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quarta-feira, 16 de julho de 2008

Outros tão outros de si mesmos

Para Carol.
(para se ler ouvindo Get Together-Madonna)
Sozinhos.
Tocaram-se e uniram-se.
Juntos.
Ainda assim sozinhos.
(Hilda Hilst)


Sem qualquer expectativa e direção ou motivo eles entram na primeira boate que vêem aberta.Nunca haviam se visto antes daquela noite quando esbarraram-se na entrada violentamente como se soubessem que deveriam entrar ali.Trocaram um olhar tão absoluto quando a certeza que tiveram:Seriam tão outros de si mesmos nesta noite.
Se distanciaram e ela vai até a pista e aos poucos vai se entregando ao ritmo da música, totalmente desarmada e indefesa de todos aqueles olhares furtivos que desnudavam sua confiança na personagem aparentemente feliz e despreocupada que vestia, enquando seu corpo ia desenhando suaves formas no ar.Tenta esboçar um sorriso, qualquer sorriso, mas é inútil.Não consegue mais mentir para si mesma.Está cansada e fecha os olhos, esperando talvez, quando abri-los, se ver em outro lugar.Melhor.
Ele tenta se distrair e ignora-la, mas aquele olhar não sai do seu pensamento, porque aquele olhar carregava cansado o peso de algo que ele sabia exatamente o que era por ser algo tão óbvio em seu próprio olhar: Um apelo desesperado para crer em algo.
Quando abre seus olhos entre tantos outros olhares é o dele que encontra como se houvesse encontrado o seu próprio olhar refletido em um espelho.Perpertuaram este olhar que aos poucos os fez se aproximarem lentamente até que apenas o som de suas respirações ofegantes fossem ouvido em meio aqueles ruídos secundários.Não houve qualquer palavra porque eles já sabiam o que levou um e outro a estarem ali: O desejo de se encontrarem dentro um do outro.
Ele a segurou pela mão e a guiou para fora daquele lugar como se a guiasse numa valsa.E ainda sem que ninguém pronunciasse qualquer palavra, fundiram seus corpos e seus espíritos em um só ser enquanto seus corações tentavam suportar o êxtase que unia suas solidões naquela rua tão isolada e fria.Sentiram suas lágrimas percorem por suas faces até que se encontrassem e se unissem em apenas uma.
-Queria não ter feito isso.Ainda mais porque eu procurei em você algo para amar.
-Eu também procurei isso em você.Nos procuramos e talvez nem tenhamos encontrado isso, essa coisa que deveríamos amar.
-Por um dia eu queria deixar de acreditar nisso.Que o amor existe, esse tipo de amor que nos fez chegar até aqui, porque queríamos encontra-lo.
-Por esta noite poderíamos esquecer disso.Ser outras pessoas do que somos, procurar outra coisa para sentir, topa?
Assentiu.Então seguiram de mãos dadas por aquelas ruas desérticas preenchidas por néons que lhes davam alguma vida enquando falavam de tudo menos de suas vidas e seus nomes.Sabiam que amanhã seriam novamente os mesmos que abandonaram numa esquina qualquer, queriam viver aquela noite como outros, correndo e dançando e rindo como se nada pudesse os separar.
E reteram o tempo em seus dedos que teciam lentamente as horas, prolongando aquela noite que jamais teria fim, mesmo após o seu fim.
-Talvez, você seja a mulher da minha vida nesta noite.
-Dessa sua vida ou da outra?
-Das duas.
-Mas amanhã estaremos mortos, seremos outros diferentes do que somos agora.Você não vai me amar amanhã como eu também não vou te amar.
-Esqueça isso, esse amanhã que não tarda em chegar, mas que não vai nos atingir.Acredite, vivi nesta noite o que eu jamais iria viver durante toda a minha vida.Morro hoje, ressuscito outro amanhã, o que importa?Fui feliz, isso que importa.
-Também fui feliz, só queria que isso durasse para sempre.
-Mas essa noite vai durar para sempre.
Abraçaram-se enquanto o sol ia nascendo e fazendo morrer aquela noite em que puderam ser livres de qualquer imposição de suas vidas.Não houve despedida.Houve apenas a vontade de nunca se encontrarem agora tão outros do que foram.
Após esse encontro o resto foi um eco de tudo aquilo que não foi, pois passou como sempre passa aquilo que queremos para sempre.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Véspera do dia em que de repente enlouquecerei

Para Gabo.
As portas batem as toalhas voam
o dia se esbaqueia como um pássaro dentro de casa
(ou uma lembrança
dentro da casa)
Véspera do dia em que de repente enlouquecerei
(Manhã-Ferreira Gullar)
Acho que estou enlouquecendo.
Ou estou voltando a ser lúcido.
Foi assim:
Comecei a ter lapsos de memória, poucos inicialmente, mas que com o tempo foram se tornando cada vez mais constantes e preocupantes.Letras de músicas, filmes, livros, endereços.Depois foram os nomes dos meus amigos, dos colegas de trabalho, namorada, cachorro, vizinhos e familiares.Aí me esqueci dos meus amigos, dos colegas de trabalho, namorada, cachorro, vizinhos e familiares.Fui esquecendo de mim, de quem eu era.
Preocupados com tal situação, meus pais resolveram me levar a vários especialistas a fim de descobrirem o que me aflingia.Todos os médicos foram unânimes:Eu não tinha absolutamente nada, mesmo que alguns deles ainda achavam estranho o fato de um jovem de 25 anos ter esses lapsos sem apresentar qualquer dano cerebral.
Mesmo assim, continuei me esquecendo das coisas.Esquecendo de fatos marcantes da minha infância e da minha adolescência ou fatos recentes, como o que eu acabei de fazer há 10 minutos atrás.Minha mãe, no auge de sua angústia ao me ver assim, teve uma idéia: Colou por todas as paredes de casa fotos de tudo o que fosse relacionado a mim, com bilhetinhos explicativos.Me dera também uma agenda, para que eu anotasse tudo o que havia feito no meu dia.
Como se houvesse operado um milagre, parei de esquecer.Lentamente as lembranças foram voltando aos seus devidos lugares, graças a todas aquelas fotos e bilhetes que cobriam por completo as paredes.Com o passar dos anos as agendas se multiplicaram juntamente com as fotos e os bilhetes.A única coisa que acabei esquecendo foi da cor das paredes.
Começaram a me taxar de louco pelo meu método.Quase todos os meus amigos foram se afastando pouco a pouco de mim, larguei meu emprego e parei de sair.Me sentia ridículo andando para baixo e para cima com uma agenda, anotando cada passo.E em alguns casos, fotografando.Estava totalmente dependente daquilo.Tinha medo, horror de perder qualquer foto, qualquer anotação, por achar que perdendo algo, perderia minha memória,me perderia.Ao meu lado então, permaneceram apenas meu pai e minha mãe.
Enfim, um dia morreram.
Primeiro meu pai, coração.Anotei todos os detalhes da sua agonia no hospital e da sua morte, e fotografei e colei pelas paredes algumas fotos do cadáver e do caixão.Depois de algum tempo foi minha mãe, derrame.Os mesmos detalhes anotados e devidamente fotografados.
Então me senti solitário.Inicialmente ainda encontrava alguma companhia naquelas lembranças espalhadas por todos os cantos de casa, mas depois, elas começaram a me incomodar e a fazerem
que eu me sentisse dia após dia sozinho, como se elas participassem de uma confraria e me deixassem de lado.Passava por elas e elas diziam coisas a meu respeito, coisas que eu não queria ouvir, coisas que doíam, mesmo que belas.Comecei a ouvir então os risos de todas aquelas pessoas que me abandonaram, ou por estarem mortas ou por que fingiam estar mortas para mim.Risos, ora de felicidade ora de irônia.Risos que me humilhavam, que me rasgavam, me machucavam.E eu sei que alguns ali riam dessa minha situação constrangedora.
Eu já não dormia devido ao barulho que elas faziam ao se debaterem contra as paredes da minha casa.
Os dias foram passando e cada vez mais uma idéia amadurecia dentro de mim.
Eu só queria que elas ficassem mudas, que não me falassem mais nada, que não rissem mais de mim.
Decidi que iria as calar antes que eu enlouquecesse.
Rasguei todas as fotos e todos os bilhetes e destruí todas as agendas.Coloquei fogo em todos aqueles pedaços do meu passado, pedaços que um dia foram meus.Juro que até podia ouvir os gritos desesperados deles ao fogo, pedindo mais uma chance, gritando por misericórdia.Mas eu não tive.
Agora esse silêncio, essa paz, essa solidão tão leve, tão calma...
E fui me esquecendo dos meus amigos, dos livros, dos filmes, das músicas, dos meus antigos colegas, das minhas namoradas, dos meus cachorros, dos lugares, dos sabores, dos meus vizinhos, da minha familia.E fui esquecendo de mim, de quem eu era e de tudo o que eu já havia vivido.E me senti feliz, completamente feliz por não saber mais quem eu era.
Esqueci de tudo.
Menos de uma coisa.
A parede.
Ela era azul.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Porto.

