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sexta-feira, 7 de março de 2025

Arthur Penn no Canadá


por Robin Wood

Esta entrevista foi realizada em três manhãs sucessivas de Novembro de 1969 durante viagens de carro para locais de filmagem de O Pequeno Grande Homem. Texto aprovado por Arthur Penn. 

RW: Hitchcock disse que para ele o filme está completo com a finalização do guião de rodagem. Welles disse que para ele o acto criativo essencial ocorre na sala de montagem. Onde consideras que fazes os teus filmes? 

AP: Penso que mais na sala de montagem. Acho que foi George Stevens quem disse que o processo de criação de filmes podia ser dividido em três fases, a preparação do guião, a rodagem em si, e o processo de montagem, e que a primeira e a terceira eram as mais importantes. Eu subscreveria isso. A rodagem em si, embora por vezes apaixonante e muito recompensadora, é no entanto a criação de uma espécie de material em bruto básico do qual se extrairá eventualmente um filme. Isso não é verdade em absoluto no caso de Hitchcock. Ele avança e o plano dele é definido para executar a intenção de uma ideia e, normalmente, faz isso incrivelmente bem. Mas esse não parece ser o meu caso. 

RW: Há muitos mais cortes em Alice’s Restaurant do que nos teus filmes anteriores. 

AP: Está relacionado com a natureza do material. Há uma ausência de linearidade. Não existe uma cena estável em Alice’s que seja autónoma e leve a cabo as suas próprias intenções. Há um grupo constante de temas paralelos que correm ao mesmo género de tempo nervoso, e acho que a necessidade de alternar entre uns e outros, e não ficar com uma experiência até ao seu termo explica isso. Acho que é mais um resultado do que uma intenção ou uma técnica deliberada.

RW: Até que ponto supervisionas a montagem dos teus filmes, e até que ponto é que a montagem já está na tua cabeça quando estás a rodar? 

AP: Bom, num certo sentido a montagem está na minha cabeça—não se pode rodar efectivamente sem ter uma espécie de composição final na nossa cabeça. Mas, por exemplo, neste momento eu estou a rodar a última parte de O Pequeno Grande Homem num dia de neve frio no Canadá, e é difícil para mim prever nesta altura qual deve ser o ritmo desta cena, digamos, ao final de duas horas e meia de filme. Poderia dar um palpite fundamentado, mas não queria que essa fosse a minha única opção quando chegasse a altura de organizar o filme; assim, há outras variáveis que eu rodo, em termos de grandes planos e outros ângulos, que me darão a oportunidade de alterar o ritmo de uma cena. Estou a ficar cada vez mais agarrado ao ritmo no cinema—não uma teoria profundamente avançada mas uma coisa visceral. E para responder à tua questão sobre a sala de montagem—nesse sentido eu não supervisiono corte a corte, uma vez que tenho uma montadora extremamente brilhante [Dede Allen], mas o que de facto lhe digo muitas vezes é “Isso não está a acontecer da forma certa, isso simplesmente não está ao ritmo que acho que devia estar,” e discutimos muitas vezes um com o outro, onde ela dirá, “Mas não é este o valor que achas mais importante?” e eu respondo, “Não, não acho que seja mais importante. Acho que é um valor, mas não acho que seja tão importante, digamos, como um tipo de energia temerária que por esta altura se devia estar a acumular no filme, e não está, e se pararmos para marcar uma posição tão certa vamos perder esse género de impulso.” Portanto nesse sentido eu participo na montagem, mas na verdade é um diálogo contínuo entre mim e a Dede durante meses, e é frequentemente inflamado, mas sempre carinhoso.

RW: A forma como filmas—reduzindo cada cena em várias partes, filmando cada parte em tomadas relativamente longas, mas muitas vezes com a posição de câmara alterada com lentes diferentes para grandes planos, planos médios. . . Isso agora é prática comum como modo de filmagem? Que vantagens é que sentes que tem? 

AP: Acho que é uma prática relativamente comum, embora ache que o faça mais do que qualquer outra pessoa. Mas há várias razões. Elas podem ser aceitáveis para toda a gente menos para o homem que tem de pagar a conta para o filme que está a ser lançado, mas as razões são estas—aqui estamos nós no meio do Canadá a umas dezasseis semanas do início do filme, e estamos a rodar uma cena que vem algures perto do final do filme. Ela tem um certo ritmo inerente que todos sentimos no plateau. Não é necessariamente o ritmo que vai ser necessário nessa cena quando o tivermos todo montado numa sala quente de cinema e estivermos apenas a quinze minutos para lá de um saco quente de pipocas no intervalo do filme. Também existe a possibilidade de que o actor, ao fazer uma variedade de tomadas, ultrapasse uma certa sensação estranha diante da câmara e faça algo que parece acidental, mas é o toque natural de que estamos à espera. Se se fazem os filmes em pequenas partes, a oportunidade para capitalizar esses pequenos toques fica disponível. Se o fizemos num plano geral de grua longo, que vai para cima e à volta, e ao longo de duas tendas e por dois bravos montados, pode haver uma parte de magia algures por lá enterrada. Voltar atrás e consegui-la de novo é praticamente impossível. Não gosto muito de travellings numa sequência em que seres humanos estão a ter uma partilha íntima. Aliás, hoje à tarde vou utilizar um par de travellings longos pela aldeia, mas não vão ser baseados nisso—vão ser de preparação para a narração e as recordações de Jack Crabb durante o filme. Mas eu gosto que uma cena com diálogos tenha o género anterior de troca arrítmica e espasmódica que acho que o diálogo realmente tem, mesmo ao seu nível mais tranquilo. 

RW: A primeira impressão com que se fica dos teus filmes é a excelência quase universal da interpretação, às vezes por intérpretes cujo trabalho não era muito distinto anteriormente—Janice Rule em The Chase, por exemplo. 

AP: Das três fases de Stevens, aquela em que se pode ser menos que excelente é a fase intermédia. Vemos muitas vezes nos filmes de muitos dos melhores realizadores coisas que passariam apenas por actuação representacional aceitável. Mastroianni estava-me a dizer só há um par de meses que não é pouco comum para Fellini pegar em alguém da rua que se parece com o que ele quer. Ele diz-lhes, “Conta, apenas,” e faz vir outro actor para dar a voz. Isso é uma espécie de construção sintética do terço do meio; por outras palavras, esse terço do meio é relativamente controlável. No entanto, eu gosto de boa representação. Eu estive rodeado de bons actores toda a minha vida profissional, começando nos primeiros tempos da televisão ao vivo, onde trabalhei com tantos bons actores, depois no teatro, onde tive outra vez a oportunidade, mais os anos no Actors’ Studio, e francamente imensos anos com uma geração inteira de actores americanos que estavam empenhados na representação, o que era um fenómeno relativamente novo depois da guerra. Previamente a isso o padrão dos palcos americanos tinha sido imitar a alta comédia britânica. Com o Group Theatre[1] e depois o crescimento do Group Theatre e dos seus membros que ensinavam representação, desenvolveu-se uma nova geração de actores americanos. Num certo sentido, eu fiz parte disso perifericamente e aprendi o ofício da representação dessa forma, também com alguns estudos com Michael Chekov. Portanto tenho a capacidade, acho eu, para interessar um actor e também para proporcionar certas condições que talvez não tivessem tido em interpretações anteriores, que lhes permitirão emergir, como no caso de Janice Rule, digamos, ou de outras pessoas, às quais não falta talento. Têm uma quantidade de talento tal, na verdade, que muitas vezes confunde e prejudica outros realizadores que tendem a dizer “Não, não faças isso! Faz só isto.” Sabe, algures no interior de todas as pessoas gordas há uma pessoa magra a tentar sair—bom, no interior de muito actor cujo talento básico não observamos com muita frequência há um bom actor a lutar para sair, mas não está a lutar com força suficiente, ou esforço suficiente, ou suficientemente contra o Sistema. Portanto um dos prazeres de trabalhar com actores é ser capaz de trabalhar com eles na sua linguagem, e por vezes ser capaz de os estimular a actuações fora do comum. 

RW: Isto é muito diferente, por exemplo, das abordagens de Hitchcock ou Antonioni para com os actores. 

AP: Diria que sim—o que fundamenta novamente essa distinção de Stevens. Essas distinções são essencialmente artificiais excepto como exagero para a compreensão, mas nos filmes de Antonioni não se aponta para as actuações visivelmente boas como a substância dos filmes, e no entanto os filmes são notáveis—ou alguns deles são. 

RW: Sim, efectivamente é suposto Antonioni não falar de todo com os seus actores sobre coisas como motivação, ou aquilo que vai acontecer a seguir. Isto, imagino, é bastante alheio ao teu método de trabalho. 

AP: Penso que sim. Não me passa pela cabeça privar ninguém de qualquer informação que possa produzir algum tipo de intuição ou algum tipo de comportamento apropriado—parece-me que as intuições, as peculiaridades, as contorções e rotações que são originais nos filmes de Antonioni são de Antonioni, que as pessoas são um pouco automáticas e uma espécie de bela estatuária, e entendo que a sua experiência com Richard Harris, por exemplo, tenha sido de uma hostilidade considerável, porque Harris estava a fazer as exigências que um actor tem todo o direito do mundo a fazer e não estava a receber nenhuma dessas respostas. 

RW: Salientei esse contraste em particular porque ontem estava a falar com Dean Tavoularis [o director de arte de O Pequeno Grande Homem] sobre isto, e ele fez algumas comparações muito interessantes entre trabalhar contigo e trabalhar com Antonioni. Ele salientou que do ponto de vista do director de arte, talvez fosse mais gratificante trabalhar com Antonioni, que estava tão obcecado com o aspecto visual global de uma cena, enquanto que tu estavas principalmente interessado em actores. 

AP: Percebo isso muito bem, mas sei que muitas vezes Antonioni simplesmente esperava pelas condições climatéricas certas e o aspecto certo e a luz certa e assim sucessivamente, e eu entendo esse impulso nos cineastas. Por outro lado, particularmente sob as pressões do filme de Hollywood como o estamos a designar, não entendo. Não o entendo com as enormes despesas, em que quando se tem todas as condições climáticas maravilhosamente organizadas e as montanhas estão à distância de forma primorosa e o sol está por cima delas se diga, “Actores, representem instantaneamente! Agora, neste momento!” porque tudo o resto está certo. Aquilo que se ganha são autómatos que funcionam à frente da câmara—embora de forma maravilhosa em determinadas ocasiões, mas noutras ocasiões não. 

RW: Consideraste descartar nalguma das fases da realização de Alice's Restaurant o monólogo original de Guthrie, totalmente? 

AP: Bom, só uma vez, e depois de forma mesmo muito breve. Ao decidir fazer o Alice’s Restaurant, o meu primeiro e quase irracional impulso foi tentar expandir a gravação de dezoito minutos para um filme inteiro. Rapidamente se tornou aparente para Venable Herndon e para mim próprio que não era possível fazer isso—não se iria suster. Também destruiria a forma e a sagacidade do original e tornar-se-ia uma obra penosa. Então decidimos penetrar nas bases dessa peça, e começámos a desenvolver um conjunto enorme de material pessoal, sobre o Arlo, sobre o Woody, sobre Pete Seeger, sobre o Ray e a Alice Brock, sobre a vida da igreja. Tinha conhecido muito disso pessoalmente, tendo sido residente nessa zona imediata. E portanto a certa altura, muito adiante no guião, descobrimos subitamente que tínhamos um filme que não era realmente sobre os dezoito minutos de “Alice’s Restaurant.” Por outro lado, parecia absolutamente desdenhoso pensar em descartá-los, e não podíamos chamar ao filme Alice’s Restaurant e ter nele o Arlo Guthrie e não ter essa parte, portanto o que fizemos foi mantê-los quase intactos, aproximadamente com a mesma duração que está na gravação—acho que em tempo de filme ocupa uns dezoito ou vinte minutos, muito como a gravação, mas é só isso. Mas é uma espécie de homenagem independente e pequena à gravação. É como um desvio de teatro de variedades, na verdade, e serve como uma espécie de processo de fermentação. Acho-o divertido, e penso que o público fica contente por se rir a essa altura do filme, e eu fico feliz por os ter a rir. 

