesses momentos o medo se evaporava. Eras o meu paizão.
Ó pai e eu tenho sempre tanta pressa...
As nossas mãos ainda se agarravam e os teus olhinhos pequeninos, cheios de carinho razaram de lágrimas e foi nesse momento que tomaste a inciativa de me abraçar...perdi a pressa pai. Ficámos ali que nem dois tontos pronunciando palavras salteadas mas que ambos conhecemos de cor...
Sabes pai, no meu regresso a casa perdi a pressa. Agora sou eu que quero reter para sempre este abraço, sou eu que quero registar para sempre o teu olhar carregado de amor por mim em dois braços que frágeis e trémulos me enlaçaram.
Não quero mais sentir a pressa que me afasta de outros abraços, porque não sei quantos mais teremos oportunidade de dar.



Obrigado meu "Almirante das histórias"!

Da tua menina...

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

ESTRELA-DO-MAR

Esta é mais uma história do meu
"Almirante das Histórias"



A idade já pesava um pouco embora os seus passos apressados não a denunciassem.
Naquele dia, tal como acontecia quando os ventos sopravam de feição e o mar repicava a seu jeito, pegava numa cana de pesca e vigorosamente caminhava em direcção ao seu mar. Ia aos sargos. Essa, era uma pesca que requeria da sua parte a escolha da cana apropriada para o efeito. Tinha que ser grande mas ao mesmo tempo robusta, para aguentar com as investidas de força desse tipo de peixe.Experimentado, tinha em casa várias canas escolhidas e apanhadas por ele  nas caniçadas da terra, que conhecia como as palmas das suas mãos.
Mas aquele dia iria ser especial.
Como sempre fez-se ao caminho como se estivesse atrasado, ao ombro a dita cana, na cabeça, o seu típico boné e na boca o seu amado cigarro que custou a deixar. Ao chegar às pedras levantou-as uma por uma para apanhar as minhocas que serviriam de isco. Como todo o bom pescador tinha no bolso das calças um canivete, que pela estima que lhe tinha jamais se separava dele. Havia-lhe sido ofertado pelo primeiro genro, o Ivo, genro esse que Deus já havia chamado para a sua companhia. Não só por isso mas também, tinha uma afeição muito grande por aquele objecto.
Começou a pescar e depressa se entusiasmou aviando o seu balde de peixe em pouco tempo, mas de repente a cana balançou de novo e pelo arco que descrevia anunciava peixe graúdo. Quando isso acontecia a perícia era fundamental, pois não queria partir a cana, mas muito menos queria deixar o seu peixe fugir. Encetou uma luta durante alguns minutos conseguindo finalmente trazer o peixe para cima das pedras. Contente, preparava o seu regresso. Mas eis que, quando numa volta inexplicável a sua faquinha aquela que ele tanto adorava, rolou pelas pedras e caiu ao mar. Impotente, viu-a afundar sem nada poder fazer. Desolado, chegou a casa muito triste, a mulher ao olhá-lo tentava perceber o porquê daquele semblante carregado, pois não condizia de forma alguma com a pescaria que trazia no balde. Até que ele lhe contou que havia ficado sem a sua faca, logo aquela que o seu querido genro lhe tinha dado e que tanto gostava. O seu ar pesaroso dava azo a que numa tentativa para o animar, as filhas dissessem que lhe compravam outra, mas todos se renderam: não iria ser a mesma coisa!
O tempo passou e ele continuou as suas pescarias, inevitavelmente quando voltava ao mesmo pesqueiro lembrava a faca perdida.
Tinha passado mais dum mês e lá estava ele de novo no mesmo sítio.  
Depois da rotina que antecedia o início da pesca, começou-a. Decorrido pouco tempo sentiu que a cana arqueava, num pulo pôs-se de pé para proceder às regras que sabia de cor para não perder o seu peixe. Só que, quando o que pescara ficou à sua frente, as pernas tremeram… os seus olhos não queriam acreditar no que viam e por momentos julgou tratar-se duma visão. Bem preso à sua cana, agarrada ao isco vinha uma estrela-do-mar que por sua vez carregava nas suas potentes ventosas, a sua faca. Por momentos ficou sem fala e preso de movimentos. Só depois e apesar de trémulo jogou quase a medo as suas rudes mãos àquele bem tão precioso, que ele julgava perdido para sempre. Passados uns minutos, já refeito do insólito acontecimento, olhou-a com uma alegria indescritível guardando-a cuidadosamente dentro do seu bolso. Os seus olhos pequeninos olharam a estrela-do-mar que contra a corrente de tudo o que é explicável, lhe havia trazido de volta aquela relíquia. Pondo um olhar carregado de meiguice, agarrou-a com suavidade e restituiu-a ao mar fitando o seu desaparecer como que a dizer-lhe, obrigado…
Regressou feliz carregando aquele tesouro que ainda hoje conserva como uma preciosidade.


