Mostrando postagens com marcador neoliberalismo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador neoliberalismo. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

"A publicidade, que constitui o segundo maior orçamento mundial depois da indústria de armamentos, é incrivelmente voraz: mais de 500 bilhões de despesas anuais." (Serge Latouche)



A PUBLICIDADE E OS BENS DE GRANDE FUTILIDADE
por Serge Latouche 
(Professor de Economia da Universidade de Paris)


"Três ingredientes são necessários para que a sociedade de consumo possa prosseguir na sua ronda diabólica: a publicidade, que cria o desejo de consumir; o crédito, que fornece os meios; e a obsolescência acelerada e programada dos produtos, que renova a necessidade deles. Essas três molas propulsoras da sociedade de crescimento são verdadeiras incitações-ao-crime.

A publicidade nos faz desejar o que não temos e desprezar aquilo de que já desfrutamos. Ela cria e recria a insatisfação e a tensão do desejo frustrado. Conforme uma pesquisa realizada entre os presidentes das maiores empresas americanas, 90% deles reconhecem que seria impossível vender um produto novo sem campanha publicitária; 85% declaram que a publicidade persuade "frequentemente" as pessoas a comprar coisas de que elas não precisam; e 51% dizem que a publicidade persuade as pessoas a comprar coisas que elas não desejam de fato (cf. André Gorz, "Capitalisme, socialisme, écologie", Paris, Galilée, 1991, p. 180).

Esquecidos os bens de primeira necessidade, cada vez mais a demanda já não incide sobre bens de grande utilidade, e sim sobre bens de grande futilidade. Elemento essencial do círculo vicioso e suicida do crescimento sem limites, a publicidade, que constitui o segundo maior orçamento mundial depois da indústria de armamentos, é incrivelmente voraz: 103 bilhões de euros nos Estados Unidos em 2003, 15 bilhões na França. No total, considerando o conjunto do globo, mais de 500 bilhões de despesas anuais. Montante colossal de poluição material, visual, auditiva, mental e espiritual!

O sistema publicitário "apossa-se da rua, invade o espaço coletivo - desfigurando-o -, apropria-se de tudo o que tem vocação pública, as estradas, as cidades, os meios de transporte, as estações de trem, os estádios, as praias, as festas. Ele inunda a noite assim como se apossa do dia, ele canibaliza a internet, coloniza os jornais, impondo sua dependência financeira e levando alguns deles a ficar reduzidos a tristes suportes. Com a televisão, ele possui sua arma de destruição em massa, instaurando a ditadura do ibope sobre o principal vetor cultural da época. (...) A agressão se dá em todas as direções, a perseguição é permanente. Poluição mental, poluição visual, poluição sonora." (Jean-Paul Besset, em "Comment ne plus être progressiste... sans dévenir réactionnaire", Paris, Fayard, 2005, p. 251).

Com a obsolescência programada, a sociedade de crescimento possui a arma absoluta do consumismo. Impossível encontrar uma peça de reposição ou alguém que a conserte. Se conseguíssemos pôr a mão na ave rara, custaria mais caro consertá-la do que comprar uma nova (sendo esta hoje fabricada a preço de banana pelo trabalho escravo do sudeste asiático). Assim é que montanhas de computadores se juntam a televisores, geladeiras, lava-louças, leitores de DVD e telefones celulares abarrotando o lixos e locais de descarte com diversos riscos de poluição: 150 milhões de computadores são transportados todos os anos para depósitos de sucata do Terceiro Mundo (500 navios por mês para a Nigéria!), apesar de conterem metais pesados e tóxicos (mercúrio, níquel, cádmio, arsênico e chumbo).

À bulimia consumista dos fissurados em supermercados e lojas de departamentos corresponde o workaholismo, o vício em trabalho dos executivos, alimentado, em muitos casos, por um consumo excessivo de antidepressivos. (...) Nós, franceses, somos detentores de um triste recorde: compramos, em 2005, 41 milhões de caixas de antidepressivos. (...) Resta-nos apenas assinar embaixo do diagnóstico do professor Dominique Belpomme: "O crescimento tornou-se o câncer da humanidade" (cf. "Avant qu'il ne soit trop tard", p. 211).


LATOUCHE
, S.
"Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno"
Editora Martins Fontes, 1a ed, 2009.
Tradução de Claudia Berliner.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Benefícios Privados, Prejuízos Públicos: Reflexões sobre o Capitalismo Neoliberal



BENEFÍCIOS PRIVADOS, PREJUÍZOS PÚBLICOS
Reflexões sobre o capitalismo neoliberal
PRELÚDIO

"O 'compro, logo existo' e o individualismo possessivo constroem juntos um mundo de pseudo-satisfações estimulante na superfície, mas no fundo vazio. (...) Com cerca de 2 bilhões de pessoas condenadas a viver com menos de 2 dólares por dia, o cruel mundo da cultura consumista capitalista e as fenomenais gratificações obtidas pelos serviços financeiros têm de ser uma piada macabra..." DAVID HARVEY, Neoliberalismo (2008: p. 184)

Livre-mercado, globalização, individualismo, competitividade, utilitarismo, “precariado”: estes são alguns dos conceitos-chave na decifração do neoliberalismo, doutrina que se tornou dominante no Ocidente nas últimas décadas do século XX e é essencial para a compreensão tanto da história recente quanto dos desafios futuros. Constata-se que vivemos hoje em um mundo que, povoado por mais de 7 bilhões de humanos, sofre como nunca com os males da desigualdade social e da concentração de renda:

"Nossas sociedades capitalistas de mercado são 'paradoxais' por produzirem, ao mesmo tempo, aumento exponencial da riqueza e pauperização de largas camadas da população. Quebrar esse paradoxo é tarefa da política. Apenas um exemplo: enquanto o PIB dos EUA cresceu 36% entre 1973 e 1995, o salário-hora de não executivos (que são a maioria dos empregados) caiu 14%. No ano 2000, o salário real de não executivos nos Estados Unidos retornou ao que era há 50 anos. Dados como estes demonstram que, diante dos modelos liberais, ou seja, sem forte intervenção de políticas estatais de redistribuição, nossas sociedades tendem a entrar em situação de profunda fratura social por desenvolverem uma tendência radical de concentração de riquezas." (SAFATLE, A Esquerda Que Não Teme Dizer Seu Nome, 2012)

O Estado, longe de desaparecer, em muitos casos torna-se o obediente servidor e lacaio dos interesses do Mercado, impondo as desregulações que favorecem os interesses das mega-empresas e remetendo à iniciativa privada quase todas as funções que outrora eram vistas como bens públicos (saúde, educação, moradia, alimentação...). O Estado neoliberal torna-se cada vez mais dedicado a tarefas policialescas, repressoras, militares, enquanto sua “mão esquerda”, para usar a expressão de Bourdieu, encontra-se atada e anêmica, já que assistimos à invasão generalizada das privatizações e da lógica do consumo desenfreado e da concorrência selvagem.

"Ainda ousam nos gabar um sistema que remete a organização da vida coletiva às pulsões mais baixas, à ganância, à rivalidade, ao egoísmo mecânico? Querem que elogiemos uma “democracia” em que os dirigentes são impunemente os empregados da apropriação financeira privada que surpreenderiam até mesmo Marx, que há 160 anos já chamava os governos de “fundos de poder do capital”? Querem a todo custo que o cidadão comum “compreenda” que é impossível tapar o buraco da Previdência, mas que eles devem tapar o buraco dos bancos sem contar os bilhões? (…) Ao menor pedido dos pobres, eles reviram os bolsos e respondem há anos que não têm um tostão furado...” (ALAIN BADIOU, A Hipótese Comunista, pg. 57-58)

Vivemos em um mundo onde o poder das empresas multinacionais atingiu um cume inédito: como informa Jean Ziegler, na série da TV espanhola Voces Contra La Globalizacion, “as 500 maiores empresas transcontinentais privadas controlam 52% do Produto Mundial Bruto. A Exxxon Mobil tem um rendimento maior que o Produto Nacional Bruto da Áustria. Já o da General Motors supera o PIB da Dinamarca.” 

