Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165
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terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Chuva


Guarda-Chuva. Rafal Olbinski. 2017


Chove como sempre. E,
sempre que chove,
as pessoas abrigam-se
(as que não estavam à
espera que chovesse);
ou abrem, simplesmente,
o chapéu-de-chuva - de
preferência com fecho
automático. Porque, quando
chove, todos temos de
fazer alguma coisa: até
nós, que estamos dentro
de casa. Vão, uns, até
à janela, comentando:
"Que Inverno!"; sentam-se,
outros, com um papel
à frente: e escrevem
um poema, como este.


Nuno Júdice, "Um Canto na Espessura do Tempo", 1992

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Poema do Silêncio, José Régio

 

Ferragudo, Praia Grande - 2025


Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
- Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...

O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.

Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!

Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, maniatado, iluminado.

Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!

Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.

Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista...

Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...

Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome.

José Régio, in As Encruzilhadas de Deus


    Depois de dias absorvidos pelo cuidado e pela família, estou de regresso. Aos poucos, irei visitando os @migos.

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Fui criança indo por um carreiro

 

Madalena - agosto 2025


Fui criança, indo por um carreiro,
a caminho do mar, mão na outra mão,
entre árvores, pedras, insectos e aves.
Toda a Natureza me coube nas pupilas,
mestra de sentimentos, e eu discípula.
E, se fechava os olhos, ela punia-me
com o silêncio cruel das ondas,
a mudez imerecida dos insectos,
e a distância das aves, que doía.
e os abria, tudo me rodeava,
apaziguado e meu,
mas a mão que me trazia a mão
puxava-me para a luz de cada dia.

Fiama Hasse Pais Brandão
Cenas Vivas, Relógio d’Água

quarta-feira, 16 de abril de 2025

"Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio"

 

Alentejo, 2025


Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.

Peço-Te que venhas e me dês a liberdade,
Que um só dos Teus olhares me purifique e acabe.

Há muitas coisas que eu não quero ver.

Peço-Te que sejas o presente.
Peço-Te que inundes tudo.
E que o Teu reino antes do tempo venha
E se derrame sobre a terra
Em Primavera feroz precipitado.

                                               Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral, 1950



Alentejo, 2025


    Que este tempo de passagem vos seja leve e doce, meus amigos!


Pessach/Páscoa


segunda-feira, 31 de março de 2025

Cyclamen de Alepo

 

cyclamen cá de casa, 2025

Cantos para o amor
1
um eco de ti me disse:
“o segredo que fala de ti e de mim
não tem idade”
2
sabemos como podem amar as estações
sabemos que línguas falaram
no desconhecimento do vento e do espaço
3
não tenho medo
devo inventar o testemunho que
te corresponde

Entre teus olhos e eu
quando penetro meus olhos nos teus
vejo a alvorada profunda
vejo o antigo ontem
vejo isso que ignoro
e sinto que passa o universo
entre os teus olhos e eu

Unidade
o universo uniu-se a mim
suas pálpebras cobrem com as minhas
o universo ligou-se à minha liberdade,
qual dos dois criou o outro?

Não possuo edição portuguesa



    Pseudónimo de Ali Ahamed Said Esber, poeta conhecido por combater o sionismo e as ditaduras árabes, defende uma poesia livre das amarras das instituições políticas e das obrigações religiosas.

(Enquanto desviamos o olhar.)

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Ocasos

 

Dezembro, 2024 - Alentejo

    

    Foram intensos os ocasos de 2024. Ano tremendo, na acepção sacra da palavra - mysterium tremendum, sem contacto com o numinoso, diria eu num paradoxo tão do domínio das coisas que escapam ao entendimento. Muitas foram as contradições, muitos foram os fascínios -fascinans, qualidade estranha desse mistério que é a Vida. 
    Conheci a finitude do trabalho, que amei profundamente, e troquei-o pelo espanto e lazer de quem, finalmente, dispõe do tempo para contemplar as profundezas remotas do lugares esquecidos.


Loulé, 2024


    Fragrâncias exaladas do passado de onde só a recordação vai mantendo os meus ancestrais. Os mais velhos retiraram-se quase todos para a eternidade e o tempo vai fluindo para um rio, também ele, eterno...mas pleno do vigor que se alimenta de ideais, enquanto não desagua nesse Nada de que todos faremos parte.