(Esta é uma história verídica que se passou com o meu pai, que por ter contornos tão insólitos parece ter sido arrancada duma imaginação fértil)



segunda-feira, 5 de outubro de 2009

O ALMIRANTE DAS HISTÓRIAS

O ALMIRANTE DAS HISTÓRIAS
É O MEU PAI!


Uma foto do mar de Sines que ele tanto ama.


Esta alcunha foi-lhe dada por um filho da terra que escreve artigos para um jornal de Sines e o qual, depois de lhe descobrir a faceta de contador de histórias, o entrevistou algumas vezes e as narrou fielmente.

Todas as que conta são verídicas, sendo a maior parte retalhos da sua dura e traumatizante vida. Quem o escuta depressa se prende às palavras que emprega às quais junta os seus típicos gestos e a sensibilidade que o caracteriza, o que por vezes o obriga a interromper, ora porque a voz se embarga ou para limpar uma lagrimazita teimosa. Cada história é um brinde de sabedoria que nos transportam sempre numa viagem empolgante que nos dá um suspenso desejo de ouvir o capítulo seguinte. É um recuar gostoso no tempo fazendo com que, quem o escuta, quase se sinta protagonista dum filme de acção interessante onde ansiamos o desfecho.
Porém a história mais impressionante é a sua! Um menino que nasceu duma família extremamente pobre, primeiro filho duma relação que nunca teve pernas para andar e da qual, pouco tempo depois nascia uma irmã (irmã que só viu de novo vinte anos mais tarde e depois duma busca incessante). A mãe, farta de ser maltratada pelo marido, uma pessoa violenta e doente do foro psicológico, abandonou a casa levando a sua irmã e deixando para trás o meu pai então com dois anos, entregue à sua má sorte. Esse foi o trauma que nunca ultrapassou, o porquê da mãe ter escolhido só um. Seria aqui o ínicio do seu calvário de sofrimento. Num cenário de maus-tratos e trabalho precoce, a única coisa boa foi uma madrasta que o trataria sempre como se fosse sua mãe, mas que passou a ser mais uma vítima e à qual, ele se sentia na obrigação de proteger. Depressa aprendeu o quanto a vida lhe tinha virado as costas e depressa aprendeu que, se queria subsistir teria que contar só com ele. Assim, aprendeu a desenrascar-se para arranjar comida e para lidar com aquele pai que o chamava até junto dele e sem razão aparente o maltratava com um pau. Os pormenores são muitos e nem vale a pena enumerá-los. Mas perguntar-se-ão em que adulto se tornou? E que pai foi e é ele? Tão mal-formado, mal tratado e cheio de traumas de infância…que transportou ele para a sua vida futura? Eu digo-lhes! Foi e é o melhor pai do mundo. Amigo, meigo e sensível (apesar da rudeza duma vida ligada ao mar). E um cúmplice companheiro. Um pai que apesar de ter três filhas para criar e uma mulher (minha mãe) com problemas de saúde, nunca desarmou o sorriso, um mimo, uma palavra para nós. Mesmo quando chegava do mar quase de rastos da faina e o cansaço quase o vencia, tinha sempre tempo para nos mimar. Na minha infância lembro dos lanches de domingo com sumo e bolo numa pastelaria no centro da vila (isto quando conseguia pôr de parte algum dinheirinho), na adolescência recordo como aos sábados arranjava sempre tempo para uma ida ao cinema, as vezes em que cansado fazia um esforço para me levar ao baile, mas principalmente as longas conversas que ele tinha comigo para me fazer ver o seu certo e sensato ponto de vista. Empregava palavras cuidadosamente escolhidas e dava-lhes uma ênfase adequada a cada situação, tudo isto apimentado com uma enorme dose de amor e equilíbrio. Somos o seu maior orgulho. Quando fala de nós, suas filhas, os seus olhos pequeninos rasam-se de lágrimas de emoção. Com a mesma emoção te digo:
-“Obrigado pai por seres como és”
Dulce Gomes
(Obrigado pai por todos os valores que nos transmitiste. Obrigado por teres sido o pai que querias ter tido. Obrigado por fazeres de nós, tuas filhas, as pessoas que somos).