21 março 2025

bertolt brecht / os tempos modernos




 
Os tempos modernos não começam de uma vez por todas.
Meu avô já vivia numa época nova,
Meu neto talvez ainda viva na antiga.
 
 
A carne nova come-se com velhos garfos.
 
 
Época nova não a fizeram os automóveis
Nem os tanques
Nem os aviões sobre os telhados
Nem os bombardeiros.
 
 
As novas antenas continuaram a difundir as velhas asneiras.
A sabedoria continuou a passar de boca em boca.
 
 
 
bertolt brecht
poemas
selecção e trad. de arnaldo saraiva
presença
1976







 

20 março 2025

anna akhmatova / no quadragésimo ano

 
 
 
1.
 
Quando sepultam uma época,
O salmo fúnebre não soa,
Às urtigas, aos cardos
Caberá enfeitá-la.
E apenas os coveiros vivazes
Trabalham. As coisas não esperam!
E um silêncio, Senhor, um silêncio tal
Que se ouve o tempo passar.
Mas depois ela assoma,
Como um cadáver no rio primaveril, –
O filho, todavia, não reconhecerá a mãe.
E o neto desviará os olhos com enfado.
E as cabeças inclinam-se mais,
Como um pêndulo a lua move-se.
 
E eis – sobre Paris tombada
Agora um silêncio destes.
 
5 de Agosto de 1940
 
 
anna akhmatova
poemas
trad. joaquim manuel magalhães e
vadim dmitriev
relógio d´água
2003
 




19 março 2025

antónio franco alexandre / esta esquisita prova me tentou

 
 
 
esta esquisita prova me tentou
de tecer um rumor em muros de água
ossos de terra calcinada
o jugo
 
culpado me castigo com engenho
e da voz desenhada o artifício
restos de pele antiga
no laço da armadilha
 
em silêncio me muro e me demoro
no cálculo de rotas inexactas
 
um duro arbítrio quer que me desprenda
dos cinco ou mais sentidos
vou ser livre na terra desnudada
vou dizer o que sei como quem mente.
 
 
 
antónio franco alexandre
a pequena face
assírio & alvim
1983
 



18 março 2025

luís miguel nava / contra os flashes

 
 
 
É terra doutro o corpo dum rapaz, o leite amarrotado nele o incêndio corre contra os flashes, mínimo relâmpago de terra o poço da alegria.
 
As paisagens os miúdos reúnem-nas à mão, a miniatura delas é o seu rosto. Voltam-se as paisagens como as páginas.
 
Um deles, força macia, ensanguentado e verde inquina-se na luz, uma fralda de incêndio há-de escorrer-lhe pelos lábios.
 
Eis o rosto, eis o poço, põem-se as imagens como toalhas, as pequenas pedras deflagrando.
 
Os miúdos a nudez destrói-os nesses lábios.
 
 
luís miguel nava
películas
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002
 




17 março 2025

isabel meyreles / o livro do tigre

 
 
 
                       II
 
Existe em Lisboa
uma máquina cruel
que permanentemente aguça
os dentes virtuais
na alma indecisa
dos pobres mortais.
Esta máquina excepcional
tritura
esmaga
sacode
revolve
molda
anula
e expulsa
o quê?
Capachos.
 
 
 
isabel meyreles
poesia
o livro do tigre 1976
tradução de isabel meyreles
quasi
2004




 

16 março 2025

inês lourenço / crónicas




 

 
Mulheres de canastra à cabeça, que num recôncavo
de esquina, não calcetada, onde uma nesga
de terra desmentia o urbanismo
invasor, mijavam de pé
com rara pontaria dissimulando
entre as grossas saias, as
pernas afastadas. Não usavam cuecas
tal como uma modelo da Vogue,
cujo profundo decote dorsal,
prolongado abaixo da cintura,
as abolia.
 
Coincidências
da baixa plebe
e da alta-costura.
 
 
 
inês lourenço
o segundo olhar
companhia das ilhas
2015
 



 

15 março 2025

filipa leal / os velhos são manhosos

 



 

 

Os velhos são manhosos.
 
Demoram-se a apanhar a fruta, sabem
que sabem esticar o braço antigo até aos primeiros figos,
que podem saber chegar ao fim da figueira.
Os velhos arrastam os pés em direcção à saída,
esgotam-se ao sol seguinte.
Cortam-se por vezes no vidro de emergência,
no buraco para o exterior.
Têm visões extraordinárias,
Receitas específicas para o barroco do poema
e do mel.
 