Valeu a pena?
Não, não vou responder com os versos de Pessoa.
Minha alma é pequena.
Se um dia fora grandiosa, aos poucos a vida tratou de encurtá-la, de humilha-la, de fazê-la pequena, amiúde.
E assim cresci.
A menina que morava perto do mar, perto de um porto e que observava os navios sumirem no horizonte assim como um dia ela faria quando crescesse.Sumir no horizonte daquela vida miserável e mesquinha e aportar onde ela poderia deixar os resquícios dessa infelicidade calada, mas perceptível nos gestos.
E cresci.
A menina pegou um navio, sem dar adeus.Não tinha ninguém para dar adeus, tinha ali uma família, mas acreditava que eles assim como ela não se importariam com a sua ida.Queria ter alguém para quem voltar e abraçar, que chorasse toda vez que ela fosse embora e que chorasse mais quando voltasse.E assim foi sonhando durante a viagem, durante a vida, toda a vida sonhando com isso.
Trabalhou nos primeiros meses, tão jovem ainda, em casa de família.Pai,mãe e 2 filhos homens, mais velhos do que ela.Pouco tempo ali virou forçadamente uma mulher pelas mãos grosseiras do pai e pelas delicadas dos filhos.Aos poucos acabou se acostumando, abafando dentro de si os gritos de dor e de horror ao simples toque deles.Aprendeu também a não chorar, a não se lamentar.Apenas aceitava.Queria ir embora mas a necessidade, o simples pensamento de passar fome a fazia voltar e a novamente abrir sua porta.Deixa-la entreaberta.
Queria que essa não fosse minha vida.
Conto-a como se fosse de alguém muito próximo a mim, como se eu lamentasse por ela, a abrassasse e dissesse que eu estava ali para ajudá-la.
Assim, como eu queria que existisse alguém assim para mim.
A mãe sempre soube.Talvez sentisse prazer em me ver ali humilhada, limpando o chão em que eles pisavam, em ver limpando-me depois que eles pisavam em mim.Ela nunca se importou com o fato de que a empregadinha fosse a amante do pai e dos filhos.Acho que se sentia aliviada por não ter que ser ela a mulher que o marido abrisse violentamente as pernas para saciar as vontades.
Um dia, ela realmente se importou com toda essa história.
Percebeu que minha barriga estava saliente.Perguntou-me a quanto tempo minhas regras não vinham e eu não sabia dizer.Eu realmente não sabia que estava grávida.Fiquei feliz por saber que teria alguém para amar e para me amar, alguém que me faria esquecer de todo o meu sofrimento.O que choraria nas minhas idas e nas minhas voltas.
Arrancaram me esse sonho.
Levaram-me para um médico, "Ele vai cuidar de você Maria. fica quietinha tá?" "Ele vai cuidar do meu bebê?" "Vai sim Maria,vai sim"
Me deu uma injeção e desmaiei.Ao acordar não sentia mais nada dentro de mim, meu filho não estava no meu ventre.Estava ali, num pano enxarcado de sangue.Tão pequeno, tão indefeso.Calado, quieto demais para alguém que acabara de nascer.Tentei pega-lo, abraça-lo, mas o médico me dissera que estava morto.Que ele a pedido da familia, fizera aquilo. "Foi pro bem de todos Maria,foi pro bem de todos viu?"
Me sentia fraca demais para fugir, me sentia enojada ao me ver suja com aquele sangue que eu nem mais sabia se era meu ou do meu filho, me sentia morta.Não chorei.Apenas dormi com a esperança de acordar e estar novamente olhando o porto, os navios.Sonhando.
Acordei e me vi ainda ali.Tudo limpo, meu filho deve ter ido para a lata de algum lixo.Estava melhor.Fugi
Corri para longe daquele inferno, sozinha e cansada.
Pelo caminho, tentei me imaginar atriz.
Eu era uma atriz vivendo aquela personagem.Assim que as luzes se apagarem e o público de retirar, eu voltaria a ser a atriz.Eu teria para quem voltar cansada do espetáculo.Teria alguém para me dizer o quão maravilhosa fui.
Mas estava correndo, fugindo e com fome, e eu não era uma atriz.
E assim fui vivendo fugindo. E quando não consegui mais fugir, virei mulher da vida.Experiência já tinha, o que viria de pior?
As primeiras noites foram as piores até me acostumar com aqueles homens.Descobri que todos eram iguais.O segredo era se entregar achando que ele me amasse,assim eu não me sentiria igual a eles, fazer por fazer.Eu fazia por amor.Amor por alguem que eu sempre sonhara e que tentava acreditar que poderia ser aquele que estaria por cima de mim.Fechava meus olhos e ignorava os palavrões e todo os grunhidos asquerosos vindos deles.Aos poucos fui gostando.Não que me desse prazer ou qualquer coisa assim.Gostava de ser desejada.Gostava de ouvi-los falando de suas familias, ou do sonho de ter uma.
Eu também queria ter uma, mas me era negado esse direito.
Fiquei lá por anos.Sofria humilhações e dores e toda sorte da desgraça, mas para onde eu iria?
Ali eu pelo menos fui feliz, tinha amigos e era tratada com algum respeito.Essa felicidade que sentimos ao nos iludirmos.
Fui envelhecendo e poucos ainda me queriam.Virei chacota entre as mais jovens.Então resolvi partir.
Não houve adeus.Ninguém ali se importava com isso, com o meu adeus.Eu não chorei.
Vaguei.
Voltei para onde nunca mais deveria ter voltado.
Estou aqui,observando os navios chegarem e partirem deste porto.
Um dia eu fui um navio.
Mas sem um porto.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Por um instante nos olhos de Lola

Não me importa com o que pareces, desde que eu te
ame

(Pablo Neruda)




1º dia.

Estava caminhando desatento como sempre por aquela rua repleta de pessoas que se desdobravam e se esbarravam entre si no desespero e na ânsia de chegarem em seus destinos pontualmente, olhando apenas para o chão e para a dança frenética de todos aqueles pés sobre o preto e branco hipnótico daquela calçada na velha rotina diária que eu seguia a risca até o meu trabalho medíocre de atendente de uma renomada seguradora, quando num relance a vi do outro lado da rua na fila para entrar num ônibus.Foi uma breve visão tão rica em detalhes que aos poucos fui esquecendo e que apenas o seu rosto permaneceu em minha memória.Ela entrou e desapareceu e eu segui adiante como se nada houvese acontecido, como se a minha vida não houvesse se despedaçado naquele instante.Em alguns momentos do meu expediente e da minha noite o seu rosto e somente ele vinha à minha mente.

2º dia

Andando por aquela rua com mais atenção procurei o seu rosto em cada pessoa com quem esbarrava e fui até o ponto de ônibus onde ela havia estado ontem.Em vão perdi 2 horas do meu dia e ganhei uma bronca do meu superior ao chegar atrasado ao meu trabalho.Me senti um total idiota por tamanha asnice, o que me fez ter uma crise de risos seguida de uma tristeza seca.Ao dormir sonhei com ela.Vinha em minha direção vestida de branco e cabelos longos e negros ao vento, num lugar onde eu não reconhecia mas era me familiar.Acordei suando e com um vazio latejante em meu peito.Repetia como se fosse um mantra o quanto aquilo tudo era ridículo.Paixão ou amor à primeira vista não existia.Não existia.Não existia.Não existia...

