(Continuação daqui)
26. Cañones contra pajaritos
O mês de Fevereiro de 2018 foi um mês muito atarefado para a Cuatrecasas. Em Matosinhos, a Cuatrecasas atirava os seus cinco advogados do escritório do Porto contra mim. No mesmo mês, a Cuatrecasas destacava duas dezenas de advogados para defender dezassete membros da mafia russa acusados de branqueamento de capitais no tribunal de San Fernando de Henares, uma localidade próxima de Madrid. No mesmo mês, no tribunal de Santarém, a Cuatrecasas atirava-se desalmadamente contra a mais humilde das suas vítimas - Arlindo Marques, o Guardião do Tejo.
O caso ultrapassou fronteiras e foi notícia em Espanha, tendo sido feliz a expressão de um jornalista espanhol que descreveu de forma primorosa a desigualdade daquela luta cruel em que a Cuatrecasas, agindo como um bando de jagunços ao serviço de uma grande empresa sua cliente, fazia sobre o Arlindo Marques, usando como instrumento o sistema de justiça, aquilo que a mafia sempre tão bem soube fazer: intimidação e extorsão, verdadeiro terrorismo judicial.
O Arlindo Marques tinha vindo a público denunciar várias empresas de celulose que estavam a poluír o Tejo, com particular incidência numa grande empresa sediada em Vila Velha de Ródão. Em resposta, a empresa contratou a Cuatrecasas e a situação era descrita assim pela imprensa espanhola nesse famigerado mês de Fevereiro de 2018:
"A pesar de las evidencias, Celtejo sigue volcado en defender su imagen, tanto de fabricante de pasta de papel como de gestora forestal. Y en esta campaña se encuadra su desmedido proceso contra Arlindo Marques, en la que no ha escatimado en gastos. El funcionario de prisiones tiene enfrente al prestigioso bufete de abogados Cuatrecasas. Beneficiario de varios contratos, algunos sin licitación, con el Banco de Portugal por más de 2,5 millones de euros, y con otras entidades públicas del país por valor de unos 5 millones, Cuatrecasas, Gonçalves Pereira S.L.P. ha puesto al frente del caso a abogados como João Regadas, que ya ha participado en operaciones multimillonarias con empresas privadas como Sonae o Alantra, y con instituciones públicas como la Câmara Municipal de Oporto, y José de Freitas, vice-presidente del Consejo de las Órdenes de Abogados Europeas (CCBE).
Cañones contra pajaritos. Arlindo Marques asegura que “proTEJO me está dando todo el apoyo, y todos los ayuntamientos (a la vera del Tajo), Mação, Gavião, Nisa, Vila Franca de Xira, Abrantes…, todos han emitido votos de solidaridad conmigo. Ahora, soy yo el que tiene que poner el dinero para el abogado. Ahora estamos haciendo un crowdfundig para ayudarme a costear el proceso. Cuando los abogados de Celtejo me pusieron la denuncia, yo tenía un plazo para contestar de un mes, y sólo esa contestación legal, sin la cual hubiera tenido que pagar 250.000 euros, me costó 1.500 euros”.
Foi nesta altura que eu entrei em contacto com o Arlindo Marques, que estava obviamente assustado e o avisei:
-Olhe que com esses criminosos não se pode confiar na justiça.
A queixa apresentada pela Cuatrecasas, em nome da sua cliente, e assinada pelo advogado José de Freitas, fazia passar o Arlindo Marques por um louco e obsessivo difamador e terminava exigindo-lhe uma indemnização de 250 mil euros:
Cito da queixa:
"84º - As afirmações proferidas pelo Réu e acima transcritas são absolutamente falsas e têm, por parte do Réu, um declarado e manifesto intuito maldoso de macular a imagem da Autora junto da opinião pública, em matéria tão sensível como é a poluição, onde a demagogia e a manipulação informativa facilmente provocam a adesão acrítica dos simpatizantes.
88º - As imputações feitas pelo Réu à Autora no que respeita à poluição do Rio Tejo são infundadas e não passam de uma gratuita actividade panfletária do Réu na busca de notoriedade e protagonismo.
89º - O Réu, na solitária cruzada de que se auto-incumbiu, escolheu a Autora como alvo principal - e, diremos até, alvo único - das suas invectivas que partem de suposições não confirmadas e até contrariadas por relatórios de autoridades públicas competentes em matéria ambiental.
93º - Tudo isto é propositadamente ignorado pelo Réu e que, como se disse, desautorizam todas as especulações infundadas que recorrentemente arremessa à Autora.
94º - A conduta continuada e persistente do Réu que acima se descreveu é causadora de dano na esfera jurídica da Autora.
98º - Porém, a actuação do Réu acima descrita tem causado alarme político e alarido social que prejudicam o bom nome e a credibilidade da Autora e entorpecem a caminhada da Autora no sentido de um crescimento verde e economicamente sustentável.
99º - Na verdade, as intervenções públicas do Réu acima descritas tiveram o condão de criar agitação pública e política em torno deste sensível e politicamente apetecível assunto da alegada poluição do rio Tejo, com o envolvimento do sonoro nome da Autora.
100º - Foi, com efeito, depois das publicações feitas pelo Réu, dos vídeos por este divulgados, das reportagens de declarações tecidas pelo mesmo e das entrevistas dadas pelo Réu que espoletaram reacções de grupos parlamentares e de deputados desses grupos parlamentares.
108º - As perguntas, os requerimentos e as recomendações e o comunicado, provindos de partidos políticos com assento parlamentar nunca teriam sido feitos não fora a conduta do Réu já descrita.
