Adail
Sobral
Caríssimos
listeiros,
Acabo
de receber, envio do Soares, a Iracema facsimilar, primeira edição
de 1865, belamente ilustrada pela Côca!
Trata-se
de uma ira-sema, posto que facsimilar, e porque cheia de semas,
cenas, ira santa, santa iracema alencariana, termo que lembra
"alavanca". A disposição da obra na página é um ícone
como os bizantinos, sem a conotação ideologicamente marcada, e
muito injusta, de bizantino como coisa ruim! Esses ícones são uma
manifestação da presença real da divindade, daquilo que a católica
ocidental substituiu pela celebração epidérmica, claro que com
exceções.
A
figura feminina que encima a capa, a disposição na página, que
ocupa uma pequena mancha, reforçam isso: a obra vem
"contida" em seu suporte físico. "Sustentam" a
capa as inscrições "Oficina..." e
"imprensa...". A figura da contracapa me sugeriu um
movimento intenso, ação que, por não ter fim, nem
por isso é menos completa em seus estágios, alçando-se ao
infinito (aliás, será que a pertinência intensa, aceita,
visceral, ao plano local facilita paradoxalmente o alçar-se ao
infinito, ao global, trazendo-o por assim dizer para dentro de nós?).
Vi ali o Ceará, que não conheço no físico, mas no emocional e
intelectual que me trazem o Soares, o Virgílio, a Côca, o
Diatahy, etc. e, no genético, meu pai cearense filho de coroné que
quase me deu ao irmão major prá criar, para aumentar as chances,
pai que, junto com a mãe, me pôs Adail no nome "prá ele
ficar na frente", esquecendo-se, em seu zelo, de que adail,
adalides, é o navio de guerra que recebe os primeiros blasts, balaços.
Mas
que minha vida tem sido, no sentido chinês, interessante, não
resta dúvida. I have had more than my deserved share!
Tenho
sido agraciado para além do merecido! Aliás, lembro sempre que graça
vem de gratia, de graça, dado, e não comprado com chantagens à
divindade, ou com a lisonja, mais própria de quem quer fazer as
vezes de Deus.
A
ilustração da contracapa tem cara de intrusão, de algo que
"não tem nada a ver", de inconcebível no contexto. No
entanto, situa o livro facsimilado no Ceará, seara, semeion,
semente, sêmem de tanta coisa bela. A figura é uma rede, e a
mulher da capa é o contrário de uma lenda do Ceará, e me lembrou
da Frô e das outras mulheres lendárias daqui da lista.
A
intertextualidade: a figura que é escultura comentada em poema do
Virgílio, que desvela seu intenso lado feminino, andrógino, e é
retomada pelas figuras falsamente ingênuas da Côca, que mostram o
masculino da mulher, sua força de eterno feminino ao lado de
inferno feminino, sine qua non do encanto!
Intertexto
retomado desde a uroboros do começo ao infinito da contracapa (e não
é a uroboros o infinito mesmo, nossa condição humana de morder a
própria cauda, coda?)
Isso
me fez ver também nas figuras da Côca, que nada tem de coke,
choke, as figuras mexicanas de anjos católicos com rosto de inca, a
presentificação tomando o lugar da representação do colonizador,
uma antropofagia sem Bispo Sardinha (o que ele queria, com todo esse
nosso litoral, se se chamava sardinha?)
Vi
totens, Levy-Strauss e o mapa das histórias de lince, as figuras
grotescas, isto é, anti-ordem ditatorial de não me toques, figuras
de que falou com admiração Baquitim, o Baquitão no dizer do
Soares.
Para
completar a emoção lítero-gráfico-musical-pessoal, o curumim sem
nome, eu mesmo, confesso: era assim que meu pai me chamava! E o símbolo
do Giordano, o "médico de livros", arqueólogo da
palavra, que vi um dia em missa de sétimo dia de um padre que
confessava: a Cia de Jesus veio para cá cumprir as ordens da Coroa
portuguesa! Esse Giordano arqueólogo da memória literária do país,
imperador Cláudio do livro.
E
se tudo isso não bastasse, es Edições Cururu (sapo que não é
sapo, e lembra curu-mim, mim curumim), "ataca" outra vez: Dos
Sapos e dos Livros Três Pequenos Enigmas (e que enigmáticos!)
O rosto, o rosto, da menina afegã,
da acuada condição humana, do terror e da força. Os recortes que
o Soares faz na foto são tomografia visual expressiva: destaque de
muitos ângulos presentes naquele olhar.
O
prisioneiro da uroboros que é a mulher, o Soares admirador (sem crítica
genética) do feminino, poema curto e profundo, narrativo, cuja real
história/estória, não está nas marcas, mas nos sulcos que deixa.
O "recusei-me", ao lado do título,
tira o suspense, mas cria uma atmosfera fantástica.
Lembrei
o Paraíso perdido do João Milton, que quando li a primeira vez não
tinha como entender, mas que criou emoções de que a leitura
"entendida" posterior se beneficiou e muito, como ocorreu
com o Ser e o Tempo do Heidegger, poema puro, jogo etimológico (e
mesmo ilógico e em outro sentido, dado por seguidores, perigoso:
parece dizer que haveria um sentido originário a ser
descoberto).
Oficina
do livro lembra o sapateiro do exemplo do heidegger sobre o que está
só presente e o que está inserido como presença na co-presença
de todas as coisas que formam um sistema), joão mil-tons, o joão
da queda ao inferno, única a permitir entender o céu, e recusar
sua apropriação: o que seria de Deus sem seu outro, que lhe mostra
a parte obnubilada dele? Faz sentido um Deus sem o adversário? Que
na África é antes o embusteiro, o brincalhão, sem esse mal que
lhe atribuíram e que não se assemelha em nada ao mal que causam
hoje a 25 milhões de africanos portadores de AIDS! Lembrei-me do
Jung, que disse o que seria de Deus sem nós para o reconhecermos?
Lembrei-me de mim ao dizer à mãe que tinha direito de errar, na época
sem saber que errar tinha duplo sentido, que era vago, vagar, mas eu
só via o anti-acerto.
E
esses comentários fecham, abrindo, o círculo de meu comentário
que vem no papé 2 das Cururu, "Dos Sapos...", em que eu
defendia uma subjetivo-objetividade, um "objeito", fusão
objeto-sujeito da impossibilidade de realizar o sentido (tema de um
texto que vou mandar prá minha página no Soares, junto com Pássaro
Provisório, Poemas Esparsos e Poemas da Maturidade, com alguns
outros ensaios, como o sobre o sujeito,
sobre o autor, sobre a polêmica em Bakhtin, textos que meio que se
repetem, mas sempre de outro ponto de vista, e quem sabe um sobre o
"parasitarismo" como mecanismo de solapamento,
sapocururuamento de discursos consolidados,
sem entrar em polêmica aberta prá não ser calado antes mesmo de
falar, tantos planos, ímpetos de fazer coisas, mas com textos sobre
globalização para traduzir!)
Tenho
de parar, pois não conheço domingo nem feriado há meses! O livro
vai ser devidamente entronizado entre as coisas que desejo que
queimem junto com meus restos para que a cremação seja gloriosa.
Lançado no mundo, gemi, e será que dele sairei aos gritos ou na
calma que o Soares aspira a ter antes mesmo de ir? As coisas a ser
queimadas parecem matéria,
mas são mesmo matéria no sentido de "a matéria de que são
feitos os nossos sonhos" (Chico Pires
na cabeça, ô mermão"!).
Abração
a todas e a todos.
Adail
|