5º dia

Desde que a conheci sonho com ela.É sempre o mesmo sonho.Ela vindo em minha direção, inicialmente um vulto na distância refratado na névoa, mas que pouco a pouco se aproximava de mim, trazendo em seu sorriso uma luz que dissipava toda aquela escuridão dentro dos meus olhos.Sempre acordava antes de tocá-la e me amaldiçoava por isso.Tenho andado mais ansioso na empresa e relapso com os meus amigos, mas não acho que seja algo assim tão significativo.E não a encontrei pelo meu caminho.

10º dia

Chorei hoje de manhã ao acordar, como a muito não chorava depois que fui criança.Fazem 2 dias que não sonho com ela e 10 dias que não consigo pensar em outra coisa a não ser em seu rosto.Chorei porque me sinto estúpido, porque fui vencido pela irracionalidade e por não ter forças para esquecê-la, por não me conformar com tudo isso.É idiota, eu sei, se apaixonar assim por alguém, sem ao menos saber qualquer coisa sobre ela a não ser que ela possuí o rosto mais perfeito do mundo que destroí meus dias e assombra minhas noites.O que mais me consome, o que mais me faz sofrer é essa fúria de não ter adivinhado que a falta do bem que desejei era apenas o sinal da minha falta.Meu desempenho caiu muito no trabalho e meus amigos vivem me perguntando se realmente estou bem, porque ando melancólico e pálido demais.Acabo sempre respondendo que é uma má fase da minha vida que logo passa.Conheci uma mulher hoje num bar próximo a minha casa, quando eu estava na quarta garrafa de cerveja.Acho que seu nome era Ana.Transamos essa noite.

15º dia.

Tenho transado com Ana há 5 dias mas não sinto prazer algum, apesar de lhe proporcionar alguns orgasmos.Gosto dela,é bonita e inteligente e tem me feito sorrir, mesmo que melancolicamente.Hoje após ter transado exaustivamente com Ana, acabei dormindo e sonhando com a outra, a que eu amo.7 dias sem ela pareciam uma eternidade repulsiva.Dessa vez a toquei, a abracei e gritei o quanto a amava entre lágrimas e soluços.Quando ia lhe beijar, Ana me acordou secando minhas lágrimas, dizendo o quanto achava lindo me ver assim após uma noite com ela.Me beijou e se despediu.Me tranquei no banheiro enojado pelo beijo e por estar com ela.Saí e liguei o rádio.Tocava Lola, do Chico Buarque.Engraçado como me identifiquei com aquela música.Ela realmente rasgou páginas dentro de mim, não páginas claro, mas tudo o que havia dentro de mim, e ela invadiu minha mente, e somente ela permanecia ali, como uma orquestra a tocar a mesma música.Lola...Lola...Vou chama-la de Lola

20º dia.

Voltei a sonhar com Lola regularmente.Agora dançamos,beijamo-nos e fizemos amor ali mesmo,na rua onde nos conhecemos.Ainda assim, ao acordar me sentia mais angustiado e melancólico, amaldiçoando Deus por não ter fundido nossos caminhos.Esse meu caminho que me levava a todos os lugares, menos para aquele em que eu a encontraria.E assim eu vou me completando com a tua imagem, sabendo que a luz que faltar pelos meus dias estará no seu sorriso, que a ternura que sangrar pela minha alma estará em seu olhar, que a alegria que largar a minha noite estará em sua voz, que o prazer que deixar o meu desejo estará em tuas mãos, que a vida que eu não tive estará em sua vida.

25º dia

Ana me deixou alegando que eu achamava de Lola sempre, enquanto transávamos.Eu apenas lhe disse que jamais seria Lola e ela se sentiu ofendida.Tanto faz, Ana não me significou nada.Não sonhei com Lola ontem e quase cortei acidentalmente minha garganta ao me barbear pela manhã.A verdade é que nem coragem eu tenho para me matar.Essa coisa dos suícidas irem para o inferno sempre me assustou, agora ainda mais sabendo que Lola, quando morresse, certamente iria para o céu.Talvez fosse esse o nosso destino então.Me resta apenas essa espera seca e fria sem nenhuma esperança de nos encontrarmos de novo, já tão outros.Ela não precisará dizer seu nome porque já é tão minha e pura Lola,e qualquer outro nome não faria diferença, a que volta pela simples palpitação do espírito de amor dentro de mim.

30º dia.

Estou enlouquecendo.
Pedi demissão e resolvi me trancar em casa.Meus amigos estão preocupados comigo, me ligam e alguns acabam vindo aqui em casa conversar comigo.Até Ana me liga querendo saber como estou.Acabei lhe falando a respeito de Lola e ela simplesmente riu.Riu como se fosse uma piada, algo tão irreal que chega a ser engraçado.É,eu sei.Eu mesmo rio amargamente disso entre doses e mais doses de vodka, enquanto ela me persegue nos meus sonhos.Não quero mais dormir,mas eu sou fraco, me rendo a louca vontade de encontrá-la e senti-la dentro de mim, como se ali fosse seu único lar, como se desde sempre ela existisse ali.
Meus olhos estão inchados e com olheiras enormes.Estou mais magro e mais pálido do que o costume.Não sinto fome ou sede, apenas sono.E quando não sonho com ela, mantenho-a em meus delírios como posso.
Decidi dar uma volta hoje.Não sei, tenho o pressentimento que algo muito bom vai acontecer se eu sair de casa.Fui até aquela rua, onde a vi pela primeira vez.
Estava caminhando desatento como sempre por aquela rua repleta de pessoas que se desdobravam e se esbarravam entre si no desespero e na ânsia de chegarem em seus destinos pontualmente, olhando apenas para o chão e para a dança frenética de todos aqueles pés sobre o preto e branco hipnótico daquela calçada na velha rotina diária que eu seguia a risca até o meu trabalho medíocre de atendente de uma renomada seguradora, quando num relance a reecontrei do outro lado da rua.Ela me sorria e estava com um vestido branco e seus cabelos soltos ao vento.Fui ao seu encontro, sem ao menos dar atenção aos carros que vinham fatalmente em minha direção.Era Lola,não me importava se meu corpo estava ali estirado e estraçalhado pelo asfalto.Eu já me sentia no paraíso.Era Lola.
Lola...

domingo, 8 de junho de 2008

Luiza.