RW: Porque é que Alice obstruiu deliberadamente quando Ray está a projectar o filme de Shelly e a sua mota? O que é que vês a passar-se na cabeça dela quando faz isso? 

AP: Oh, não sei se consigo conceber qualquer tipo de pensamento consciente na cabeça dela. Acho que quer mesmo intervir naquela relação de Ray e Shelly de alguma maneira e sente que a sua conservação em película pela parte de Ray a exclui. Portanto interpõe-se a si própria fisicamente—como digo, sem pensamento consciente, mas muito da mesma forma que uma criança se vai interpor a si mesma entre adultos numa conversa em que se faz uma exigência, em que a criança sente que de alguma forma a matéria que se está a discutir também é da sua província e que não se lhe está a prestar atenção suficiente. Essa é uma das razões. Outra era que quando estava na igreja eles mostravam filmes de corridas frequentemente, e o que era interessante naquilo é que tratavam o filme de forma tão displicente. A minha experiência de ver filmes é a de ir quase constantemente para uma sala de visualização, sentar-me e olhar para uma parcela de película, e é uma experiência bastante sagrada. Mas eles passavam-no na parede da cozinha, e as pessoas entravam e saíam e iam buscar uma cerveja e passavam mesmo pelo feixe de luz do projector. Era tratado de forma muito casual, e eu achei que era uma coisa muito agradável de se fazer. Portanto pensei que aqui era importante deixar isso claro também—que o cinema para este grupo de pessoas era diferente do que é para mim—e para a maior parte das pessoas que eu conheço. 

RW: A igreja ainda está a funcionar dessa forma? A Alice e o Ray ainda lá estão? 

AP: Sim. O Ray ainda lá está. A Alice está divorciada e está a viver em Stockbridge, mas não está a viver com o Ray. 

RW: Sentiste alguma dificuldade em fazer um filme tão íntimo e revelador, e muitas vezes crítico, sobre pessoas que ainda estão vivas e presumivelmente mesmo perto durante a rodagem? 

AP: Elas deram todas autorização, leram todas o guião, e ninguém manifestou objecções ao conteúdo. O Ray, que tem uma personalidade exuberante, teve uns episódios ligeiramente histriónicos um par de vezes sobre como a invasão da companhia cinematográfica não era diferente da invasão das forças americanas no Vietname, e aqui estávamos nós a fazer um filme anti-Vietname, e como é que podíamos fazer algo tão abusivo e intrusivo como isto? A analogia caiu por terra bastante rápido, e o Ray, quando o mau humor passou, foi o primeiro a admitir isso de forma bastante envergonhada a a rir-se e beber uma cerveja. A Alice, por outro lado, disse-me numa altura depois de ler o guião, “Não sejas demasiado simpático comigo. Conta-o como foi. Conta-o da forma como achas que foi.” Uma afirmação bastante franca, devo dizê-lo, e só me deixou com admiração por ela. 

RW: Achas que o filme teve algum efeito directo sobre eles e possivelmente na sua relação? 

AP: Não sei. Não os vejo desde que o filme estreou. Só recebi uma carta da Alice, uma vez que acabei de trabalhar nesse filme literalmente no dia anterior a começar a trabalhar em O Pequeno Grande Homem—não tive oportunidade nenhuma para os ver. Sei que o Arlo viu o filme—estive com ele diversas vezes quando o tinha visto, mas a Alice não o tinha visto antes de eu deixar Nova Iorque e ir para o oeste. Mas recebi uma note dela a dizer “É um belo filme, e estou muito agradecida, obrigado.” 

RW: A rapariga de Arlo no filme fica como uma espécie de cifra. Era este o objectivo? 

AP: Bem, suponho que sim. Eu não percebia como é que as raparigas funcionavam com o Arlo nessa altura da vida dele. Não sabia mesmo nada sobre o assunto. O Arlo é uma pessoa um bocado fechada e difícil de conhecer. Não consegui descobrir nada de específico, e depois pensei que a coisa melhor e mais honesta a fazer talvez fosse não fazer conjecturas para além do facto de existir uma relação sexual. Mas a extensão do assunto normalmente era, “Bom, ela é uma moça porreira,” estás a ver, e quaisquer inquéritos tinham esse resultado, e eu pensei que tudo o que podia fazer era transmitir um sentido que talvez não fosse exacto de todo. E acabou por ser assim. Ele na altura andava a sair com outra rapariga, e então essa relação terminou quase imediatamente, ou estava a terminar durante as filmagens, e eu não sabia nada do conteúdo da relação nem porque é que estava a terminar e portanto não estava qualificado para inserir nada disso no filme. 

RW: Então ela era mesmo a rapariga dele, na vida real?

AP: Não, havia outra rapariga com quem ele andava a sair—que por sinal também aparece no filme, noutro papel. . . . Mas não, esta rapariga é uma actriz chamada Tina Chen. 

RW: De que nacionalidade é suposto ela ser no filme? É para se presumir que é vietnamita? 
 
AP: Não é para se presumir que não! Devemos estar sem dúvida conscientes de que ela é eurasiática e que há algum tipo de aproximação internacional. 

RW: Numa entrevista nos Cahiers du Cinéma, há alguns anos, disseste que gostavas de fazer um filme sobre a posição dos negros nos Estados Unidos, mas não te sentias preparado para o fazer porque era tudo demasiado próximo. No entanto consegue-se sentir este desejo em quase todos os teus filmes. The Miracle Worker, The Chase, Bonnie e Clyde, Alice’s Restaurant contêm todos tanto referências directas como oblíquas à condição dos negros na América. 

AP: O melhor que posso dizer é que são uma espécie de analogias, porque ainda me sinto mal preparado para representar o mundo negro de forma responsável, isto é em termos de textura interna, da sua vida interior genuína, com mais do que quanto muito um palpite fundamentado. Seria uma coisa imprudente de se fazer, penso eu. Por outro lado, por exemplo, estou a fazer um palpite parcialmente fundamento sobre o homem vermelho. Mas sinto que, socialmente, a situação não está de todo no mesmo ponto. Pediram-me para fazer uma série de filmes sobre os negros, muito especialmente a auto-biografia de Malcolm X, que é um filme que estou muito tentado a fazer, embora não o vá fazer, mas gostei imenso do livro. Gostar não é a palavra, mas revelou-me imensa coisa. Sejam quais forem as referências visíveis no meu trabalho, elas estão na forma de analogias em vez de afirmações específicas sobre o mundo negro, com o desejo ardente de que algum dia possa ser capaz de o fazer. 

RW: Até surge em The Miracle Worker, em que a Annie usa o menino de cor de uma forma que se sente que não poderia ter usado uma criança branca. 

AP: Sim, acho que era verdade dos tempos. O tipo de resposta ao controlo, a criança dedicada quase passiva, era provavelmente representativo da criança negra no Alabama de final dos anos 1880 e provavelmente não teria resultado tão bem com outra criança branca que estivesse a lutar pelo seu próprio ego. Acho que hoje em dia a criança negra não se submeteria a isso, e que o impulso para a constituição de um ego firme e orgulhoso é certamente a chave para o movimento negro nos Estados Unidos nos nossos dias. 

RW: O que é que te fez decidir utilizar uma mulher negra para a primeira entrevista de recrutamento em Alice’s Restaurant

AP: Bem, pensei que era uma das poucas alturas em que havia uma oportunidade para equilibrar as coisas mostrando a ordem social estranha que às vezes coloca pessoas como a pessoa negra ao próprio serviço do Sistema; é uma das formas mais subtis e cativantes pelas quais as pessoas são mantidas no seu tipo peculiar de gueto mal definido executando as intenções do Sistema. 

RW: Neste filme e em Mickey One, especialmente, pareces muito preocupado com a brecha deixada pelo colapso geral da fé religiosa que talvez remeta directamente para The Left Handed Gun com Billy e o homem de palha. Em Alice’s parece-me que o tratas de forma completa pela primeira vez. 

AP: Eu não entendo isso em mim próprio de todo. Não tive qualquer formação religiosa na minha vida. Nunca tive nenhuma crença religiosa. Não tive quase exposição nenhuma à religião organizada, excepto como uma espécie de observador de passagem—por vezes no Sul onde testemunhei coisas muito como aquela tenda evangélica. Vou-te dizer qual acho que é um dos aspectos mais apelativos para mim: a sua própria teatralidade. É uma das poucas áreas da vida moderna que é genuinamente teatral. Eu gosto desse impulso, e quando o vejo em falta, lamento-o e lamento que não haja bastante mais celebração. E nesse sentido talvez se possa dizer algo de pessoal sobre isso. Em criança, fui criado pela minha mãe, que estava divorciada do meu pai, e éramos muito pobres. E um dos sintomas dessa grande pobreza, que foi a meio da Grande Depressão, era o facto de não haver celebrações de festas nenhumas nem a celebração mínima do aniversário de alguém, por exemplo. Talvez passasse de mãos de forma um tanto superficial algum tipo de coisa pequena, e era isso. A minha mulher é a oponente mais forte e mais declarada disso, e não o aceita mais. Nós temos um grande número de celebrações, quase de tudo. Para nós é perfeitamente possível celebrar o facto de ser Terça-Feira, e devo dizer que gosto dessa parte da coisa—essa parte da vida. . . . E ela faz mesmo um grande alarido do Natal e da Acção de Graças e do Ano Novo e dos aniversários das crianças e do Dia das Bruxas e de festas de que nunca sequer ouvi falar. Acho isso muito agradável. Portanto talvez esse aspecto religioso esteja relacionado com isso—só no sentido celebratório. Ainda não estou a falar, acho eu, da verdadeira essência da questão, mas como digo, francamente não entendo a essência da questão. 

RW: Mostras uma continuidade entre o encontro de evangélicos na tenda e o movimento hippie utilizando o mesmo hino, que volta a aparecer de novo à guitarra mesmo no final do filme a acompanhar os créditos finais. 

AP: Posso explicar isso dizendo simplesmente que o Arlo mo apresentou muito rapidamente. Ele veio a minha casa da primeiríssima vez que o conheci. Depois de um bocado, e de comermos algo juntos e de partilhar dos intoxicantes da vida, ele sentou-se e tocou “Amazing Grace” durance cerca de duas horas em várias versões e cantou, e cantámos todos, e foi mesmo bastante comovente. Fiz-lhe perguntas sobre isso, e ele disse que o tinha feito uma vez numa estação de rádio, e depois disse, “Esta é a única versão que conheço. As pessoas que conheçam outras, enviem-nas.” Ele teve qualquer coisa como outras 115 versões deste hino a chegar. É um hino protestante americano inicial—e maravilhoso, acho eu. Sei que é algo de significativo para ele, e devo dizer que a expressão “Graça Deslumbrante” é algo de muito significativo para mim como uma espécie de enunciado poético. Se tivesse de contrariar a maior parte dos meus sentimentos misantrópicos, seria com o facto de existir uma espécie de graça que acredito mesmo estar dentro de nós, que talvez seja a esperança derradeira, e que a certa altura exerceremos graça uns para os outros. 