111º - A conduta do Réu gerou, para além do grave alarido político já descrito, um forte sentimento de alarme social, em particular na comunidade de Vila Velha de Rodão onde a Autora exerce a sua actividade e nas comunidades limítrofes.
114º - Com a conduta do Réu todos esses agentes económicos que integram o tecido empresarial local, beneficiando das instalações tecnológicas de ponta da Autora, temem pelas suas próprias empresas e pela continuidade das suas parcerias comerciais.
115º - Razão pela qual a Autora tem vindo a ser questionada pelo conteúdo das publicações feitas pelo Réu.
116º - Este questionamento e receio afectam o bom nome e a credibilidade da Autora e fazem com que esta tenha de alocar tempo a afastar a falsidade e especulações das afirmações propaladas pelo Réu e a tentar recolocar em alta nos agentes económicos com quem se relaciona a confiança que sempre lhes mereceu, pacificando a comunidade em geral.
118º - Ademais, a ofensa directa ao bom nome, à reputação e ao crédito de que goza a Autora no mercado resultante das acusações feitas pelo Réu à Autora de não observância das normas de defesa ambiental, matéria que reveste especial sensibilidade na actividade de produção de pasta de papel, são necessariamente prejudiciais e com tradução patrimonial.
121º - Os danos que à Autora provocaram, provocam e provocarão as maldosas e falsas invectivas do Réu têm uma expressão geral e transversal na actividade da Autora, mesmo quando não individualizáveis ou relacionáveis em conexão directa.
123º - Neste sentido, tendo em conta a gravidade da ofensa, a dimensão dos interesses da Autora postos em causa, o perceptível tamanho dos prejuízos e a expressão e o volume de negócios da Autora,
124º - Avalia-se equitativa, por modéstia, face à previsível capacidade económica e financeira do Réu, uma indemnização de 250.000,00 euros (duzentos e cinquenta mil euros) para compensar a Autora pelos danos sofridos"
O processo, em última instância, não tinha qualquer substância porque num caso de interesse público, a liberdade de expressão do Arlindo Marques prevalecia sobre o direito ao bom nome da empresa visada. As coisas são assim no TEDH que é o tribunal que decide em última instância sobre estes casos. Nada impedia, porém - como aconteceu comigo - que o Arlindo Marques fosse condenado pela justiça portuguesa, ficando arruinado, e só vários anos depois o TEDH lhe desse razão e mandasse o Estado ressarci-lo de tudo o que gastou.
O processo tinha requintes de malvadez. No pedido de indemnização de 250 mil euros, a Cuatrecasas dizia que dada a situação económica do arguido, esse montante parecia equitativo e modesto. A verdade é que Arlindo Marques vivia do seu trabalho de guarda prisional, em termos líquidos ganhava menos de mil euros ao mês, e para pagar a indemnização pedida pela Cuatrecasas necessitaria de mais de 20 anos de trabalho sem comer nem beber.
Pouco depois do assunto vir a público, o Ministério do Ambiente mandou realizar análises às águas do Tejo junto à empresa de celulose. Porém os reservatórios onde a água era recolhida para amostra desapareciam durante a noite, e as análises só se concretizaram depois de uma patrulha da GNR passar a noite junto deles.
De posse das análises, seria fácil deslindar se era ou não verdade aquilo que o Guardião do Tejo dizia, que a poluição tinha origem na empresa de celulose. Puro engano. O Ministério Público meteu-se no caso, apropriou-se das análises e disse que os resultados ficariam em segredo de justiça. E assim ficaram até hoje. Nunca se soube qual a mola que impulsionou o Ministério Público a meter-se no assunto, mas imagina-se.
O caso foi ganhando grande dimensão pública e, à medida que se aproximava a data do julgamento, a tensão ia subindo. Uma audiência prévia realizada no Tribunal de Santarém, reuniu de um lado, o Arlindo Marques e o seu advogado em prática individual, e do outro, um bando de quatro advogados da Cuatrecasas, vindos de Lisboa, e chefiados por Paulo Sá e Cunha.
A Cuatrecasas queria que o Arlindo Marques assinasse um papel em que se retratava de tudo o que tinha dito e prometia nunca mais falar sobre o assunto, sob pena de o caso ir para julgamento. O blogue Portugal Contemporâneo - onde eu vinha dando grande relevo ao caso porque era muito semelhante ao meu -, foi falado na sessão. Os meus esforços não estavam a ser em vão.
O Arlindo Marques resistiu e o julgamento ficou marcado para daí a poucas semanas. O Arlindo Marques, compreensivelmente intimidado pelas ameaças, pela chantagem e pela tentativa de extorsão veio a público pedir o auxílio da população. Em breve, os voluntários eram suficientes para encher três autocarros que compareceriam no Tribunal de Santarém no dia do julgamento. Eu próprio já antecipava o dia em que faria a viagem do Porto até à capital ribatejana para cobrir o julgamento para os leitores do Portugal Contemporâneo.
O pior que se pode fazer a uma máfia é quebrar o código de silêncio ou omertà sob o qual ela se esconde para praticar os seus crimes, e trazer tudo a público. Perante a iminência de tamanho escândalo público, a poucas semanas do julgamento, a Cuatrecasas mandou um comunicado para a imprensa, presumivelmente redigido por Paulo Sá e Cunha, a dizer que desistia do processo. Fazendo jus à sua fama de mauzão, ao despedir-se, ele não deixou de proferir, em relação ao Arlindo Marques, uma bravata do género: "Agarrem-me senão eu processo-o".
Os crimes imputados ao Arlindo Marques, pelo quais a Cuatrecasas queria cobrar um preço de 250 mil euros, afinal ficaram de borla.
(Continua acolá)