Se lembrou de quando era mais jovem do que hoje, talvez uns 13 anos ,talvez 14, época que conhecera aquela que jamais esqueceria.Muitas vezes se perguntou como ela estaria hoje no auge dos seus 30 anos e sofria ao pensar que ela poderia ter uma família e ser feliz ao lado dela.Não que desejasse a infelicidade dela, mas ainda tinha alguma esperança de que ela ainda pensasse nele, que sentisse sua falta tanto quanto ele sentia a dela.Se passaram 10 anos e ele ainda sentia aquele enorme vazio que somente ela completaria.
Luiza.
Era irônicamente bela para alguém que se vestia fora de moda, usava óculos de grau e aparelho nos dentes, além do longo cabelo aparentemente mal tratado.Não era a mais cobiçada entre as jovens da sua idade, mas também não era a mais recusada.Evitava sair com garotos por ser extremamente tímida, o que realçava ainda mais a sua beleza.Era ruiva de olhos verdes e sardenta, muito maior que ele e muito mais divertida que todos daquela cidade pequena de interior.Mas ela diferente de todos ali não tinha vestígio algum de sotaque.
Foram amigos, não os maiores, mas foram bons amigos durante algum tempo.Não conseguia se lembrar quando começou essa paixão por Luiza, talvez quando a viu na festa de 15 anos dela, quando usava um vestido verde que destacava a cor dos seus olhos e mostrava com suavidade os novos contornos que seu corpo adquirira ou quando ambos estavam voltando da escola e uma tempestade começou, e ambos ficaram sob ela dançando e pulando nas poças.A verdade é que desde o momento em que ele tomou consciência que amava Luiza, sua vida nunca mais teve paz.
Tentou em vão namora-la, mas Luiza nunca quis namorar com alguém, o que nunca a impediu de ter alguns casos, inclusive com ele.Foi com Luiza que deu seu primeiro beijo aos 15 e que perdeu sua virgindade aos 18.Declarou-se algumas vezes, mas Luiza sempre ria dizendo que o via apenas como um grande amigo e que não se imaginava apaixonada por ele ou por ninguém.
Era o que ela mais evitava, se apaixonar.
Isso até seus 19 anos, quando tudo mudou.
Ele havia se mudado de escola e planejava em breve cursar uma faculdade de direito como seu pai e entre tantos planos, o principal era esquecer Luiza.Não tardou para se acostumar com seus novos colegas de escola e com a idéia de ser advogado, mas o que nunca conseguia concretizar era passar um dia sem se lembrar dela.Luiza ainda mantinha contato com ele e sempre o convidava para algo enquanto ele sempre recusava todos os convites dela com a desculpa que precisava estudar.E isso aos poucos foi os afastando.
Luiza havia mudado muito desde então.Não era assim tão tímida e começou a aceitar mais convites de garotos que queriam sair com ela.Tirou o aparelho e resolveu cuidar mais dos cabelos e começou a usar lentes de contato.Em pouco tempo se tornara incrivelmente bela, a mais bela garota da cidade para o desespero dele que por mais que quisesse, não conseguia tira-la do pensamento.
Resolveu então que iria embora daquela cidade.
Contou a todos os seus amigos a sua decisão, que era irrevogável.Sair daquela cidade poderia ajuda-lo a esquecer Luiza e a conhecer alguma outra garota tão incrível quanto ela ou qualquer uma que preenchesse a falta que ela fazia.Quando soube,Luiza o procurou para conversarem como bons amigos que sempre foram e ele não conseguiu recusar por mais que quisesse e que achasse que fosse o melhor para ele.No final, acabaram bêbados e estirados nus em uma cama.Ao nascer do dia, no dia em que ele iria embora, Luiza lhe sussurrou em seu ouvido que o amava e que por muito tempo fora apaixonada por ele, mas que tinha medo que ele a abandonasse como estava fazendo agora.Era tarde demais para voltar atrás do que havia decidido.Ele sabia que ela acabaria com a sua vida num simples sopro.
E assim cada um seguiu o seu caminho.Ele se mudou de cidade e não deu a ninguém seu novo endereço e ela continuou sua vida na pequena cidade do interior.Mas ele nunca conseguiu deixa-la de amar, de sentir seu perfume em qualquer lugar, seu sabor em seus lábios a cada manhã e a maciez da sua pele a cada vez que se tocava.Durante 10 anos tentou manter vários relacionamentos sem nenhum êxito.
Então, decidiu que voltaria para Luiza.E que a teria de qualquer maneira de volta.
Pelo caminho a imaginou casada e gorda e infeliz OU casada e ainda muito bela e extremamente feliz.Também imaginou que ela estaria ainda estraçalhando o coração dos homens sempre lhes dizendo que não poderia ser de ninguém ou que ela estaria ali, esperando por ele.A ultima opção era extremamente utópica para ele.
Quando chegou na cidade, foi diretamente a antiga casa de Luiza.
Bateu na porta diversas vezes e gritou pelo seu nome.
Ninguém.
Perguntou então ao vizinho se Luiza havia se mudado de endereço.Descobriu que Luiza agora morava em uma cova.Desesperado tentou conseguir mais informações, mas o máximo que conseguira foi que Luiza havia se jogado num rio perante algumas testemunhas, aos 19 anos.
19 anos.
Saiu pelas ruas desvairado e sangrando por dentro.Não conseguia suportar a ideia de saber que ela estava morta.Que morreu no auge da sua juventude e de seu amor por ela.Procurou os antigos amigos dela, mas a grande maioria já havia se mudado de cidade.Encontrou apenas uma colega distante de Luiza, que lhe informou que Luiza se matou por um grande amor.Ela não sabia direito o que havia acontecido, mas Luiza havia sido abandonada pelo homem que amava e que não viu mais sentido algum em viver sem ele.Perguntou a ela a data da morte de Luiza e ela lhe respondeu que foi em 25/06/98 e que sabia com precisão porque havia sido o dia do nascimento do sobrinho.
22/05/98 foi a data que ele partiu e a deixou ali, estirada e exausta numa cama com a promessa que jamais iria voltar a vê-la.
Promessa cumprida, ele disse a si mesmo.
E se jogou com o carro num rio, ali perto de onde ele e Luiza haviam dançando sob a tempestade.
"Foi quando realmente me apaixonei por ela", foi seu último pensamento.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Dançando Descalço

Para João Ricardo


Estamos dançando descalços esta noite e você põe os seus pés sobre os meus talvez para não sentir frio ou apenas para ficar no meu tamanho, enquanto essa estranha música se desenha no ar.Eu te conduzo entre velas espalhadas pelo chão e taças com restos de vinho mesmo sem saber os passos, e você apenas confia em mim com este seu olhar fixo no além desta sala e esse seu sorriso tão espalhado por todos os cantos da minha vida.Eu tenho a leve e certa sensação de que estamos flutuando em nossa última canção, em nossa última dança, em nosso último contato corporal, nas minhas últimas lágrimas que tocarão a sua pele translúcida.E eu estou com medo desta música terminar, de você se despedir e nunca mais voltar.E eu te quero, meu deus, como eu te quero para sempre sobre os meus pés dançando entre essas taças e velas, flutuando.
Eu te abraço e te deito delicadamente no chão mas você não parece se importar.Ainda dança e flutua pelo ar em sua ilusão de felicidade, que afinal eu nunca lhe porpocionei.
Eu vejo morrer o outono em seus olhos da cor da minha morte e incertos como a minha vida, e uma rosa cárnea desabrochar em primavera entre suas pernas embebidas em fel e que eu não posso tocar ou colher.Tentativas inúteis entre seus movimentos delicados conforme a canção que ainda preenche o ar durante nossa última noite.
É fácil pensar em suícidio quando não estou com você e é melhor manter-se ébrio quando você está longe e eu sei que mesmo que volte, ainda estará longe dos meus braços e do meu amor.Minha benção e minha maldição e toda a desgraça da minha felicidade incompleta.
Entre cigarros e papéis nunca surgiram poesias à você por mais sujas e líricas que fossem minhas inspirações noturnas após o sexo, quando eu me sentia sozinho em seu corpo vagando pelo vazio do seu amor.
E você continua pura entre meus braços que se confundem entre os seus, nessa dança frenética sobre o carpete onde você não quer mais ser conduzida e quer que troque a canção, mas eu quero que seja esta e pego suas mãos que antes já foram minhas com tanta calma e as faço percorrer pelo meu corpo em febre.Seus gritos me soam como uma oração a algum Deus muito bom.Gozo sentindo suas lágrimas misturadas a todos os meus fluídos, enquanto você se afasta de mim procurando mudar a canção.
Agora ela é triste, assim como os seus olhos.
Agora ela é desesperadora, assim como o seu adeus entre gritos de ódio e taças quebradas de vinho e sangue pelo carpete.
Agora ela termina, como em breve farei com a minha vida.
Estou dançando descalço mas ainda sinto o peso dos seus pés sobre os meus.


Dancing Barefoot~Patti Smith

terça-feira, 27 de maio de 2008

Poeira do espaço

Relato real.
1971
Algum lugar.

