Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Chuva


Guarda-Chuva. Rafal Olbinski. 2017


Chove como sempre. E,
sempre que chove,
as pessoas abrigam-se
(as que não estavam à
espera que chovesse);
ou abrem, simplesmente,
o chapéu-de-chuva - de
preferência com fecho
automático. Porque, quando
chove, todos temos de
fazer alguma coisa: até
nós, que estamos dentro
de casa. Vão, uns, até
à janela, comentando:
"Que Inverno!"; sentam-se,
outros, com um papel
à frente: e escrevem
um poema, como este.


Nuno Júdice, "Um Canto na Espessura do Tempo", 1992

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Íamos ao "cabeço"

 

Suíça, 2021


    Por aqueles dias, íamos ao alto da montanha, a pé deslizando num mundo tão organizado e diferente do nosso...poderíamos ser felizes, ali.
  Um ar límpido, uma ruralidade a rodear a mais cosmopolita urbanidade de Zurique. Conversávamos, admirando as quintas, parávamos aqui e ali para comprar ovos, sumo de maçãs...conforme a época do ano e a disponibilidade.
    Ao longe, a neve cobria as montanhas, mas a temperatura transalpina era tépida. Revigorados, descíamos à cidade e, as memórias de dias felizes alimentam-nos ainda os sonhos.
    Dizíamos, "Se eles cá ficarem, talvez nos mudemos.".
  Tudo tão alinhado, sem ser hirto, tão limpo sem assepsia exagerada. Tudo tão multicultural, na sua diversidade. Tudo tão regrado, no respeito pelos indivíduos.
    E, nós, testados até ao excesso, sabíamos que outro teste nos esperava para podermos regressar à república que fala uma única Língua, que tem fronteiras tão velhinhas, História tão longa, clima tão cheio de Sol, debruçado sobre o mar...império caído das páginas do sangue escravo...estagnado no bolor da sua História.
 Estamos de regresso ao país do Sol, ao Sul.
 

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Em que ano estamos?


Gate of All Nations, Persepolis, Irão



"Mas, francamente: fé em quê? Num mundo que almoça valores, janta valores, ceia valores, e os degrada cinicamente, sem qualquer estremecimento da consciência? Peçam-me tudo, menos que tape os olhos. Bem basta quando a terra nos cobrir!"

TORGA, Miguel, Diário, 1947    

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Poema do Silêncio, José Régio

 

Ferragudo, Praia Grande - 2025


Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
- Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...

O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.

Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!

Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, maniatado, iluminado.

Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!

Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.

Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista...

Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...

Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome.

José Régio, in As Encruzilhadas de Deus


    Depois de dias absorvidos pelo cuidado e pela família, estou de regresso. Aos poucos, irei visitando os @migos.

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Dias de Outubro

 

Pandorea jasminoide - Cá de casa - Outubro, 2025


    São plenos de recomeço e de uma doçura, que de longe nos espreita, estes dias de Outubro. Suaves, mas não serenos, na sua contradição nostálgica. Caminhamos sobre o calor esbraseado do Verão que findou e as guerras que, de perto nos espreitam, ecoam e cravam-nos lâminas de impotência sem limites.
    As memórias semeiam a nostalgia dos que partiram e, o Amor que nos legaram, põem-nos uma fortaleza de Esperança no peito cansado. Somos os herdeiros desta brisa que os ares adoça. Cedermos à fraqueza foi-nos vedado. Somos humanos, carregamos a Vida.
    Os nossos jasmins, suaves e odorosos, resistem ainda. Desistir, nunca será uma possibilidade! Talvez o ocaso nos espreite, mas a que distância? A viagem ainda decorre: sigamos estes voos que se atiram nos ares e, no vórtice dos abismos, deixemos flutuar o porvir.