Ana Tapadas - 12 anos



O jardim e a casa

Não se perdeu nenhuma coisa em mim. 
Continuam as noites e os poentes 
Que escorreram na casa e no jardim, 
Continuam as vozes diferentes 
Que intactas no meu ser estão suspensas. 
Trago o terror e trago a claridade, 
E através de todas as presenças 
Caminho para a única unidade.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Poesia I

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Adonis, "Na Sombra das Coisas"

 

Gianfranco Gazzetti , Museu de Aleppo, 2008




Na sombra das coisas

Gosto de ficar na sombra das coisas
no segredo delas, gosto
de entranhar a criação
de vagar como as ideias
como a arte que se entranha
e, incerto, incauto
renasço a cada dia.

                                          Adonis (tradução Michel Sleiman)

Adonis (em árabe: أدونيس, pseudónimo de Ali Ahamed Said Esber — Al Qassabin, Lataquia, Síria, 1 de janeiro de 1930) é um poeta e ensaísta sírio, com uma longa carreira literária no Líbano e em França, autor de mais de vinte livros em língua árabe. Considerado o maior poeta contemporâneo de Língua árabe.








terça-feira, 16 de julho de 2024

NÃO PRECISO DE DINHEIRO

 

Alvor, Junho de 2024



Eu não preciso de dinheiro
Preciso de sentimentos.

De palavras, de palavras escolhidas sabiamente.
de flores, chamadas pensamentos,
de rosas, chamadas presença,
de sonhos, que morem nas árvores,
de melodias que façam as estátuas dançarem
de estrelas que murmurem ao pé d’ouvido dos amantes…

Preciso de poesia,
essa magia que queima o peso das palavras,
que desperta as emoções e dá cores novas.

Alda Merini (Milão, 1931 - 2009), a "Miúda de Milão"


Original:

NON HO BISOGNO DI DENARO


Io non ho bisogno di denaro.
Ho bisogno di sentimenti.

Di parole, di parole scelte sapientemente,
di fiori, detti pensieri,
di rose, dette presenze,
di sogni, che abitino gli alberi,
di canzoni che faccian danzar le statue,
di stelle che mormorino all’orecchio degli amanti…

Ho bisogno di poesia,
questa magia che brucia le pesantezza delle parole,
che risveglia le emozioni e dà colori nuovi.




domingo, 19 de maio de 2024

Árvores

 

Suíça, Zurique, 2021


Sem fadiga, as árvores regressam
ao poema. Primeiro as laranjeiras,
a seguir entram as tílias.
Sempre estiveram perto, incapazes
de se afastarem dos pequenos
olhos imensos.
À sombra dos cavalos
podia vê-las chegar carregadas
do seu aroma, dos seus frutos frios.
A tarde chegava ao fim
mas tive tempo ainda
de as sentir, com um sorriso, aproximar.

                               
Eugénio de Andrade, Os Sulcos da Sede, 2001

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Os poetas não morrem



                                         (n. Loulé, 14/01/1938 - m. Braga 16/05/2024) - pelo poeta


Saltei os cinquenta e acabo de entrar
Na via do mestre onde não há via nem
Glória para além do pé que pisa

As águas que passam. E vou com elas 

Assim leve nos acasos desta viagem

Sem retorno. Abandonei entre as ervas

Os livros de ouro e as moedas

De prata — o palácio do ser enfim desviado 

Das grandes estradas. O brilho das estrelas

Lembra-me que houve uma infância 
indecifrada.
Tanto melhor. Saltei os anos — 

Libertei-me da casca pouco a pouco 

Acumulada. Que mais desejar? Praias 

Desertas? Beber com a lua? Ouço a doce 

Respiração amada; divido com ela

O belo capital que me resta: estas mãos 

Vazias; velas de um corpo que desliza 

Entre as folhas do outono caídas no chão.

                                             Casimiro de Brito

    Conheci Casimiro de Brito pela mão da minha querida Ana Hatherly. Foi um encontro fugaz que, depois, continuou pelo "Facebook"...partiu hoje de Braga, deixando-nos uma obra extensa (mais de setenta títulos) e diversificada (poesia, conto, ensaio...). 
    É, sem dúvida, um dos maiores poetas portugueses dos séculos XX-XXI.




quarta-feira, 20 de março de 2024

O Jardim

 

Cá de casa, 2024

Consideremos o jardim, mundo de pequenas coisas,
calhaus, pétalas, folhas, dedos, línguas, sementes.
Sequências de convergências e divergências,
ordem e dispersões, transparência de estruturas,
pausas de areia e de água, fábulas minúsculas.

