segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Eles

 





Eles dizem que vem aí uma vaga de frio, e dizem para se vestir várias camadas de roupa, e beber líquidos mornos, e comer sopa...

A mulher do outro lado do telefone é a mesma que de vez em quando me previne, uma vez que não tenho televisão 

Eles dizem que pode acontecer um apagão, eles dizem que a guerra... eles dizem que a crise... eles dizem que a gripe... eles dizem que o covid...

Eu ouço e acho que eles querem que se viva com medo, tolhidos, medicados, prevenidos, comandados...

O raio para eles... 






sexta-feira, 21 de novembro de 2025

o senhor carlos

 




o senhor carlos morreu. 

aquele homem rude, fluente em palavrões, com cerca de setenta anos e não sabia ler nem escrever, no século vinte e um, nem ele nem a mulher.

morreu. 

agora, ao domingo de manhã, já não vai ser ele a estrear o carreiro da horta que divide os talhões. serei eu, bem cedo, a dizer mal da fechadura, que perra, devia ter sido ele a abrir.

mas morreu. ele que me dava umas folhas de vez em quando e alfaces para plantar que nunca consegui que vingassem. dava-me a mim e a mais ninguém, que os outros, dizia ele, não eram de bem.

o senhor carlos, que dizia ter sido salvo por nossa senhora, morreu naqueles dias de chuva intensa que tudo varreu que  tudo alagou que tudo lavou. e ele foi-se sem que chegasse a dar pela  falta dele.

no meu altar, ficaram as sementes de abóbora, que o homem rude me deu, colocadas em forma de flor, para que os seres de luz cuidassem dele. e ali estão, agora à espera de terra fértil, para  que de alguma forma ele sinta o sol outra vez, para que de alguma forma, a luz o oriente.




domingo, 16 de novembro de 2025

tenho pessoas à minha espera

 





a mulher atravessa a garagem do prédio com os pés submersos na água que invadiu todo o espaço comum, com os sacos pendurados nos ombros enquanto as mãos levantavam as calças para que não se molhassem. os vizinhos andam de um lado para o outro falando ao telefone, mudando os carros de lugar, indagando o que fazer, enquanto a observam de pés encharcados naquela água fedorenta.

tenho pessoas à minha espera - diz ela - tenho de sair. agora não posso tratar disto.

senta-se com a porta do carro aberta, descalça sapatilhas e meias, calça outras, secas, coloca as molhadas dentro de um saco, e sai.

tinha chovido torrencialmente mas naquele momento a tempestade acalmara. segue rumo a 'tenho pessoas à minha espera'. a estrada aparece cortada devido a inundações, o trajecto alternativo, apontado pela polícia, parece um ribeiro com corrente forte. e ela segue. tem pessoas à sua espera.

estaciona. a porta de casa abre-se. lá dentro as pessoas. abraçam-se. sentam-se. cruzam os olhares como crianças apanhadas numa asneira.

somos doidas varridas - diz a mulher - ou temos muita vontade de estar juntas...

sentadas à mesa, erguem os copos e brindam - à amizade, a nós, à saúde, aos reencontros.

é bom, termos pessoas à nossa espera.







quinta-feira, 13 de novembro de 2025

bruxa

 




ainda desejo a chuva.

as gotas que molham o meu rosto ao fim do dia, que amaciam as dúvidas e a inquietação pelo tempo que voa. os passos cuidadosos nas folhas escorregadias no passeio, o filho que me acompanha aprendendo os meus delírios, abrindo horizontes na aridez da rotina, alargando os meus com a sua sabedoria antiga, de outras galáxias, de outras vidas.

falo das ondinas, das sílfides, de como a água que vem do céu nos alivia das cargas, de como o vento sacode muito mais do que cabelos e roupas.

fica-me no peito um sorriso, uma ternura guardada, pois estes meninos, agora homens, ainda ouvem os meus devaneios, as minhas loucuras, as minhas verdades, e interiorizam, e aceitam, e, arrisco a pensar, que as vão tornando, pouco a pouco, deles, enquanto com carinho, asseguram-me que sou bruxa.






terça-feira, 11 de novembro de 2025

vento

 





aborrecido, Éolo apostou em despir as árvores em tempo record. daqui, do lugar onde me sento, os ramos sacodem, em todas direcções, as folhas, outrora verdes e agora amareladas, que ofereceram abrigo às aves durante todo o verão. e elas são levadas pelo vento, num misto de liberdade e redenção.