Era de madrugada e eu estava calmamente fumando e observando o céu muito claro daquela noite.Estava acordado sem drogas e bebidas e sem café e posso afirmar com toda a segurança de que não foi uma alucinação ou um sonho tudo o que aconteceu perante meus olhos.Foi real, bem real, terrívelmente e adoravelmente real.
Aquela luz verde azul vermelha amarela, todas brancas, caíram do céu num único objeto em um estrondo como se fosse um raio.Estático apenas olhei, assustado e achando que era um sonho mas estava acordado porque meu corpo doía muito devido ao impacto, ao quase terremoto causado pela queda.Uma bola redonda achatada.Um disco, como todos aqueles hippies malucos e maconhados diziam que iam nos salvar qualquer dia desses numa hora dessas aí.Não fazia muito barulho o tal disco, era algo como um zzziiiiizzziiiimmm interminável e baixo.Não nego o meu medo inicial perante aquilo tudo.Estava ali estático agachado no chão e com muito frio quando o vi.
Ele, quasehumanoquasealgumacoisa saindo da nave disco brilhante com alguma coisa em suas mãos, algum livro parecia ou nem isso era.Olhava ao redor, tão assustado quanto eu, mas não me viu ou eu acho que não naquele instante.Ficou ali, observando tudo ao seu redor com aqueles olhos de criança que vê tudo pela primeira vez.Eu queria desesperadamente fumar naquele instante, mas meu cigarro morreu entre meus dedos que queimaram com a brasa mas que eu não havia sentido até aquele exato momento.Ele era mais importante que a minha dor idiota.Caminhou e correu velozmente pelo campo de braços abertos,como se quisesse abraçar o ar inutilmente e desapareceu.Suspirei aliviado acreditando que ele não voltaria,mas ele voltou e eu quase gritei com o espanto.Ele ali sorrindo para alguma coisa que meus olhos não conseguiam ver.Não sei, talvez algum amigo invisível vindo do mesmo lugar que ele.Nunca soube.Entrou em sua nave, e novamente eu pensei que não mais o veria.Estava mais uma vez enganado.Ele voltou, roupas normais (ou aparentemente normais, porque ele estava com um macacão prateado, anos a frente do que viria a ser moda aqui na Terra), desligou todas as luzes de sua nave e voltou a caminhar pelo campo, mas em minha direção.Sim,ele deveria saber que eu estava ali e que eu seria a única testemunha da sua chegada ao nosso planeta.Temi que me matasse por isso.Vinha em minha direção com uma sacola[?] em mãos[?], sorridente.Era belo, demasiadamente belo. Cabelos talvez vermelhos, talvez alaranjados e espetados para cima(o que futuramente veio a ser a moda entre os punks), vestido de jaqueta e calças jeans, e um corpo que me enganaria se eu não tivesse visto sua chegada.Eu diria que era um humano perfeito.Apenas os olhos eram estranhos, nunca soube a cor exata deles.Algo como roxo e vermelho e púrpura.Muito bonitos por sinal.Perto de mim.Podia sentir o seu cheiro, estranho e bom, acho que era um perfume igual ao que se usavam mesmo naquela época.Olhou em meus olhos e novamente esboçando aquele sorriso mágico me perguntou aonde ele poderia encontrar as pessoas daqueles lps.Sim,ele trazia na sacola[?] lps diversos.Me mostrou todos.Eram o revolver, white album, sgt pepers e o abbey road.Havia também o White light/White Heat,Velvet underground and Nico,The piper at the gates of down, a saucerful of secrets, atom heart mother,Beggars banquet,Let it bleed,My generation,a quick one e the who sell out.Fiquei abismado e perguntei como aquilo tinha chegado até ele.Me respondeu que beatles,pink floyd,velvet underground,rolling stones e the who faziam sucesso por lá, mas as informações sobre eles eram pouquíssimas.Os seres do seu planeta tinha repugnância a esse tipo de música vinda da Terra.Quase ri, não era tão diferente aqui da Terra afinal, onde alguns tinham repugnância a esse tipo de música.Respondi(e eu me lembro exatamente de como) "Eles devem estar na Inglaterra.É um país que fica lá na Europa cara."Ele agradeceu e sumiu.Corri até a sua nave, toquei-a.Era real.
Voltei para a casa ainda paranóico achando que qualquer luz poderia ser mais uma nave e que qualquer pessoa que estava vindo em minha direção seria ele.Minha vida nunca mais foi a mesma.Demorei para me recuperar desse meu trauma.Olhava todas as noites para o céu, esperando que ele reaparecesse e viesse ao meu encontro.Sonhava com ele, sonhava que viajávamos em sua nave por todo o espaço.Queria saber mais sobre ele.Bem mais além de saber que ele ouvia nossas bandas.Comprei aqueles lps e durante muito tempo fiquei ouvindo e me lembrando dele.Músicas para et's.
Algum tempo depois, tive notícias dele.
Ziggy Stardust and the Spiders From mars.
Comprei o Lp e fui até num show.
Ele parece não ter me reconhecido.
Ah, ele queria ser humano foi o que percebi em suas letras e em sua vida aqui na Terra.
E ele foi humano durante 5 anos.Talvez não tenha agüentado, talvez não fosse aquilo que ele realmente queria, talvez não seria aceito novamente em seu planeta.
Matou-se
E eu ainda me lembro daqueles olhos roxos vermelhos quase púrpuras.

sábado, 24 de maio de 2008

Sob o céu de maio.

-Seus olhos no céu ácido.
-Sua pele no asfalto que arde
-Seus lábios naquela dose de alguma coisa qualquer
-Sua língua nesse cigarro qualquer que fumei
-Vou chamar o sol de você
-Vou chamar a lua de você
-Encontrei pureza em cada puta quando lembrei de você
-Encontrei amor em cada homem com quem me deitei quando lembrei de você
-Sua boceta em cada pau
-Seu pau em cada boceta
-Seu pulso em meu pulso
-Minhas lágrimas em suas lágrimas
-Bob Dylan ouvindo você
-Beatles ouvindo você
-Você nos meus comprimidos sorridentes
-Você na minha agulha mágica
-Em vida
-Na morte

Estendidos na calçada com o olhar fixo um no outro sob o céu macio de maio.A última palavra em seus lábios prevaleceu

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Toda a praticidade da solidão

Para Arthur.