RW: Ficou em registo teres dito que The Chase é um filme de Hollywood e não um filme de Penn. Pode ter sido uma reacção extrema provocada pelas dificuldades que tiveste com ele. O tempo modificou isso de todo? 
 
AP: Bom, muito ligeiramente. Sou suficientemente sujeito a reacções pessoais para dizer, agora que o filme está a ser recebido de forma bastante mais calorosa do que foi na altura, que é um bocado mais fácil reconhecê-lo como meu. Por outro lado, reconheço o quão meretrício isso é. O próprio processo de fazer o filme, isto é rodá-lo, mas não montá-lo, parece-me ser o paradigma absoluto do filme de Hollywood—como os filmes são feitos em Hollywood ao longo dos anos. Eu não montei um metro de película, portanto é-me difícil reconhecer, embora saiba que tenha rodado cada pedaço que está no ecrã. Não representa a minha selecção, por exemplo, e onde percebi que tínhamos rodado oito ou nove tomadas de uma determinada sequência, as escolhas que foram aqui exercidas eram muitas vezes exactamente as opostas às que eu teria feito. 

RW: Mencionaste algumas tomadas extraordinárias, especialmente de Brando, que terias gostado de usar. 

AP: Bom, são muito difíceis de reconstruir. Na verdade eram só momentos de improvisação, em que sentimos de alguma forma que o texto era empolado e excessivamente expositivo. Depois de nos debatermos com aquilo durante um bocado, eu sugeri ao Marlon que improvisasse, e ele fê-lo, e improvisou de forma arrebatadora. Talvez fosse desarticulado, não estava estruturado em frases inteiras e completas, mas era apaixonado e comovente e cru—mesmo cru—e achei que essa qualidade estava totalmente ausente da cena quando vi finalmente o filme no ecrã. Foi uma grande perda para mim, porque achei que era uma das melhores actuações que já tinha testemunhado. 

RW: Voltando atrás: quando fizeste o The Miracle Worker, já o tinhas produzido para os palcos e para a televisão. Sentiste diferenças importantes entre os tratamentos? Em que medida te sentiste envolvido num acto plenamente criativo por oposição a um acto interpretativo, ou achas que é impossível fazer qualquer distinção? 

AP: Não, acho que é bem possível fazer uma distinção, e sinto mesmo que há uma grande diferença. O palco e a televisão são meios de comunicação essencialmente verbais—a televisão ligeiramente menos que os palcos, mas ainda assim de forma bastante forte, uma vez que, para usar a definição de McLuhan para a imagem televisiva, uma imagem de baixo contraste é uma imagem de baixo significado. O nível verbal da peça, particularmente no teatro, era tão forte. Por isso, tivemos de criar uma espécie de antagonista, um antagonista natural na pele do pai que estava sempre a impor limites de tempo arbitrários às experiências de Annie com Helen—”Duas semanas, Miss Sullivan, duas semanas, e depois ela volta para nós!” Esse tipo de coisa era necessária no teatro, porque a mim e ao Bill Gibson pareceu-nos que não conseguíamos desenvolver mesmo cenas de conflito sem isso. Quando calhou fazer o filme, infelizmente não ficou claro para mim até o filme estar feito que não precisava de nada disso—que a maleita de Helen em todo o seu impacto visual era antagonista suficiente para qualquer número de protagonistas, e não tínhamos de recorrer a todo aquele diálogo arbitrário, e quase uma espécie de peça de costumes, baseada em guardanapos e alimentação e maneiras à mesa sulistas, para marcar a nossa posição. A posição era visível a partir do instante em que aparecia o genérico. E é interessante que eu retire mesmo mais prazer do genérico, e dos flashbacks da infância de Annie, do que de quase qualquer outra coisa no filme. Sinto que esses são os aspectos mais fílmicos e cinematográficos do filme. E os outros, para o bem ou para o mal, são o melhor que consegui fazer com aquilo que concebo como uma espécie de peça teatral em filme. 

RW: O Pequeno Grande Homem. Podias falar sobre como encontraste o romance de Berger pela primeira vez, o que te atraiu à ideia de o filmar, e quão fiel a ele é a tua adaptação? 

AP: Eu estava a trabalhar noutro filme sobre índios com o Jack Richardson, um filme original, e estava a correr moderadamente bem, mas não muito bem. Tínhamos-lhe dado alguma forma, mas estávamos realmente com dificuldades a defini-lo de forma adequada. Então no decurso disso li uma crítica ao Pequeno Grande Homem, e achei que seria uma matéria de pesquisa interessante. Achei-o mesmo bastante encantador, engraçado, e tinha um adorável tom de ironia, que pensei que seria um tom muito eficaz para um filme sobre índios. E portanto comprámo-lo. É muito difícil ser fiel a um romance, fiel no sentido de reproduzir os incidentes num romance em filme, porque há tantos que são incidentes puramente literários em qualquer bom romance, que não seriam bom cinema. O exemplo que te dei em relação a The Miracle Worker pode muito bem ser transferido também para um romance—pedaços de prosa amplamente descritivos, com todo o tipo de ironias implícitas nas frases, e observações tangenciais que lhe acrescentam um travo requintado, podem não ser reproduzíveis em cinema, ou pelo menos não por mim. Aquilo que estamos a tentar fazer é aproximarmo-nos o mais possível do travo do livro fazendo uma espécie de justaposição estranha de cenas: cenas bastante sensíveis e emotivas entre os índios imediatamente ao pé de cenas bizarras no mundo branco. As cenas bizarras no mundo índio, as estranhezas do Contrário, por exemplo, a personagem do heemaneh, Little Horse[2], o tipo de homossexual para o qual há uma posição muito clara e satisfatória na comunidade índia—as coisas que estamos a tentar manter no filme. Por outro lado, os assuntos tiveram de ser comprimidos simplesmente para os incluir no filme, e mais uma vez outros são simplesmente eliminados porque não conseguimos arranjar tempo. 

RW: Quanto controlo tiveste sobre o desenvolvimento do guião—controlo total? 

AP: Oh, sim. Tão total como se poderia ter com um autor que está mesmo a escrever o guião—é o Calder Willingham—sendo o controlo inteiramente pessoal e humano. Posso não gostar de alguma coisa, mas não lhe posso dizer, “tens de mudar isto porque eu não gosto. Se tu, o autor, gostas profundamente, então eu aceito.” Posso-lhe dizer qual é a minha reacção e pode não ser inteiramente favorável, mas não posso dizer, “Podes retirar isso, porque eu não gosto.” Nós tivemos um diálogo aberto muito rico e acho que recompensador durante vários anos em relação a isto. Mas não é, de forma alguma, uma espécie de filme de autor. Não é isso de todo. É um filme feito a partir doutro pedaço de material por um escritor extremamente bom, e nesse sentido, e não digo isto de forma pejorativa, é um pouco um filme clássico de Hollywood. 

RW: Podes aprofundar isso e explicar qual é exactamente a distinção que tens em mente? 

AP: As distinções são antes de tudo excessivamente restritas para tornar claras as diferenças. Não tenho assim tanta certeza de subscrever por inteiro o conceito claro e simples do filme de autor, como um pólo em oposição ao outro pólo que se poderia chamar de filme industrial clássico de Hollywood, que tem uma espécie de anonimato incorporado pela mera quantidade e número de pessoas—e também a sua ausência de mobilidade. Eu acho que um dos aspectos mais extraordinários de um grande filme de Hollywood é que o número de pessoas envolvidas torna quase impossível ao realizador seguir um impulso. O impulso tem de ser pensado, planeado e pré-seleccionado ao ponto de já não ser um impulso, mas uma espécie de plano de batalha determinado. Quando chega a essa fase está a ser executado por homens que são especialistas absolutos, que assumiram o controlo e o tornaram mais ou menos anónimo pelo facto de o terem traduzido em “Oh, esse é um daqueles planos em que se faz isto.” 
    Eu daria Alice’s Restaurant como exemplo da versão americana do filme de autor—foi perfeitamente possível para nós, por exemplo, estarmos a ruminar, e quando chegou a previsão de que se esperava neve na manhã seguinte simplesmente deixámos tudo o que estávamos a fazer e fomos fazer aquela sequência inteira do funeral na neve toda num dia, e foi feita de forma muito simples. Aqui estamos nós, e sou confrontado com os problemas de neve em O Pequeno Grande Homem; a necessidade de neve é prolongada, e ontem o resultado foi a quase que paralisação do plateau inteiro porque não havia lugar para pôr o equipamento, e o equipamento estava a derrapar. A disposição para a colocação do equipamento e a sua camuflagem, e o próprio equipamento, tornaram-se finalmente o grande objectivo de como íamos filmar, que era como é que se evita o equipamento? 

RW: Houve muitos filmes feitos à maneira da Hollywood clássica que parecem ser filmes de autor no sentido de estarem gravados por inteiro e de forma tão clara pela personalidade do seu realizador: por exemplo, os westerns da cavalaria de John Ford e dois filmes que me disseste que admiravas, O Rio Vermelho e Rio Bravo, que não podiam ter sido feitos por outra pessoa que não Hawks. 

AP: Oh, eu não acho que os filmes de autor sejam uma impossibilidade no sistema de Hollywood. Acho que O Mundo a Seus Pés é um dos maiores exemplos disso no sentido de ser feito por um homem apenas—havia um tipo de inteligência visível em cada fotograma desse filme. E no trabalho de Hawks e Hitchcock e John Ford, certamente, mas deixa-me que te diga que ao criar o seu tipo de filmes, não acho que seja muito difícil fazer isso. Em primeiro lugar, há um histórico enorme com estes homes de um certo tipo de filme bem sucedido; depois, são filmes ortodoxos a nível superficial, ou seja ao nível a que os chefes de estúdio lêem o guião—é o John Wayne a enfrentar o Monty Clift, estás a ver, e vão ter uma grande luta. Esse tipo de coisa é compreendida de forma muito clara. Aquilo que acontece agora, claro, é que os temas nos filmes se estão a tornar um bocado irreconhecíveis para os chefes de estúdio. Portanto, filmes como Easy Rider talvez nunca tivessem sido feitos se tivessem de passar pelo processo de filtragem dos vários intelectos que gerem um determinado estúdio, cujo resultado final é o de alguém passar um cheque de x dólares para se fazer esse filme. Pelo caminho eles podem todos fazer pequenas sugestões para o tornar mais conforme, como, “Bom, talvez não andem de mota, andam de carro, e talvez não fumem erva, e se encontrarem uma rapariga atraente...,” e muito em breve acaba-se com um filme de festa na praia. Eu estou a ser jocoso em relação ao assunto, mas o que estou a dizer é que com comités, um dia alguém pensa num camelo, e eles tentam desvendar um cavalo. E isto tem sido tradicionalmente verdade em relação aos filmes maiores e mais invulgares de Hollywood. Por exemplo, ao mesmo nível que se pode apontar para Ford e Hawks e Hitchcock, também se tem de apontar para o historial de Welles em Hollywood, em que o seu autorismo era constantemente limitado e finalmente levado a um ponto em que é quase patético nos últimos filmes, onde se pode ver um homem a lutar no interior da estrutura dos filmes por uma identidade que está a ser obliterada pelo próprio processo de Hollywood. Se se continua a ser um realizador de Hollywood, uma das decisões básicas de vida é a de quando é que se desiste da luta. E um grande número de pessoas talentosas desistiu bastante cedo da luta. 

