Para teu pai poder reencontrar-se. Não que que ele esteja perdido. Longe disso.
Mas distanciado de alguns de seus prazeres. Os mais importantes, eu acho. Sei que não devo falar por ele, somente por mim. Então, lhes digo que fui ausente dos muitos diálogos a que gostaria de pertencer por todo ano passado.
Agora houve um tempo pra nós. Ele embarcou na minha.
Reatou laços, abraçou suas memórias ao passar por aqui. Ouviu. Contou o que tem vivido. Recordou de histórias. Esteve junto aos teus. E conosco. Coisa que faço só, sempre que vou a São Paulo e que me traz um respiro em meio ao sufoco.
É que no dia-dia da gente no Rio, tornamo-nos impossível. A gente não consegue. E esquece. E trabalha o esquecimento até à exaustão. Para não lembrar de quem realmente fomos e sem reconhecer o que nos tornamos.
Quero gostar da gente.
E se for preciso rever nossos caminhos que não sejamos só culpa e arrependimento. Mas auto conhecimento.
Creio que foi isso que viemos buscar aqui.
Quais eram mesmo os planos? Vamos escrever nossos sonhos e não perdê-los mais de vista.
E como eu, passasse boa parte de uma parte do seu dia debaixo d’água.
Porque é no silêncio de uma piscina que eu aprendi a resolver meus problemas, desde menina. Da sua idade. Eu tinha a companhia do meu irmão e vc tem Bento, tentando te acompanhar.
Estar imersa me fez bem e quis eu que vcs experimentassem. A princípio, obriguei, bem verdade. Mas em tempo, vcs tomaram gosto por viver um pouco debaixo d’água. Porque, a sensação é boa demais e depois do treino - faz valer a pena. O cansaço louco e a disposição a enfrentar qualquer parada no seu dia.
Seguiu assim a nadar por horas, dando meias voltas, sem ter destino certo. Nadar por nadar. Por vc. O que ao meu ver já um baita aprendizado.
Além de fortalecer o coração e inevitavelmente controlar o respirar. Respeitando seus limites e a ansiedade. Olha o desafio.
A natação faz isso com a gente.
Faz também melhorar na matemática da vida porque, quando se tem de cumprir mil metros numa piscina de 25, há de se aprender a contar mentalmente.
E isso, vc logo percebeu e me contou que aprendeu a multiplicar debaixo d’água.
Sem se perder, não há outro caminho a seguir que não o da sua raia, com mais ou menos esforço. Cuidando para não se desviar e nem atrapalhar os colegas que dividem este espaço contigo no pódio.
Enquanto nós - em solo, que fique claro - não queremos medalha nem nada. Admiramos vc!
No lugar mais seguro que eu já encontrei pra nós.
Como dentro da barriga da mamãe.
Submersa, respira, coordenando braçadas e pernadas.
Faz memória.
E se mostra cada dia mais forte a disputar.
Um melhor tempo.
Pra ti.
.
.
Te amo
sua determinação e coragem é a coisa mais linda do meu mundo!
Chamamos uns amigos pra cantar parabéns, comer bolo.
Fizemos uns enfeites pela casa e pela primeira vez, não cozinhamos todas as comidas para receber a nossa gente. Eu me sentia cansada. Desgostada. Destemperada.
Mas minha mãe veio, como de hábito. Trouxe um braço quebrado e um coração dilacerado pelo ambiente de desequilíbrio político social a que estamos experimentando. Meu irmão também veio, senão ele, quem puxaria as malas? E as crianças amaram a vinda deles dois. A festa, só com eles - já estaria formada.
Mas era aniversário dela
e tanto a menina quanto o menino estavam ansiosos.
Queriam festar!
E em plena segunda feira houve farra, amigos e um tanto de música que preencheram nossa casa de alegria e nos fizeram distrair um pouco. Enquanto olhávamos as crianças, arriscávamos planos de sair desse lugar. Com poucos bons amigos a nossa volta. Aos risos de nervoso um escolheria o Uruguai, outro Berlim… Pra onde vamos? Quando na verdade queremos estar aqui?
