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sábado, 15 de junho de 2024

Entrevista: Isac Graça, actor de Pedágio: "Os violentadores da liberdade alheia adoram ser levados a sério, e o filme não faz isso"

A propósito da estreia da produção luso-brasileira Pedágio, de Carolina Markowicz, sobre a qual já escrevemos no blog, entrevistámos o actor português Isac Graça, que no filme veste a pele de um Pastor estrangeiro "especialista" em terapias de conversão sexual. Falámos sobre o filme, sobre o desafio de interpretar esta personagem e desvendámos alguns dos seus projectos futuros. 

Como surgiu a oportunidade de fazer parte de Pedágio?

Isac Graça: Foi um golpe de sorte. Quando foi anunciado que A Viagem de Pedro, da Laís Bodanzky, ia estrear no Festival de São Paulo, tive uma sensação qualquer de que era essencial ir, e tenho aprendido a não ignorar essas sensações. Uma vez lá, a estreia correu particularmente bem. No dia a seguir passei umas horas no Museu de Arte Contemporânea da cidade, e estava a voltar para o hotel num táxi, cheio de dores nos pés, quando o Luís Urbano (produtor d'O Som e a Fúria) me liga a dizer que precisava de falar comigo. Enquanto eu estava no Museu, ele e a Karen Castanho (produtora brasileira da Biônica) tinham tido um almoço com a Carolina Markowicz, que não estava a encontrar o actor para o Pastor, sugeriram-me, e apesar de eu não ter a idade da ideia inicial para a personagem, a Carolina aceitou encontrar-se comigo essa noite. O Urbano disse-me para não ir com expectativas, e assim fiz. Tomei um banho, fiz uma sesta, e fui, e a conversa correu bem. Na manhã seguinte - voltava para Lisboa ao início da tarde - estava a acabar de tomar um bruto pequeno-almoço para me aguentar no voo, o Luis volta a ligar-me a dizer que a Carolina tinha ficado interessada em mim e que me queria fazer uma audição. Eu disse que sim (apesar de ainda não ter lido nada do guião), pedi só um tempo para fazer as malas. Fi-las, check out, meteram-me num táxi, e fui para o outro lado de São Paulo fazer a audição. Atiraram-me umas cenas para cima da mesa, fiz as cenas. Voltei ao hotel e fomos directos para o aeroporto. Nesse táxi, o Luís recebeu uma mensagem a dizer que eu tinha ficado com o trabalho.

Depois de teres sido o absolutista D. Miguel em A Viagem de Pedro, voltas agora a interpretar mais um vilão noutra produção luso-brasileira. Fala-me um pouco deste Pastor Isaac e de como te preparaste para o papel. Quais os principais desafios da personagem?

Isac Graça: Eu não parto do princípio que faço vilões, embora em ambos casos tenha total lucidez que o seu papel na narrativa é antagónico, e que, modo geral, são personagens longe da minha ética. Parto do princípio que interpreto seres humanos, por mais que a sua linha geral seja a do Mal (que é sempre algo muito discutível), logo, nos processos, encho-os de pequenos detalhes de vulnerabilidade, de contradições, de nuances dúbias, e, claro, esforço-me por descobrir os porquês de serem como são. No caso do Pastor Isaac, já que o objectivo era satirizar, e em última instância, construir a personagem para a destruir, tive de clarificar mesmo tudo. E tornou-se claro que era alguém que fazia o que fazia não só por alinhar com um certo senso comum intolerante com divergência sexual (possivelmente até recusando a sua própria identidade), como por uma coisa que é comum à maioria das pessoas num mundo capitalista: fazer dinheiro enquanto coisa mais importante da vida. Eu, sendo cristão, ainda que sem ligação a igrejas específicas, parto do princípio que é preciso cuidado com a ganância financeira, que o dinheiro eventualmente pode corromper o espírito, que é algo que traz consequências nefastas e certos castigos, como o que acontece no filme (sem fazer spoiler), portanto tive muita dificuldade em construir a mente de uma pessoa que não se aceita a si nem aos outros, e que vive em prol do dinheiro. Só porque para mim isso é bizarro. Mas não podia fazer um capitalista geral, porque há milhares de tipos de capitalista, então afunilei a construção nos vendedores da banha da cobra e nos populistas, pessoas que vejo como sendo uma espécie de extrema-direita menos assumida, mais cool e modernizada, que na verdade podemos encontrar em qualquer partido político, e na rua, e a fazer scroll no Youtube ou no Instagram. Confrontei-me com essa hipótese, que tive de assumir que existe em mim, algo que tornou a construção íntima e violenta, polvilhei-a de referências reais, e pronto, acaba por ser tanta coisa que estás a tratar, que nem reparas e já estás com uma câmara em cima a fazer o filme.

Como foi a experiência de filmar fora de Portugal?

Isac Graça: Aterradora, por não conhecer bem ninguém na equipa, sendo o único português no set, e estando com o Oceano Atlântico a separar-me de casa. Felizmente, a Carolina deixou-me assistir a um dia de rodagem antes de começar a sequência do Pastor, pedi-lhe isso porque precisava de entender o tom do filme, e isso ajudou-me a estruturar e não me sentir fora. No dia da minha primeira cena, fui para o set uma hora e meia antes, e fiquei por lá a lidar, a criar mise-en-scene e a pensar e repensar decisões, e quando dei conta, já tínhamos filmado a cena. Mas não fugi do medo. Abracei-o.