As consequências deste poderio são gravíssimas quando, por exemplo, empresas injetam milhões de dólares em apoio a candidaturas de políticos, querendo em troca favores e privilégios. Além disso, as mega-corporações digladiam-se em marketings cada dia mais crassos e apelativos em seu afã de garfar consumidores. A figura do consumidor substitui a do cidadão. O homo economicus é imposto como imagem da “natureza humana”: seria “natural” esta obsessão auto-interessada de procurar seu próprio bem econômico. Como provoca Tyler Durden, em Clube da Luta, constrói-se uma geração que baba frente às vitrines e às Tvs, que só sabe desejar bens de consumo supérfluos, “working jobs they hate so they can buy shit they don't need”.

"No início deste milênio, em um planeta abundante de riquezas, uma criança com menos de dez anos morre a cada cinco segundos. De doença ou de fome. (...) Em 2000, a FAO contava 785 milhões de pessoas grave e permanentemente subnutridas. São 854 milhões em 2008 e mais de um bilhão em 2010." (JEAN ZIEGLER, Ódio ao Ocidente, p. 29 e 132)



A leitura da minuciosa pesquisa realizada por Michel Foucault em Nascimento da Biopolítica nos dá a impressão de que a doutrina neo-liberal quer nos fazer crer, com uma colcha de retalhos argumentativa retirada de Adam Smith, Mandeville, Hayek, Von Mises e Milton Friedmann, dentre outros, que o egoísmo deslavado e o auto-interesse estreito, se seguidos sem freios nem tréguas pelos indivíduos, vão gerar mil maravilhas públicas. Curiosa doutrina que afirma ser o egoísmo e a ganância as fontes da prosperidade e que chega a fazer disso uma prescrição e um imperativo.
            
O Neoliberalismo, que tudo faz em prol do livre-mercado, está longe de levar a liberdade para aqueles que são excluídos e marginalizados do sistema. A julgar pelas penitenciárias superlotadas e pelos orçamentos colossais dos aparatos repressivos e carcerários,  o neoliberalismo impõe o tal do “livre mercado” com base do porrete, da tropa de Choque e do encarceramento em massa de cidadãos que o sistema  marginaliza, segrega e abandona às piores condições de vida. 
    
Neste artigo, nossa intenção é refletir sobre o neoliberalismo através de três perspectivas: 1) uma breve incursão foucaultiana pela história das ideias, na tentativa de expor, com base em Smith, Mandeville, Franklin, Bentham e outros, as raízes do neoliberalismo, da ética utilitarista, da doutrina econômica pró-livre-mercado e da noção de vícios privados, benefícios públicos. 2) Uma breve reflexão sobre a realidade contemporânea gerada pela implantação do neo-liberalismo: globalização da economia, concentração de renda, epidemia do trabalho “precarizado”, individualismo consumista etc. 3) uma análise de um episódio histórico onde o neo-liberalismo foi imposto à força, o Chile de 1973, com os devidos paralelos com outras situações onde escancarou-se o elemento imperialista e autoritário das políticas neo-liberais.



PARTE I - VÍCIOS PRIVADOS, BENEFÍCIOS PÚBLICOS?
Reflexões sobre os primórdios do neoliberalismo
a partir de Adam Smith, Mandeville, B. Franklin e J. Stuart Mill

“...não é por conta da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos obter nosso jantar, mas sim da atenção que eles dedicam ao seu próprio interesse. Nós nos dirigimos não à sua humanidade mas ao seu amor-próprio, e nunca falamos com eles das nossas próprias necessidades mas das suas vantagens.” - ADAM SMITH, Wealth of Nations (Oxford: 1976, pg. 27)

O economista e filósofo escocês Adam Smith (1723-1790), ao investigar as causas da Riqueza das Nações, “oferece como resposta uma teoria na qual a prosperidade nada tem a ver com a virtude moral dos jogadores” (GIANNETTI: 1993, p. 120). Smith faz referência a uma característica que ele supõe ser universal, inerente à natureza humana, que “vem conosco do útero materno e nunca nos abandona até que ingressemos no túmulo”: “o esforço natural que cada homem faz de forma contínua a fim de melhorar sua condição” (SMITH, Wealth of Nations, p. 341-343). De modo que “Smith transforma o auto-interesse individual – o desejo de melhorar de vida – no protagonista do enredo que leva da escassez à opulência na biografia nacional.” (GIANNETTI: 1993, p. 121) A doutrina em prol do Livre Mercado de Adam Smith alega que

"cada homem, desde que ele não viole as leis da justiça, fica perfeitamente livre para perseguir seu próprio interesse a sua maneira, e colocar sua diligência e seu capital em competição com os de qualquer outro homem. (…) Ele busca apenas seu próprio ganho e nisso ele é, como em muitos outros casos, conduzido por uma mão invisível a promover um fim que não era parte de sua intenção. (…) Pela busca de seu próprio interesse ele com frequência promove o da sociedade mais eficazmente do que quando de fato tenciona promovê-lo." (SMITH: The Wealth of Nations, pgs. 687 e 456)

Esta doutrina contrapõe-se à tese de Keynes, que recomenda um intervencionismo e controle estatal constantes, típico do chamado welfare-state, instalado por Roosevelt nos EUA dos anos 1930, com seu New Deal, na tentativa de controlar a depressão desencadeada em 1929. O liberalismo à la Adam Smith sustenta que o melhor para a sociedade é que o “Estado fique desobrigado do dever de supervisionar a economia”, gerando um “sistema no qual os indivíduos são livres para tentar satisfazer seus objetivos à luz dos seus próprios recursos e conhecimentos, sem uma disciplina ou plano imposto de fora pela autoridade estatal” (Giannetti: p. 109-110). Em suma: a “prosperidade é o produto de ações individuais independentes do Estado (e até à revelia dele) em busca de uma vida melhor” (GIANNETTI: p. 123).

Isto não significa que Adam Smith advogasse em prol da extinção do Estado. O “exercício da autoridade política é imprescindível (…) para garantir a proteção de cada membro da comunidade contra a violência e opressão de cada outro membro” (GIANNETTI: p. 124). Um governo que zele pela justiça prossegue necessário, alega Smith, já que “a prevalência da injustiça irá causar a total destruição da sociedade. (…) A justiça, ao contrário, é a viga mestra que mantém de pé todo o edifício. Se ela for removida, o imenso tecido da sociedade humana irá num momento se esfacelar em átomos.” (SMITH: Theory of Moral Sentiments (1759), Oxford, 1976, pgs. 86, 175-6). De modo que o Estado aparece como limitado à posição de mero árbitro no jogo do livre mercado, responsável por exigir dos agentes econômicos o fair play:

"Na corrida por riqueza, por honrarias e por promoções, o indivíduo pode correr tão esforçadamente quanto for capaz, esticando cada nervo e cada músculo a fim de ultrapassar todos os seus concorrentes. Mas se ele porventura acotovela ou derruba qualquer um deles, a disposição tolerante dos espectadores termina por completo. Trata-se de uma violação do jogo limpo que eles não podem admitir". (SMITH: ibidem, pg. 83).