RW: Talvez se possa distinguir entre dois tipos de filmes de autor: um, a variedade Bergman directa de que O Mundo a Seus Pés é realmente mais próximo do que do filme clássico de Hollywood, porque é totalmente controlado por uma pessoa—filmes que fazem afirmações pessoais directas—e por outro lado, filmes que, embora sejam filmados a partir do guião de outra pessoa, talvez nem sequer da escolha do realizador, são permeados de formas bastante subtis pela personalidade do realizador. Tendo assistido à rodagem e a algumas rushes de O Pequeno Grande Homem, começo a sentir que isto vai acontecer, que está lá bastante de ti de formas bastante subtis, no tipo de actuações que estás a conseguir...

AP: O tipo de implante estilístico individual por vezes surge de forma bastante espontânea, como por exemplo nas dailies que tens estado a ver de O Pequeno Grande Homem. A noite passada vimos um plano da morte de Wild Bill Hickok, e algo que posso chamar de um toque de Penn, se quiseres, é a cara dele por cima do peito do pé de um sapato de homem. Isso aconteceu porque estávamos num saloon verdadeiro, em circunstâncias muito confinadas, e é muito difícil fotografar a cara de um homem se ele está literalmente no chão, de modo que levantar a cabeça do chão é um problema constante em cinema. Ou se crava a câmara abaixo do nível do chão ou se consegue que a cara fique em cima, e falámos sobre várias formas de ficar com a cara em cima. Depois apercebi-me que estaria tudo bem se ele tivesse caído na bota de um dos seus parceiros a jogar póquer, tendo sido atingido nas costas, e que um homem com a cara de um moribundo apoiada na sua bota ficaria paralisado e simplesmente a deixava lá, e não se mexia, e não reagia, tornando-se um objecto, e é isso que acontece. A cara de Hickok está como que cravada no peito do pé da bota; ele profere as suas últimas palavras a Jack e morre numa bota de tamanho 9[3]. Agora, isso não foi planeado—simplesmente aconteceu um minuto ou dois antes de chegarmos a essa sequência, e baseou-se inteiramente em conveniência. Isso torna-se uma espécie de toque autoral, por assim dizer—só digo isto como um toque. Não estou a sugerir que a teoria dos autores se pudesse realmente estender a isso; isso é absurdo. Mas é um toque personalizado. Portanto pode-se investir o guião de outra pessoa com toda uma série de toques personalizados. O tipo de distinção que estamos a fazer é entre a espécie de filme moderadamente autoral e o muito autoral, um em que se trabalha através do material de outra pessoa e se deixa uma marca nossa, e outro que é gerado como que visceralmente de nós e está profundamente imbuído com as motivações psicológicas, sociais e políticas da nossa própria vida.

RW: Na cena que estavas ontem a rodar fora da tenda do Pequeno Grande Homem, tens o Pequeno Grande Homem a a mulher índia Sunshine[4] a falar sobre o seu filho vindouro, uma cena bastante encantadora em que ela diz que o bebé está prestes a sair e ele diz, “Ele não pode sair até eu acabar de comer,” e então ela afaga a barriga e diz, “Não saias até o pai acabar de comer.” No pano de fundo disto, em plano geral, tens outra família índia reunida à volta da fogueira, um velho índio de pé sobre a fogueira a olhar em redor, a neve a cair, e para lá desta família índia novamente desertos nevados, bastante vazios. A cena parte deste momento bastante tocante para uma coisa mais obviamente cómica, com Sunshine a elogiar primeiro o Pequeno Grande Homem por trazer tanta comida para casa e depois mencionando imediatamente as irmãs—“Temos tanto para nós”—e começa a falar das irmãs. Acho que se envolvem muitas emoções diferentes nesta pequena sequência. 

AP: Primeiro, é uma sequência cómica soberba do livro; segundo, fomos confrontados com a necessidade de falar sobre a destruição do homem índio em batalha com os brancos, deixando para trás um número extraordinário de mulheres índias em proporção com os homens índios. O resultado da cena é que Sunshine vai pedir ao marido para também ser marido das suas três irmãs, que não têm filhos. É uma espécie de impulso de vida de uma personagem tribal para manter o seu povo vivo, sem nunca o pronunciar dessa forma. Colocando-o nos termos da cena, torna-se mesmo uma coisa bastante cómica. Sendo um homem branco e vindo de uma espécie de contexto moralista branco, Jack fica chocado com a ideia ao princípio. Mais tarde acaba por ver a sensatez da coisa, sem nunca ter uma daquelas descobertas sociológicas espantosas, e finalmente participa mesmo como marido de todas as quatro irmãs, e isso agrada imenso à sua mulher. Não é novidade que em momentos de grande aflição e em momentos quase genocidas, este tipo de suspensão da chamada moralidade de facto acontece—a preservação da espécie assume o controlo. Não é nossa intenção alguma vez especificar isso como sendo o impulso condutor da cena, mas é o tipo de cobertura intelectual sob a qual a cena existe. Espero que isso seja extraído, mas não o estamos a impor na cena. Espero que se revele mais cómico do que qualquer outra coisa e que os resultados de que estivemos a falar, os sociológicos, os genéticos, possam estar lá depois de uma reflexão, mas a cena está lá essencialmente para realizar o seu género de dever cómico...

RW: À qual a neve parece acrescentar uma tristeza, e o velho índio que está de pé a olhar mesmo em frente diante da fogueira...

AP: ... um certo tipo de melancolia: “Para onde foram os jovens todos?” Há isso, e há também o sentido de que Jack está na sua forma mais índia nesse ponto no filme. Nas suas identidades em mutação constante—tínhamo-lo mostrado antes a ser muito branco no seu período com os Pendrake em que estava a aprender este tipo de limites morais de forma muito severa—aqui ele é bastante índio e de repente tem de abandonar os seus limites morais brancos... Acho que é uma das melhores partes do filme—uma das partes mais bem escritas e mais bem concebidas. 

RW: Um pormenor—quando o Pequeno Grande Homem recebeu o seu jantar de Sunshine, o estufado estava muito quente, e Dustin Hoffman pegou em punhados de neve e largou-os na comida para a arrefecer. De quem foi essa ideia? De Calder Willingham, tua, ou de Hoffman? 

AP: Do Dustin, provavelmente, com certas limitações estabelecidas por mim. Por outras palavras, havia umas colheres índias bastante rudimentares que os aderecistas estavam muito ansiosos em aplicar na cena, e eu senti que a cena se tornaria um pouco mais viva se houvesse o obstáculo de estar com fome e ter uma refeição demasiado quente, e depois a mulher estava a falar sobre algo em que não se estava particularmente empenhado... Eu gosto de proporcionar aos actores este género de problemas—não resolvê-los, mas dar-lhes os problemas em si, e depois um bom actor consegue resolvê-los por si próprio. O Dustin é muito rápido—lançou-se àquilo e decidiu atirar alguma neve para o seu estufado de búfalo. 

RW: Então isso é uma espécie de toque combinado de Penn e Hoffman. 

AP: Sim, normalmente são... muito raramente são simplesmente implementados de fora. A ideia de um acidente controlado, ou de acto de invenção controlado, normalmente é baseada numa espécie de privação. Sabes a disponibilidade de uma equipa inteira para tornar as coisas fáceis para os actores. A necessidade psicológica de um actor é ter as coisas tornadas fáceis para ele; gosta de estar no seio da sua família, e psicologicamente isso é um bocado de postura. Eu não me importo que isso seja verdade em todo o lado menos no instante diante das câmaras, em que acho que deve haver um certo número de obstáculos ao vivo genuínos proporcionados aos actores que eles têm de resolver sozinhos, durante os quais ocorrem estas invenções acidentais, e fico encantado com eles quando o fazem. 

RW: Outro pormenor foi o de Sunshine a deitar os restos que não se acabaram de novo para a panela, para os guardar para a próxima refeição. 

AP: Esse foi totalmente meu, mas pensei apenas que a vida dos Índios das Planícies nunca foi muito provida de sustento, e certamente que a ideia de haver uma panela comunitária seria perfeitamente natural para uma sociedade comunitária. 

RW: Justificando o fracasso de A Terra dos Faraós, Hawks disse que não sabia como é que um faraó falava. Estás a sentir alguma dificuldade deste tipo ao dirigir personagens índias? 

AP: Sim. Não há qualquer dúvida em relação a isso. Decidimos desde o início aceitar uma espécie de coloquialismo inerente ao romance de Berger e utilizá-lo como se fosse a língua dos índios. Por exemplo, os índios neste filme não dizem “matou”, dizem “apagou,” e nós escolhemos expressões de gíria moderna para criar esse vocabulário índio. Apesar disso, ao observar os índios com atenção, fica-se impressionado com o facto deles terem um nível de comunicação diferente e menos verbal do que a cultura branca americana, digamos, e de facto proporciona pequenos obstáculos—para o Dustin, particularmente, quando tem de interpretar no mundo índio e sente que é instado a verbalizar demasiado. Se este filme acabar por não funcionar, não acho que vá ser esse o problema, embora possa ser sintomático do problema, que é o facto de simplesmente não termos criado uma vida índia realmente sólida. 

RW: Dizes que Alice’s Restaurant é um filme de autor. Como é que conseguiste preparar isso com todas as dificuldades de que tens estado a falar? 

AP: Uma das formas foi fazer tudo de forma bastante económica: tudo desde o meu próprio salário, e as quantias que éramos capazes de pagar aos actores, ao tamanho da equipa, passando pela quantidade de equipamento que tínhamos, o número de carros. Usufruímos de uma maior mobilidade como resultado de ter cada vez menos e menos e menos peças de maquinaria, de modo que era perfeitamente possível sair de repente e fazer qualquer coisa, e conseguimos fazê-lo a um nível bastante económico para um filme americano. Tenho sempre de referir isto—é diferente de um filme de qualquer outra parte no mundo, e esse princípio básico não deve ser ignorado. As exigências dos sindicatos na indústria de cinema americana são muito altas, e eles criam um obstáculo enorme a superar para pôr em película uma coisa bastante simples e terna e pessoal. Há formas de o contornar se se for um jovem cineasta apenas a começar, mas se se é um cineasta conhecido, então há um certo número de trabalhadores dos sindicatos que estão designados desde o início do filme, e as despesas aumentam. É muito difícil manter um filme até mesmo relativamente barato para alguém com qualquer tipo de reputação na América... Não se pode fazer o Easy Rider mais do que uma vez—isso não acontece. 

RW: Escreveste parcialmente Alice’s Restaurant. És creditado como co-autor do guião. Queres falar sobre a tua colaboração nele? 