Do que mais gostas em Pedágio?

Isac Graça: Eu acho o filme todo muito sólido. É uma história acessível para toda a gente, aquele eterno drama de desentendimento entre pais e filhos, mas com um ponto de vista da direcção muito enviesado, o que torna o filme mais cru e cruel. E gosto da coragem de ir mudando de tom, tens o lado dramático, o satírico e um quase de thriller de acção, mas dentro destes tons, aquele de gosto mais, porque acho uma arma mais eficaz contra a intolerância, é o satírico. Os violentadores da liberdade alheia adoram ser levados a sério, e o filme não faz isso. E como deixa meia dúzia de gatos pingados do gatekeeping mais desconfortáveis, recusando-o, deixa-me a mim bem-disposto. Acho a recusa do humor um tique de classe. Há muita gente bem mais conservadora do que se diz, profundamente classista, que ainda acha que o humor satírico é um género menor, porque, na sua génese, é a grande arma da classe trabalhadora. Eu diria que não entendem a força do humor. Ou que lhe querem pôr rédeas. Só que não vai acontecer. E o problema acaba por ser deles, porque ao recusarem o humor do filme, o tiro é-lhes direccionado, e aí não há status quo que os possa salvar.

Foi apenas no final de 2023 que o Parlamento português aprovou a lei que criminaliza as práticas de conversão sexual. No Brasil, ainda não é bem assim. Qual é, para ti, a importância de filmes como Pedágio nos dias que correm, em tempos de tanta intolerância e extremismos?

Isac Graça: Todo o Cinema é político, muitas vezes não tem é coragem de se posicionar, e quando não se posiciona, alinha com o Poder. Mas aí questiono-me se é Cinema. E não sei. Ao menos o Cinema de propaganda estatal é assumido, sabemos com o que contar. E de resto, o Cinema resvala sempre para a realidade, nem precisa de ter estreado ainda para isso começar a acontecer. Atrás eu dizia que, a par com a realizadora, construí a personagem para a destruir. No dia em que filmei a última cena do Pastor, lembro-me de pensar "Okay, estou a dar o corpo às balas. É um momento de queda. Mas não vou cair sozinho." E nesse dia, no set, pensei em dezenas de pessoas que, de certa forma, são o Pastor. A seguir ao filme caí numa espiral de tristeza que me destruiu, isto na realidade. O que de alguma forma me salvou foi saber, no fundo, que iria valer a pena. E a verdade é que, ao longo do período de montagem, e de exibição do filme, desde Toronto em Setembro, têm caído todas as pessoas em que pensei naquele dia, uma por uma. É que o Cinema vem da realidade para depois voltar para ela.

Começaste no teatro e desde então tens participado em muitos projectos no cinema e na televisão. A tua carreira tem crescido muito nos últimos anos. Ainda o mês passado estiveste em Cannes com a equipa de Mau por um Momento, de Daniel Soares, que recebeu uma menção honrosa no festival. Que personagens mais te marcaram até agora e porquê?

Isac Graça: Todas têm contribuído para este meu processo ininterrupto de construção e reconstrução da minha identidade enquanto cidadão, e por isso nutro carinho por todas elas. No outro dia, um amigo perguntou-me, numa viagem de carro, quantas personagens já tinha feito. Contabilizei, com algum esforço, e vou em cerca de 50 pessoas, todas com o seu lado lunar e com as suas coisas boas também. Mas a verdade é que não quero escolher nenhuma, porque acredito, sinceramente, que ainda estou a começar. A procissão ainda vai no adro.

E sobre os teus próximos projectos, o que é que já podes revelar?

Isac Graça: Além do Mau por um Momento que vai começar a rodar as capelinhas dos festivais depois da estreia em Cannes, tenho dois projectos muito distintos do Ivo M. Ferreira a sair, O Americano e o Projecto Global, com personagens muito complexas, mas ainda não sei quando. E o filme do Paulo Alexandre Mota, que estive três anos a filmar, e esteve em montagem durante anos a fio, o Paulo teve um processo muito solitário e paciente com o filme, que na verdade foi o meu primeiro, e cuja última montagem que vi amo muito, e tenho muita vontade de mostrar às pessoas. E pronto, estou a ensaiar um espectáculo, e envolvido em duas rodagens de filmes, uma em breve, a outra para o ano, mas não quero falar sobre isso.

domingo, 5 de maio de 2024

Entrevista: Rui Simões, realizador de Primeira Obra: "Não há nada como amar o outro"

A propósito da estreia de Primeira Obra, a sua primeira longa-metragem de ficção, estivemos à conversa com o realizador Rui Simões, um dos cineastas da Revolução que, tal como ela, completa este ano 50 anos de carreira, e 80 de vida. Falámos sobre Primeira Obra, sobre o seu percurso no documentário, sobre os seus icónicos filmes Deus Pátria Autoridade (1976) e Bom Povo Português (1980), as suas repercussões nos dias de hoje, e muito mais.