Este é o nosso país.
Faz tempo que ando tentando conviver com a ideia dentro de mim de que, se a maioria escolhe democraticamente viver sob comando de um paraquedista fascista, tem de ser também uma escolha nossa ficar ou não. Só não é simples assim. Né?! Mudar.
Clarice fez 8 e sem dúvida,
temos aqui um divisor de águas.
Ficar ou partir.
Lutar ou desistir.
Só.
Hoje, quarta-feira - fomos comprar seu presente,
pés de pato.
Porque assim como eu, treina a menina para ter resistência e fôlego.
Na piscina.
Demoramos. E acabamos tendo de almoçar um sanduíche, desses bem rápidos para não atrasarmos para o colégio.
E enquanto eu comia, Clarice me contou o que se fala de política na classe dela.
E que está proibido debater.
Por que?
Porque as pessoas brigaram.
E enquanto eu mordia aquele sanduíche horrível,
eu que nem mais carne como, choravam meus olhos.
Ela logo avisou.
Mãe cê tá chorando! Não com vergonha, mas com acolhimento.
Sabia…
Foi um instante em que passou pela minha cabeça que tudo o que eu desejo para Clarice é que ela não seja como eu. Tudo o que quero para minha filha é que ela não chegue aos quase quarenta vivendo num lugar igual ao meu. Numa solidão tão imensa quanto a minha. Num recinto de pouca empatia. Num país desigual como o nosso. Ela - mulher como eu… Que ela não tenha que criar seus filhos dessa maneira. Que possa escolher inclusive se vai querer ter filhos ou não. Que os papéis das mulheres não sejam definidos pelos homens. Que tenham voz. Que ela não tenha que se proteger das pessoas como estamos tendo que nos proteger agora. Que possa ser o que ela quiser, menos eu neste contexto. Que ela possa ser corajosa e que tenha espaço pra isso. Que ela seja mulher viva de verdade porque eu ando me sentido meio morta, sabe?! Que seja possível não viver sob ameaças. Que ela encontre espaço possível pra nós. Porque ela não pode ser eu no futuro. Porque eu não vejo futuro pra mim. Aqui.
Porque eu desejo existir nela - livre.
Ela então me contou, enquanto dedilhava as batatas e reclamava do sal que entrava num pequeno corte do dedo indicador, que chorou ontem a noite também.
Quis saber o porque e surpreendentemente Clarice se pôs a falar que chorou porque não queria crescer.
“Queria continuar com sete anos mãe.
Não quero crescer mais.”
Nem eu.
Te abracei, caminhamos de mãos dadas, apressadas.
Porque sou uma mãe atrasada.
_Prometa pra mim, não seja como eu!
Me deu um beijo. E continuamos.
Um pouco rindo, um pouco chorando.
Num pacto de resguardo.
São os novos velhos tempos.
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Luiza Pannunzio é mãe de Clarice e Bento,
criadora do Atelier lp, da rede As fissuradas,
ilustradora do Conte para alguém, desenhadora + escritora às vezes <3 www.luizapannunzio.com
Enquanto sua irmã abre passagem e indica-lhe caminhos.
Possíveis, seguros e necessários.
E ainda fica na retaguarda para o caso de você precisar.
Não que desconfie da sua capacidade.
Mas é quando eu assumo que pode ter sido um erro,
mas treinei ela para te olhar.
E não o contrário.
É dela te ensinar a ter cuidado na hora de pular a janela, subir no telhado.
No fino trato - como deve se relacionar as outras pessoas. O certo e o errado.
E quando errado está - vem correndo me contar.
Enquanto mexo a panela no fogo. Respondo emails.
Ou faço um desenho. Vem jantar!
Deixo-os perder-se de mim pelo parque, pela casa, pelo mar.
Desde que você tenha coragem e permita Clarice te cuidar.
E assim, por diversas vezes neste fim de semana perguntei
a ela por onde andava você que escapou de mim, o quanto pode.
Por vontade, curiosidade e enfrentamento.
Bento vai pra fora.