Com sua famosa “Mão Invisível”, Smith fabrica uma espécie de secularização do Deus protestante, supondo com desenfreado otimismo que haveria “um deus providencial que habitaria o processo econômico” (Foucault: 2008, p. 379). A busca do auto-interesse egoísta, sem escrúpulos morais ou freios à competitividade, geraria benefícios públicos. O vício é o pai da prosperidade. A responsável pela transmutação miraculosa de vícios privados em benfeitorias públicas seria esta “Mão Invisível” que “ata os fios de todos esses interesses dispersos” (Foucault: idem).

Não são poucos os que olham com desconfiança para o otimismo implicado na suposição de uma ação benéfica de mãos invisíveis – nos termos de Arendt, “the so-called liberal concepts of politics (...) such as unlimited competition regulated by a secret balance which comes misteriously from the sum total of competing activities...” (ARENDT, The Origins of Totalitarianism, p. 194) Com sarcasmo, Foucault sintetiza a doutrina:

"Só se pensa no próprio ganho e, afinal, a indústria inteira sai ganhando. (…) Graças a Deus os comerciantes são uns egoístas consumados, e são raros, entre eles, os que se preocupam com o bem geral, porque, quando eles começam a se preocupar com o bem geral, é nesse momento que as coisas começam a não dar certo." (FOUCAULT: 2008, p. 380).

Uma das representações mais eloquentes da tese “vícios privados, benefícios públicos” encontra-se em A Fábula das Abelhas, texto satírico publicado em 1705 por Mandeville, médico holandês radicado na Inglaterra. A colméia da fábula, segundo Giannetti, é uma “miniatura da sociedade inglesa tal como a percebia Mandeville”:

Vencedor do Prêmio Jabuti 1994 (Melhor Ensaio)
"A principal característica da colméia era a profunda dissociação entre, de um lado, suas brilhantes realizações práticas e econômicas, e, de outro, o descontentamento ético das abelhas consigo próprias. (…) A pujança e afluência da colméia resultavam de um espetáculo pouco edificante: milhões se esforçando arduamente com o intuito de suprir a vaidade e os apetites lascivos uns dos outros. Ao gastar seus rendimentos, as abelhas se entregavam a um hedonismo insaciável. Eram escravas da volúpia, do exibicionismo e do capricho da moda. (…) O grande sonho de cada abelha individual, não importando a classe a que pertencesse, era encontrar o caminho mais fácil e curto para sobrepujar as demais em fama, poder, riqueza. (…) Tudo lá transcorria sem maiores abalos, até o dia em que um deus impaciente expulsa o vício, a má-fé e a hipocrisia de suas vidas. Em pouco tempo, as abelhas da colméia se descobrem condenadas a uma existência insípida e medíocre, porém virtuosa, no interior de uma árvore oca. (…) Sem guerras não há indústria de armamentos; sem o desejo de ostentar não há produção e comércio de bens de luxo; sem vaidade e inconstância não há indústria da moda..." (GIANNETTI: p. 135-136)

Mandeville retrata, na primeira parte da fábula, uma colméia de abelhas furiosamente competitivas. Nrsta colméia, a prosperidade material decorre da selvageria de suas rivalidades, suas invejas, seus desejos-de-posse. O vício, novamente, é tido como o pai da prosperidade. Estas abelhas “franklinianas” entendem que tempo é dinheiro, tal como recomenda Benjamin Franklin, e não querem “perdê-lo” com considerações éticas ou empreendimentos filantrópicos para o auxílio de abelhas miseráveis. Acreditam que uma árvore oca, e não uma colméia pujante e próspera, seria o resultado de uma comunidade de abelhas que se freiam demais com escrúpulos morais. A ética, para elas, é um entrave na produção do mel.

A “moral da história” da fábula de Mandeville já começa a se delinear: são os vícios que produzem o “progresso”, não as virtudes. Mas as abelhas o ignoram: “não eram apenas aproveitadoras, corruptas e egoístas; também eram míopes e incapazes de ver que o esplendor econômico da colméia, do qual tanto se orgulhavam, resultava precisamente de seus vícios e taras” (Giannetti: op cit).

O “tempo é dinheiro” e a conclamação à multiplicação dos dólares de Benjamin Franklin não está distante: “Lembra-te que o dinheiro é procriador e fértil. O dinheiro pode gerar dinheiro, e seus rebentos podem gerar ainda mais... Quem mata uma porca prenhe destrói sua prole até a milésima geração. Quem estraga uma moeda de cinco xelins, assassina tuodo o que com ela poderia ser produzido: pilhas inteiras de libras esterlinas... Lembra-te que – como diz o ditado – um bom pagador é senhor da bolsa alheia. (…) Jamais retenhas dinheiro emprestado uma hora a mais do que prometeste, para que tal dissabor não te feche para sempre a bolsa de teu amigo...” (FRANKLIN: 1736)

Esta fúria aquisitiva, esta monomania da multiplicação, esse “dinheiro fazendo dinheiro” visto como um fim-em-si-mesmo, chega às vezes à obscenidade de reduzir todas as relações humanas ao fator monetário – p. ex. os amigos, longe de serem apreciados como fonte de companhia e diálogo, passam a não ser mais que “bolsas”. Todos os indivíduos são concebidos como fundos monetários ambulantes. Max Weber, referindo-se a Franklin como um dos paradigmas do “espírito do capitalismo”, escreve:

"Todas as advertências morais de Franklin são de cunho utilitário: a honestidade é útil porque traz crédito, e o mesmo se diga da pontualidade, da presteza, da frugalidade também, e é por isso que são virtudes... Um excesso desnecessário de virtude haveria de parecer, aos olhos de Franklin, um desperdício improdutivo condenável. (…) O ser humano em função do ganho como finalidade da vida, não mais o ganho em função do ser humano como meio destinado a satisfazer suas necessidades materiais: essa inversão da ordem 'natural' das coisas é tão manifestamente e sem reservas o Leitmotiv do capitalismo, quanto é estranha a quem não foi tocado por seu bafo." (WEBER: 2004, p. 45-47)

Um autor como John Stuart Mill “rejeitou a noção de uma natureza humana fixa e imutável dominada exclusivamente por desejos egoístas e em oposição a Bentham e Ricardo argumentou que a psicologia moral dos homens era dotada de uma espantosa maleabilidade e que o auto-interesse estreito nem sempre prevalecia, uma vez que, para muitos homens, 'motivos como a consciência ou a obrigação moral haviam sido de fundamental importância'. O fulcro da posição milliana foi trazer o princípio da 'perfectibilidade humana' para o centro do palco.” (GIANNETTI: 1993, p. 42)

Mill critica Bentham por este último considerar a natureza humana como “fixada” na motivação economômica utilitária: “Bentham imagina a humanidade como uma calculadora mais fria do que ela realmente é...” (MILL: “Remarks on Bentham's Philosophy”, Works, vol. 10, pg. 16-17). Stuart Mill enfatiza o elemento de “plasticidade” da chamada natureza humana, destacando o impulso de auto-aperfeiçoamento, de auto-transcendência, esta “capacidade ilimitada de aprimoramento” nos âmbitos do estético, do ético e do cognitivo que não está distante da concepção de Nietzsche sobre o espírito-livre e o além-do-homem [1].

Segundo Mill, um homem digno deste nome, longe de ter como ambição diretriz tornar-se tão rico e famoso quanto possível, não importando que atinja a prosperidade e o engrandecimento por meios perversos e danosos, “prefere ser um Sócrates insatisfeito do que um porco satisfeito”  (citado por GIANNETTI: p.43).



[1]   Ansell-Pearson, em Nietzsche Como Filósofo Político, aponta Mill como um dos filósofos políticos com quem Nietzsche tinha mais afinidade, sugerindo também uma afinidade com Tocqueville e Taine.




quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Depredando o Neoliberalismo - Parte II: O Público Que Vai Privada Abaixo... (Refletindo com Foucault, Todorov, Bourdieu, Arendt, Viveiros de Castro...)