AP: É sempre um bocado injusto distinguir aquilo que eu fiz em comparação, digamos, com o que Venable Herndon fez. Fizemos boa parte daquilo juntos—em conversa, em reflexões mútuas, ou em reflexões contraditórias. Mas passámos de facto alguns meses só a bater naquilo todos os dias, três e quatro e cinco horas por dia a elaborar as ideias do filme, a estrutura do filme. Eu diria que a maior parte da língua realmente falada no ecrã provavelmente é do texto de Venable, mas mais uma vez é muito difícil dizer isso, porque geralmente isso resultava de uma troca quase improvisacional entre nós que incluiria certos elementos do diálogo, que ele então incorporaria lá. E mais uma vez, há elementos que são incorporados directamente do Arlo: “Eu não abandonei a escola, a escola extinguiu-se à minha volta”[5]—este comentário era inteiramente do Arlo, entre muitos outros. Mas, por outro lado, vemos muitas vezes créditos no cinema em filmes franceses e italianos em que há quatro ou cinco escritores e o realizador listados como autores. Legalmente isso não é assim tão realizável nos Estados Unidos, embora realmente seja muitas vezes o caso que o realizador contribua para o argumento. Isso aconteceu em The Left Handed Gun e de certa forma em The Miracle Worker, aconteceu em Mickey One, aconteceu em The Chase numa certa medida, aconteceu em menor medida em Bonnie e Clyde e ainda em menor medida aqui em O Pequeno Grande Homem, mas não se é creditado porque há uma limitação associativa, uma limitação sindical, e aqui não se pode reivindicar a autoria exactamente da mesma forma. Têm de se apresentar provas da nossa participação na redacção efectiva do guião perante uma comissão do Sindicato dos Argumentistas. E isso é um bocado rebaixador, acho eu. Penso que era um dispositivo de protecção—nos velhos tempos era necessário impedir toda a gente no estúdio de se tornar o autor do guião, e que o autor do guião acabasse como moço de recados. Acho que hoje em dia é o contrário dessa condição que é verdade, em que muitas vezes há escritores, mas geralmente é o próprio cineasta que faz grande parte da concepção e da elaboração efectivas e frequentemente contribui para o diálogo. Realmente torna-se deselegante e pouco polido fazer essa afirmação, mas provavelmente podia ser feita por Hitchcock e por Hawks e por Ford em relação aos seus filmes, embora não tenha sido feita. Eu não acredito que os créditos de cinema sejam a linha de definição sobre quem participou mesmo e portanto quem é o autor e quem não é. Acho que isso é um dos equívocos básicos do conceito de autor e a razão pela qual a sua aplicabilidade é muitas vezes menosprezada no que diz respeito aos filmes americanos, por oposição aos europeus. 
    Eu não acho que, em teoria, se possa simplesmente ignorar as disciplinas que são inerentes a uma organização altamente qualificada e altamente técnica—elas também podem ser muito valiosas. Para mim foram. Ensinaram-me em vários filmes o que podia e não podia fazer, ou ensinaram-me pelo menos quais eram os limites, e o facto de as querer ou não violar tornou-se uma questão de minha escolha. Francamente há competências extremamente valiosas a adquirir com um meio de comunicação altamente industrializado à disposição. Mas o atrito ao outro nível também é muito grande. É-se uma criatura social, e também se é um membro de uma equipa, independentemente de se ser ou não o realizador. De algum modo, quando se está fora, e particularmente fora de Hollywood, como estamos aqui no Canadá, ou no Dakota, aparece uma espécie de homogenia de unidade, e então é muito difícil ser empregador e infractor dessas competências ao mesmo tempo. Há certas coisas que se faz que têm a anuência total da equipa, mas também se pode ter o sentimento de que “Não é assim que se faz” de uma forma altamente ritualista: “Não é assim que nós fazemos, meu filho”—quase começava a parecer fala de índio. Esse sentimento é muitas vezes comunicado pela equipa complexa de Hollywood. 
    Eu não acho mesmo que sejam necessariamente as próprias equipas ou as próprias competências técnicas. Acho que é muito mais o pessoal fiscalizador do estúdio. Aquilo que se encontra nos Estados Unidos, agora talvez em ligeiramente menor grau mas ainda, mesmo assim, é que a equipa—e isso inclui o operador de câmara, o homem do som, a maquilhagem, os figurinos, literalmente toda a gente—são mais responsáveis para com os dirigentes do estúdio do que para com o realizador individual, porque os dirigentes do estúdio representam uma continuidade no emprego para eles, e o realizador individual não. Resume-se a um facto económico tão simples quanto esse. Se eles fizessem coisas que fossem uma aberração nuns termos estúdio-industriais quaisquer, podiam muito bem acabar na lista de alguém como sendo de alguma forma malucos ou excêntricos ou incompetentes, e portanto há uma espécie de deflector ou um isolador de competência por que se tem de passar para se conseguir ter o momento de verdade imperfeito, ainda que altamente pessoal e por vezes revelador, no ecrã, e tem de se filtrar isso através de todos os géneros da mais subtil censura. É incorrecto chamar-lhe censura—é uma vontade virada noutra direcção. 

RW: Alguns realizadores tendem a levar ao extremo as coisas que querem fazer, que no quadro mais restritivo seriam modificadas e controladas. Foi interessante ver recentemente Ride the High Country uns dias depois de A Quadrilha Selvagem

AP: Eu achei que Ride the High Country era um filme elegante, mesmo fantástico, e A Quadrilha Selvagem era de facto um péssimo trabalho de um homem talentoso—cheio de excessos, cheio de simbolismo com escorpiões, e uma espécie de descuido. Quer dizer, aquela imagem dos escorpiões a serem devorados pelas formigas parecia mesmo cinema tópico[5] de ordem muito inferior... e os cortes para as crianças, e a inocência das crianças, e a violência implícita nas crianças... está aí o nível mais baixo de simbolismo, acho eu, e isso não era verdade para Ride the High Country. Ride the High Country tinha uma espécie de carácter irónico, solto e duro como pedra—não tem as melhores actuações do mundo, mas não tem de ter. Uma das melhores coisas nele é o seu carácter cru, monossilábico e de feridas na sela. 

RW: Há directores de fotografia com quem te tivesses dado particularmente bem, com quem tenhas gostado de trabalhar, e que tenham dado um contributo criativo ao filme? 

AP: Muitos deles deram. Acho que o Stradling dá, acho que o Burnie Guffey deu em Bonnie e Clyde, embora fosse difícil para o Burnie, porque lhe estávamos a pedir um estilo de filme diferente do que ele gostava. Custou-lhe caro, e teve um ataque de úlceras a meio do filme, claramente porque aquilo que lhe estávamos a pedir for não era o que os melhores impulsos dele lhe ditavam. Mas novamente, esse sentido de um director de fotografia ser talvez aquilo que o Coutard e o Decaë podem ser em França não é verdade nos Estados Unidos. De novo, a questão do emprego constante muito raramente está relacionada com o realizador. Está relacionada com o estúdio, e com o estabelecimento de continuidade: eles querem saber qual vai ser o próximo filme deles, e se vão ter um ano de emprego remunerado em vez de estar à espera que o Penn tenha outra ideia, outro impulso para fazer um filme. Em França, o Decaë e o Coutard e o Ghislain Cloquet trabalham com um número limitado de pessoas, estás a ver. Acabei de receber uma carta de Ghislain Cloquet no outro dia, e ele tem andado a trabalhar com Robert Bresson, e ele tem alguns contactos disso, e faz os filmes deles e trabalha com eles e tornam-se uma espécie de colaboração. Isto não é verdade nos Estados Unidos. Os directores de fotografia são de alguma forma mais intercambiáveis, mas o nível de normas técnicas estabelecidas—sobre aquilo que vai para a câmara e o que sai do laboratório—é baseado na intercambialidade. Não é baseado na individualidade. Um director de fotografia fica doente, pode-se deixar lá outro, e tinha-se muitas dificuldades em reparar na diferença entre os trabalhos deles— não porque os homens em si não tenham um olhar original, mas porque têm de provar a sua competência a nível de executar as normas. Quando as executam de forma competente o suficiente num certo sentido para obliterar a sua individualidade, então tornam-se membros de pleno direito do sistema, e são intercambiáveis. É um facto bastante irónico e amargo, mas é um facto de uma indústria, por oposição a um esforço artístico individual que se pode dizer ser característico do cinema francês. 

RW: Quais são agora os teus sentimentos em relação a Mickey One? É o único dos teus filmes que eu não gosto. 

AP: Bom, continuo a gostar dele. Arrependo-me de não ter tornado claro o nível narrativo desse filme, porque há uma narrativa forte que é possível ali e teria tornado esse filme, eu acho, muito mais compreensível. Mas eu estava inebriado com a... talvez este possa ser um muito bom exemplo daquilo que estavas a falar há pouco, ter-se total liberdade e ter-se certas limitações. Não tenho assim tanta certeza de que a total liberdade seja necessariamente boa. Talvez seja correcto citar isso como um exemplo—um exemplo perfeito na medida em que eu estava inebriado com a ideia da total liberdade. Senti que não se tinha de lidar com as qualidades filistéias de contar a narrativa pura, e lidar com o subtexto como se fosse subtexto. Em vez disso filmei o subtexto e deixei a narrativa de lado na maior parte das vezes. Muitas das minhas analogias um bocado exageradas desse filme como sendo mesmo o posto avançado da era de McCarthy, e todo o sentido da culpa sem nome, pura e simplesmente nunca chegou à tela. Em retrospectiva isso é muito decepcionante, porque acho que era um filme recheado de boas ideias, a maior parte das quais acabaram em discussão e não na tela. 

RW: E a personagem do artista japonês? Ele parece uma das maiores fraquezas do filme, por parecer uma personagem tão simbólica e imposta ao público como um símbolo. 

AP: É, sim. Eu pretendia mesmo que ele fosse o sobrevivente, do refugo da bomba atómica e do refugo dos resíduos industriais que uma cidade deita fora—que de alguma forma se pode converter isso de metal básico em algo mais refinado. A ideia era essa. Mas tenho de dizer que pela altura em que está na tela, não posso criticar Peckinpah assim tanto em relação ao baixo nível de simbolismo. 

RW: Não se sabe como é que Yes, a sua criação artística, é para ser tomada, se é suposto ter validade ou não. Eu, pelo menos, nunca tive a certeza. 

AP: É suposto... 
 
RW: Eu não consegui deixar de pensar em Yes, aliás, junto aos móbiles de Shelly em Alice’s Restaurant, que não se pretende claramente que tenham grande validade artística. 

AP: Não, não têm. Mas o Shelly também é absolutamente o contrário desse tipo de homem... não, no caso de Alice’s Restaurant são apenas prova palpável do desejo de um homem em fazer outra coisa com as mãos e com a vida, mas isso é tudo. Não são muito talentosos e não são muito significativos. O trabalho do sobrevivente em Mickey One era suposto ser significativo. 

RW: Os protagonistas dos teus filmes, com a excepção parcial de Annie em The Miracle Worker, parecem sempre envolver-se, às vezes pelas suas próprias acções, em situações que não conseguem enfrentar ou controlar. Isto corresponde à tua visão pessoal das coisas? 

AP: Acho que sim. Acho que há muito pouco que se possa fazer em relação ao próprio destino. Refiro-me a resultados externos—quanto efeito se tem sobre o que acontece na própria vida. Como se vive com isso é uma questão totalmente diferente, e o que é a avaliação pessoal do próprio comportamento, é mais uma vez uma questão totalmente diferente. A parte interior da vida é diferente da parte exterior, mas eu diria que na maior parte das vezes, o meu sentido do lado exterior de viver é que, na melhor das hipóteses, é uma coisa muito aleatória. As forças são mesmo tão fortes em todas as direcções que acho difícil conceber alguém a tomar controlo da sua vida ao ponto de o resultado estar genuinamente ao seu alcance. 