Clarice cuida e caminha no mundo exterior com a desconfiança de quem já está entendo um tanto da vida em nossa cidade - sociedade.
Do perigo que ronda.
Do waze que avisa.
Do cachorro que morde, da vespa que pica,
do galho mais alto da jabuticabeira que pode não te aguentar.
_Desce Bento!
Mas a certa altura ela me chamou de canto e com jeitinho de quem não queria me magoar disse que não podia mais o Bento zelar.
_Só por hoje! Mãe, queremos fazer um negócio entre nós e ele não pode estar.
Aceitamos.
Carreguei Bento no colo como um pacote devolvido após 6 anos. E ele entristeceu.
Durou cerca de 10 minutos. Quando levantou disposto a arrumar uma brecha pra enturmar no meio delas. Sem dúvidas, fez graça, se jogou na grama, aproveitou do seu dom da piada pra fazer sorrir boa parte das crianças daquele lugar. Inclusive Clarice.
Na volta pra casa, Bento trouxe o recorde de carrapatos num corpo magro e adoecido de tanto brincar. Agora com febre, ferve o menino coragem que titubeia só quando o assunto é vacinar. Vomitou, não quis jantar. Me fez prometer que não iríamos ao PS. Nem ao dentista.
E hoje ao acordar me contou que teve medo da morte. E que Clarice não estava lá.
Clarice chorou porque não queria dormir sozinha.
Ou por simplesmente não querer dormir.
Chorou quando não foi convidada para festa.
Disse sentir muito. Só.
Chorou porque criticaram teu rabo de cavalo na aula de ginástica.
Porque falaram que não queriam o
“nojento do seu irmão por perto”, na ginástica.
Porque se dividiram em meninos de um lado
(no caso só tinha ele - Bento, de menino)
e meninas do outro e disseram que ele
não poderia brincar - na ginástica.
Eu tirei vocês da ginástica.
Daí, na escola disseram achar feio seu novo penteado.
E que seu tenis estava fora de moda.
Tua boneca que não fala, não manda, não caga,
não come, nem engatinha, não poderia estar.
E você, no meio do ano, olhou pra mim e chorou.
Eu pensei em comprar uma baby a live e
resolver a parada toda - mas fiquei firme.
Por duramente acreditar que você tinha argumentos suficientes
para encontrar dentro de si.
Das coisas aprendidas nos últimos 7 anos de nossas vidas.
Eu vi.
Você desistiu e meu coração ficou tão apertado naquele dia.
Em que você parou.
Igual aos objetos inanimados que carrega na mochila.
Chorou sozinha.
Ao perder a borracha.
A pagar o tempo.
A falta da companhia no recreio.
Chorou torcendo para que os intervalos entre as
aulas fossem reduzidos a pó.
Depois, chorou me contando seu pesar.
Da vergonha.
Sobre as horas vagas a vagar no pátio.
E eu optei por te observar.
Mas pedi para a escola me ajudar a te olhar.
Atenção: acreditamos em você, imersa em si.
Custou pra todos nós.
Mas eu sabia que iria se encontrar.
Incluindo pares dentro de um grupo não tão diverso que é da escola particular.
Então, você escolheu experimentar uma escola pública.
E me mostrou que havia muita segurança aí - dentro de ti.
Chorou porque sua avó foi embora, todas as vezes em que veio te visitar.
Como se não compreendesse das idas e vindas.
Logo você…
Chorou porque acabou o bolo de fubá.
Porque levou 7 ou 8 pontos na cabeça.
Porque disseram que não era boa suficiente.
Que nem sabes virar bem estrela.
Que não é perfeita.
Aliás, continuam dizendo.
E você chorou, às vezes, no final de cada dia.
Talvez, porque estava cansada.
Das críticas.
E eu insistia: é tudo bobagem.
Mas houve um dia nesse ano em que fui até a escola
e fiz um discurso pra lá de feminista.
Que isso não era “coisa de meninas”.
Que precisávamos nos alinhar, nos unir, empoderar.
Que não poderíamos compartilhar com
este botar pra baixo umas às outras.
O mundo mudou - eu repetia.
