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domingo, 2 de junho de 2013

Ó CAMINHO DE VIDA NUNCA CERTO


por Jorge Silva Melo

Objective Burma! 1945: é o paradigma do filme de guerra centrado no cumprimento de uma missão e baseado na sua árdua execução. Uns pára-quedistas têm que destruir uma estação nipónica e deveriam, depois, ser repescados de avião. Só que não se pode aterrar - e "a meio do caminho das suas vidas", aqueles homens vão errar "na selva escura", por entre "grandes e gravíssimos perigos", "tanta guerra, tanto engano", tanto pântano e riacho, nunca certo que está o "caminho da vida".

Como?... Dante e Camões para falar deste filme em louvor do esforço militar americano na Birmânia que até oculta a participação inglesa (e assim foi proibido no Reino Unido quando da estreia)? Este filme que "muitos e conhecidos amigos" de Cintra Ferreira (também ouvi e até contei essa história, será verdade?) "garantiram que era exibido aos soldados portugueses antes da partida para as colónias"? E eu, refractário ao serviço militar, que à continência nunca achei graça, que nunca votei no Eanes, o de peito feito em cima de carros, que nunca consegui acertar o passo..., comovo-me e exalto-me com este filme, "verdadeira profissão de fé na hierarquia militar" (Cintra Ferreira)?

É que a aventura dos homens do capitão Nelson (um Errol Flynn realista. longe do ferrabraz tão nosso amigo, por exemplo, do Gentleman Jim do mesmo Walsh) é uma pura aventura bélica que nenhuma outra intriga vai "romancear". E é filmada didacticamente: vejam a demorada descida dos pára-quedistas. Uma aula? Não falta um gesto, não falta um corpo, todos os soldados respondem à chamada. E o que outros resolveriam pela elipse - para fazer avançar a imperiosa "intriga" - recusa-o Walsh por uma espécie de obsessão minuciosa. Como a caça à baleia no Moby Dick de Melville, ou as cotações na Bolsa de César Birotteau de Balzac, a expedição é aqui documentada em todos os seus gestos. Disse "gestos", não disse "feitos", Walsh filma gestos, apenas gestos, filma "todos os gestos", prefere a "reportagem" à "narrativa", e por isso cinge o filme às personagens e a um imenso off que só trespassa o ecrã pela sumptuosa banda sonora.

E é assim (por ser tão concreto...) que, como os grandes épicos, Walsh transforma a tão exacta guerra que vemos numa longa caminhada metafísica que é tão-só uma marcha cansativa (extraordinário travelling em que Flynn vai dando quinino aos soldados com os pés na água), um suor no rosto, um último estertor, um trabalho monótono e cinzento de que Deus se ausentou. E eles têm que continuar pelas selvas à espera de um avião (presença de Deus, aqui, como depois para a Harriet Anderson do Atrás do Espelho* de Bergman...), abandonados, morrendo, sobrevivendo. Até que o céu parece florir em centenas de pára-quedistas, divina, americana Graça.

Limitando-se ao observar dos gestos (isto acontece e mais isto e mais isto), distanciando-se das relações causa-efeito da "narrativa" (isto aconteceu porque antes acontecera aquilo), Walsh filma uma aventura bélica que é mais do que uma aventura bélica (como todas, não é? "A mais alta forma do drama é a do homem em perigo", Hawks...). E é assim que este filme pergunta e responde àquele engulho que tantas noites nos atormenta, a "meio caminho das nossas vidas": que é que um gajo anda aqui a fazer, "bicho da terra tão pequeno"?

Só que, humanista rubensiano, Walsh nunca subscreveria tão belo verso. Preferiria um verso coxo ele que nunca hesitou perante o "feio": "Bicho da terra, sim, mas tão grande".