O NEOLIBERALISMO E A PRIVATIZAÇÃO GENERALIZADA
DOS SERVIÇOS PÚBLICOS


É bem conhecido o estratagema ideológico de mascarar realidades espúrias detrás de belas palavras de tonalidade positiva: ao invés de falar em demissões em massa, fala-se em “reestruração das empresas”; para não se referir aos brutais cortes de recursos destinados aos serviços públicos essenciais, refere-se à “redução dos gastos sociais”; para justificar as cada vez mais célebres “medidas de austeridade”, que sufocam atualmente as populações de países como a Espanha e a Grécia, fala-se na necessidade de “manter a confiança dos investidores”. São alguns dos muitos exemplos desta “retórica eufemística que corre hoje nos mercados financeiros” (BORDIEU: 1998, p. 65) e domina o dialeto economiquês. O uso que o neoliberalismo faz da palavra “Liberdade” também fede a abuso, o que Todorov soube bem destrinchar em sua obra mais recente: “Não sabemos que os tiranos do passado invocavam regularmente a liberdade? (…) Somos verdadeiramente a favor de toda liberdade, incondicionalmente, inclusive a da raposa no galinheiro?” (TODOROV)

Através de discursos repletos de eufemismos e termos técnicos, que escondem realidades sujas, os apologistas do neoliberalismo põe a “estabilidade dos mercados financeiros” em uma posição privilegiada em relação às necessidades mais urgentes das populações. O que ocorre de fato sob a vigência do neoliberalismo é a “privatização generalizada dos serviços públicos, a redução das despesas públicas e sociais, (…) o agravamento extraordinário das diferenças entre as rendas, o desaparecimento progressivo dos universos autônomos de produção cultural em virtude da intrusão crescente das considerações comerciais...” (BOURDIEU: Contrafogos 1, p. 143)

Será que não estaria em jogo, com o termo “globalização”, um procedimento semelhante de eufemismo, mascaramento e enganação? Não estaríamos diante de um processo que consiste em “unificar para melhor dominar”, como diz Bourdieu? Afinal de contas, esta tal de globalização será algo além do processo de imposição das doutrinas neoliberais em escala planetária? Não esconderá uma divisão internacional do trabalho que prossegue, tal qual nos dias do colonialismo, a favorecer os países capitalistas avançados em detrimento dos países por eles explorados? “Em suma”, afirma Bordieu, “a globalização não é uma homogeneização, mas, ao contrário, é a extensão do domínio de um pequeno número de nações dominantes sobre o conjunto das praças financeiras nacionais.” (BOURDIEU, idem, p. 54).

“'Globalização é uma palavra que, funcional como uma senha e uma palavra de ordem, é com efeito a máscara justificadora de uma política que visa universalizar os interesses e a tradição particular das potências econômica e politicamente dominantes, sobretudo os Estados Unidos, e estender ao conjunto do mundo o modelo econômico e cultural mais favorável a essas potências apresentando-o ao mesmo tempo como norma, um tem-que-ser e um fatalismo, destino universal, de modo a obter a adesão ou, pelo menos, resignação universais. (…) A globalização econômica é o produto de uma política implementada para fins específicos, a saber, a liberalização do comércio (trade liberalization), isto é, a eliminação de todas as regulações nacionais que freiam as empresas e seus investimentos. (…) Assim, nas economias emergentes, o desaparecimento das proteções destina à ruína as empresas nacionais e, para países como a Coréia do Sul, a Tailândia, a Indonésia ou o Brasil, a supressão de todos os obstáculos ao investimento estrangeiro acarreta a ruína das empresas locais, adquiridas frequentemente por preços ridículos pelas multinacionais. (…) As diretrizes da OMC sobre as políticas de concorrência e de mercado público teriam por efeito, ao instaurar uma concorrência 'de armas iguais' entre as grandes multinacionais e os pequenos produtores nacionais, provocar o desaparecimento maciço destes últimos.” (BOURDIEU: 2001, pg. 90 e 101-102.)
* * * * *


PRIVATIZAÇÕES & ESTADO POLICIAL

“Há hoje um sentimento amplamente difundido na Esquerda de que o neoliberalismo efetivamente enfraqueceu o poder do Estado nas sociedades ocidentais modernas, e que é chegada a hora de abandonarmos a postura antiestatista e antitotalitarista associada à crítica do stalinismo e ao autonomismo utópico dos anos 60 e 70. Enfim, é tempo de constatarmos, com não pequeno constrangimento, que talvez tenhamos sido cúmplices do Mercado em sua luta para diminuir e subjugar o Estado, última barreira protetora dos direitos do povo contra a sanha do Capital. (…) Não posso deixar de dizer que não acredito nem um pouquinho nisso. A ideia de que o capitalismo globalizado acarretou uma diminuição do poder do Estado parece-me inverossímil. À parte o fato de que foi e continua a ser preciso um gigantesco aparelho regulador e interventor, administrado pelo Estado, para produzir a 'desregulação da economia', jamais o Estado esteve tão presente, tão perto da vida cotidiana. A Grã-Bretanha, por exemplo, com suas câmeras de vigilância penduradas por toda parte, seus agentes secretos infiltrados nos movimentos civis, sua polícia neo-orwelliana, transformou-se em um espaço de autoespionagem universal e perpétua; nos EUA, a Guerra contra o Terror justificou uma invasão dos espaços privados e uma violação das liberdades públicas como jamais se viu na história das democracias modernas, o que tornou a paranóia o modo de produção dominante da subjetividade nativa. E no mundo inteiro, vemos o aparelho jurídico-policial dos Estados nacionais prestando seu apoio solícito aos esforços das corporações transnacionais para cercar definitivamente os commons da noosfera e esmagar com a máxima violência qualquer resistência à bioeconomia política do Capital.” (VIVEIROS DE CASTRO: Posfácio à Arqueologia da Violência, de Pierre Clastres, 2004, p. 325)

Michel Foucault, que investigou o
neoliberalismo em "O Nascimento
da Biopolítica"
(1979)
Uma certa “fobia ao Estado” parece animar as doutrinas liberais e similares, como sugere Foucault: “o que é posto em questão atualmente e a partir de horizontes extremamente numerosos é quase sempre o Estado: o Estado e seu crescimento sem fim, o Estado e sua onipresença, o Estado e seu desenvolvimento burocrático, o Estado com os germes de fascismo que ele comporta, o Estado e sua violência intrínseca sob seu paternalismo providencial.” (FOUCAULT: 2008, p. 259) Os espectros temíveis dos Estados totalitários do século XX – como a Alemanha do III Reich e a União Soviética sob Stalin estariam na raiz dessa “guinada neoliberal”?

Foucault esclarece que o totalitarismo não lhe parece decorrer de uma “elefantíase” do Estado, mas sim do Partido: “esse Estado que podemos dizer totalitário, longe de ser caracterizado pela intensificação e pela extensão endógenas dos mecanismos de Estado, (…) constitui, ao contrário, uma atenuação, uma subordinação da autonomia do Estado, em relação a algo diferente: o partido. (…) É essa governamentalidade de partido que está na origem histórica de algo como os regimes totalitaristas, de algo como o nazismo, como o fascismo, como o stalinismo.” (idem, p. 264)

O totalitarismo, pois, equivaleria a um “sequestro” do Estado por um partido que pretende reinar sem oposição - donde os “expurgos” do stalinismo, com tantos opositores enviados às gulags, e a tentativa do Partido Nazi alemão de impor a “purificação racial” através do genocídio sistemático. O totalitarismo como imposição de uma homogeneidade a uma massa, como máquina de varrer gente para fora do território com a terrível vassoura da limpeza étnica, a imposição da morte em escala industrial através de “conquistas tecnológicas” como as câmeras-de-gás que vomitam Zyklon B...