Enquanto te vi chorando por não haver vaga no time
de futebol dos meninos.
E depois, quando conseguiu a vaga.
Foi classificada.
Chorei por classificarem você.
E aceitei nossas diferenças.
Chorou porque eu fui e voltei 12 vezes à trabalho
pra São Paulo no decorrer desse ano.
Na ida e na volta.
De tristeza e de alegria.
Chorou ao ser picada pela abelha.
Chorou porque tiraram sarro de seu irmão.
Chorou porque não soube como rebater com a violência recebida.
Chorei por não lhe ensinar.
Revidar.
E por não conseguirmos protegê-lo.
Nem a ti.
Choramos.
Foi em 2017.
São 22:40h quando consigo me sentar para escrever à vocês.
Os dias aqui andam ligeiro e nós gastamos nosso tempo andando de bicicleta e colhendo pitangas no pé, no meio da calçada, na rua de trás dessa casa alugada, desse bairro distante. Eu ando desnorteada e atrasada por conta dos inúmeros projetos que toco adiante além de vocês. Projetos que aliás, não caminham na mesma velocidade que o tempo corre conosco. Através do vento que bate em seu cabelo Clarice, eu vejo o tempo passando por nós. Ele me diz tchau. Logo, amanhã é outro dia. E eu ganho horas para perder com vocês. Eu ganho sempre pra perder. Eu tenho tido uma sorte da porra. Plim! Quando acordo, depositam estas horas pra mim. Que eu tenho gasto com todo prazer.
Escrevo para lhes dizer que os últimos dias foram os melhores de minha vida e por isso recomendo que guardem eles no coração. Nada fizemos de diferente, é verdade. Mas a simplicidade das últimas 168 horas, os diálogos na mesa do café ao jantar, nossas idas e vindas de bicicleta, a chuva, minha corrida agoniada sempre com vocês me fazendo companhia e me incentivando, os amigos e a praia - deram motivos suficientes para inundar meu coração. Eu me afoguei. Em lembranças da minha infância, tamanha ternura. Porque é para lá que eu vou. Por pura sorte.
Recordei minha mãe - que quando chegava o final do ano, escrevia com recortes de revista e jornal, um FELIZ 1989 e grudava com durex na parede da nossa garagem. E este era seu toque final. Antes disso ela já tinha, com a ajuda da minha avó, preparado a ceia toda. Lembra do cheiro das comidas sendo administradas no fogão? E da cesta de frutas que nesta época do ano, morava em cima da mesa e tinha uma arrumação pra lá de especial. E depois de tudo, minha mãe tomava um banho rápido e se arrumava. E ficava linda. E nos arrumava e a gente ficava tudo lindo e cheirosos aguardando os parentes chegarem. Que chegavam lindos e comiam e bebiam. E depois fazia-se um multirão pra limpar tudo para o dia seguinte. Acho que tem a ver com estas horas que hoje reconheço que a gente ganha pra perder.
Então, pensei na minha incapacidade de fazer uma refeição tão tão gostosa como a minha mãe e que não tenho ânimo nem humor para decorar a casa com recortes de revista e jornal a não ser por vocês. Escolham, o que querem escrever na parede. Quero repetir esta alegria, teremos em dobro. Agora, vestir-me e vesti-los não vai acontecer. Eu sonho que no final de 2017 estejamos todos como bem quisermos. E já aviso que estarei de pijama.
Vem chegando o final de mais um ano.
E outro dia nós fomos à praia e vimos o por do sol.
Nada planejado. Chegamos lá e pá: POR DO SOL.
Caraca, que sorte!
Vocês brincaram na beira do mar enquanto o helicóptero da polícia passava rasante sobre nossas cabeças com um soldado pendurado pra fora apontando uma arma enorme pra areia. Eu corri, em desespero - porque num breve momento pensei que ele pudesse atirar em mim. Em mim! Ou em vocês.
fim.
mas
tem projeto nosso no catarse se eu fosse vc
(que chegou ao fim desse texto) apoiava:
https://www.catarse.me/omeninoquenaosabiachorar_7a74
beijo
www.luizapannunzio.com