Os homens sem Deus de Walsh serão irmãos dos vagabundos de Godot; caminham, esperam, morrem sem sentido, um deles dirá mesmo: "A arte militar é uma coisa que os soldados não compreendem". E o seu filme é sobre os que não compreendem, aqueles para quem os dias não têm fim e os pés têm bolhas, os que obedecem e dizem piadas e morrem, os que avançam pelos pântanos e de quem ficará apenas uma chapa com o nome. As chapas que Flynn mostrará dizendo: "Custou isto". Seco, lacónico, metálico (ah, a fotografia de James Wong Howe!!!), feito de coisas, de actos, feito de rostos vividos (vejam como o rosto suado de Flynn se confunde com o dos outros soldados e ele parece um daqueles actores não actores que por esses anos aparecem em Itália...), é um filme que vê a vida (a minha vida, a minha como a tua) como uma militar missão, lenta, penosa, divertida e estúpida, trivial e calorosa, longa caminhada sem norte, escura noite em que os corpos se desfazem e o único favor que se pede é o que pede Jacobs a Nelson, numa das mais belas cenas do filme e do cinema: "Faz-me um favor, mata-me".

Este filme de propaganda está longe de conceber a "Pátria - ou o Estado ou a Prússia... - como fim último do homem".

É que os homens têm corpo. E é o corpo que vence a adversidade, esse corpo que vence a natureza, que vence o medonho silêncio de Deus, esse corpo viril que é o fim último do homem de Walsh. Por isso não tenta aqui "dramatizar" pela planificação - ele, vindo do mudo, e que, de entre os grandes, foi o que talvez mais e mais estoicamente resistiu à "teatralização/broadwayização" que o som trouxe quer para a planificação, quer para o argumento, quer para a representação. A montagem deste filme, a escala de planos e o "tempo" das sequências - muito, muito lentas - têm a ver com os grandes poemas sinfónicos que foram os últimos filmes mudos e está longe da "planificação utilitária" que o sonoro iria impor e a TV normalizar. Tudo neste filme é construcção rítmica, alternância de timbres, insistência temática (Walsh e Dovjenko, todos por um e por um todos?). Como se Walsh quisesse filmar o próprio movimento e não o seu reflexo.

Um poema sinfónico, este filme castrense? E agora, que a música toca, poderei falar da minha juventude? É que vi este filme no Condes em 65. Dias antes vira Un Condamné à Mort s'est Echappé  de Robert Bresson. E andava a ler (em francês e latim) Júlio César. E nunca vi dois filmes mais próximos... e quem acredita em mim quando tal digo? E nunca vi dois estilos mais próximos (o exacto César, o rude Walsh?), um de interiores (o de Bresson?), ambos filmados com a mesma atenção não às acções mas ao acumular dos gestos, ambos tratando do "silêncio dos Homens", ambos modesta e obstinadamente filmando homens abandonados por Deus e trabalhando para que "o vento sopre onde queira". E se, ao sair do Bresson, me precipito a ler Pascal, ao sair do Walsh penso é na prosa exacta do César. Júlio César, Walsh? E se disser que o que mais me toca é o Walsh?

Porque não canta o "esforço de um homem só", porque não descreve uma conquista... Ao filmar a deriva de mais uma patrulha perdida, ao filmar a "hierarquia militar" como um colectivo, é o "grupo" o que Walsh exalta (chama-lhe "espírito de corpo", os tropas?). E se há filme onde "nenhum homem é uma ilha" é este, feito de planos médios, o mais democrático dos planos, com mais do que uma personagem em campo, filme em que a própria vedeta (Flynn, vedeta de Hollywood e capitão Nelson) se vai diluindo no esforço humano (sobre-humano) dos seus homens. Até ser uma mão com umas chapas.