RW: O Pequeno Grande Homem segue este padrão de alguma forma? 

AP: Sim, O Pequeno Grande Homem segue sem dúvida esse padrão. Aliás, o Pequeno Grande Homem é essa personagem mesmo ao extremo, no sentido de se esforçar muito pouco para afectar a sua vida, escolher um objectivo e alcançá-lo. Envolve-se com objectivos que lhe são atribuídos por outros e ora os completa ora os falha conforme o determinam os acontecimentos—durante os quais se tem uma visão bastante boa do Oeste como podia bem ter sido nesse momento da invasão do branco ao mundo índio. O Pequeno Grande Homem é essa personagem inactiva ao extremo. Como digo, pessoalmente eu não subscrevo isso como modo de vida... Acho que se deve protestar contra ele—resistir-lhe—e luta-se contra ele constantemente e de forma violenta, mas acho que em última análise teria de dizer que não sei se o protesto e a luta resultam necessariamente numa mudança palpável e visível. 

RW: No meu livro, sugeri que pertences àquilo que se pode chamar livremente de tradição romântica, em que coloquei Blake, Lawrence, Yeats—uma tradução que dá especial ênfase à espontaneidade, em viver dos impulsos, viver dos instintos. Aceitas essa colocação? 

AP: Bem, teria todo o gosto em aceitá-la. Não sei se é verdade, mas aceito-a! Acho que posso dizer que é verdade em relação ao meu trabalho com os actores. Não sei se poderia reivindicar isso como estilo de vida, embora haja muito nisso que poderia querer reivindicar. 

RW: Tu pareces admirar o comportamento espontâneo nas tuas personagens, e ser atraído por ele, mesmo quando é destrutivo para as personagens. Estou a pensar, por exemplo, em Bubber Reeves em The Chase, Bonnie e Clyde. Embora sejas críticos deles e vejas as suas limitações, também pareces muito atraído por eles porque, de certa forma, são livres e espontâneos e impulsivos. 

AP: Sim, certamente que gosto disso em qualquer narrativa—gosto do chamado comportamento impróprio, a chamada afecção imprópria, para adoptar o termo psicológico, porque parece ser a própria essência da verdade relativa ao comportamento humano—que se ri nos momentos de maior raiva, que há lágrimas nos momentos aparentemente mais impróprios. Há misturas estranhas de comportamento que têm um toque de veracidade nelas que o comportamento delineado de forma bastante clara da maior parte das interpretações na maior parte dos filmes não tem. Acho que Bergman é um mestre nisso, na verdade. O facto de ter feito uma cena tão erótica, embora não ache que tenha sido esse o seu impulso, em Persona tendo duas mulheres sentadas numa sala vagamente escura a uma distância considerável uma da outra, e uma a contar uma experiência sexual, que provavelmente é em parte verdade e em parte um certo embelezamento fantasioso, é um feito notável. Não consigo pensar em mais ninguém que tivesse tido a audácia total para fazer isso—e no entanto a verdade daquilo soou na minha cabeça como um sino. Eu prezo isso nos actores. 

RW: Disse-se que Bonnie e Clyde é um filme perigoso por incentivar a revolta, sem sugerir ou insinuar qualquer ideologia ou programa coerente ou positivo. Sentes que há alguma verdade nisto? 

AP: Bom, eu não acredito que haja revolta sem um programa que surja dela. Os activistas que geram revolta não têm necessariamente objectivos ideológicos claramente definidos: uma revolta surge de uma condição social. Não penso que surja da definição de objectivos abstractos, e da tentativa de alcançar esses objectivos. Os activistas revoltam-se; depois vem um grupo de intelectuais que subscrevem as propostas da revolta, os objectivos, e então vê-se ao longo da história como o impulso da revolta, e os objectivos tal como são definidos pelos intelectuais que herdam a revolta, não são necessariamente coincidentes, e há uma espécie de sub-revolta posterior subjacente, um grande abalo e muitas vezes um grande banho de sangue que acontece depois quando a revolta seguiu de algum modo a sua forma. Portanto não acho que isso seja uma crítica particularmente válida, porque se pode fazer essa crítica a quase qualquer revolta na história e encontrar as mesmas coisas em falta. 

RW: É bem sabido que Bonnie e Clyde foi escrito antes de te ter sido oferecido—na verdade, foi oferecido a Godard e a Truffaut, julgo eu, antes disso. Gostavas de falar sobre os contributos específicos que sentes que trouxeste? 

AP: Houve uma espécie de reorganização do guião original pela qual fui responsável a meio do filme. A reunião de família acontecia bastante mais cedo no guião do que no filme, a boleia ao coveiro e à namorada, e a descoberta de que é um coveiro—a espécie de presságio da morte que perfura a escapada romântica de Bonnie—estava numa posição diferente. Não havia o tipo de fio para a reunião de família que existe na presente versão, e sei que sou responsável por isso. Mas, por outro lado, era um guião escrito de forma excelente desde o primeiro momento. O estilo e o tom do filme foram realmente estabelecidos pelos escritores, nesse caso, e nesse sentido foi um dos filmes mais fáceis de fazer. Havia um brio maravilhoso na escrita. Cada pequena cena tinha o seu pequeno acabamento elegante, e por aí seguia, e foi um guião muito bom para trabalhar. Havia uma complicação sexual no guião original que não me parecia particularmente adequada: C. W. Moss realmente como amante de Clyde e de Bonnie. Eu senti que essa triangulação profundamente empenhada e implicada talvez não resultasse necessariamente no comportamento que o filme exigia de Bonnie e Clyde, ou seja este tipo de experiências de substituição. Senti que isso era tão complicado e detalhado e limitativo por si só que talvez acabássemos por não ter o tipo de pessoas que conduziam setecentas e oitocentas milhas por noite, que era verdade no caso da Bonnie e do Clyde reais, e era suposto ser verdade para as nossas personagens. Agora posso estar completamente errado no meu julgamento, mas simplesmente não sabia como fazer um ménage à trois dessa forma. Além disso, a personagem de C. W. Moss não parecia merecer esse nível de intimidade sexual passando ao mesmo tempo por uma espécie de condição de pária social, e portanto pedi a Benton e Newman que tivessem isso em consideração. Eles fizeram-no, e alteraram o guião para a forma que tomou no filme, e foi algo que aparentemente fizeram de bom grado e sem grande resistência. 

RW: Na verdade, ainda aparecem pequenas ressonâncias disso no filme—a forma como Clyde usa C. W. Moss ao tê-lo no mesmo quarto, para se impedir a si próprio de ter intimidade com Bonnie numa altura em que não o consegue. Tu tens uma espécie de relação triangular bastante similar com a Alice, o Ray e o Shelly, que sentimos poderem-se envolver facilmente num triângulo homossexual-heterossexual. Há indícios disto, eu acho. 

AP: Há, sim. Eu acho que em Alice’s Restaurant elas são concretizadas de forma mais completa, embora não o acto homossexual em si, mas as aspirações românticas desse tipo de apego entre Shelly e Ray e entre Shelly e Alice concretizam-se em maior ou menor grau de intimidade. Mas, no caso de Clyde, pensei que estávamos a lidar com um homem que era muito mais debilitado e inibido sexualmente e que quando muito o paralisaria ainda mais se tivesse mesmo consumado literalmente um comportamento homossexual ou um comportamento heterossexual na presença de outra pessoa, particularmente de outro homem: ficaria de alguma forma imobilizado. Admito que não haja uma base intelectual muito consistente para isto—antes uma totalmente pessoal e psicológica, mas acho que consigo fundamentar um caso bastante bom nesse sentido, embora outros talvez conseguissem apresentar um caso igualmente bom para a triangulação homossexual.

RW: Mencionaste Bergman há pouco... Bergman disse que eras um dos maiores realizadores do mundo. Sentes que existe alguma afinidade entre o teu trabalho e o dele? Os vossos filmes parecem diferentes em todos os aspectos óbvios. Há alguma coisa que te atraia nos filmes dele? 

AP: Bem, permite-me que comece com devoção cega... Há tantas coisas que me atraem no trabalho dele que nem sequer consigo começar a enunciá-las, excepto para dizer que para mim são a essência da poesia do cinema; são os trabalhos mais requintadamente pessoais realizados a partir das auto-confrontações mais profundamente honestas. A predisposição dele para entrar no que devem ser zonas extremamente dolorosas da sua vida, uma e outra e outra vez, para as compreender e sondar a verdade, parece-me ser a própria essência da experiência poética. E depois ser dotado dos meios para expressar isso e recriá-lo para outros o compreenderem é uma benção a que se pode chamar de génio, e eu não tenho hesitação quanto a isso—em dizer que Bergman é um génio. É muito menos o conteúdo e a imagética particular mas mais a experiência de um filme de Bergman que eu gostaria de emular. Acho que seria rebaixar a minha própria reacção ao seu trabalho falar dele em termos desta imagem ou daquela relação ou desta forma de contar uma estória de uma maneira mais ou menos técnica. Isso seria desvalorizar o tipo de experiência que tenho com um filme de Bergman, que é realmente sagrada e um pouco estética, e incrivelmente plena, e é a isso que eu reajo mais do que ao trabalho de qualquer outra pessoa. Acho que não conseguia fazer justiça ao trabalho dele isolando e delineando especificidades. 

RW: Podes destacar alguns filmes dele em particular que admires, ou aos quais reajas, especialmente? 

AP: Acho que o grupo recente de filmes têm sido extraordinários, penso que de Luz de Inverno para a frente. Isso sugere imediatamente que não há filmes extraordinários entre os mais antigos, e isso também não é verdade. Mas pessoalmente parece-me que reagi de forma diferente e mais intensa aos filmes até Persona e A Vergonha, que me deixaram absolutamente atónito. Não consegui recuperar o fôlego durante dias depois disso, e eles obcecaram-me e eu fiquei obcecado por eles. A referência dele à minha pessoa foi uma das coisas mais surpreendentes que já encontrei publicada. 

RW: Para o bem ou para o mal, Jean-Luc Godard é provavelmente a figura mais importante no cinema moderno como uma influência no sentido histórico de desenvolvimento. Queria-te perguntar qual é a tua posição em relação a ele, o que é que achas do seu trabalho e de que forma é que a sua obra evoluiu. 

AP: Bom, penso que o trabalho dele é notável. Sempre achei que sim desde o seu primeiro filme. Acho que é um inovador de uma capacidade extraordinária. É o homem que tem de aparecer em qualquer meio e quebrar as regras todas e mudar a organização do material; é um homem de ideação muito considerável. Acho que é um homem profundo. Não acho que seja um homem muito apaixonado ou piedoso, e devo dizer que acho que falta vida aos seus filmes, o que não quer dizer que não os ache fascinantes—mas acho-os sempre pouco cativantes emocionalmente, pouco cativantes a nível humano. Eles são todos filípicos em maior ou menor grau, com uma espécie de credo político pregado às testas do punhado de pessoas que estão à frente das suas câmaras. Como dizíamos no outro dia, tende cada vez mais a ser menos que um punhado de pessoas, e normalmente uma, e está-se a tornar uma imagem do próprio Godard. Ora eu não posso negar esse tipo de paixão, e digo, é feito de forma brilhante e artística, mas de alguma forma quero muito mais de um filme, embora consiga ver um filme como Weekend com admiração pelas capacidade, a audácia absoluta do homem, a audácia escandalosa que é uma qualidade por que daria muito para ter mais. Mas, ó, anseio tanto por um momento em que esse homem saia de trás dos óculos escuros!