Depois de tantos anos nos documentários, o que o levou a realizar agora o seu primeiro filme de ficção? Foi a sucessiva falta de financiamento público, que foi adiando esta incursão pela ficção? Já li algumas entrevistas em que falou muito dessa questão.

Rui Simões: Eu sempre quis fazer ficção, aliás, a minha formação é de ficção, não é de documentário. Eu andei numa escola de cinema clássica, uma escola com mais de 60 anos de existência. Na altura, o cinema era o cinema de ficção. Os documentários ou tudo o que tinha a ver com o real estava mais ligado ao aparecimento das televisões, aos repórteres, aos jornalistas, portanto o documentário ainda não era aquilo que hoje é. Na altura, nós nem sequer tínhamos formação nenhuma em relação ao documentário, nem sequer fazíamos documentários na escola. A minha formação era toda de ficção e os filmes que eu faço na escola, exercícios, são de ficção. Quando chego a Portugal, depois do 25 de Abril, eu quero é filmar a Revolução, não me interessa se é ficção, se é documentário: é Cinema. O que acontece é que as pessoas que decidem neste país não entenderam assim durante 40 anos. Não entenderam por quê? Porque lhes deu jeito não entender. É uma atitude política muito clara. Se eu agora fosse analisar todos os júris, ao longo de 40 anos, que disseram nas suas notas que eu era um documentarista e por isso não podia fazer ficção, seria interessante e eu ia-me rir. Espero que um dia um jovem, lusodescendente ou mesmo português, faça essa pesquisa e analise por que é que, ao longo de 40 anos, eu fui posto de lado em relação à ficção. Ao fim de ter feito os meus dois filmes documentários, o Deus Pátria [Autoridade] e o Bom Povo [Português], estive 22 anos sem fazer nem ficção nem documentário, portanto, aí foi mesmo politicamente para arrasar. Quem é que estava no poder durante esses 22 anos? Quais é que foram os júris que foram nomeados? Quais é que foram os presidentes do Instituto do Cinema? Será que os portugueses mudaram e agora são outros? A população mudou? Enfim, outros cineastas, que fizeram tanto documentário como ficção, continuaram as suas carreiras e outros não. Eu sou daqueles que não, sou dos que foi penalizado pela História. Portanto, eu não tenho, nem tinha, aversão nenhuma à ficção. Pelo contrário. Assim que acabei o Bom Povo Português, em 1980, que foi quando estreou, vou logo a concurso com o Animatógrafo, com o António da Cunha Telles, por uma longa-metragem de ficção que se chamava La Reigne Morte, que era a adaptação de [Henry de] Montherlant, da nossa história de amor entre Pedro e Inês. Era uma história que eu achava interessante ser mostrada em cinema, mas como versão francesa, ou seja, o olhar de um grande escritor clássico francês sobre uma história de amor portuguesa. Que voltas é que ele dava para escrever sobre nós uma história tão íntima e tão forte como essa que marca a nossa cultura. E chegámos a falar com Jack Lang, que era o Ministro da Cultura [francês] na altura, encontramo-lo na ilha da Madeira, num encontro de cinema que houve. Ele abriu as portas para nos ajudar em França, só me pediu que eu respeitasse o texto na íntegra e eu disse que sim, claro. Não ganhou. Voltei a apresentar, acho que mais um ano. Depois mudei de tema, apresentei um outro projecto e depois outro, e depois outro. E, às tantas, a gente percebe que não vai passar dali. Ultimamente, já também um bocado chateado com isto tudo, foi um bocadinho tipo provocação: já que me consideram um documentarista e o documentarista do 25 de Abril, da Revolução, então vou fazer uma coisa sobre mim mesmo e sobre o meu cinema de Abril. E assim foi. Escrevemos uma história, baseada na minha própria história, que é a Primeira Obra. E é essa que ganha. Portanto, ao ganhar, permite-me fazer e chegar às salas em breve e andar por aí a mostrar o filme.

E entretanto criou a sua produtora…

Rui Simões: Sim, isso já vão muitos anos. Criei a minha produtora porque eu não conseguia trabalhar em cinema. Trabalhava para outros, ou como director de produção, para o Animatógrafo trabalhei muito, trabalhei em produções internacionais em vários cargos diferentes, fui assistente de realização de vários cineastas, inclusivamente de um português que, a dado momento, pediu para eu fazer a assistência de realização, que foi António Pedro Vasconcelos, numa série internacional que ele fez, porque eu estava ligado a essa série com um outro realizador chileno e então aproveitou-se e passei de uma equipa para a outra e gostava de fazer isso tudo. Portanto, trabalhava para outras produtoras, trabalhei para o Manuel Costa e Silva, na montagem de uma grande produção americana, como assistente, tinha alguns colegas que me conseguiram encaixar e assim pude ir trabalhando, mas as coisas não eram fáceis porque o que eu queria mesmo era fazer cinema. Tive de mudar a minha vida, mudar de cidade, deixei Lisboa, porque não conseguia pagar uma casa em Lisboa. Fui para a zona de Sintra, que era uma zona muito barata na altura, para uma aldeiazinha pequenina, e demorou tudo muito tempo até voltar outra vez ao cinema. Montei esta produtora, primeiro com um desejo de produzir outros, para vir um dia a produzir-me a mim próprio. E comecei a trabalhar nesse sentido, a apresentar os meus projectos em nome dessa produtora, projectos de outros, todos jovens, que procuravam alguém que os organizasse e lhes conseguisse financiamento para fazerem os seus filmes, e a Real Ficção transformou-se na produtora que é hoje, uma produtora estável, com muito realizadores à volta, com muitas produções, tanto documentais como de ficção. Ultrapassou-se, de certa maneira, a minha situação individual. Durante muitos anos, eu continuei a não fazer filmes, mas conseguia que os outros fizessem. Por isso, também foi gratificante, porque ajudava, colaborava. Estava na minha casa a trabalhar aquilo que eu gostava e podia escolher os projectos. E a Real Ficção nasceu assim.