Não fosse a ideia original do argumento ser de Alvah Bessie, acabado de chegar a Hollywood, vindo das Brigadas Internacionais... E, se é verdade que os capitães de Abril viram Objective, Burma! antes de partir para as colónias, terão com ele aprendido a combater, a sobreviver no mato (sei lá, não fui à tropa)... Mas terão, sobretudo, aprendido a ser solidários. E se calhar foi por isso que um dia foram para um monte perto de Évora e redescobriram a resposta que este filme dá à mais nocturna das perguntas: "Um gajo tem que fazer qualquer coisa".

in Público de 4 de Março de 1995

* J.S.M. refere-se a Sasom I En Spiegel que se chamou em Portugal Em Busca da Verdade. Atrás do Espelho é o título português de Bigger than Life, de Nicholas Ray. A confusão do autor nasce do título francês do filme de Bergman, Comme Dans un Miroir. (nota de MCF).

in Raoul Walsh - Cinemateca Portuguesa

sexta-feira, 23 de março de 2012

YEAR OF THE DRAGON



por Serge Daney

Houve um caso Cimino, cineasta desmedido, fascinado pelos paradoxos da identidade americana. Há agora um caso Stanley White, polícia puro e duro. Inventando White, Cimino traça com um bulldozer o perfil psicológico do homem instalado no ressentimento.

A ambição de Cimino nunca foi pequena. Dar aos outros e a si próprio o sentimento de tudo começar do zero. Como se o cinema nada tivesse ainda mostrado e como se não se tivesse visto ainda nada. Verdadeira ambição de cineasta. É a ela, a essa mistura de exactidão naturalista e de amplificação delirante, que devemos as imagens da guerra do Vietname em The Deer Hunter, o Oeste revisitado de Heaven's Gate e a Chinatown de Year of the Dragon. A mais de meio século de distância, Cimino reencontra-se com os pioneiros do cinema americano. Os que, de Griffith a Vidor, tiveram como único tema o "nascimento de uma nação", a sua.

Que dizem os pioneiros? Que não se é americano mas que se torna americano. Que esta mudança tem de ser merecida e que nem todos têm direito a ela. Tomemos os Negros: Griffith exclui-os e Vidor coloca-os no apartheid de um filme étnico (Hallellujah). Ora há algo de Vidor em Cimino. Como King, a sua vontade de situar sempre as suas personagens em termos de relações de classe, faria dele um cineasta "social", quase marxista, se não existisse um ideal que esbate as lutas de classes e os ódios tribais: o indivíduo-feito-americano. Sem esse ideal, o muito famoso "melting pot" não seria senão uma mentira ou, como Cimino gosta de mostrar, um furioso "fighting pot", um combate.

Pode-se ser um pioneiro do cinema americano em 1985? Na altura em que Michael Cimino começou a fazer filmes, "ser americano" era mal considerado. A derrota do Vietname é também uma derrota do ideal. A trajectória da epopeia "Nascimento de Uma Nação" começou a regredir. Lá onde se deixou de se tornar americano, tornou-se tribal, o "God bless America" do fim de The Deer Hunter tinge-se de desespero. Cimino está pronto a trabalhar num "Renascimento de uma nação". Mas quem serão os excluídos desta vez?

Cimino fala muito do "sonho americano". Existiu alguma vez e, se sim, porque se perdeu inexplicavelmente? Surgiu então a questão do ressentimento: "de quem será a culpa?". A culpa é dos Vietnamitas, soprava The Deer Hunter. É a sua barbárie (de raiz) que "acordou" a barbárie dos soldados americanos. É o outro vietnamita o responsável pelo ideal US ser calcado aos pés. Como nos pátios de recreio onde ecoa o eterno "foi ele quem começou!".

Se (é ainda apenas uma hipótese) há uma decadência americana e se, como defende Octávio Paz, "ela constitui para eles |os Americanos| a porta de entrada na história", se mesmo "ela lhes traz o que eles sempre procuraram: a legitimidade histórica", Cimino é o cineasta que acompanha esta decadência e também o que a mais trabalha. Pela primeira vez, alguém conta a segunda história dos Estados Unidos. Uma epopeia, certamente, mas a do ressentimento. O fim do sonho americano liberta as tribos americanas. Algures, entre a reanimação ascética do sonho e a exibição folclórica das tribos, oscila Cimino.