Já o avanço da aplicação de medidas neoliberais dá a impressão de que o Estado estaria cada vez mais limitado em sua esfera de ação: tudo o que um dia foi público vai passando por um inexorável processo de privatização. Outrora responsável por serviços essenciais à população nas áreas de saúde, alimentação, moradia e transportes, o Estado privatizador que o neo-liberalismo prega como ideal tende a conservar apenas funções policiais e militares, como se sua função fosse somente a defesa, a vigilância, a segurança. Nisto, este Estado é fidelíssimo à tradição política burguesa que, segundo Hannah Arendt, “sempre considerou instituições políticas exclusivamente como um instrumento para a proteção da propriedade individual” (The Origins of Totalitarianism, p. 199).

“A filosofia neoliberal pretende apagar todos os vestígios do Estado social como obstáculos ao funcionamento harmonioso dos mercados” (BOURDIEU: 1998, p. 84). O neoliberalismo, com sua sanha de privatizações, procura “enxugar” cada vez mais aquelas funções estatais típicas do welfare state e realiza um “corte, absolutamente injustificável, entre o econômico e o social, que define o economicismo” (idem, p. 70). “O programa neoliberal tende assim a favorecer globalmente a ruptura entre a economia e as realidades sociais.” (idem, p. 138).

Defender o Estado, diz Bourdieu, não equivale a ser reacionário, defensor de um arcaísmo: o Estado, “depositário de todos os valores universais associados à ideia de público(idem, p. 145), têm agido “rebaixando sua dignidade estatutária ao multiplicar as reverências diante dos patrões de multinacionais, ou ao competir com sorrisos e acenos coniventes diante dos Bill Gates...” (idem, p. 145)

O Estado, segundo a interpretação de Bourdieu, possui duas mãos: a esquerda, devotada às necessidades sociais como habitação, saúde, educação, e a direita, onde concentra-se a burocracia, a polícia, o exército. Nos EUA, por exemplo, é fácil constatar que a “mão direita” do Estado cresceu desproporcionalmente, enquanto a mão esquerda foi sendo vendida, sucateada, privatizada, relegada a um status secundário, transformada em mercadoria. O Público foi privada abaixo.


País de recordes, alguns deles não tão “gloriosos” quanto aqueles que decoram os Guiness Books que os americanos adoram consumir, os EUA não é somente o maior poluidor atmosférico, o mais sedento consumidor de petróleo e a nação do planeta com o mais alto orçamento militar (“600 bilhões de dólares por ano”, segundo Todorov [2012: pg. 69]). Em 2008, como relata Ziegler, “pela primeira vez na História as defesas com armamento dos países membros da ONU ultrapassaram um trilhão de dólares por ano. Os Estados Unidos gastaram com armas 41% desse montante (a China, segunda potência militar mundial, 11%).” (ZIEGLER: 2011, p. 12).

Este imenso poderio militar é posto em ação em cruzadas no exterior, justificadas como guerras de legítima defesa (como a do Afeganistão, que seria uma retaliação contra o atentado do 11 de Setembro) e “guerras preventivas” (como a do Iraque, que supostamente livraria o mundo de um regime que abrigava armas em destruição em massa...). “Os valores democráticos, brandidos pelos países ocidentais como motivo da intervenção, foram percebidos, pela população de outros países, como a confortável camuflagem de intenções inconfessáveis.” (TODOROV: 2012, p. 63).

 É nos Estados Unidos, que possui 5% da população mundial, que se concentra a maior população carcerária, cerca de 25% de todos os encarcerados da Terra, o que denota “um Estado repressor, policialesco”: “No estado da Califórnia, um dos mais ricos dos EUA, o orçamento das prisões é superior, desde 1994, ao orçamento de todas as universidades reunidas. Os negros do gueto de Chicago só conhecem, do Estado, o policial, o juiz, o carcereiro e o parole officer...” (BORDIEU: 1998, p. 46)

O fato do cowboy from hell George W. Bush ter podido apontar o presidente da Goldman Sachs, Hank Paulson, um dos mais bem-pagos CEOs de Wall Street, como seu Ministro do Tesouro, em 2006, é bem sintomático da infiltração insidiosa e disseminada do big business no próprio coração do capitalismo neoliberal. Um sistema que, longe de globalizar o acesso gratuito e universal à alimentação, à saúde e à educação, é “globalizador” de sua tara economicista e de sua mania obsessiva de concentrar riqueza e produzir miséria.

Dois anos depois da Goldman Sachs ganhar da bandeja de Bush o Tesouro, uma crise monumental estoura nos EUA de 2008: falências colossais (como da Lehman Brothers e da Merryll-Lynch, esta última comprada pelo Bank of America...) e símbolos do capitalismo americano indo à beira da falência (a General Motors quase vai à bancarrota, só sobrevivendo com os bilhões pagos pelo Salvador, o Estado que gere o dinheiro recolhido dos taxpayers...).

A inescrupulosidade, ineficiência e a irresponsabilidade do capitalismo comercial corporativo causou grave crise social e os responsáveis pelo desastre, ao invés da cadeia ou da demissão, prosseguiram com suas fortunas intactas:“The men who destroyed their own companies and plunged the world into crisis walked away from the wreckage with their fortunes intact” (Inside Job, documentário de Charles Ferguson). O Estado, nesse caso, serviu como aquele que tira do povo (pobres dos cidadãos, cujo suado dinheirinho foi todo transferido para o “salvamento” urgencial da Merryll-Lynch e da GM...) e entregue logo aos capitalistas que causaram a desgraça.

* * * * *

SIGA VIAGEM... 

2 EXCELENTES DOCUMENTÁRIOS:

THE CORPORATION (2004)
de Mark Achbar e Jennifer Abbott
Vencedor de mais de 20 prêmios internacionais


* * * * *

INSIDE JOB de CHARLES FERGUSON
Oscar de Melhor Documentário - 2010
Download do filme completo [800 MB]

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Depredando o Neoliberalismo, Parte III: Sweatshops, Precariado, Mega-Corporações... "Os escravagistas não morreram! Viraram especuladores da Bolsa..."

Manifestação em Porto (Portugal)

           
“Os escravagistas não morreram. Eles se transformaram em especuladores da bolsa.”

OULAI SIENE
, ministro da Justiça da Costa do Marfim,
em Durban 2001
(in: ZIEGLER, Ódio ao Ocidente: Ed. Cortez, 2011, pg. 98)



Um dos maiores escândalos do capitalismo neoliberal atual são os chamados sweatshops [Wikipédia]: fábricas que as mega-corporações instalam longe dos grandes centros de consumo e onde a escravidão, o trabalho infantil e os salários de miséria são a realidade cotidiana. Nas apinhadas usinas de suor, milhares de trabalhadores são esmagados dia-a-dia debaixo das condições mais inaceitáveis, mantidos na subnutrição, obrigados a ritmos frenéticos de produtividade, enquanto fabricam bens de luxo destinados aos shoppings e supermercados dos grandes centros urbanos capitalistas. 

O Mickey de pelúcia comprado na Disneilândia ou o tênis Nike adquirido na 5a Avenida de Manhattan, apesar dos consumidores não terem consciência disso (será que ignoram de propósito? Tapam os próprios ouvidos? Vendam os próprios olhos?), são fabricados através das mais sórdidas opressões impostas às populações despossuídas de Bangladesh, da Indonésia, da China... É contra isso que os personagens do filme alemão Edukators protestam, panfletando nas lojas, na tentativa de disseminar a consciência de que um tênis vendido por 200 dólares foi produzido por jovens escravizados que receberam só alguns centavos de salário. Não é outra a fonte dos colossais lucros das mega-corporações: elas só ficam ricas pela miséria que impõe a seus empregados, pela mais-valia que arrancam deles, pela discrepância entre os salários que pagam e os preços que cobram... Os escravagistas não morreram: agora eles são donos do Wal-Mart.