-E aí,que horas você foi dormir? Pelo jeito nem dormiu direito

Não sei se deveria responder a verdade, então resolvi me calar. Deveria ter dito "cacete cara, dormi mal prá caralho", o que não deixa de ser verdade afinal tenho dormido mal prá caralho nos últimos dias. Correção,últimos anos. Não sei como isso começou, talvez quando eu me mudei para São Paulo. E sim, ela foi a causadora da minha insônia com suas luzes artificiais iluminando toda a escuridão da minha vida até então. Outra coisa que também ajudou: odeio claridade, desde muito jovem já não era muito adepto da luz natural. Logo é mais confortável para mim dormir durante o dia e viver de noite. Deve ser por aí, uma junção do que evito com o que prezo. Não tô nem aí para o barulho da avenida do lado aqui de casa, até gosto para ser bem sincero. Não tem como morar em São Paulo e não ser obrigado a gostar desse tipo de barulho. Não que sejam realmente obrigados a gostar do barulho incessável de São Paulo, apenas com o tempo todos acabam se acostumando. No final todo mundo ama.
Vejamos, sou tímido. Aquele sujeito que fica bebendo e fumando no balcão e observando o movimento ao seu redor sempre muito quieto. Durante a minha permanência no bar algumas pessoas acabam indo falar comigo, não sei porquê. Pessoas sozinhas e desesperadas, algumas vezes bêbadas que só querem conversar. Na verdade só querem ser ouvidas, e é o que eu proporciono. Acabo sendo um bom ouvinte: elas falam e eu finjo que escuto e no final falo qualquer coisa totalmente simbólica, bem rebuscada mesmo com termos que só se encontram em dicionários, e que elas fingem que entendem. Ponto, todo mundo sai ganhando.O bar nos últimos dias tem sido o meu segundo lar. Sempre ali no mesmo balcão bebendo e fumando sem objetivo algum. Não que eu seja alcoolátra, talvez ainda não ou talvez eu já seja e não queira admitir. Enfim, o dinheiro anda em falta ultimamente. Sou repórter policial de vez em nunca. Não que não haja material para as minhas reportagens mas como é um ramo que cresce muito, tanto o jornalismo quanto a violência, o mercado de trabalho anda meio saturado entende? Já trabalhei em um grande jornal, anos atrás. Escrevia sobre política. Interessante não? Ganhava bem e tinha certa liberdade para escrever, bom era o que eu achava. Acabei escrevendo uma matéria um tanto que ousada sobre um certo político importante na época. Fui despedido sem justa causa e sem nenhum direito trabalhista. Acabei aceitando o emprego de escrever obtuários num jornal de pequeno porte, já que o dinheiro andava curto demais. Desespero sabe? Inicialmente me envergonhava de estar ali, sendo que eu poderia estar colhendo os louros da vitória se eu continuasse quieto e conservador no outro jornal. Com o tempo fui é me sentindo orgulhoso do meu feito, não ter me calado frente a tanta corrupção. Quem sabe futuramente meu nome seja lembrado nas faculdades de jornalismo?
Então, ainda tenho alguma coisa até o final do mês para as contas principais como a comida, a água, a energia e claro, pro bar.Quando sobra alguma coisa gasto em diversão.Diversão: Mulheres.Mulheres: Prostitutas. Como eu já disse,sou um cara tímido que fica bebendo e fumando num balcão e pessoas acabam vindo conversar comigo. Nunca fui muito bom em nada além de ouvir e escrever. Flertar definitivamente não é comigo, logo essa coisa de sair com prostitutas é sempre muito prático, apesar de um pouco caro ao final do mês. Não preciso conversar com elas e nem ser romântico. Também não preciso ligar no dia seguinte ou fingir que gostei dela para não magoá-la. Só sexo e nada mais. Nem o meu nome eu digo a elas. Nunca consegui me adaptar a relacionamentos amorosos de qualquer tipo. As mulheres que passaram na minha vida foram muito vagas. Vagas que eu digo de vagas mesmo, não de vagabundas. Nunca me atingiram ou me conquistaram. Com o tempo desisti de encontrar aquela que me completaria e toda essa baboseira poética. A última mulher com quem tive alguma coisa era uma modelinho em ascenção, que achou que só porque eu era jornalista deveria ter dinheiro e contatos. Foi até que interessante enquanto durou. Mas acabou quando o pai dela morreu e ela viu a nota do obtuário no jornal do dia seguinte. Ela jamais havia me perguntado em que área do jornalismo eu trabalhava.
Voltando ao bar. É lá que eu me sinto bem comigo e com o mundo. Acho que foi o Vinícius de Moraes que dizia isso em relação ao wisky. Adoro wisky e odeio o Vinicius de Moraes. Nojentinho com aquele monte de inho. Tomzinho, pimentinha, toquinho, poetinha, poeminha. Será que ele já mandou alguém tomar no cúzinho? Não gosto mesmo, já tentei algumas vezes ler os poemas e ouvir as músicas, um tanto que forçadas demais.Samba mesmo é Chico Buarque, sem frescura alguma. Cartola também. Cartola é algo mais cru, mais verídico, fala do morro e da pobreza. Quando é que o Vinícius cantou isso?Sei lá, no fundo esse meu ódio gratuíto contra o Vinicius deve ser porque ele só fala de amor com todo aquele blá blá blá poético. Como já isse, nunca me adaptei a relacionamentos amorosos. Nunca me apaixonei de verdade, nunca me entreguei de verdade. Não que isso hoje me faça alguma falta. Só amei uma pessoa em toda a minha vida.
Amei. Não amo ou nunca soube exatamente o que é amar então talvez eu ainda ame mesmo não percebendo. Bem confuso não? Por isso não gosto de amar ninguém. Por isso as garotas de programa. Por isso o bar. Por isso um apartamento pequeno. Por isso a noite no lugar do dia. Por isso um emprego medíocre e flexível. Por isso esse ódio contra todos os inhos muito bonitinhos do Vinicius. Por isso a abandonei e nunca mais a procurei. Nunca mais tive alguém. Não me lembro exatamente o porquê o final de tudo e a desistência total do amor, talvez eu tenha sofrido demais com ela, quem sabe? Eu preferi esquecer e de alguma forma funcionou. Essa coisa de amar só fode as pessoas. É mais prático não amar e ser indiferente. Ninguém sai ferido com nada. A manhã está nascendo, vou voltar para o meu apartamento e dormir até o nascer da noite, quando voltarei para o bar. Obrigado por ter me ouvido. Sei que minha vida é um pouco insossa, mas admita que é prática .Pelo menos eu não sou que nem os outros que não saem do bar para afogar as mágoas. Não tenho. Não tenho nada e por isso me sinto bem. Não exatamente feliz. Mas quem é feliz hoje hein?

domingo, 11 de maio de 2008

Aquele ontem

Para Rennan.A quem nunca dedico nada,a não ser a minha vida.



Consigo claramente lhe imaginar em frente a este mar que ondeia nossa música com a mesma brisa a lhe desmanchar o cabelo tão loiro,olhando sem entender o motivo pelo qual meu carro está aqui aberto e com uma pequena caixa azul da cor do céu que são seus olhos quase verdes,e com curiosidade você abre e sem surpresa alguma encontra esta carta.E lê e relê e desespera-se em prantos de risos e gritos.Espero que entenda e me perdoe.Doí-me ter que lhe escreve-la.Debaixo da minha escrita há sangue no lugar de tinta.
Por quê?Porque tudo é inexato e confuso.Crescemos juntos e dividimos nossos medos, amores, rancores, dores, dúvidas, feridas, cigarros e bebidas e drogas e a nostalgia de quando éramos puros,de quando chorávamos apenas por motivos fúteis e não por coisas confusas e inexatas.Me é difícil continuar com qualquer certeza depois de ontem,difícil continuar com o que morreu naquela noite,difícil continuar como se nada houvesse acontecido, como se estivéssemos intactos.Porque era puro aquele amor que sentíamos até ontem, porque eu sei que você me ama tanto quanto eu te amo mas talvez não sofra com isso tanto quanto eu sofro.Amor esse que nos levou a essa decandência.Amor não carnal prazer sexual e orgasmos.Amor beijos e abraços e cumplicidade que não se mede em palavras.E mesmo depois de ontem eu só te quero nos meus lábios e nos meus abraços porque o meu corpo palpita pelo teu porque o teu corpo acalma o meu.
Eu tentei de encontrar em outras mulheres, nos beijos e nos abraços delas mas só encontrei transas e orgasmos que eu gosto com o meu sexo de homem em perfeito estado de funcionamento.Eu tentei de encontrar em outros homens mas encontrei apenas nojo e ânsia de vômito e o meu pênis que não endurecia.E o que me restou foram apenas cinzas e faíscas das minhas certezas e mais e mais dúvidas.Dúvidas sobre o que realmente eu sentia por você.Você que era casado e estava com tantas outras mulheres e na minha imaginação paranóica flertava com outros homens enquanto dizia que me amava, e isso me fazia mal e eu sentia ciúmes ou algo como querer você só para mim.Seria você o errado nisso tudo?Não.
Você é o esplendor de eu haver encontrado algo quando desesperava encontrar algo.O meu estar feliz alcançando o infinito para trazê-lo à terra e fundir os dois numa única visão.O que me faz reecontrar comigo a cada vez que a tua imagem suspende o meu caminho porque a cada exata aparição tua me devolve meu próprio eu.Você que está em cada sorriso e que eu respiro.
Ontem.
Ontem.
Como não foi possível reter aquele momento que me separa hoje de você?
Nossos olhos se buscavam como a encontrar-se um no outro como a morrer um no outro.Nossos lábios se cruzavam como a penetrar-se um no outro como a morrer um no outro.Era todo o nosso ser que se entregava como a viver-se um no outro.O teu corpo no meu corpo tão em mim e tão no além.Nosso desejo.O meu delírio.O teu delírio.E no universo havia apenas o espaço e o tempo que ocupávamos nós dois, libertos de tudo sem mágoa e sem medo e livres e serenos e puros.Vibrando todas as fibras dos meus nervos.Vibrando todas as fibras dos teus nervos.Era um desses instantes em que o infinito se concentra num segundo.Era um instante infinito e passou.Passou apesar do absoluto em que vagávamos.Ficou somente a tua imagem que ora se vai ora se vem dançando nua.Nem sequer ficou a estrela que isolava aquela noite mas apenas o apelo do teu olhar sumindo no silêncio, apenas a delícia dos teus carinhos se esvaindo na distância, apenas a magia dos teus gestos desfazendo-se em ausência.E a espera seca e fria sem nenhuma esperança.Porque entre suor e sêmen era em sua esposa e em suas inúmeras amantes que você pensava.Porque entre suor e sêmen era esse meu amor que se afundava e se afogava nessa imundice de sêmen e suor.E você chorava depois.Chorando desesperado me perguntando se aquilo tudo foi real e eu inerte e enojado tentando balbuciar qualquer coisa como foi por culpa do álcool e do extâse que ingerimos.E você me olhando com esses seus olhos tão petrificantes e confusos gritando alguma coisa assim que não deveria ter feito isso com sua esposa e comigo e eu tentando te acalmar dizendo que nada daquilo aconteceu que essa noite logo seria esquecida porque não nos significou nada apesar de me sentir sujo com o seu gozo misturado ao meu por todo o meu corpo.Somos caras normais não somos, você me disse.E eu lhe disse que nada daquilo aconteceu.
Não amigo,ela aconteceu.É desesperador e dilascerante descobrir assim que eu te amava da maneira mais singela que existe e não da maneira mais atrativa,se é que posso me referir a isso dessa maneira.Tudo isso se reduziu a nada e eu me sinto mal e eu ainda sinto você em casa parte do meu corpo e na minha alma como se até nela você houvesse penetrado naquela noite de ontem.Não sei o que fazer, estou perdido e terrívelmente confuso.Não foi nossa culpa, eu poderia dizer.Mas foi mais minha do que sua,mas temos nossa parcela de culpa.Mesmo que não houvesse a porra do álcool e da droga,ela aconteceria a qualquer momento.A saída que encontrei para estar em paz foi esta.Dirigir até esta praia,escrever-lhe estar carta enquanto fumo e observo o mar.O mar que irei lançar esse nosso segredo.O mar que fará afundar comigo todos os vestígios de ontem.Que Deus faça ser doce morrer no mar nas ondas verdes do mar que é a quase cor dos seus olhos azuis da cor do céu.

sábado, 3 de maio de 2008

Peço que fique&que me ame.