Year of the Dragon é pois a continuação lógica de The Deer Hunter. Dez anos passaram e Stanley White (Mickey Rourke) é o polícia exaltado que "fez o Vietname" e que não regressou. Delirante mas metódico, conduzindo uma guerra pessoal, evidentemente racista. Porque esta guerra já não releva da metafísica conradiana (no fundo que "outro" inconfessável sou eu?) mas de um exorcismo securitário, de uma cruzada de polícia zeloso, tendo macerado em excesso o ódio de si mesmo.

Stanley White, náufrago polaco do sonho americano, declara guerra aos que não tendo nunca (na realidade) feito aquele sonho, não naufragaram. Já não estão lá, no Vietname, mas prosperam aqui, em Nova Iorque, e são também amarelos: os Chineses. Há bem uma mafia chinesa para desmascarar mas há principalmente uma maneira chinesa de alimentar - quem sabe? um outro sonho. Um sonho que não deveria nada ao tornar-se-americano mas tudo a esse detestável hábito dos Chineses de não se tornarem nada porque são chineses e que há muito tempo eles estão "na história".

O ressentimento tem mais truques no bolso. Cimino diz que os chineses são "bons vivants" (um pouco como os italianos) e que gosta deles. White, por seu lado, gostaria de os proteger da sua máfia mas ninguém pede a sua protecção. o "milieu" chinês de Year of the Dragon é visto como uma contra-sociedade que escandalosamente marcha por si só. Come-se bem (restaurantes), joga-se noite e dia (casinos), trafica-se (pó) e encontra-se ali lindas raparigas como Tracy Tzu, a jornalista por quem Stanley se apaixona: uma rapariga rica e com a "classe" que Stanley não tem. Inversamente o "milieu" branco é visto como um cordão fúnebre de triste hipocrisia, de sexo falhado, amizades glaucas e familiaridades rançosas. Dito de outro modo: a virtude vive mal e o vício desenvencilha-se bem.

"Alguém se diverte no lugar de outro... Não há, nunca houve outra questão política senão essa, a relação das pessoas com o prazer" disse algures Pierre Legendre. Não há divisão de trabalho sem divisão (inconsciente) do prazer. Stanley White é aquele a quem esta dupla divisão torna louco. "Prendam essa gente!" grita ele no fim do filme no decorrer de uma duvidosa apoteose cujo sentido é que as coisas iriam melhor se cada um (polícia, jornalista) fizesse o seu trabalho. Mas esta moral não o isenta do seu fracasso pessoal porque bo fundo de si mesmo ele imputou já este fracasso ao que imagina ser o triunfo do outro. Porque cada um "goza em seu lugar". Estamos bem no coração da estrutura racista, sobre a sua vertente "hard" (bem conhecida na Europa). Se Stanley White goza tão pouco e tão mal do sonho americano, não será porque os outros - os Chineses - se "aproveitam" desse sonho de que o roubam? Um herói ascético como White, visto que perde tudo o que tem. Tudo? Não, visto que lhe resta ainda o medo de "ser apanhado".

Nos seus filmes precedentes, Cimino aperfeiçoara uma forma assombrosa de dilatar e contrair o tempo. Assombrosa porque muito pouco hollywoodiana, muito próxima do sistema "olho de ciclone" de Pialat. Em cada cena de Year of the Dragon há, no meio, uma zona de calma e repouso. Como uma vontade de fazer a paz ou uma trégua no interior da ideia fixa. De cada vez, contudo, Stanley White recupera e parte de novo com uma violência acrescida. Como se esses momentos de paz fossem uma armadilha do diabo para o fazer esquecer a sua missão. Tão bem que, formalmente, debaixo do fogo pirotécnico da acção imparável, germina a monotonia do que se tornou em Cimino um truque narrativo em acordo (hélas) com a monotonia do herói.