Escrevo para os velhos.
 
 
 
filipa leal
vem à quinta-feira
assírio & alvim
2016

 




14 março 2025

antónio gancho / começo logo de manhã

 
 
 
COMEÇO LOGO de manhã
a fazer o poema
e o sol nasce e abre o tema
não é meu lema escrever o sol
mas é meu lema escrever o poema
para o poema inspiro-me em ti
para o nascer do sol também previ.
o poema és tu
ao sol nu.
a natureza avança
são já horas vou acabar
escrever poesia cansa
e tu estás-me a pensar.
dança o dia quase pronto
escrever o poema cansa
e eu conto e cansa-me o que eu conto.
o poema és tu
o sol nasce
é manhã
nu.
 
 
 
antónio gancho
poemas digitais (jun. / jul. 89)
o ar da manhã
assírio & alvim
1995




13 março 2025

armando silva carvalho / soneto

 
 
 
Não há que descobrir ó Luiz Vaz
que vejo num retrato destroçado
se as tuas diatribes de rapaz
são parte acidental do mesmo Fado
 
que qualquer sabe do que é capaz
ao mentir tanto e tanto andar parado
nas paredes do tempo arrepiado
daquilo que se fez ou não se faz
 
quando chegado o tempo dos sem versos
de espelhos para espelhos se passeia
o percurso dos meus olhos perversos
 
que são estas palavras já de areia
distintas também elas dos diversos
sentidos que ninguém nada nomeia
 
 
 
armando silva carvalho
alexandre bissexto, 1983
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007
 



12 março 2025

antónio josé forte / o degolado

 
 
 
O degolado que dizia
que ficara sem cabeça
por causa da poesia
 
o degolado que gritava
por causa da mulher
que era quem mais amava
 
o degolado que gemia
por causa do silêncio
que à sua volta havia
 
o degolado que parecia
que quanto mais calava
mais ele enrouquecia
 
o degolado que sorria
com a língua de fora
e uma lágrima de alegria
 
o degolado que ainda olhava
mas que já não via
a morte que o matava
 
o degolado de olhos tortos
e revirados para o céu
como os de todos os mortos
 
 
 
antónio josé forte
uma faca nos dentes
parceria a. m . pereira
2003




11 março 2025

gonçalo m. tavares / o sol

 
 
 
Na infância o sol era um companheiro mais alto,
Que aparecera primeiro no campo de futebol, e aí, parado,
Guardava as costas da baliza e a erva que se tornava quente.
Como se o sol fosse de facto um instrumento de cozinha,
Aperfeiçoado, antigo, mas instrumento, matéria
Que os meninos agarravam com os dedos e cuja
Intensidade podiam por vontade própria regular.
Por exemplo: quando a luz era excessiva
Os dedos protegiam os olhos. Outras vezes
O corpo parecia a conclusão
Natural, instintiva, do calor que vinha de cima:
Recebíamos o sol como o ponto final recebe
Uma frase. Fazia mais sol quendo eu tinha seis anos
(quem o fazia?) ou com o tempo e o tédio
Me fui distraindo?
 
 
 
gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004




 

10 março 2025

fernando alves dos santos / lenda das donzelas presas

  
 
Na memória das pequenas povoações
reencontra-se o cântico
que incendeia o restolho
onde se acoitam as bruxas.
Ouvem-no as pessoas imóveis
junto ao eremitério
construído sobre os cadáveres dos soldados
que ali morreram na resignação
às ordens dos generais.
 
As donzelas cantam o deserto que amamentam
nos seus cabelos compridos.
As donzelas cantam nas janelas das prisões.
 
 
 
 
fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005





09 março 2025

fernando assis pacheco / sem que soubesses

 
 
 
Falei de ti com as palavras mais limpas,
viajei, sem que soubesses, no teu interior.
Fiz-me degrau para pisares, mesa para comeres,
tropeçavas em mim e eu era uma sombra
ali posta para não reparares em mim.
 
Andei pelas praças anunciando o teu nome,
chamei-te barco, flor, incêndio, madrugada.
Em tudo o mais usei da parcimónia
a que me forçava aquele ardor exclusivo.
 
Hoje os versos são para entenderes.
Reparto contigo um óleo inesgotável
que trouxe escondido aceso na minha lâmpada
brilhando sem que soubesses, por tudo o que fazias.
 
 
 
fernando assis pacheco
cuidar dos vivos (1963)
a musa irregular
tinta-da-china
2019