Sociólogos, nos últimos anos, insistem em apontar que a globalização tem gerado a expansão epidêmica do “precariado”, isto é, a “multiplicação dos empregos precários e sub-remunerados” (BOURDIEU: Contrafogos, 2001, p. 51). O trabalhador, sob o neoliberalismo, tem a “impressão de que não é insubstituível e que o seu emprego é de certa forma um privilégio, e um privilégio frágil e ameaçado. (...) A concorrência pelo trabalho, às vezes tão selvagem quanto a praticada pelas empresas, está na raiz de uma verdadeira luta de todos contra todos, destruidora de todos os valores de solidariedade e humanidade, e às vezes de uma violência sem rodeios.” (op cit, p. 121-123)

Ao mesmo tempo, os donos do capital procuram reduzir-nos a passivos espectadores dos fatalismos econômicos: a “ralé”, dizem eles, não tem controle algum sobre este novo deus chamado de Mão Invisível, que Galeano descreve como uma divindade furibunda como um novo Jeová: deus severo e propagador de medos, deus das dívidas e das austeridades. Os únicos “profetas” que sabem conversar com o deus dos mercados e sua máquina infernal são, é claro, os “peritos”: que o cidadão normal não se meta com isso!

Sabe-se que um dos procedimentos prediletos das grandes empresas, na era da globalização, é abrir filiais no chamado 3º Mundo, onde encontram mão-de-obra mais barata para ser explorada. Longe de ter aposentado o processo de arrancar lucros através do que Marx chamava de mais-valia, o neoliberalismo globalizado, em sua sanha sanguessuga, prossegue explorando o trabalho em vastíssima escala, com uma “compulsão em servir aos próprios interesses financeiros acima de tudo” (BAKAN: The Corporation, 2007, pg. 76). As riquezas são produzidas com o suor mau-pago do precariado e as consequências ecológicas desastrosas do produtivismo enlouquecido são "externalizadas": que as próximas gerações se virem, como puderem, com a poluição e o aquecimento global! O lucro de hoje gera as catástrofes de amanhã. 

O documentarista Michael Moore, em um de seus filmes, convidou o presidente da Nike a visitar com ele as subsidiárias de sua mega-corporação na Indonésia, onde “o objetivo da empresa era maximizar o lucro que podia espremer de meninas e mulheres jovens que costuram roupas para a Nike em fábricas que exploram a mão-de-obra barata em países em desenvolvimento” (BAKAN: 78). Perplexo, descobre que o super-executivo, multi-bilionário, nunca tinha se dado ao trabalho de ir visitar a maioria de suas fábricas no Terceiro Mundo. Sua atitude, longe de ser excepcional, constitui a regra: as ordens que as grandes corporações emanam para o resto de suas filiadas subalternas se resumem quase a um ditame bem simples e infinitamente repetido como um mantra: “maximize productivity and profit at all costs!”

Aqueles que investigaram mais a fundo a realidade laboral nas fábricas da Nike e outras mega-corporações, como Charles Kernaghan, diretor do Comitê Nacional do Trabalho norte-americano, descobriu uma realidade que não difere muito dos campos de concentração para trabalho forçado que Arendt descreve como característicos do totalitarismo stalinista:

"A típica fábrica que Kernaghan visita em países como Honduras, Nicarágua, China e Bangladesh é cercada por arame farpado. Atrás das portas trancadas, em sua maioria estão jovens mulheres supervisionadas por guardas que as agridem e as humilham por qualquer motivo e que as demitem se o teste de gravidez obrigatório for positivo. Cada trabalhadora repete a mesma ação talvez 2.000 vezes por dia. Trabalham sob luzes dolorosamente brilhantes, em turnos de 12 a 14 horas diárias, em fábricas abafadas, com poucos banheiros e acesso restrito à água (para reduzir a necessidade de mais pausas para usar o banheiro). Trabalham até 25 anos de idade, mais ou menos, ponto em que são demitidas porque estão acabadas e desgastadas. A vida delas já chegou ao fim, e a companhia as substitui por outra safra de jovens..." (BAKAN: p. 79)

As mega-corporações trans-nacionais, instituições dominantes no cenário do capitalismo neoliberal, foram responsáveis por inúmeras catástrofes ambientais, como o desastre de Bophal na Índia e os vazamentos de petróleo da Chevron no Equador (desgraça esmiuçada no documentário “Crude”). Também não faltam episódios inglórios de empresas colaborando com regimes fascistas ou totalitários: um dos casos mais conhecidos, descrito por Edwin Black em A IBM e o Holocausto, é o acordo entre a mega-empresa de informática e a Alemanha hitlerista, que durou pelo menos até 1941, e que consistia no fornecimento, pela IBM, de “máquinas tabuladoras Hollerith, ancestrais dos computadores, que usavam cartões perfurados para fazer seus cálculos” (BAKAN: 105). 

Segundo o autor, “o escritório central em Nova York tinha toda consciência de tudo que estava acontecendo com suas máquinas no III Reich... de que estavam sendo usadas em campos de concentração e que os judeus estavam sendo exterminados...” (idem). Outros exemplos são a General Motors, que era dona da Opel, empresa que contribuiu com armamentos e aviões para a Luftwaffe, e a Coca-Cola, que criou a Fanta - o refri-Nazi - especialmente para o mercado alemão em 1939. “A assistência oferecida aos nazistas por corporações norte-americanas pode parece chocante, mas não devemos nos esquecer de que hoje em dia muitas corporações norte-americanas têm negócios frequentes com regimes totalitários ou autoritários, mais uma vez porque é lucrativo fazê-lo” (BAKAN: 106)

           
Como resume Bourdieu: Nas empresas, é a busca do lucro a curto prazo que orienta todas as escolhas, sobretudo a política de recrutamento, submetido ao imperativo da flexibilidade e da mobilidade. (…) Com a ameaça constante de 'enxugamento', toda a vida dos assalariados está colocada sob o signo da insegurança e da incerteza. (…) Certas empresas de televendas ou de telemarketing aperfeiçoaram um regime que, do ponto de vista da produtividade, do controle e da vigilância, dos horários de trabalho e da ausência de carreira, é um verdadeiro taylorismo dos serviços. (…) O protótipo dos operários especializados da 'nova economia' é sem dúvida a caixa de supermercado, convertida pela informatização do registro de preços em verdadeira operária de linha, cujas cadências são examinadas, cronometradas, controladas, e cujo emprego do tempo varia ao sabor das variações do fluxo de clientes; ela não tem a vida nem o estilo de vida de uma operária de fábrica, mas ocupa uma posição equivalente na nova estrutura. (BORDIEU: 2001, pg. 49-51)
De modo que é legítima a suspeita de que o neoliberalismo têm vínculos íntimos com estratégias imperialistas de dominação e que mantêm vivos os métodos de opressão da classe trabalhadora denunciados em tanta minúcia por Karl Marx, que assim descrevia o processo de criação do capital:

 “O capital veio ao mundo suando sangue e lama por todos os poros […]. Em geral, a escravidão velada dos operários assalariados na Europa precisava, como pedestal, da escravatura notória no Novo Mundo. (…) O tesouro capturado fora da Europa, diretamente por pilhagem, escravização, assassinato seguido de roubo, refluiu para a mãe pátria e transformou-se em capital.” (KARL MARX, Ouevres Completes, vol. II, Le Capital, tomo 1, seção VIII. Paris: Gallimard. Bibliotèque de la Pléiade.)