in Ciné Journal 1981-1986, Cahiers du Cinéma,cop.,Paris, 1986

(Tradução de Manuel Cintra Ferreira)

(Retirado do catálogo "Michael Cimino - O Último dos Mavericks" publicado pela Cinemateca Portuguesa)

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Em jeito de homenagem

E porque as "Folhas" da Cinemateca não são só Bénard da Costa


Scarface, Shame of a Nation (Hawks)

por Manuel Cintra Ferreira

Scarface is my favourite picture” (Howard Hawks)

Quando Scarface chega ao público em 1932 já Al Capone está na cadeia a cumprir uma pena de onze anos de prisão por evasão fiscal, única forma que o governo encontrou para atingir o homem que tinha a responsabilidade de mais de 400 mortes violentas desde que iniciara a sua actividade em 1920, para além de cerca de 40 que teria executado por suas mãos. Esse período é a “idade de ouro” do gangster americano e corresponde a quase toda a vigência do Volstead Act, a 18ª Emenda à Constituição dos EUA que impôs a Lei Seca em quase todo o território.

É a este período, à actividade dos gangs e a alguns dos seus episódios mais notórios que Hawks e Ben Hecht vão buscar a matéria prima para construir a maior saga de violência jamais feita no cinema (pode haver filmes posteriores, e de tempos mais recentes, e penso na canibalesca versão de Brian de Palma, em que ela seja mais explícita, mas nenhum se fez em que ela se fez mais significativa). Quatro episódios, em particular, encontram eco no filme de Hawks: o assassinato de “Big Jim” Colosimo em 1920, na morte de Lou Costillo que abre o filme; o atentado contra Capone em 1926, nas rajadas de metralhadora que apanham Camonte no restaurante; o massacre do dia de S. Valentim, o mais facilmente identificável e que estaria ainda na memória de todos pois teve lugar em 1929; finalmente a execução de Johnny Aiello em 1930, o autor da traição, na morte de Johnny Lovo. Tudo isto faz parte da história, tudo isto está lá no filme.

Não quer isto dizer que Scarface seja um filme “histórico”, como não é também um filme “social”. Não encontramos, da parte de Hawks, a preocupação de estabelecer um “background” que “explique” o fenómeno do gangsterismo e “justifique” os seus actos, como fazem, no primeiro caso, William Wellman em Public Enemy (a crise, o desemprego, a miséria de Hell`s Kitchen como geradores de marginais) e, no segundo caso, Raoul Walsh em The Roaring Twenties (os heróis da primeira grande guerra, a quem ensinaram o ofício de matar, e a quem recusam oportunidades para se reintegrarem na ordem social depois do conflito). O que Scarface faz é constatar, sem paliativos de qualquer género, um estado de violência em que o gangster é apenas um dos seus elementos.

Daí que Scarface possa ser incluído, com toda a lógica, entre as comédias mais ferozes de Hawks, em que tudo é levado ao excesso e à desmesura, sendo os seus heróis os mais infantis da obra do realizador (a Joseph McBride, Hawks descreveu os gangsters que conheceu aquando da rodagem do filme como verdadeiras crianças no que tinham de vaidade e irresponsabilidade) cujo paralelo poderiam ser os desmandos de Cary Grant e Ginger Rogers rejuvenescidos no fabuloso Monkey Business: a crueldade “inocente” das suas tropelias pode comparar-se à de Camonte. Repare-se no exibiocinismo e nas provocações infantis do gangster diante da autoridade, principalmente ao raspar o fósforo na estrela do delegado (momentos depois, na esquadra, procura repetir o gesto mas hesita por a estrela se encontrar encoberta). Ou ainda o trocadilho que faz com o “habeas corpus” que lhe dá a liberdade; no apartamento de Lovo refere-se ao documento como “hocus pocus”.