Geometria que respira errante e ritmada,
varandas verdes, direcções de primavera,
ramos em que se regressa ao espaço azul,
curvas vagarosas, pulsações de uma ordem
composta pelo vento em sinuosas palmas.

Um murmúrio de omissões, um cântico do ócio.
Eu vou contigo, voz silenciosa, voz serena.
Sou uma pequena folha na felicidade do ar.
Durmo desperto, sigo estes meandros volúveis.
É aqui, é aqui que se renova a luz.

               
António Ramos Rosa, in Volante Verde


Alentejo, 2024


sábado, 9 de março de 2024

Nunca

 

Care.org - Sudão


Um pardal com saudades de seu lar,
Empoleira-se na janela do coração;
seus olhos têm anseio,
Ele se estica para olhar as casas,
Nos céus distantes,
Esperando por uma manhã alegre,
Carregada de promessas,
Para pousar como um turbante,
Nos ombros de sua pátria.

Com cada golpe nós mergulhamos em um abismo escuro,
A junta de pés pesados ​​sitia nossas canções,
Agitam nosso tinteiro, confiscam sua paz interior.

Eles envenenam nossa alegre primavera,
E colocam seus focinhos em tudo.

Mais um sonho agradável eles desfiguram,
Aos olhos de cada mãe.
Mas eles não conseguem nos silenciar.

Nunca.

Em suas celas bebemos,
o xarope da perseverança,
Para permanecermos,
firmes e corajosos.

Ó meus tempos de prisão,
Ó minhas dores,
de saudade
e de tormento,
Se eu perder o contato com você,
Quem, neste tempo de coerção, eu seria?

Se eu perder contato com você eu vou trair,
Os pequeninos que ainda estão por vir,
Se eu perder o contato com você,
Vaidoso e egocêntrico eu me tornarei.

Enquanto eu tiver uma voz em meus acordes,
Que prisão — ou mesmo a morte — pode me silenciar?

Não.
Jamais sucumbiremos.

Eles não têm nada a dizer
Quanto ao nosso destino.

Não, eles não têm!
Somos nós que trazemos a vida
Aos poros mortos da dormência.

Minha querida,
minha companheira de vida,
No mais alto respeito, sempre te manterei.

Ó minhas amadas filhas,
Aninhadas à sombra das pessoas gentis.

Ó espaço luminoso ainda ao alcance dos olhos:
Aqueça-me com suas saudações pacíficas,
Com suas cartas.

Dê minhas saudações aos meus pares;
Dê minhas saudações às nuvens;
Dê minhas saudações à terra;
Dê minhas saudações à multidão;
E às palavras de romance,
Nos cadernos da juventude.


Mahjoub Sharif, poeta do Sudão (tradução de Raad Abdullah Ferreira)



ONU








segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

IRMANDADE


Odilon Redon, "A Morte de Buda"


Sou homem: duro pouco
e é enorme a noite.
Mas olho para cima:
as estrelas escrevem.
Sem entender compreendo:
Também sou escritura
e neste mesmo instante
alguém me soletra.

Octávio Paz



sábado, 6 de maio de 2023

Coroações

 

Jim Warren



Retrato de uma princesa desconhecida


Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos

Foi um imenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição




Sophia de Mello Breyner Andresen


segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Dias assinalados...máscaras

 

Pablo Picasso – Garota em frente ao espelho, 1932


Depus a máscara e vi-me ao espelho. —

Depus a máscara e vi-me ao espelho. —

Era a criança de há quantos anos.

Não tinha mudado nada...

É essa a vantagem de saber tirar a máscara.

É-se sempre a criança,

O passado que foi

A criança.

Depus a máscara e tornei a pô-la.

Assim é melhor,

Assim sou a máscara.

E volto à personalidade como a um terminus de linha.

18-8-1934

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).

  - 61.

Lapso corrigido segundo: Álvaro de Campos - Livro de Versos. Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.


Arroz doce

Ainda assim é... mesmo que não aprecie minimamente o Carnaval...
Depois de ter estado em Nice  e em Veneza, a memória deste dia habita a minha cozinha de infância, algures no Alto Alentejo. Aprecio a simplicidade, a emoção que vem de um tempo remoto a qual se estilhaça, dia após dia, nesta sociedade espectáculo. E... a minha mão alentejana reproduz a tradição...


