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segunda-feira, 21 de abril de 2025

Chico-espertice [612]

 


Não devo perder-me
em nevoeiros de abstrações,
pois sei: qualquer teoria
pode ser bela — e o oposto, também.

Ambas cabem
num bem tecido raciocínio,
mas isso, por si só,
nada revela ao mundo.

A mente, por engenhosa que seja,
não tem o direito de esquecer
que demonstrar é despir a realidade,
não vesti-la de argumentos.

Por isso, calo-me
sobre a tal "falta de ética".
Doravante,
para que todos vejam sem véus

e percebam a verdade,
chamar-lhe-ei chico-espertice.

 

 

© Jaime Portela, Abril de 2025


quinta-feira, 17 de abril de 2025

A Via Sacra da Vida [611]

 


A vida é uma nuvem que passa,
desfiando-se ao som do vento
até se perder no horizonte.

 

Da vida,
ficam apenas fragmentos soltos,
torrões esfarelados pela incerteza,
desbotados à distância
pela dúvida míope do que é real.

 

Para quase todos,
a vida resume-se ao saber suado

e rebuscado

ao serviço de feudos ocultos,
como príncipes
que aspiram a um trono que não há.

 

Somos nuvem de um instante,
somos ida sem retorno,
somos memórias que se apagam
pelos caminhos dispersos
da Via Sacra da vida.

 

 

© Jaime Portela, Abril de 2025


segunda-feira, 14 de abril de 2025

Morte pior que a morte [610]



 

O que mais dói, no corpo e na alma,

porque o sentimos pungente,

é a anseio pelas coisas a que não chegamos,

por vezes insignificantes, ilógicas

ou contraditórias como o sol à meia-noite.

 

Esta desordem da mente

algema-nos a um ambiente pesaroso,

num perpétuo caimento num abismo

em que, sabendo-o sem o saber,

sangramos continuamente feridos.

 

Um espaço inóspito encarvoado é, então,

o que germina na alma,

crescendo num desconsolo

mirrado pelo mato viçoso

que come a verdura dos plantios da vida.

 

Tornar as coisas sem peso,

subir a luz até ao nosso olhar

e cortar o mato pela raiz que nos devora

é o melhor caminho

para largar a balsa lenta da ansiedade.

 

Porque não vale a pena sofrer

de uma morte ainda pior que a morte.

 

 

© Jaime Portela, Abril de 2025

segunda-feira, 7 de abril de 2025

O big bang, o buraco negro e Deus [609]

 


Treze mil milhões de anos depois,

aqui estamos nós.

E só há quatro mil milhões de anos

é que moléculas agrupadas em células

construíram a vida.

Ou foi algum cometa que a pariu.

Ou veio de Marte.

Ou foi mesmo Deus que a inventou.

 

Mas tudo e todos acabarão

daqui a mil milhões de anos.

Já não falta muito,

o sol vai explodir

e nada restará do que se pensou

da religião e da política.

Como é o mesmo sol que dá vida

aos abençoados e amaldiçoados,

será a sua ausência que deixará invisível

o nada de santos e pecadores,

o nada de ricos e pobres.

 

Tudo será composto pela soma de nadas

e, na casa do impercetível,

sem portas, janelas e paredes,

dançarão os fantasmas do tempo

ao som das sombras entrópicas

que se arrastam no pó inerte do nada.

 

Oitenta por cento da vida já foi vivida

e o inverno aproxima-se.

Saberemos aceitar a escassez de tudo,

a fadiga prévia do fim

e o desengano crescente dos sonhos?

O buraco negro espera-nos, paciente,

sabendo que lá chegaremos sem vida.

Ou Deus, no Juízo Final,

de braços abertos à vida.

 

 

© Jaime Portela, Abril de 2025


segunda-feira, 31 de março de 2025

A gente [608]

 


A gente irrepreensível dos gentios

é a beleza espiritual da gente que há.

A pobreza não existe quando todos são pobres

e ninguém peca  quando os atos

com e sem pecado se confundem.

 

A gente irrepreensível dos religiosos

é a beleza espiritual da gente que não há.

A riqueza existe quando há pobres

e há pecado enquanto houver pobreza.

 

A gente irrepreensível do nirvana

é a beleza espiritual de não haver gente.

A pobreza e a riqueza

são castas que não se fundem

num estado a que ninguém chega.

 

 

 

© Jaime Portela, Março de 2025


segunda-feira, 24 de março de 2025

Nunca amamos [607]

 


O amor  é, porventura,

o resultado

de uma longínqua influência religiosa.

 

É uma indumentária tecida pela imaginação

para ornamentar outros seres

em que o nosso pensamento se convence

que o enfeitamento lhes serve.

 

Mas não há roupagens eternas e,

mais cedo ou mais tarde,

debaixo do traje da ideia que fizemos,

que se evapora,

vemos a nudez da realidade do ser humano.

 

O amor, então,

é uma vereda para o desencanto,

que só não o é

se determinarmos mudar de fantasia

a cada passo

para que se atualize a aparência

do ser por nós vestido.

 

Na verdade, nunca amamos,

amamos o conceito que temos de alguém.

 

 

© Jaime Portela, Março de 2025


segunda-feira, 17 de março de 2025

O jogo da vida [606]

 


Num naipe desconhecido,

porque o baralho é descomunal,

somos uma das cartas

cujo valor comparado ignoramos,

a menos que sejamos atletas.

 

A comparação é impossível,

somos quase cegos com dúvidas

e não conhecemos o jogo dos outros

por não sabermos se fazem bluff

ou se dizem a verdade.

 

Vamos, então,

tomando as imagens por realidade

ao ponto de suspeitarmos

se o que somos é uma representação

de uma outra identidade.

 

E é com a incerteza dos trunfos

da ficção que nos acompanha

que o jogo continua de facto,

mas sem prognósticos fiáveis.

 

 

 

 

 

© Jaime Portela, Março de 2025


segunda-feira, 10 de março de 2025

A felicidade [605]

 


Resignação é submissão,

é desistir de querer mais e melhor.

Mas se o vencedor fica conformado

depois da insatisfação que o levou à vitória,

também fica submisso à sua nova condição.

 

Os triunfadores, quando satisfeitos,

perdem os atributos que os impulsionaram

para a tenacidade que lhes deu o sucesso.

 

A satisfação

é apanágio dos conformados

que não têm a fibra do vencedor.

Mas os satisfeitos aparentam ser felizes.

E os insatisfeitos, serão felizes?

 

Será que a felicidade é uma herança

do sangue, da paisagem ou do clima

ou é uma conta feita noutra balança

que por instinto vem ao de cima?

 

 

 

© Jaime Portela, Março de 2025