Na sequência da apresentação de Rain, antes da execução de Gaffey no bilhar, em que obriga Angelo a ficar até ao fim para lhe contar como termina a peça. Na mesma linha se poderia referir a ligação afectiva que tem com a irmã, embora esta nos leve agora para o campo da tragédia. Jean-Louis Comolli refere-se-lhe como sendo, ao lado de Tiger Shark, “uma das raras tragédias, no sentido shakespeariano, que o seu autor filmou”. E a afirmação não é excessiva. Entre outros pormenores basta comparar o destino de Camonte com o de Macbeth. A morte de Rinaldi, como a de Bancquo, sela o seu destino.

A censura, que se oficializou em 1931 com o Código Hays, impôs uma série de cortes e alterações ao projecto original. O que nos interessa aqui, neste momento, são os cortes feitos em relação ao argumento original, e outras mudanças impostas. Em particular o final inicialmente previsto e que deve ter provocado pele de galinha aos censores que o leram. Se ele já surgia como um herói, esse final fazia dele a emanação de um super-herói (mesmo sem ele, Ado Kyrou chamou a Scarface um filme fascista): com o corpo crivado de balas, Camonte cambaleava até junto da sua Nemésis, o delegado, encostava-lhe a pistola à cabeça e carregava no gatilho, ouvindo-se a sua percusão no vazio. O outro repetia o gesto e estoirava-lhe a cabeça à queima roupa. O final teve que ser alterado, impondo a censura uma conclusão que revelasse o carácter fraco e cobarde do personagem (outro final tão inverosímil como este seria, anos depois, imposto a Angels With Dirty Faces de Curtiz), e a chorar por efeito do gás lacrimogéneo. Hawks filmou então o final que conhecemos, com Camonte rompendo de súbito a barreira, abatido por uma rajada e caindo na valeta. Mas mesmo este não foi exibido em todos os locai, constando particularmente das cópias europeias. Nos EUA, em várias localidades era apresentada a cópia em que Camonte era preso, depois da morte de Cesca, levado a tribunal (ocasião para outro sermão moralista) e enforcado. Foi esta a cópia que se estreou em Nova Iorque, como refere a Variety. Para além disso outras sequências foram acrescentadas sem Hawks ter tido nem achado para o caso, como a reunião do promotor com as “consciências da nação”, para declararem guerra total ao crime.


O resultado das pressões da censura, e normas de produção já vigentes que impunham a desaparição de cenas de violência explícita, como é o caso das execuções, foi que no fim de contas essa violência se tornou ainda mais flagrante dada a forma como as suas elipses foram feitas, e a marca X a que nos referimos a seguir, está aí para servir de aviso e premonição (Hawks conta a McBride que durante as filmagens atribuiu um prémio de 100 dólares a quem tivesse uma ideia que fosse aproveitada: assim surgiu o algarismo romano X na porta do apartamento de Rinaldi a anunciar o inevitável).

Scarface é talvez o filme mais elíptico da história do cinema e, neste caso, testemunha, como Paid to Love, da admiração de Hawks por Lubitsch. Talvez que a elipse mais significativa de todo o filme seja a morte de O'Hara a cargo de Rinaldi. Tudo é sugerido, sem imagens e sem uma única palavra, o que a transforma num gag trágico; Rinaldi entra no gabinete de Camonte com uma rosa na lapela (O'Hara é florista). Ou a de Gaffney em que o som da metralhadora acompanha o rolar da bola de bowling.

Scarface, como já foi dito, inscreve-se sob o signo do X. Mas esta marca tem vários sentidos. Por um lado é um sinal jornalístico, aquele que nas fotografias indica o personagem que se quer identificar (e bem Hecht deve ter pensado nisso enquanto redigia o argumento com Hawks), e adquire assim um sentido premonitório dado que serge sempre sobre as futuras vítimas, não só imediatamente (o X surge sempre no momento da execução) mas por vezes antecipando-se, como no caso de Gaffney (Boris Karloff) que no seu esconderijo tem na parede um X que resulta da luz que entra pela janela. Mas é também a marca que liga o destino das vítimas ao de Camonte, como projecção da sua cicatriz que tem a mesma forma.