Primeira Obra

A personagem interpretada por António Fonseca, o Simão, representa o lado mais autobiográfico de Primeira Obra. Como foi construir esta espécie de alter-ego? E como se deu a escolha de António Fonseca para o papel?

Rui Simões: António Fonseca foi uma boa escolha e não foi minha. Eu estava à procura e estava com dúvidas e também não queria ninguém que fosse óbvio [para o papel]. No fundo, era um pouco a ideia: há actores fantásticos e há actores muito conhecidos, mas eu não queria um actor muito óbvio. Eu também não sou muito óbvio como pessoa e, por isso, não me revejo muito nos actores que estavam mais presentes. Tinha algumas ideias, aliás, a minha primeira ideia, e eu nunca disse isto a ninguém mas posso dizer, a minha primeira ideia como actor para este papel era o João Perry, por quem eu tenho uma admiração imensa. Não sendo possível o João Perry, e em conversa com o meu amigo João Brites, ele aconselhou-me o António Fonseca. Eu não conhecia muito bem o António Fonseca e fui à procura dos trabalhos dele, fui ver as peças que ele fez. Ele tinha uma peça [em cena] na altura e eu fui assistir, ainda por cima está a trabalhar com um actor que eu gosto muito também que é o Pedro Gil, e estavam na peça os dois. Naquele encontro, convidei logo os dois, ele e o Pedro Gil, para o filme. O Pedro Gil não podia porque já estava comprometido, e tive de fazer um casting para o papel do jovem, o Michel. Com o António Fonseca, tivemos uma conversa, conheci-o, pedi-lhe para vir a minha casa, no Ribatejo, porque era lá que se iam passar as filmagens maiores e era a casa onde ele ia habitar. Eu queria que ele conhecesse a casa, que estivesse à vontade, que cozinhasse ali, que fosse apanhar laranjas, e foi o que ele fez. Veio ter comigo e habituou-se àquela ideia de estar na sua própria casa, e começou a ver os meus gestos, a falar comigo e a ver-me em família e foi assim. No trabalho com o António não foi necessário eu estar a dirigir propriamente ao detalhe. Raramente ele não me agradou nas suas propostas, se havia alguma coisa que era necessário corrigir foi muito pouco mesmo. Eu tinha avisado o António que eu gostava de trabalhar improvisando muito. E ele disse: “Ah, isso é o que eu mais gosto!”. Eu avisava sempre todos os atores com quem eu trabalhei: quero improvisar. Nós temos um guião, temos uma história para contar, temos diálogos, temos tudo escrito, mas na hora da verdade eu não quero isso. Ou seja, eu quero isso, mas sem ser visível a interpretação do actor, quero isso mais espontâneo, mais natural, por isso nem sequer são obrigados a respeitar os diálogos. Até porque isto não era nenhum clássico, não era nenhum texto de rigor. Desde que não traísse as minhas ideias, eu aceitava, até podiam por ideias próprias. E [o António Fonseca] mete ideias suas e inventa na hora, improvisa e tal. A relação com ele foi excelente porque ele é uma pessoa excelente e quando as pessoas são excelentes, as relações entre pessoas são sempre excelentes, é impossível não serem boas. Ele é uma pessoa fantástica e eu tive um enorme prazer em trabalhar com ele. E agradeço ao meu amigo João Brites porque foi ele que me sugeriu o António. O João é mais experiente neste relacionamento com os actores, mesmo que seja pelo lado do teatro. Mas eu estava e estou arredado de contacto com os actores. Ao longo da vida, não pude ter o contacto que gostaria de ter tido. Conheço muitos, é evidente, mas não tenho aquele contacto quotidiano com os actores.

A certo momento, no filme, o protagonista faz um tratamento de radioterapia. O Rui filma esse tratamento e, na minha opinião, ali surge algo com uma aura quase metafísica. 