Filhós
    
A máscara da palavra

A máscara da palavra
revela-esconde
o rosto vago
de um sentido mundo

Paraíso acidental
metódico exercício
a máscara da palavra
colou-se ao rosto:
agora é
o nosso mais vital artifício

Com a máscara da palavra
reinventamos
o som da voz amada
que nos inunda
com seu luar de espuma 

Ana Hatherly, in A idade da escrita, 1998


   

sábado, 6 de agosto de 2022

"E que lhe ofereçam fantasia"

 

Ana Luísa Amaral, Jornal de Notícias, 6-8-2022


    Tinha agora um ar cansado, estava magra e envelhecida...como poderia ter só 66 anos? A doença levara-lhe aquele ar que habitou as minhas aulas e os recursos que a colocavam a falar na primeira pessoa para os meus alunos. Todos se aperceberam que a sua poesia era muito hábil, por vezes genial, com a mestria de quem conhecia muito bem outros autores e, também ela, os ensinara a outros alunos. Todos se aperceberam que ela nunca suplantou o meu amor por outros poetas, mas o ser feminino e doméstico de onde retirava as suas representações de poeta eram admiráveis e surpreendentes. Representações inesperadas e surpreendentes transfiguravam o quotidiano em densidade do imaginário. A sua caligrafia fluída como a fragilidade da Vida. 
    Que ano este, feito de partidas! Valha-nos a ideia de que nem os poetas, nem aqueles que muito amamos caem no esquecimento.
    


sexta-feira, 8 de julho de 2022

Sê tu a palavra

 

Mar Egeu, Creta - José Alves, 2012



1. Sê tu a palavra, branca rosa brava. 2. Só o desejo é matinal. 3. Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria. 4. Morre de ter ousado na água amar o fogo. 5. Beber-te a sede e partir - eu sou de tão longe. 6. Da chama à espada o caminho é solitário. 7. Que me quereis, se me não dais o que é tão meu?

                            Eugénio de Andrade, Ostinato Rigore, 1964




Creta, José Alves - 2012

sábado, 28 de maio de 2022

Guerra


Max Ernst



Tanto é o sangue

que os rios desistem de seu ritmo,

e o oceano delira

e rejeita as espumas vermelhas.

Tanto é o sangue

que até a lua se levanta horrível,

e erra nos lugares serenos,

sonâmbula de auréolas rubras,

com o fogo do inferno em suas madeixas.

Tanta é a morte

que nem os rostos se conhecem, lado a lado,

e os pedaços de corpo estão por ali como tábuas sem uso.

Oh, os dedos com alianças perdidos na lama…

Os olhos que já não pestanejam com a poeira…

As bocas de recados perdidos…

O coração dado aos vermes, dentro dos densos uniformes…

Tanta é a morte

que só as almas formariam colunas,

as almas desprendidas… — e alcançariam as estrelas.


E as máquinas de entranhas abertas,

e os cadáveres ainda armados,

e a terra com suas flores ardendo,

e os rios espavoridos como tigres, com suas máculas,

e este mar desvairado de incêndios e náufragos,

e a lua alucinada de seu testemunho,

e nós e vós, imunes,

chorando, apenas, sobre fotografias,

— Tudo é um natural armar e desarmar de andaimes

entre tempos vagarosos,

sonhando arquiteturas.


                                         Cecília Meireles, in Mar Absoluto


sexta-feira, 1 de abril de 2022

Europa

 

Adolfo Casais Monteiro



Andam corridos os dias, como a brisa que varre a Ibéria. Do longe, apenas os ecos da guerra como uma hiena estranha que gritasse dos confins da minha planície. O tempo esgueira-se como uma sombra fugidia que se aquieta nas noites breves.
Temos o dever de sair dos pequenos mundos e das fechadas conchas em que nos abrigamos. Chego a olhar com desdém os poemas do "eu" que, agora, preenchem os meus dias de trabalho. O individualismo pós-Moderno não me preenche esteticamente, jamais teve essa capacidade. 
Ocorre-me, então, que alguns dos mais construídos poetas, teóricos e valorosos vultos da cultura portuguesa sempre ficaram excluídos de todos os programas escolares, mesmo os universitários.
Assim, remando contra essas marés, aqui deixo um poeta extraordinário para os dias que habitamos - Adolfo Casais Monteiro.