Mas outra marca, também significativa, apela aos sentidos do espectador: a moeda que Rinaldi constantemente lança ao ar. Ela não só representa o trabalho de Rinaldi (durante a guerra dos gangs era geralmente deixada uma moeda na mão dos denunciante abatidos, e adquire todo esse sentido na execução de Lovo) mas serve de elemento de ligação entre Rinaldi e Cesca, ponto de partida para o último acto da tragédia: o momento mais sugestivo tem lugar ainda quase ao começo quando a irmã de Camonte lhe atira o níquel pela janela para o homem do realejo, e fica a revoluteá-lo no ar enquanto dá um dos seus. Aqui se insinua, desde logo, uma relação que mais tarde se consumará.

Mas todo o filme é pontuado por sinais deste tipo: as roupas de Camonte vão figurando a sua promoção; os vidros do gabinete (que neste caso tem a função de centro de comando, como será o dos pilotos em Only Angels Have Wings, e o do sheriff de Rio Bravo) simbolizam, ao serem quebrados (sempre por Camonte) as mudanças de chefia. Mas o mais sugestivo destes sinais de mudança é o que de imediato nos diz quem é, entre Camonte e Lovo, o chefe da organização; no restaurante, quando vai dar a notícia da morte de Gaffney, Poppy pôe um cigarro na boca num gesto marcadamente erótico: entre o isqueiro de Lovo e o fósforo de Camonte, ela escolhe o segundo. Logo a seguir, a mão de Lovo agarrando o paliteiro como um revólver esclarece-nos, sem palavras, sobre o atentado a Camonte que depois tem lugar.

Scarface é também um prodígio de encenação. No campo da iluminação o trabalho de Lee Garmes representa a herança de um expressionismo que da Alemanha chegava com os emigrantes (não só neste caso. Repare-se também no usso recorrente da ária da Lucia di Lammermoor que Camonte assobia sempre antes de uma execução, eco da melodia que Peter Lorre assobia e que também anuncia os seus crimes em M de Fritz Lang), e a luz tem neste filme “negro” (não no sentido do cinema dos anos 40) uma particular importância porque é ela que sublinha, em silhueta, a aparição desses Xs e da ameaça que representam. A sequência inicial é paradigmática, como o movimento de câmara que se conclui com a morte de Costillo abatido por uma sombra introduzida pelo referido assobio. Ela contém também todos os elementos do drama, como a que abre Rio Bravo . Mas no campo do virtuosismo (e nela se nota também a influência do Sternberg de Underworld em que Hawks teria também colaborado) ela representa um “tour de force” que julgo único na obra de Hawks: trata-se de um plano sequência que dura mais de quatro minutos e que nos leva do candeeiro com a indicação da rua à carroça do leiteiro, daí para o porteiro que se espreguiça à porta de um restaurante, acompanha-o ao interior, para a mesa de Costillo, vai com este até ao telefone, enquanto ao fundo uma porta se are deixando ver a sombra que o assobio inicial anunciava, e só termina com a fuga do porteiro depois do assassinato. Termina como começa, só que em vez do plano sequência temos uma acção extremamente “decoupada”, mas no mesmo espaço fechado, num movimento circular, que vai da entrada de Camonte, Cesca e Angelo no refúgio, à saída e morte do primeiro.

Todo o drama está contido nestas duas sequências e entre elas. Como todo o género em que se filia. Scarface é o seu momento definitivo. Nada se pode fazer de diferente depois dele. Apenas repeti-lo pior ou tentar igualá-lo. Melhor nunca se fez.