Rui Simões: Mas não é. É uma coisa real. É tão real porque me aconteceu a mim, por isso é que está ali. Como o espectador vê depois, não sei, mas o que está ali de facto é uma resposta às minhas preocupações. Quando faço este filme estou muito fragilizado. Tinha acabado de fazer justamente essas sessões que foram muitas, foram 40. 40 sessões de radio é uma coisa que só quem passa por lá é que sabe e pode explicar. É muito violento, perdemos muitas forças, energias, ficamos marcados. Mas é um processo mais psicológico, é um processo complicado de aceitar. Primeiro não aceitei, por isso também no filme há aquela reacção [do Simão], que foi a minha reacção, de facto, eu não quis deixar, queria ir-me embora. Ainda por cima, estamos presos ali, agarrados, aquilo é muito estranho como situação. Depois aquela máscara que foi preparada e feita à medida antes. Tudo aquilo é claustrofóbico, é assustador. Nós não temos também informação, talvez porque seja essa a ideia dos médicos, de não dar muita informação, não sei. O que é certo é que impressiona bastante e fragilizou-me muito. Quando faço o filme estou, de facto, muito fragilizado. Este filme foi muito difícil de fazer por causa disso. Tenho que agradecer à minha equipa que me levava quase ao colo para o plateau, todos os dias, e quando eu chegava com alguma energia rapidamente tinha que me sentar. Fui muito protegido e o filme – e a produção que o diga – não é um filme fácil porque estamos sempre a saltar de décor para décor, o filme nunca está num sítio, parece que está tudo muito calmo, mas não, o filme cada dia é num sitio quase, e isso para a produção é horrível. Não é uma coisa onde a gente se instala e fica ali uma semana a filmar. Nem pensar. Por isso, essas imagens tinham que estar no filme. Não estava decidido que era assim como aparece exatamente, depois a montagem é que acaba por construir.

Mas sinto que há ali uma simbologia e agora o Rui também já me explicou qual seria essa simbologia….

Rui Simões: Sim, no fundo também é trazer o real para a ficção, que é a minha luta de sempre. O que me marca da vida é a realidade e a ficção, por isso é que a minha produtora se chama Real Ficção. Por isso é que eu nunca fiz ficção, por causa do real, e agora que estou a fazer ficção, só posso fazer é real. Portanto, é um pouco todo este jogo à volta destas preocupações. 

Em Primeira Obra, toca na memória do cinema pós-25 de Abril, na revisitação da sua carreira, mas também no activismo ambiental e no amor. Quais as principais mensagens que pretende transmitir ao público com este filme?

Rui Simões: A principal mensagem é mesmo essa do amor. Amor não no sentido do casalinho que eu mostro, mas amor no sentido de amor à humanidade, ao Homem ou à Mulher, à identidade… porque se não houver esse amor a autodestruição está aí. O amor parece ridículo, mas é mesmo assim, é a única mensagem importante que eu tenho para dar, apesar de todos os meus filmes sempre terem tido temas como a luta de classes, problemas sociais, a pobreza, a miséria, a saúde mental, a periferia, os imigrantes… Sempre fiz um cinema muito social, muito político e, não é que este deixe de o ser, tem isso tudo também, mas, de facto, a ideia é pensar que não há nada como amar o outro. É essa a conclusão. Sem deixar de pensar na exploração, na luta das mulheres, como se está na escola, das jovens a lutar pelo seu estatuto dentro do cinema, a luta pelo ambiente… Esta menina [Susy, interpretada por Ulé Baldé] que é ambientalista, como estes jovens que estão, de facto, aí a chamar a atenção que alguma coisa não está bem. Acredito mesmo que é por aí que vai passar o futuro da humanidade e acho que eles têm uma noção de amor muito forte e muito presente, mais que os adultos, ou que os velhos, que já não têm noção nenhuma de amor e que estão a autodestruir-se e a destruir o planeta.

Primeira Obra

Depois de Ilha da Cova da Moura, o Rui regressa ao bairro através de Michel, protagonista de Primeira Obra. Como chegou à Cova da Moura, em 2010, e como foi este breve regresso, quase turístico, no filme de 2024, nas festas do Kola San Jon?

Rui Simões: Não só. Eu fiz duas longas-metragens e duas curtas na Cova da Moura: fiz Ilha da Cova da Moura, Kola San Jon – uma viagem a cabo verde com os imigrantes -, fiz Viagem a Madrid, ao plateau do Carlos Saura com aquele grupo do Kola [San Jon], e ainda fiz Retratos a Preto e Branco, que é uma curta-metragem sobre alguns personagens daquela população que são desenhados e, portanto, tem todo um processo ali… A Cova da Moura diz-me muito. Criei raízes quando fiz o meu primeiro filme e quando comecei a abordar mais a fundo aquela população. Tenho amigos lá e por isso, se vou revisitar os meus filmes antigos, o Bom Povo Português, por exemplo, se vou revisitar a Olga Roriz e o meu trabalho com ela, se vou revisitar filmes do passado, a Cova da Moura fazia todo o sentido, porque além de estar sempre presente para mim, eu tinha um personagem feminino de origem africana e as suas origens passavam por ali. A personagem nasce na Amadora, é daquela zona, e mesmo se não é ela que ele [Michel] encontra, esta menina acaba por levar o personagem lá, que encontra outra menina que não é aquela, mas acaba por aprender a dançar… É [uma forma de] lembrar que a Cova da Moura existe. E quem diz a Cova da Moura diz tantos outros bairros do género, mas com uma personalidade própria, com as suas próprias festas populares, com a sua atitude que não deixa morrer, a sua cultura… É de respeitar muito. E, hoje em dia, nós temos que perceber que, Portugal e a Europa, somos multiculturais e temos de respeitar tanto as outras culturas, como a nossa, nós também somos multiculturais. Portanto, voltar ali deu-me imenso prazer e gosto muito. Não quis ir a todos os filmes, senão também era uma espécie de arquivo cinematográfico e não valia a pena. Fui tratando dos temas que me são caros, e este da imigração e das periferias, e da periferia africana sobretudo, que eu tenho acompanhado mais, achei que devia voltar a meter num filme deste género. E foi óptimo, fui bem-recebido, como sempre.