O neoliberalismo, visto a partir da perspectiva daqueles que o sofrem e não dos que o impõe, ou seja, enxergado a partir do chamado “3º Mundo” ou dos “países subdesenvolvidos”, equivale a uma continuação transformada do colonialismo. Eduardo Galeano, em sua análise da América Latina, relembra a história:

"A divisão internacional do trabalho significa que alguns países se especializam em ganhar e outros em perder. Nossa comarca no mundo, que hoje chamamos América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se aventuraram pelos mares e lhe cravaram os dentes na garganta. (…) Nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os impérios e seus beleguins nativos. Na alquimia colonial e neocolonial o ouro se transfigura em sucata, os alimentos em veneno. Potosí, Zacatecas e Ouro Preto caíram de ponta-cabeça da grimpa de esplendores dos metais preciosos no fundo buraco dos socavões vazios, e a ruína foi o destino do pampa chileno do salitre e da floresta amazônica da borracha; o nordeste açucareiro do Brasil, as matas argentinas de quebrachos ou certos povoados petrolíferos do lago de Maracaibo têm dolorosas razões para acreditar na mortalidade das fortunas que a natureza dá e o imperialismo toma.” (GALEANO, As Veias Abertas da América Latina….)
O próprio Foucault remete au passant ao imperialismo quando lembra que “os sucessores de List estalebeceram como princípio que a economia liberal não podia ser e na verdade não era mais que um instrumento tático ou estratégia nas mãos de certo número de países para obter uma posição hegemônica e politicamente imperialista sobre o resto do mundo.” (FOUCAULT: Nascimento da Biopolítica, 2008, p. 147)

Segundo Rosa Luxemburgo, “o imperialismo é a expressão política da acumulação de capital em sua competição pela posse do mundo não-capitalista” (LUXEMBURGO: 1923, p.  361). A doutrina da “expansão”, tão conectada ao imperialismo, teria nascido, segundo Arendt, desta concentração extrema de capital nas mãos da burguesia:


“Expansion appeared first as the outlet for excess capital production and offered a remedy, capital export. The tremendously increased wealth produced by capitalist production under a social system based on maldistribution had resulted in 'oversaving' – that is, the accumulation of capital which was condemned to idleness within the existing national capacity for production and consumption. (…) When capitalism had pervaded the entire economic structure and all social strata had come into the orbit of its production and consumption system, capitalists clearly had to decide either to see the whole system collapse or to find new markets, that is, to penetrate new countries” (ARENDT: 1948, p. 197).

Esta corrida dos capitalistas para penetrar novos países, longe de ser ato polido realizado com gentileza e vaselina, foi em grande parte dos casos um estupro. Para levar a sério a sugestão de Nietzsche de que a filosofia deve ser uma “escola da suspeita”, resta-nos desconfiar: o neoliberalismo não seria a nova face do imperialismo, a nova máscara por detrás da qual ele se esconde, a hipocrisia mais recente que ele pôde forjar em seu ímpeto invasionista? O caso do Chile de 1973 é paradigmático...


SIGA VIAGEM...


THE NEW RULERS OF THE WORLD
Documentário de John Pilger, de 2001, completo e legendado.
Inclui análise minuciosa do "Caso Indonésia": país que foi considerado
"aluno modelo" pelo Banco Mundial e cuja economia quebrou em 1998,
com as mais desastrosas consequências para sua população.


* * * * *

Documentário de Giovanni Alves sobre o precariado português. 17 min.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

IV. Neoliberalismo e Violência: o golpe militar no Chile em 1973 & outras reflexões sobre a imposição brutal do "Livre Mercado"




“In order to stablish conditions for free-market,
 and in order to sustain free-market,
you need quite a lot of violence.”


SLAVOJ ZIZEK


O neoliberalismo, antes de ser implantado nos países capitalistas avançados, capitaneado  por Tatcher no Reino Unido, Reagan nos EUA e Deng Xiaoping na China - como exposto em minúcia no livro Neoliberalismo de David Harvey (2008) - utilizou o Chile como seu “laboratório” experimental. Salvador Allende, desde sua eleição à presidência em 1970, havia realizado transformações amplas na sociedade chilena, pavimentando o caminho para uma sociedade socialista. Suas ações iam na direção oposta ao que recomendam os cânones neoliberais: ao invés de privatizações e desregulamentações favoráveis ao livre-mercado, o governo Allende trabalhou em prol da nacionalização de empresas, minas e terras.

Allende expropriou 15 milhões de hectares de terras que estavam concentradas nas mãos de latifundiários e as redistribuiu [vide nota 01 no fim do texto]. Estatizou todos os bancos e retornou o controle de quase todas as fábricas ao comando dos próprios operários. Defendeu com punho-de-ferro a autonomia do Chile diante dos exploradores estrangeiros, em especial os EUA, que viam com muita desconfiança estas “iniciativas marxistas” que se assemelhavam a muitas instauradas em Cuba após a Revolução de 1959. Os militares, o partido Democrata-Cristão e os yankees fizeram tudo para boicotar e desestabilizar o regime de Allende, que resistiu por mais de 3 anos, respaldado por um apoio popular tão intenso e imenso. Com frequência massas que superavam 100 mil pessoas tomavam as ruas bradando a uma só voz: “Allende, Allende, el pueblo te defiende!” ou “Allende, tranquilo, o povo está contigo!”

Salvador Allende & Fidel Castro

Allende junto do poeta chileno Pablo Neruda

O Chile havia vivido 41 anos de regime democrático quando, no fatídico 11 de Setembro de 1973, o presidente democraticamente eleito Allende é assassinado, o palácio de La Moneda em Santiago é bombardeado e um golpe militar instaura a ditadura Pinochet. Como nos lembra Naomi Klein, foi determinante neste evento histórico a ação nos bastidores de Milton Friedman, “considerado o economista mais influente do último meio século” (KLEIN: 2007, p. 15), um dos papas da doutrina neoliberal:
"Milton Friedman aprendeu a explorar os choques e as crises de grande porte em meados da década de 1970, quando atuou como conselheiro do ditador chileno, o general Augusto Pinochet. Enquanto os chilenos se encontravam em estado de choque logo após o violento golpe de Estado, o país sofria o trauma de uma severa hiperinflação. Friedman aconselhou Pinochet a impor uma reforma econômica bastante rápida – corte de impostos, livre-comércio, serviços privatizados, corte nos gastos sociais e desregulamentação. (…) Ficou conhecida como 'a revolução da Escola de Chicago', pelo fato de que muitos economistas de Pinochet tinham estudado sob a orientação de Friedman na Universidade de Chicago. (…) Desde então, sempre que os governos decidem impor programas radicais de livre mercado, o tratamento de choque [the shock doctrine] tem sido o seu método preferido." (KLEIN, A Doutrina do Choque, p. 17)
Milton Friedman, Prêmio Nobel de Economia, apologista da privatização, desregulação e aniquilação de sindicatos, teve participação ativa no golpe militar de 1973, como revelado por Naomi Klein em A Doutrina do Choque

Quanto mais detalhes são revelados sobre a História das ditaduras militares na América Latina, mais evidente e inegável se torna o quão ampla foi a participação dos EUA, em aliança com as elites oligárquicas nacionais, na instauração de regimes autoritários e fascistas que serviam aos interesses comerciais e financeiros da “metrópole”. No Chile, como documenta a obra de Guzmán, as Forças Armadas receberam um auxílio de 45 milhões de dólares do Pentágono, o que equivale a mais de um 1/3 de todo o capital “emprestado” pelos EUA desde a subida ao poder de Allende. Além disso, mais de 4 mil oficiais do Exército chileno foram treinados pelos Estados Unidos e este mantia mais de 40 agentes da CIA infiltrados no movimento de oposição à Allende.
           