(excerto)



III

Na erma solidão glacial da treva

os que não morreram velam.


Em vagas sucessivas de descargas

A morte ceifou os nossos irmãos.


O medo ronda,

o ódio espreita.

Todos os homens estão sozinhos.


A madrugada ainda virá?


Vão caindo um a um na luta sem trincheiras,

e a noite parece que não terá nunca madrugada,

mas cada gota de sangue é agora semente de revolta,

da revolta que varrerá da face da terra

os sacerdotes sinistros do terror.

A revolta a florir em esperança

dos braços e das bocas que ficaram...


A traição ronda,

A morte espreita.


Uma comoção de bandeiras ao vento...

Clarins de aurora, ao longe...


Os que não morreram velam.


IV

Eu falo das casas e dos homens,

dos vivos e dos mortos:

do que passa e não volta nunca mais...

Não me venham dizer que estava matematicamente previsto,

ah, não me venha com teorias!

eu vejo a desolação e a fome,

as angústias sem nome,

os pavores marcados para sempre nas faces trágicas das vítimas.

E sei que vejo, sei que imagino apenas uma ínfima,

uma insignificante parcela de tragédia.

Eu, se visse, não acreditava.

Se visse, dava em louco ou em profeta,

dava em chefe de bandidos, em salteador de estrada,

— mas não acreditava!

Olho os homens, as casas e os bichos.

Olho num pasmo sem limites,

e fico sem palavras,

na dor de serem homens que fizeram tudo isto:

esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira,

esta lama de sangue e alma,

de coisa e ser,

e pergunto numa angústia se ainda haverá alguma esperança,

se o ódio sequer servirá para alguma coisa...



Deixai-me chorar — e chorai!

As lágrimas lavarão ao menos a vergonha de estarmos vivos,

de termos sancionado com o nosso silêncio o crime feito instituição,

e enquanto chorarmos talvez julguemos nosso o drama,

por momentos será nosso um pouco de sofrimento alheio,

por um segundo seremos os mortos e os torturados,

os aleijados para toda a vida, os loucos e os encarcerados,

seremos a terra podre de tanto cadáver,

seremos o sangue das árvores,

o ventre doloroso das casas saqueadas,

— sim, por um momento seremos a dor de tudo isto...


Eu não sei porque me caem lágrimas,

porque tremo e que arrepio corre dentro de mim,

eu que não tenho parentes nem amigos na guerra,

eu que sou estrangeiro diante de tudo isto,

eu que estou na minha casa sossegada,

eu que não tenho a guerra à porta,

— eu porque tremo e soluço?


Quem chora em mim, dizei — quem chora em nós?


Tudo aqui vai como um rio farto de conhecer os seus meandros:

As ruas são ruas com gente e automóveis,

Não há sereias a gritar pavores irreprimíveis,

e a miséria é a mesma miséria que já havia...

E se tudo é igual aos dias antigos,

Apesar da Europa à nossa volta, exangue e mártir,

eu pergunto se não estaremos a sonhar que somos gente,

sem irmãos nem consciência, aqui enterrados vivos,

sem nada senão lágrimas que vêm tarde, e uma noite à volta,

uma noite em que nunca chega o alvor da madrugada...


“Europa” de Adolfo Casais Monteiro (Confluência, s.d.) é um poema premonitório. Foi lido aos microfones da BBC, na emissão de língua portuguesa, a 23 de Maio de 1945, por António Pedro. Era o fim da guerra europeia e havia uma grande esperança – a de que, depois da tragédia terrível, que tinha deixado o velho continente exangue, seria possível lançar as bases de uma paz duradoura. Como disse José Augusto Seabra, no prefácio à edição de 1991 (Nova Renascença): “Pela voz forte e timbrada de um intelectual então emigrado, António Pedro, esse poema, da autoria de Adolfo Casais Monteiro, um dos nossos mais corajosos poetas resistentes à ditadura, acordou em quantos o escutavam a esperança de que também para Portugal a hora da liberdade iria soar, na nova Europa que se erguia sobre o sangue e os escombros decorrentes da criminosa aventura totalitária hitleriana”.

                                                                                                                           

Guilherme d' Oliveira Martins



António Pedro, 1940


domingo, 20 de março de 2022

Relatório em forma fechada

 


Inédito, Gastão Cruz


O Poeta partiu, hoje, aos 80 anos.