Agora que esta sensação de amargura e de fracasso me dominam,sinto-me despida de qualquer orgulho fútil para lhe dizer com angustia que afoga minha garganta num doloroso e humilhante grito interior,um velho peso despótico em minha alma:Peço que fique e que me ame.
Ame esta mulher de grandes e profundas olheiras provocadas pela insônia,de tez pálida e seca pela má alimentação,de dentes amarelados e podres pelos cigarros,estes,que lhe deram um cheiro forte característico desde as pontas dos dedos até os fios de seu cabelo oleoso com caspa bagunçado e embaraçado.De nariz sempre vermelho de tanto coçar e de interior em carne viva,de olhos também sempre muito vermelhos com pupilas dilatadas e baços.Lábios secos descascados e em sangue.De roupas,as mesmas de sempre,velhas rasgadas e fétidas.De dores estomacais crônicas e prestes a ouvir a qualquer hora de qualquer médico que já possui cirrose.Ame-a desesperadamente.Peço que fique e que me ame.
Ame esta mulher que chama de lar as ruas,que se mistura aos mendigos e se sente como tal.A viciada errante desesperada de cocaína,que vendeu tudo que tinha de valor e se vendeu a tantos homens e que roubou para se manter no controle do seu mundo para se sentir.Sentir a si mesma sem nojo e sem desprezo e sem horror.E no final,quando a chave branca de mármore desfarelada que abre a porta que lhe dá acesso a esse mundo se perde no vento ou se diluí até desvanecer em seu organismo,retorna a fracassada mulher violentada imunda vomitada debilitada ao seu ciclo.Ame-a delicadamente em cada vão detalhe.Peço que fique e que me ame.
Ame essa mulher de tantas tentativas de suícidio sem sucesso obtido.Algumas marcas pelo seu corpo denunciam isso.De tantas lágrimas ácidas que lhe corroíam a face dando lhe como cicatrizes algumas rugas.De ar cansado e infindável tristeza ao se olhar no espelho e ver a imagem do que se tornou e ter plena consciência e certeza disso de ser aquilo e chorar e tentar se matar e ao não conseguir recorrer ao consolo do álcool sempre tão barato e vagabundo ou da cocaína quando por sorte há algum dinheiro ou alguém com piedade.Ame-a por pena.Peço que fique e que me ame.
Ame essa mulher que foi feliz um dia ao lhe ter.A que lhe fazia sorrir com simplicidade e espontâneidade e se sentia quase que honrada por isso.A que contornava seu rosto no escuro silêncio da noite sem errar nenhum traço.A que lhe dedicou único amor intenso puro sincero e eterno.A que se entregou violentamente por isso.A que lhe ofereceu o hímen e sua alma.A que você rompeu com tamanha violência e brutalidade a alma e o hímen.A que você mostrou nos mínimos detalhes todas as dores que uma mulher poderia sentir,várias vezes para que aprendesse.A que você jogou contra um abismo de sombria e impotente resignação,fazendo-a se refugiar em sua solidão.Ame-a por culpa,por regeneração própria.Ame-a sincera e profundamente como nunca amou.Ame-a por tê-la transformado em algo que você é e nega e tenta fugir por medo,medo das pessoas por elas não te aceitarem:Um cadáver em decomposição.Ame-a porque você sabe,sabe que somente ela te amaria e te aceitaria tal como você é.Todos querem amar e serem amados.Peço que fique,fique aqui.E que me ame.Ame

Obs: A partir de hoje comentários abertos

domingo, 27 de abril de 2008

Para não dizer adeus

Não vou abrir a porta,desista.Páre de bater,não seja tão inconveniente.Rezo para que canse,que perceba neste meu silêncio um adeus e se conforme com isso.Páre por favor,não me faça dizer o que já me é doloroso de pensar.Essas palavras sufocadas devem morrer em minha garganta antes de lhe chegar aos ouvidos.Guarde o nosso último olhar,o som do nosso "eu te amo",uníssono e compartilhado.Não vamos transformar isso em mais uma discussão,em que se encerrará com feridas abertas e lágrimas,em que você vai dizer que eu sou a culpada e eu,para não lhe perder,aceitaria calada.Em lágrimas eu lhe suplico que páre.Por que continuar?Estávamos saturados e cansados um do outro,mas apenas eu tenha percebido isso antes,ou o aceitado antes.Não bata mais essa porta.Não destrua nessas batidas violentas e nesse urros desesperados tudo o que de mais belo nos aconteceu
Já não tínhamos mais as mesmas intensas experiências,devaneios,excitações,surpresas e alegrias.Nossas conversas eram sempre as mesmas e prevíamos os atos um do outro.Nossas palavras não mais deliravam,ficavam estáticas em nossos lábios sem emoções presentes.O gosto dos seus beijos se tornou nojento.O que antes era algo que me extasiava,adocicava meus lábios e me envolvia em sua suavidade se tornou algo asqueroso,lábios frios invadindo minha boca com força e sabor de cigarro vagabundo.Muitas vezes tive que segurar a imensa vontade de vomitar.
Fazíamos amor.E era algo que me inundava de felicidade e me completava em movimentos delicados e amorosos buscando apenas o meu prazer e que no final ambos urrávamos de alegria e todos os sentimentos possíveis.Você era meu,eu era sua,éramos um,éramos todo o universo contido naquele quarto.Com o tempo virou algo triste e sistemático:movimentos mecânicos com o único intuíto de preservar o instinto.Me sentia algumas vezes estuprada.Eu já não tinha mais orgasmos e você nem me beijava.Tornei-me em sua cama uma puta velha e cansada.No final das transas/programas/estupros,me trancava no banheiro e com o chuveiro ligado,chorava,me rasgando por dentro,jogada no chão do banheiro como uma casca.E você fingia não saber disso.
Páre de bater a porra dessa porta! (ah,como eu queria realmente gritar isso!)
Você era um poeta,lembra-se?Algo como um Verlaine mais brando e menos vago,de versos musicais que flutuavam e encontravam um abrigo no meu coração.Ontem,ao arrumar suas malas,li seus ultimos poemas.Versos,meras rimas de alguém desesperado e perdido,que mostravam claramente e dolorosamente sua decadência.E você não quer aceitar isso,e vai insistir em escrever,mesmo sabendo que vão ser as mesmas merdas rimadas de sempre.E eu sei,confesse,que sua inspiração morreu por minha culpa.Eu não era mais a sua musa,a de vastos e longos cabelos louros que refletiam o sol,a do corpo deslizante e translúcido,de olhos azuis puros incendiários.Meu cabelo se tornou ralo,eu o cortei e pintei algumas vezes,engordei razoavelmente e meus olhos se tornaram tristes e cansados.Culpa sua.
Você começou a beber,a beber sempre e por qualquer motivo e sem motivo também.Achava que ébrio seria mais feliz do que sóbrio.Ah,esses velhos mitos urbanos...E eu lutei por você,lutei para que você parasse e você lutou para continuar,lutou contra mim,lutamos fisicamente.Meu rosto,o qual você tanto acaricíava com ternura,ganhou hematomas e cicatrizes.
Pouco a pouco fui saindo da sua vida.Iniciativa primordial sua,ao me esconder seus planos e a ter segredos dos quais,antes,nem pensávamos em ter,mas que no final acabei concordando em fazer o mesmo.Nos tornamos dois estranhos sentados num sofá brigando por um controle
remoto.Calados,inertes e frios.Você tinha amantes,e eu me masturbava no banheiro ou no nosso quarto ou em qualquer outro lugar.Você se afundava mais e mais nas bebidas e nos jogos e em tantas drogas que eu nem saberia enumerar,enquanto eu lia e relia os romances da Norah Roberts e do Sidney Sheldon,vivendo naquelas páginas tudo aquilo que um dia,de alguma forma,vivi com você.
Acabou,entenda isso nesta porta fechada,em suas malas pelo quintal e no som das minhas lágrimas caindo no chão.Te amo,é claro que te amo.Mas não posso lhe dizer adeus,não posso.Não com lábios inchados e morrendo de dor pelo corpo todo ferido.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Body and Soul*