O que ficou desta relação com o bairro e os seus habitantes?

Rui Simões: Tenho uma relação muito forte com eles e eles comigo. Eu não vou lá mais porque estes filmes, documentário sobretudo, são filmes muito fortes. Quando entramos nestes universos, aquela realidade acaba por se colar a nós e não conseguimos descolar destas realidades, seja na Cova da Moura, seja no Ruas da Amargura, em que o meu contacto com os sem-abrigo de Lisboa fez com que muitas daquelas pessoas se colassem realmente à minha pele. Fiquei amigo de um dos principais personagens, que já morreu, o Fernando Moedas. E não podemos continuar nestas situações porque senão não aguentamos. Não podemos ficar sem-abrigo, não podemos ir morar para a Cova da Moura, não podemos ir para Cabo Verde… Os filmes são filmes e a nossa vida real é outra coisa. Agora manter esse relacionamento, e afastar sem nunca deixar de estar é uma coisa que eu pratico e gosto muito.

E fica a amizade também…

Rui Simões: Fica, fica a amizade e tenho grandes amigos [na Cova da Moura]. E tenho lá uma senhora, que é a Liv, que é uma pessoa de quem sou muito próximo.

Na atualidade político-social atual, perigosa e instável, qual o papel do cinema e das artes em geral? 

Rui Simões: Essa pergunta é a pergunta que o Michel faz ao Simão. É a mesma. O cinema é a reprodução da vida e do imaginário. O cinema não é nada de extraordinário: é uma lente, é uma objectiva, é uma máquina que capta e reproduz. Sempre pensei que o cinema tem a obrigação de contribuir para a denúncia dos excessos, da exploração do homem pelo homem, para denunciar o que está errado, construir algo que seja positivo. Acho que tem um conteúdo, mas também aceito que seja só formal. Gosto imenso de cinema que não me diz nada, mas também diz tudo, em termos de movimento, de luz, de experiência, de experimentalismo. Tudo isso para mim é válido. Agora o meu cinema, aquele que eu escolhi fazer, inconscientemente se calhar, mas que sempre me marcou, é, de certa maneira, uma relação sempre de reacção à vida e às coisas que acontecem. Primeira Obra começa com o meu primeiro filme, o primeiro de todos, que é um filme que faço na escola de cinema, que é aquele jovem – na altura jovem – todo nu, a apanhar livros e a distribuir pelos seus amigos e aqueles amigos depois transformam-se em personagens que acabam por o matar. Esse é o meu primeiro filme real, que se chama Désobéissance (Desobediência), o meu primeiro desejo de exprimir foi esse e continuou sempre. Se calhar, para um outro cineasta o cinema é outra coisa. Portanto, o cinema é tudo. Para mim, é isto, estou sempre focado nestas preocupações. Vejo uma injustiça, gosto de a denunciar, de contribuir para a corrigir. Há aqui um lado muito didático, que muitos críticos não gostam, muita gente não gosta, menospreza, acha que é cinema de segunda o ser didático, mas eu não vejo as coisas assim porque sei a quem me dirijo e não me tenho dado mal, porque encontro o público. Se eu fizer e chegar ao público, depois não me dou mal, dou-me bem, por isso a opinião dos outros pouco me interessa. Mas passa por esse tipo de atitude. É evidente que depois depende da intensidade que se dá a esse cinema. No meu caso, foi muito forte e fui penalizado. Podia fazer outro tipo de cinema, outro tipo de filmes, não sei, mas está-me na natureza. Também gosto imenso de dança. Dediquei anos e anos da minha vida à dança, gosto de artes plásticas, gosto imenso de escultura e de tudo. Há é uma linha em que me enquadro que é a linha da Real Ficção. Está definida, muito clara: são preocupações sociais, por um lado, esta ligação às artes e uma ligação também aos países de língua portuguesa que foi uma opção também da Real Ficção.

Apesar do domínio das redes sociais, do imediatismo e das fake news, ainda será possível chegar às pessoas e fazê-las refletir através da “arte de intervenção”?

Rui Simões: Claro que sim, é mesmo isso, só a arte mesmo é que pode avançar alguma coisa. A arte e a pesquisa científica e sociológica. Não digo que a Academia não contribua para melhorar a condição humana, claro que sim. Agora, as artes sobretudo, porque as artes não têm limites na codificação. O artista no fundo o que é que é? A sociedade paga ao artista, porque o artista vive da sociedade que lhe paga para ele ser artista. E por quê? Porque a sociedade não quer essa função, mas paga a outro para a fazer. E o outro faz e contribui então com a sua função. E essa função é justamente fazer aquilo que o comum dos mortais não quer ou não pode fazer. E acho muito bem que não faça. Tem que se defender, tem que ter cuidado, e o artista pode se expor porque é pago para se expor, justamente, para ter essa função. O ser artista é uma mais-valia a que a sociedade se permite.