a mim, o vento diverte-me. a imprevisibilidade do sopro, os cabelos justificando o seu desalinho, a carícia onde roça na pele. abro os braços e peço que leve o que já não me serve, que me limpe, que me alivie.

em breve virá o tempo em que as minhas amigas, nuas, adormecidas, me deixarão ver o nascer do sol por detrás da capela no cimo da encosta aqui da terrinha... manso, promissor, dando coragem para enfrentar um novo dia, um de cada vez, nascendo devagarinho, silencioso...




sábado, 8 de novembro de 2025

direitos

 





a mulher que à minha frente se deliciava com duas pizzas, ora uma, ora outra, falava ao telefone:

- estou a comer uma sopa

dizia, com naturalidade

por instantes, condenei cá com os meus botões aquela mentira insignificante... para quê... não se poderia dar ao direito de comer uma pizza? mas depois, percebi que talvez não quisesse que a pessoa do outro lado lamentasse não poder partilhar o momento, ou talvez que a julgassem desafogada, como se o desafogo fosse pecado, e talvez fosse, aos olhos da outra.

vim para casa menos intransigente, mais maleável na minha condenação da mentira, tentando entender o direito a não dizer a verdade. afinal de contas, o momento era dela, para ela, com ela.





segunda-feira, 3 de novembro de 2025

caminho

 



a mulher calcorreava as ruas com passo apressado. chovia. o casaco fino que trazia não tinha sido feito para a abrigar da chuva. as calças de malha, supostamente brancas, cresciam-lhe por baixo das sapatilhas, com o peso da água que pisava. pisava chão, pisava água, pisava as calças. mas não se detinha. talvez tivesse horas para chegar. no ombro, inclinado, levava a bolsa e na mão o telemóvel de onde só desviava os olhos para atravessar uma rua. seguia o caminho pelo gps. estaria perdida, ou estrangeira naquela terra sem alma feita de prédios, alcatrão e trânsito. muito trânsito. quem a visse, julgá-la-ia alienada, completamente alheia ao que a rodeava, com o fito único num qualquer número de porta. ainda ouviu alguém dizer-lhe de passagem 'está a chover...', como se não soubesse. a chuva que caía subia-lhe pelas pernas, e descia pelos cabelos. o que a conduzia, só podia ser maior do que ela, do que o tempo, do que a orientação terrena dos seus passos, do que o seu desiquilíbrio.

talvez seja assim que caminham os loucos, conduzidos por algo maior do que eles.






domingo, 2 de novembro de 2025

domingo

 



cheguei cansada.

contrariei a minha vontade. não me aninhei. não parei. não mergulhei no meu livro, aquele em que a minha atenção resiste e salta linhas. não me silenciei.

contrariei o meu saturno retrógrado em aquário na casa 7... digo eu à professora que ontem me dizia que eu me sentia desconfortável, e até fugia, de ambientes com muitas pessoas, devido a essa configuração astrológica.

mas mesmo assim valeu a pena. fui-me superando minuto a minuto, por amor àquelas duas mulheres mais velhas.

pois é o amor que nos faz andar, que melhor guia os nossos passos, e nos conforta no nosso desconforto.





sexta-feira, 31 de outubro de 2025

artificial

 




depois de ter passado a tarde toda a alinhavar o projecto para dar seguimento ao curso que frequentei e que há alguns anos desejava fazer, resolvi perguntar à IA como realizar o dito. toda a tarde consultei apontamentos, manuais, segui links e anotei resumos e pressupostos. 

em alguns segundos, a querida artificial apresentou-me o projecto, impecável, no formato que eu quiser, e em audio, se preferir.

ora bolas. 





quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Ancestrais

 






olho com atenção para a lápide, depois de ter pousado o vaso de flores amarelas. ali inscritos estão os nomes do tio, primo, avós, bisavós, trisavós, tetravós e uma amiga antiga que não tinha onde descansar os ossos. a maior parte dos apelidos já estão diluídos no tempo.

trago essa imagem comigo, e uma veneração tardia por aqueles que me correm nas veias.

neste fim-de-semana passado, o professor contava a história de um ancião, personagem de um filme do qual não me lembro o nome, que, ao lhe perguntarem quem era, respondia 'sou..., filho de..., neto de... bisneto de..., trisneto de... ' e por aí fora.

sabendo que os meus ancestrais não se encontram ali, naquela profundidade da terra coberta por uma roseira, trago comigo os nomes que representam aqueles dos quais também sou feita. e agradeço-lhes a vida.