-Leve o Coltrane.
-Como assim?
-Leve-o
-Mas você sempre me disse que adorava Coltrane
-Menti,nunca fui muito chegado em blues
-Jazz
-O que?
-Jazz.Coltrane é Jazz
-Ah,para mim tanto faz.São a mesma coisa
-É bem diferente
-Ah?
-Jazz de blues,bem diferente.Você realmente mentiu.
-Ah,desculpe-me senhora-eu-nunca-me-enganei-antes
-Tudo bem.Mas me diga,porque mentiu no nosso primeiro encontro?
-Sobre o quê?
-Sobre gostar de jazz.Você me perguntou se eu gostava,e eu respondi que sim,que eu amava jazz.
-Bom,queria te impressionar.Inicialmente queria te levar para a cama.Apenas não queria que você pensasse que eu fosse como os outros caras com quem você saia antes.
-Ok,agora você se mostrou terrivelmente igual a eles.Mas isso já não importa.De onde tirou o Coltrane?Você me disse que amava Coltrane
-Antes de ir te encontrar,estava nervoso,ansioso demais.Acabei ligando o rádio para tentar relexar um pouco.Foi quando ouvi Don't know what love is.Jamais me esquecerei...Paixão mesmo a primeira ouvida.Como se aquelas notas do saxfone dele tivesse mudado algo dentro de mim.Até a maneira como eu te enxerguei logo após,foi diferente.Novos significados.
-Então porque você mentiu?
-Menti sobre?
-Jazz.Disse que não sabia a diferença entre jazz e blues.
-Não disse isso,disse que não me importava.Não preciso gostar de jazz,para amar especificadamente Coltrane.
-Então porque está se desfazendo dele?
-Não posso ficar com Coltrane
-Mas por...
-Porque eu amo tanto Coltrane quanto amo você.
-Ah...
-Cada vez que vazia amor com você,mais amava Coltrane.Cada vez que ouvia Coltrane,mais amava você.Vocês eram algo único saca?Se mesclaram em minha vida de uma forma definitiva,impossível de separar o significado de um do outro.Você era tão suave como alguns solos dele.E ele era tão delirante,tão profundo,quando os seus lábios.Não sei,não sei te explicar isso ao certo.Mas seria lascinante ouvir Coltrane sem você.Se tornariam músicas vazias,secas.Mais um cara tocando um saxfone...
-Eu não imaginava isso
-Nem eu
-Tudo bem,eu levo o Coltrane
-Ouça-o por mim
-Ouvirei
-Talvez algum dia,eu volte a ouvi-lo.Mas quando isso não me ferir
-Adeus
-Adeus

Ela põe Coltrane debaixo dos braços e sai pelas ruas.Vira uma esquina e o joga em uma lata de lixo.Ela também não suportaria encarar Coltrane como mais um cara com um saxfone.


*título de uma música de Coltrane

domingo, 16 de março de 2008

Declaração*

[Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus
olhos que são doces

Porque nada poderei dar senão a mágoa de me veres
eternamente exausto

Vinicius de Moraes]

Escolheu que aquele dia seria o ideal para se declarar a ela.Uma tarde de sábado,fria com um céu absurdamente nublado,atípico de outros dias.Ela,sentada num banco de uma praça que destoava sua beleza.Era como se esperasse por alguém,todos os sábados,naquela praça até o cair da noite,e sempre fosse esquecida.Era a típica mulher em que se gritava o desejo de ser protegida,que fazia dos homens mais rudes,os mais sensíveis e dedicados.Jamais trocaram palavra alguma,nem o mais singelo e perdido olhar,mas mesmo com tal distância,ele se sentia tão próximo a ela que quase poderia tocá-la.Um toque etéreo.

Decidido,encaminhou-se até ela,temendo que aqueles profundos olhos azuis incandescentes lhe fitasse e lhe tirassem a coragem,tão pouca naquele momento.

Ela,uma visão onírica,perdida em seus pensamentos,ouviu o barulho de passos sobre as folhas secas caídas pelo chão daquela praça.Ele,tão inseguro com a reação que ela poderia ter com o seu gesto,caminhava cada vez mais devagar,esperando que em algum momento,voltasse a ser racional e que desistisse daquele seu plano ridículo de ser declarar a uma estranha,ou que,a espera dela finalmente chegasse ao fim.

Ela,olhando de fininho para aquele que sempre a observara durante tanto tempo,e que,era enfim seu motivo para estar sempre naquela praça,naquele mesmo horário,somente se retirando quando ele se perdia entre as árvores e a noite.Mal acreditava que era ele,ali,vindo em sua direção,em seu encontro.Levantou a face,para poder fixar seus olhos nos olhos amendoados dele e esboçou um sorriso angelical.

Ele,paralizado com aquele olhar tão hipnotizador,e aquele sorriso sublime,convenceu-se de que não seria possível balbuciar palavra alguma a ela.Se sentiu tão inferior,tão fraco e tão humano perante aquela mulher divinizada,que irradiava algo de irreal e de virginal.Teve certeza que ela jamais o amaria,que ela renegasse todo aquele amor nutrido a distância.Ela certamente seria tão superior a ele em tudo,que nem lhe notaria.

Ela,confusa e atônita com a reação dele.Ele,estático á sua frente,como que se estivesse arrependido de ter se dirigido a ela.Se sentiu como a mais renegada das criaturas,que nem poderia merecer um amor platônico,que não poderia ser nunca admirada por alguém.Teve certeza de que ele se enganara em relação a ela,que vira em seus olhos o quão simples ela seria.Comum demais,tola demais.Talvez nem fosse ela quem ele sempre observara,talvez tivesse sido uma outra.Hoje,com o dia tão nublado,o impedira de perceber que estava se dirigindo a pessoa errada.

Ele,ao ver nos olhos dela uma infindável confusão,uma inevitável negação ao seu amor ofertado,deu-lhe as costas e partiu.Não iria resistir ouvir dos lábios dela algo desaprovador,ou pior,que ela nada falasse,apenas se levantasse e o deixasse ali,com tantas coisas a serem ditas,com seus sonhos a lhe caírem um após o outro,a morrerem ali,perante o grande amor de sua vida.Prometeu que não mais voltaria àquela praça.

Ela,teve a certeza ao vê-lo partir,que ele era mais um que amaria,mas que lhe era impossível ser correspondida.Seria sua sina,amar.Sentiu-se ridícula ao acreditar que ele,em algum momento,pensara nela,a amara,e decidira se declarar a ela.Levantou-se,olhou ao redor para ver se ele estaria escondido atrás de alguma árvore,secou as láfgrimas e engoliu toda aquela amarga frustração.Nunca mais voltaria àquela praça.

Ele,se lembraria para sempre daqueles breves instantes em que os olhos dela encontraram os seus tão cansados olhos.Que o sorriso dela,preencheu todo aquele vazio que existia em sua vida.Foi feliz e correspondido,mesmo que brevemente.

Ela,se lembraria para sempre dos passos sobre as folhas secas que a despertaram e que precederam o momento mais inacreditável de sua vida:O homem que sempre amara,ali,em sua frente,olhando fixamente em seus olhos e lhe devolvendo um sorriso débil.Breves instantes que sonharia para sempre.Ela foi feliz,mesmo que ilusioriamente.

*Título temporário ao conto