[1] O Group Theatre foi um colectivo de Nova Iorque formado em 1931 por Harold Clurman, Cheryl Crawford e Lee Strasberg.
[2] Cavalo Pequeno.
[3] O tamanho 9 equivale ao número 43 em Portugal.
[4] Raio de Sol.
[5] "I didn't drop out of school, school dropped out from around me," no original.
[6] Penn diz "1A", que pode ter dois significados, um relativo à 1ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos e outro relativo às primeiras páginas dos jornais. Optou-se por "tópico" na tradução.

in «Movie» nº 18 (Inverno de 1970–71): 26–36; republicado in «Arthur Penn - New Edition», de Robin Wood (com Richard Lippe; editado por Barry Keith Grant), Wayne State University Press, Detroit, 2014.

domingo, 18 de agosto de 2024

Duas observações sobre Bonnie and Clyde


por André S. Labarthe

A crítica outra coisa não procura do que trazer à luz as analogias que o espírito espontaneamente cria. É de regra que ela cale a sua origem para apenas nos entregar o claro desenho de um espírito ocupado em captar o seu objecto. Assim, a luz que se faz deixa na sombra os motivos profundos que suscitam a crítica. Se, por exemplo, eu resolvesse, como estou tentado a fazê-lo, analisar aqui a forma e a função da montagem (ou da planificação) em Bonnie e Clyde, o que é verdade é que essa análise teria tido origem em duas imagens. Uma, a do nascimento e crescimento dos cristais (Bonnie e Clyde é para mim o filme desse crescimento, rodado em acelerado); a outra, a de um certo fogo de artifício de grande poder de que quase todo o cinema só sabe dar o declínio e que Arthur Penn nos mostra no seu esplendor.

Além disto, outra coisa: Bonnie e Clyde contesta a ideia feita que opõe cinema de montagem a cinema de actores, cinema de planos a exibição de artistas (e que diz que os bons directores de actores usam sempre planos longos). Já Welles e Becker tinham posto esta ideia em questão nalguns momentos. Penn acaba com ela de vez, quando pulveriza as suas cenas sem lhes cortar a continuidade e nos dá, num só plano rápido, de repente, todo o sentido do filme: aquele em que Bonnie revela o seu amor por Clyde quando tudo se move no silêncio ensurdecedor da morte mais violenta do cinema americano.

in «Cahiers du Cinéma», nº 196, Dezembro de 1967.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Um olhar sobre Raoul Walsh


por Jean-Claude Biette

Ao longo de toda a produção de Raoul Walsh podemos observar um conjunto de traços comuns a muitos filmes de Hollywood do período áureo anterior ao separatismo conquistador da televisão, quando o reinado dos géneros, como o western, o filme de aventuras ou o filme de guerra (para citar apenas aqueles em que Walsh realizou os seus melhores filmes) tinha tido tempo de correr riscos, de avançar livremente, de encontrar regras, de se tornar mais denso, de se tornar mais clássico, de perdurar em majestade finita.

Nessa altura, a narrativa opunha-se à dramaturgia num duelo[1] em que esta última era a parceira antagónica privilegiada, ao passo que o projecto formal, quase minoritário a cada novo passo, não ultrapassava a aplicação correcta, ou elegante, na melhor das hipóteses, de um certo número de convenções tacitamente aceites por todos, produtores, realizadores, actores, técnicos, público e crítica do período anterior a qualquer política de autores. Desde o fim do cinema mudo, a câmara tem a missão de fazer esquecer a sua presença para que o mundo representado, visto e ouvido no menor dos filmes, graças a uma complexa e pesada aparelhagem técnica (a narrativa e a dramaturgia são também técnicas, por mais antigas que sejam), com a obscuridade da sala a completar a autentificação do brilho ou da intensidade do filme, surja tão verosímil como o real natural, como se o real se pusesse de repente, nesta condensação de acções encadeadas, de movimentos múltiplos e de mudanças de perspectiva, a contar histórias e a produzir dramaturgia.

Foi esse o credo tácito do cinema hollywoodiano, que durante muito tempo se exprimiu nesta língua comum, antes de começar no início dos anos 40 a perder um pouco da sua segurança de uma grande comunidade.

Orson Welles como elefante branco e Jacques Tourneur como térmite, foram os primeiros a incomodar o formigueiro. Em breve, outros cineastas fariam ponto de honra secreto em modificar as palavras e, a seguir, as frases da linguagem comum utilizada, que se perpetuaria no pós-guerra: Samuel Fuller, Nicholas Ray ou Anthony Mann, cujo estilo, a escolha dos ingredientes dramatúrgicos e a liberdade conquistada para as suas personagens são a afirmação de que o cinema mudava, que podia e queria ser novo. Na sua maturidade próxima, Run of the Arrow, Johnny Guitar e The Far Country, para tomarmos apenas o western como exemplo, são filmes ainda enraizados na crença de que um género é uma coisa suficientemente flexível e viva para poder acolher os desvios ideológicos e existenciais que separam as gerações. Esta tomada de poder estilístico sobre a "realidade" anterior inocentemente aceite por todos como linguagem universal de Hollywood (visto que Hollywood é quase o universo) terá, além disso, permitido que jovens críticos e futuros cineastas estabelecessem algumas referências preciosas (à custa de ver pouco Ford e ainda menos Walsh); e a televisão preparava a sua ascensão enquanto os géneros declinavam lentamente. Quando só o cinema reinava, os géneros estavam lá para estabelecer na sociedade uma repartição de territórios com fronteiras: alguns tinham a função de falar das realidades da altura, outros tinham a função de as fazer esquecer. Entre a função do género e o objecto daí resultante existia toda a distância que separa um bom realizador de um autêntico encenador ou de um cineasta. Assim, as preocupações de uma época podiam ser exprimidas por um desvio de cineasta (por vezes favorecido por um argumento, quando não o era por uma produção) dentro de um género em que elas não tinham lugar. É o caso do mccarthysmo codificado em westerns como Johnny Guitar ou ainda Silver Lode de Allan Dwan.

Nos anos 40, todos os filmes de Walsh atingem o cumprimento feliz do seu programa narrativo dentro dos limites consentidos - na melhor das hipóteses, ou ditados, no pior dos casos - pela casa de produção, a Warner Bros. Deste modo, os filmes - de mar, de guerra, de aventuras, westerns - cujo actor principal é Errol Flynn têm em comum o facto de, quer tenham sido realizados por Walsh ou por outro (digamos, por exemplo, Curtiz), contarem uma história combinando acções e peripécias segundo um encadeamento no qual as raras pausas reservadas à dramaturgia - ou seja, um tempo para que os actores dêem algum livre curso a uma interpretação controlada - estão previstas de modo a que a acção seja retomada de forma ainda mais vigorosa. Talvez se deva a esta época a pouca teorização que Walsh exprimiu quando dizia que o cinema era "acção, acção, acção", coisa que qualquer outro realizador poderia ter dito.

O primeiro filme de Walsh da série Flynn foi They Died with Their Boots On, em 1941, e o último foi Silver River, em 1948. Esta série inclui, no meio de filmes menores, dois outros grandes filmes, Gentleman Jim (1942) e Objective, Burma! (1945). Nos intervalos desta série, Walsh roda também outros filmes sem Errol Flynn, dos quais pelo menos um se afasta muito: a obra-prima que é Pursued (1947).

Quando se tenta distinguir os traços característicos do conjunto dos filmes que ele realizou entre 1915 e 1964, reflexo amplificado do cinema hollywoodiano ao longo da sua evolução, podemos ver que há algo de pessoal em muitos deles, excelentes mas muitas vezes menores e enclausurados na encomenda, tal como na longa vintena de filmes realizados entre 1941 e 1964, que, de longe, os ultrapassam: um equilíbrio, que parece resultar mais da natureza do autor do que de uma arte deliberada, entre a truculência e a distância. Com efeito, Walsh dá às suas personagens não só um lugar preciso numa sociedade, um carácter identificável de que os actores produzem a imagem exacta, mas reduzindo, sem o afirmar, o heroísmo (no sentido neutro de herói do filme) até ao nível do comum destino humano, afecta-as com uma relação pessoal com a vida, que se inscreve a cada passo numa representação do mundo de forma única, como num quadro que, a partir do momento em que o expomos ao lado dos precedentes, manifesta também a grande variedade do pintor.

No conjunto da obra de Walsh, cada filme é, na sua duração dramatizada, no enredo encantador que os espaços desenham, uma representação do mundo, um teatro não falado do universo, o receptáculo ocasional de uma harmonia pouco segura. Combatem-se duas forças, muitas vezes dentro da mesma personagem: a truculência (o impulso associal para o mundo) e a distância (o estado alerta dos solitários, a consciência daquilo que afasta do todo e do que pode aproximar do outro). Isso dá muita liberdade aos actores e às actrizes. O próprio Walsh foi actor durante a sua juventude e era talvez ao seu conhecimento do teatro shakespeariano, subjacente à maior parte dos seus filmes, que ele devia esta singular aptidão para sentir em cada filme que, na medida em que se ele compõe de elementos materiais sempre diferentes (história, género, actores, cenários, espírito do tempo e interdições de representação), não tinha outra opção senão produzir uma representação do mundo única, incessantemente recomeçada, incessante e inevitavelmente diferente.

Supondo que a visão que Walsh tinha do mundo era una e avessa à evolução, ele procedeu, contudo, nesta perspectiva de representação, muitas vezes de um filme para outro, a ligeiras deslocações de registo no desempenho dos actores, como se, tendo em conta a soma dos elementos singulares de que se compõe, cada filme pedisse um reajustamento da tonalidade dramática que teria ditado uma grande poética das representações do mundo. Podemos observar esse aspecto na maior parte dos seus filmes a partir de meados dos anos 40. Isso começa pela simples variedade dos caracteres psicológicos interpretados por Flynn nos sete filmes que Walsh e o actor levaram a cabo juntos: foi nessa altura que Walsh se tornou um grande cineasta. O realizador tinha desde há muito tempo o génio das distâncias, uma maneira única não só de lançar os actores e de encontrar um ritmo, mas também de reflectir o mundo na sua encenação desde o ponto de vista das distâncias físicas e do ponto de vista das distâncias morais, materializando-as umas sempre no espaço das outras. Mas, mais tarde, os frente-a-frente nos olhares, nas frases e nos silêncios que interiorizam a narrativa em Band of Angels (1957), The Naked and the Dead (1958), Esther and the King (1960) e A Distant Trumpet (1964) têm uma beleza definitiva que não se conhecia na sua produção dos anos 40, assim como as paisagens a perder de vista das montanhas, dos bosques, das margens e do mar em Colorado Territory (1949), Distant Drums (1951) e Sea Devils (1953) reanimam um pouco da antiga poesia do mundo.