Deus Pátria Autoridade e Bom Povo Português são os seus maiores cartões de visita. Qual seria o impacto destes dois filmes se fossem feitos nos dias de hoje? 

Rui Simões: Não sei… eles estão a ter um impacto muito bom. Eu tenho andado por aí pelo país a projectar estes dois filmes, com estas duas novas cópias fantásticas e o que acontece é que a leitura que está a ser feita destes filmes, hoje em dia, é muito interessante.

Mais ainda nesta época…

Rui Simões: Na altura, era o entusiasmo, as salas cheias. Deus Pátria Autoridade foi um sucesso incrível. Foram meses numa sala de cinema, foram muitas cópias a circularem pelo país todo, as salas sempre esgotadas. O Bom Povo [Português] também, mas, a um dado momento, é abafado e retirado de exibição, e por isso é penalizado. A gente não sabe muito bem até onde ele podia ter ido, mas lá fora foi e permitiu-me duas grandes viagens na América, sobretudo nos Estados Unidos e também na América Latina. Nos Estados Unidos, sobretudo, Estados Unidos e Canadá, fiz mais de duas voltas completas aos Estados Unidos a mostrar esses filmes. Na Europa também, chegaram à Ásia também, a África… Esses filmes atingiram de facto os objectivos na altura. Foram compreendidos, acho que foram. Agora, é outra leitura, mas é uma leitura muito interessante. Tenho feito debates em todo o lado onde tenho ido, e tenho ido a muitos sítios. E, seja em que cidade for, Aveiro, Évora, Mértola, Santarém, seja onde for, só chego à cama às duas da manhã. Até ali estivemos a falar, a discutir na sala de cinema. Só quando nos põem fora das salas de cinema é que a gente pára de falar. Há um interesse muito grande da minha geração, dos mais velhos, mas também dos jovens. Há sessões que têm imensos jovens. Estou a tentar perceber melhor a razão de por que é que também há jovens tão interessadas. Não digo que os jovens não estejam interessados, mas não são propriamente dos filmes que tenham uma linguagem, uma construção, que os possa interessar. Está a acontecer que em certas sessões, ou vão porque os pais os levaram, é verdade, há muitos casos assim, ou vão porque ouviram falar entre eles, ou não sei explicar… Agora os debates são muito interessantes. E a forma como eles são feitos é diferente de como era antigamente, é de outra maneira, talvez mais profunda, muito articulada. Muitas pessoas manifestaram alguma pena de não terem visto o filme na altura, de como é que estiveram 40 anos sem ver este filme. Neste ultimo debate, houve um senhor que disse isso. É muito curioso, também outro que disse, “mas eu vi há 40 anos e voltei agora a ver e é muito diferente”, mas não foi capaz de explicar as diferenças. Agora é o momento de mostrar [estes dois filmes], são os 50 anos do 25 de Abril, há copias por todo o lado, na Europa, em África… Tenho de ir a Luanda em breve, ando aí com um calendário complicado. Ainda ontem ou hoje passou em Budapeste, em Praga anteontem, em Berlim também esta semana. E são esses filmes que estão a passar, não é propriamente a Primeira Obra. São o Deus Pátria [Autoridade] e o Bom Povo Português. A experiência que eu tive em Évora, e não esqueço porque é muito recente, é muito curiosa. Nós tínhamos uma projecção do Deus Pátria Autoridade, numa sessão organizada pelo cineclube de Évora, Cinema -Fora- dos Leões, e o que estava combinado com a minha filha, que me acompanha sempre nestas coisas, era que quando o filme começasse ela ia embora para o hotel sozinha e eu tinha de ficar ali por causa do debate. Apresentei o filme, venho-me sentar só para ouvir o som e ver se a qualidade está bem e a minha ideia ate era sair, e quando me sento digo: “então, vá Alice, vai-te embora”. E ela disse: “espera aí…”, e começou a ver. A primeira sequência do Deus Pátria Autoridade é na Marinha Grande [a mostrar] como se trabalha o vidro. E aquilo é tudo um processo muito bonito, de facto. E ela estava fascinada porque não sabia que era assim que se faziam as coisas de vidro. Estava fascinada a ver a construção daquele objecto e não conseguia sair dali. E, logo a seguir, vem outra coisa dos trabalhadores, e disto e daquilo… E eu disse: “mas não te vais embora?”, e ela: “agora fico aqui…” e ficou até ao fim do filme. No final, eu perguntei: “Então ficaste a ver o filme?” Ela nunca tinha visto este filme. O Bom Povo [Português] já tinha visto, mas o Deus Pátria [Autoridade] não. E ela disse: “é que eu aprendi coisas aqui que eu não sabia”. Tão simples quanto isto. E, com 15 anos, a resposta que dá é só essa. E não há nada mais a dizer.

Primeira Obra

Celebrou 80 anos de idade a 20 de Março, e estreia a sua primeira longa de ficção no dia 25 de Abril, quando se comemoram os 50 anos da Revolução dos Cravos. Quais as suas expectativas para o futuro do país e do seu cinema?