Tal experiência de neo-liberalismo, imposto por um golpe militar dos mais brutais e violentos já perpetrados no continente, foi altamente traumática para o povo chileno e prossegue sendo uma das veias abertas da América Latina (para remeter ao clássico estudo de Eduardo Galeano). O Chile ainda se recupera da terapia de choque que lhe foi infligida por 17 anos pela ditadura Pinochet, que governou “tocando o terror” na população através das
"celas de tortura do regime, infligindo choques aos corpos retorcidos daqueles que foram considerados obstáculos à transformação capitalista. Na América Latina, muitos enxergaram uma conexão entre os choques econômicos que empobreceram milhões e a epidemia de tortura que flagelou centenas de milhares de pessoas que acreditavam num tipo diferente de sociedade". (KLEIN: 2007, p. 17).

Apoiado e financiado pela CIA e guiado pelas doutrinas econômicas de Friedman, Hayek e o resto da Escola de Chicago, a ditadura militar de Pinochet criaria campos de concentração para opositores ao regime[2], torturaria e assassinaria a torto e a direito, desencadearia encarceramentos em massa (100.000 pessoas são presas em 3 anos...), em “expurgos” e massacres destinados a varrer a esquerda do mapa.

Por 17 anos este regime responsável pelos crimes mais hediondos reinaria sobre o Chile. No entanto, longe de ser uma exceção, a situação do Chile em 1973 carrega muitas semelhanças com outras ocorrências em outros países latino-americanos, como o Brasil (o governo João Goulart é derrubado pelo golpe militar de 1964), e a Argentina, que também é sublevada por um coup d'état em 1976:
“Algumas das violações mais infames dos direitos humanos de nossa era, que tenderam a ser encaradas como atos sádicos perpetrados por regimes antidemocrátcios, foram cometidas com a intenção clara de aterrorizar o público, ou ativamente empregadas a fim de preparar o terreno para a introdução das 'reformas' radicais de livre mercado. Na Argentina da década de 70, o 'desaparecimento' de 30 mil pessoas sob o governo da junta militar, muitas delas ativistas de esquerda, fez parte da imposição ao país das políticas da Escola de Chicago.” (KLEIN: 2007, p. 19)

O neoliberalismo chega ao Chile sem ser convidado, arrombando a porta e instaurando o sistema de livre-mercado sem consulta à população. Rasga-se a democracia: é o fim de uma era onde o povo estava acostumado a ter sua voz ouvida, sua opinião respeitada, sua vontade concretizada, como era tão comum e constante no governo Allende, quando ocorriam “plebiscitos” frequentes. O golpe militar que instala no poder a ditadura Pinochet semeia o assassinato e a tortura ao seu redor, mantendo o povo aterrorizado com a violência: como diz Eduardo Galeano: “como essa desigualdade pode ser mantida, senão por descargas de choque elétrico?” (GALEANO: Dias e noites de amor e guerra. Porto Alegre: L&PM, 2005)

O que se escancara sobre o neo-liberalismo quando visto através de uma perspectiva latino-americana, pois, é o quão “gringo” ele é – e chilenos e cubanos o sabem melhor que ninguém.  Mas também o sabem, visceralmente, os venezuelanos que elegeram Chávez e os bolivianos que puderam pela primeira vez ser representados por um presidente de origem indígena, Evo Morales - dentre outros povos do continente que prosseguem aguerridos em sua oposição aos ditames imperialistas (vide South of the Border, de Oliver Stone).

Na Bolívia: protestos contra a privatização da água

O exemplo da Bolívia também é eloquente: em 1992, por ocasião dos 500 anos do início da Conquista da América, iria acontecer em La Paz uma “suntuosa festa de aniversário” organizada pelas autoridades branquelas. Emergindo dos indígenas, que constituem mais de metade da população do país, nasceu um protesto colossal: “várias centenas de milhares de aimarás, quíchuas, moxos e guaranís (…) vaiaram Cristóvão Colombo, derrubaram as tribunas de honra e ocuparam a capital durante quatro dias” (ZIEGLER: 2011, p. 207).

Mais de uma década depois, em 2003, o presidente Lozada, um milionário que passou boa parte de sua vida em Miami, depois de ter privatizado tudo o que tinha direito, chegou ao cúmulo de pôr em marcha a privatização da água potável. Empresas multinacionais européias como a Suez e a International Water Limited ganharam, a preço de babana, as concessões. Em sequência, “aumentaram massivamente o preço da água potável e centenas de milhares de famílias viram-se na impossibilidade de pagar a conta. Elas tiveram que se abastecer nos riachos poluídos, nos poços envenenados pelo arsênico. As mortes infantis pela 'diarreia sangrenta' aumentaram potencialmente. Manifestações públicas começaram a explodir.” (ZIEGLER: Ódio ao Ocidente, 2011, p. 208)

Confrontos com a polícia deixam dezenas de mortos, centenas de feridos. “Mas os bolivianos não se dobraram. O movimento se espalhou por todo o país. No dia 17 de outubro de 2003, cercados no palácio Quemado por uma multidão enfurecida de mais de 200 mil manifestantes, o presidente Lozada e seus comparsas mais próximos decidiram fugir do país. Destino: Miami.” (idem). Não surpreende, pois, que a Bolívia tenha se insurgido contra os políticos que são chamados de “Vende-pátria” ao elegerem Evo Morales em 2006.

A cruz em que muitos países ditos “subdesenvolvidos” estão pregados, desde que lhes foi imposto o regime neoliberal, chama-se “dívida externa” - e seus credores, instituições como o FMI e o Banco Mundial, não passam de representantes dos poderes colossais das mega-empresas e dos grandes acionistas das potências ocidentais. A Argentina sob o governo Menem, que sofreu uma das piores quebradeiras econômicas de sua história, como tão bem escancarado por Memoria Del Saqueo, documentário de Fernando Solanas, é um exemplo do que ocorre a países que acatam ordens para neo-liberalizar sua economia. A Islândia e a Grécia são outros. Provas dramáticas desta soma de corrupção política e ganância corporativa que tanto lucro retira do rastro de autoritarismo que seu sapato deixa sobre tudo aquilo que pisoteia.

Longe de fazer dueto harmônico com a democracia, pois, o neoliberalismo não raro soa como uma voz autoritária que destoa do coro legitimamente democrático que alguns povos intentam cantar. O Chile de 1973, o Iraque após a Invasão dos EUA em 2004 e New Orleans após o Furacão Katrina são, na opinião de Naomi Klein, demonstrações históricas da maneira como por vezes o neoliberalismo é imposto “por meio dos mecanismos coercitivos mais descarados: sob ocupação militar estrangeira depois da invasão, ou imediatamente após a ocorrência de um cataclismo natural devastador.” (KLEIN: p. 19)



[1]    Os dados provêm da série de três documentários A Batalha do Chile, de Patricio Gúzman.
[2]    O encarceramento, tortura e “desaparecimento” sistemáticos de opositores do regime recebeu registro cinematográfico eloquente em filmes como Dawson – A Ilha de Pinochet, Rua Santa Fé e Nostalgia Pela Luz.


SIGA VIAGEM...



Curta-metragem de KEN LOACH sobre o 11 de Setembro chileno:


* * * * *

A BATALHA DO CHILE
3 Documentários Completos de PATRICIO GÚZMAN... CLÁSSICOS!
Todos legendados em português.

I. A INSURREIÇÃO DA BURGUESIA



II. O GOLPE DE ESTADO


III. O PODER POPULAR


* * * * *

A DOUTRINA DO CHOQUE
Documentário de Michael Winterbottom
Baseado na obra de Naomi Klein
Completo e legendado