Como explicar - e será possível explicá-lo? - que até ao fim dos seus dias de actividade, ou quase, ele tenha frequentemente realizado um filme menor antes ou depois de um filme inesquecível? "Quandoque bonus dormitat Homerus[2]", poderia ter-nos sussurrado o general Alexander Quait em A Distant Trumpet (1964), esplêndido ponto final da sua obra. Podemos adivinhar como nasce a indiferença em certos filmes de Nicholas Ray, tanto estes surgem directamente de uma inspiração emotiva que age ou não age; em Walsh é mais difícil: o ofício tem uma parte sólida e constante nos seus filmes, há nele um realizador desperto. Mas um êxito do ofício não nos ensina nada de essencial, no filme, sobre aquele que com ele se regozija. É nos momentos em que Walsh é plenamente cineasta que um bom filme sem êxito como Along the Great Divide (1951) pode elucidar-nos o que é que lhe faltou para que o seu filme fosse o que poderia ter sido. O argumento é tão denso e cheio de intenções que ele o obriga a lutar incessantemente para dar vida a personagens que não a querem e que têm dificuldade em desembaraçar-se dela. Algumas boas cenas isoláveis reavivam o desentolar de um filme cujos termos dramatúrgicos (as relações de filiação regularmente declinadas são um desafio às capacidades interpretativas dos actores - Kirk Douglas e Virginia Mayo - para inscreverem uma verdade sustentável no tempo) podem, ainda, ter consistência no interior de uma sequência, mas que têm dificuldade em substituir-se umas após as outras e em assegurar uma sedimentação real da narrativa. O recurso à psicanálise frustra-se, ao passo que quatro anos antes aureolava discretamente Pursued com uma complexidade suplementar. A fraqueza do argumento encontra-se também no facto de não ser deixado nenhum tempo dramatúrgico entre as sequências, o que permitiria, quanto mais não fosse através da sombra trazida por algumas elipses, fazer viver esta história sem privá-la da sua dureza.

Na medida em que Walsh realizou um grande número de obras, por vezes várias no mesmo ano, os grandes filmes surgem apenas quando se encontra o bom equilíbrio, não só entre truculência e distância (o que nunca falta e que torna atractivos os seus filmes menos bons), mas sobretudo entre os imperativos categóricos da narrativa e as necessidades opostas (que forçam um abrandamento da acção que faz avançar a narrativa) de dilatação dramatúrgica. Quando este equilíbrio (que deve ser, graças ao "duelo", um ligeiro desequilíbrio) não é achado, é aos constrangimentos erróneos da produção e à ideologia espectacular das companhias que se devem as falhas que revelam subitamente os preconceitos de uma época, pois o génio de Walsh não deixa de ser exercido, tanto nesta arte de dirigir uma narrativa nitidamente mais depressa do que a velocidade de cruzeiro do espectador, como na arte de interrompê-la para abrir as perspectivas da dramaturgia, mas sem se furtar a fazer a junção entre ambas. É verdade que alguns argumentistas lhe convinham mais do que outros. O mesmo acontece com os actores, os operadores, e talvez alguns técnicos cujo trabalho continua a ser difícil de caracterizar exclusivamente através do visionamento dos filmes.

Se, pelo contrário, tomarmos em consideração Silver River (1948), filme cujo tema é a prata na sua relação mais material com a guerra (a da Secessão), com o funcionamento de uma cidade mineira (Silver City, pontuada por uma visita do presidente Grant) e com as relações entre um militar despromovido por ter tomado a iniciativa de queimar os cofres de dinheiro de que os nortistas poderiam vir a apoderar-se, McComb (Errol Flynn), e um casal de empresários mineiros cujas bases sentimentais deixam a desejar, os Moore (Bruce Bennett e Ann Sheridan), podemos ver que a relação entre a narrativa e a dramaturgia está bem preparada pelo argumento que, ao criar paralelamente ao trio de protagonistas duas personagens com um papel inversamente simétrico, dá o que fazer a Walsh, que lhes confia, de uma forma assimétrica, como veremos, a responsabilidade dinamizadora do filme: ao primeiro, um chantagista humilhado por McComb, "Banjo" Sweeney (Barton MacLane), dá-lhe o comportamento intempestivo das intervenções violentas, ou seja, a acção; ao segundo, um advogado alcoólico sem clientes contratado por McComb, John "Plato" Beck (Thomas Mitchell), atribui-lhe a insinuação moral que envenena uma outra zona da narrativa com a história bíblica de David, que manda para o combate o marido da mulher que ele deseja.

Graças a esta estrutura clara e bem dirigida, Walsh está bastante livre para estabelecer à sua maneira o diálogo e o relance dialéctico entre a narrativa e a dramaturgia, de modo que se no fim a narrativa leva a melhor, deixando-nos a possibilidade de interpretar o sentido, o realizador terá, contudo, sido obrigado a passar pelos abrandamentos de ritmo da dramaturgia, que conferem ressonância às decisões dos protagonistas, estimulados simultaneamente pelo amor e pela ambição (McComb e Georgia Moore).

Talvez seja justo observarmos que neste duelo entre narrativa e dramaturgia que atravessa um bom número de filmes, em que uma ou a outra conquistam o poder, consoante os casos, é aquela que perde que provoca as cenas mais marcantes de um filme. É justamente nessa medida que aquela que não é a regra favorece os momentos de excepção. Adopto de boa vontade o termo, proposto por Pierre Léon, de cena insubmissa*. Podemos também reparar que frequentemente nos filmes de cineastas uma ou várias sequências fogem ao registo geral do filme, não só pela sua tonalidade, na condição de que o terceiro termo (o princípio formal) permaneça minoritário, mas também pela sua escrita visual ou pelos seus cortes. Assim, em Silver River, há três sequências encadeadas no decurso das quais os elementos da narrativa diminuem a favor da dramaturgia. Primeira: McComb e "Plato" Beck contemplam uma vasta extensão de planaltos ladeados por montanhas ao longe, património futuro, com um castelo por construir, do ex-militar cuja fortuna cresceu porque ele decidiu alterar as regras do jogo em proveito próprio. No momento em que ambos abandonam o lugar, um homem ferido de morte vem até junto deles e cai a seus pés, a tempo de avisá-los de que os índios Shoshoni (que nunca veremos no filme) o atacaram. McComb leva o corpo no seu veículo e pede ao advogado silêncio sobre a questão dos índios. Segunda sequência: o marido da mulher cobiçada, proprietário mineiro, anuncia ao seu associado, McComb, que parte imediatamente para o território Shoshoni para lá chegar antes dos outros prospectores de jazidas. Perante o olhar do advogado, McComb permanece mudo. Terceira sequência: no grande bar vazio anexo à sala da cena anterior, assim que o marido atravessa a sala, o advogado recomeça a beber e, embriagado, recrimina McComb (que curiosamente costuma beber leite). Acaba por esbofetear o seu patrão e amigo, que cai e, enquanto o outro o levanta, o coloca sobre uma mesa de jogo, da qual retira o forro para o cobrir, ele lança-lhe um último aviso, recordando-lhe a história do rei David. Os planos destas três sequências têm uma amplitude que lhes é própria. Agora carregada de drama, a narrativa recupera os seus direitos. Desta forma, a crónica histórica, impulsionada por relações económicas em permanente movimentação, recebe o contributo de possantes dados individuais que cumprem a sua encarnação, em primeiro plano. McComb é uma das grandes personagens criadas por Walsh. O substituto de Errol Flynn será, mais tarde, Clark Gable. Era uma época - a dos filmes a preto e branco realizados para a Warner - em que Walsh, por vontade própria ou não, tinha sabido aceitar esta vitória final da narrativa, conferindo-lhe um sentido pelo lado da ambiguidade. Há três excepções em que se vê a dramaturgia levar a melhor sobre a narrativa: Pursued (1947), Colorado Territory (1949) e White Heat (1949).

Nesta regulação pelos géneros, em que alguns jovens cineastas - Fuller, Ray e Mann, para citá-los de novo - realizam também westerns, produz-se uma compressão temporal ambivalente, pela qual as regras que definiam os géneros em cada produtora serviam também para realizar uma filtragem, mais ou menos apertada, na representação do presente e do passado para um público mundial, com uma espécie de inconsciência colectiva acerca daquilo que neles se trama de História, quando esta, por si só, ocupa, a cada passo, a realização de um objecto de espectáculo. Enquanto os jovens cineastas, depois de Citizen Kane, conferem aos seus filmes um afastamento implícito em relação ao género, convidando a uma percepção moderna de acontecimentos antigos assombrada pela descoberta dos campos de extermínio, pela memória de Hiroxima e envenenada pelo mccarthysmo, que lançou o fogo da histeria em Hollywood, os cineastas mais velhos, como Ford, Dwan ou Walsh, que aprenderam o cinema junto de Griffith, trazem ao género, tal como ele se redefine a cada momento no presente, uma anterioridade fundadora - eles representam a História que têm, e que, se não foi vivida e observada, foi pelo menos recolhida junto de testemunhas directas ou através da escuta de uma transmissão oral - que, ao submeter o filme aos apelos do presente, o arrasta na direcção das fontes ainda vivas do passado. Assim se foi construindo uma tradição real dessa coexistência de um fundo sedimentário de épocas, sem que se tomasse consciência de se tornar uma tradição. Hawks, que trabalhava num presente perpétuo, não devia sentir-se retido pelo passado nem atraído por um futuro intangível. Enquanto Griffith permanecia como o grande cineasta da aurora do século XX, impedido de chegar à claridade do dia, DeMille terá sido o único cineasta do século XIX: é ao facto de ele ter efectivamente rodado filmes no século XX que devemos o seu estranho exotismo erótico.

Walsh sabia, em cada rodagem, onde encontrar a verdade apresentável das personagens. Um conhecimento experiente das paixões guiava-o na senda escarpada que vai das personagens aos actores e, depois, dos actores às personagens, sem que ele deixasse de observar o mundo. Toda a sua obra se desenvolveu em estruturas restritivas, por vezes tão prosaicas que em Hollywood quase ninguém nesse vasto domínio - a não ser Ford - suscitou tanta poesia possante e pudica. A violência das paixões na sua obra é sempre gerida pelo segredo bem guardado da distância certa. Walsh conhecia também o segredo da repartição dos planos para chegar a uma dramatização infinita no espaço.

O uso da cor e, mais tarde, do cinemascope permitiu que o seu cinema pudesse modificar um dia as proporções da luta entre a narrativa e a dramaturgia. Então, na maior parte das vezes, é a dramaturgia que leva a melhor, sem que a narrativa, tornada um discreto agente do contexto referencial, viesse alguma vez a sofrer com isso. Exemplos esplêndidos de cenas insubmissas - aqui, portanto, de expressões repentinas da narrativa: em The Revolt of Mamie Stover (1956), o ataque a Peal Harbor, ou ainda, em Band of Angels (1957), as três narrativas (a narrativa «marítima» e as duas narrativas de Hamish Bond). O cinemascope terá induzido nos anos 50 um abrandamento da acção: The Tall Men (1955), por vezes no limite da paralisia contemplativa, põe em destaque as relações interiores das personagens. Isoladas no espaço desse amplo ecrã, elas deslocam-se sem pressas, tal como o fariam num palco. O corte do plano torna-se mais raro. Estamos no Teatro do Cinemascope. Enquanto Clark Gable (será uma ironia propositada de Walsh?) marca o seu lugar na distância que o separa ainda de Jane Russell por estas palavras reiteradas: "I dream small" ("Eu sonho em pequeno"), o filme, por seu lado, continua majestosamente a ver o mundo em grande.

[1] V. «Une règle de trois», in «Le gouvernement des films», Trafic, nº 25, Primavera 1998.
[2] «Por vezes o bom Homero dormita» (Horácio, Ars Poetica)
* N. do T. «Scène rétive», no original em francês.

Trafic, nº 28.
Tradução de Jorge Filuzeau Garcia

in «Raoul Walsh», Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, Lisboa, 2001 [org. Manuel Cintra Ferreira].