Rui Simões: O futuro do país, para mim, passa pela nova geração que está aí, a fim de tomar conta das rédeas do país. Acredito bastante na nova geração que está a ser preparada para enfrentar este mundo de hoje, está numa formação à altura da situação. Podemos criticar que podia ser melhor, ou isto ou aquilo, mas não há dúvida que a educação está a acompanhar as necessidades para poder lidar com todos estes problemas que são difíceis e aos olhos de quem é mais velho podem parecer coisas extraordinárias, mas não são, são iguais às outras. Esta coisa das guerras, nós sempre estivemos em guerra, aliás no filme há uma frase, à voz do Eduardo Lourenço, que diz “O que é normal é a guerra, não é a paz”. Isso é que é o normal do Homem. A paz é uma excepção, de vez em quando há paz. Mas o que é mesmo constante é a guerra. Sempre enfrentamos guerras, nós próprios, portugueses, estivemos metidos numa muito perto, mesmo que se passasse longe. Essas agora estão mais perto, mas, no fundo, até estão mais longe. É tudo muito complexo, mas eu acredito que os jovens estão à altura de gerir isto tudo e eu não sou nada pessimista, pelo contrário, não me assusta nada esta realidade. Acho que temos que ter a lucidez de ir combatendo o que está mal, denunciando e construindo o que acreditamos que são os valores que vale a pena defender. O meu cinema passa também por aí, o meu cinema é justamente igual a todos os filmes que fiz. Tenho um novo projecto uma segunda obra que se chamará Vera, de verdade, e é uma ficção científica. É um filme que vai abordar o tema da transformação tecnológica que está a acontecer, desse controlo global, desta dominação, que nunca foi tão grande. Esta capacidade que o homem tem de conseguir controlar e dominar tudo ao mesmo tempo de um ponto, quase que do céu domina tudo, de um drone.  É um filme com muito recurso à inteligência artificial, esteticamente, e, em termos de respostas, é um filme que procura resistir a esta evolução que vai num certo sentido, sem deitar fora, é evidente, o desenvolvimento tecnológico. Portanto, é um filme muito preocupado com estas coisas todas que estamos a viver, mas é uma fantasia, é uma ficção científica, com personagens que são chipados logo à nascença, logo controlados, mas alguns não são, e, portanto, há aqui uma luta. É para continuar a pensar e a reflectir sobre isto tudo e é uma nova experiência. Se eu conseguir financiamento faço, se não conseguir não faço.

Esperemos que consiga, que agora fiquei muito curiosa…

Rui Simões: Se o júri ficar curioso também, financia e deixa-me continuar. Já que só fiz uma ficção, passarei a fazer duas, pelo menos já não é mau.


*Entrevista realizada nas instalações da Real Ficção no dia 19 de Abril de 2024.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Entrevista: Adriano Mendes, realizador de 28½

Adriano Mendes revelou-se em 2014, com O Primeiro Verão, e a sua segunda longa-metragem, 28½, vem reforçar o talento do promissor jovem realizador no panorama do cinema nacional. O filme continua nas salas e Adriano Mendes respondeu a algumas questões e curiosidades do Hoje Vi(vi) um Filme.

28½

De O Primeiro Verão para 28½ há um desencantamento notório. É como deixar de ser criança ou adolescente, perder a inocência, para entrar na idade adulta? Era teu propósito mostrar que também tu cresceste enquanto realizador?

Adriano Mendes: A ideia para este segundo filme surgiu sem tentar estabelecer qualquer relação com o anterior. As eventuais ligações ou rupturas com O Primeiro Verão são consequência de se tentar criar um outro objecto, onde me propus a trabalhar outras questões, mas em que o autor é o mesmo. Durante o processo não deposito atenção sobre o que quero mostrar de mim. Não é sobre mim, é sobre criar um filme. O objecto final é o resultado de uma investigação profunda e de um constante reajuste, sem haver um olhar programático daquilo que quero mostrar enquanto realizador. O processo de construir o filme e aquilo que os outros vêem nele são realidades distintas. Os dois filmes interpelam estágios muito diferentes de uma relação amorosa. Essa inocência do primeiro filme ou esse desencanto do segundo são consequência dos elementos narrativos de cada um dos filmes. N’ O Primeiro Verão, a protagonista vive em casa dos pais e podemos presumir que ainda está a estudar. No 28½, a protagonista está por si, a tentar sobreviver. Esse choque com o mundo, na tentativa de procurar independência e auto-subsistir, pode traduzir-se nessa sensação de perda da inocência.

O Primeiro Verão

A Anabela Caetano regressa como protagonista e também ela demonstra uma grande evolução e maturidade como actriz. Foi uma escolha óbvia para interpretar Teresa? Como foi trabalhar com ela agora apenas enquanto realizador, depois de terem contracenado em O Primeiro Verão?

Adriano Mendes: A Anabela participou em todas as etapas do processo. Foi fundamental no debate das primeiras ideias, nos ensaios, no processo de recruta do actores. A personagem da Teresa nasceu pela mão dela e só nesse momento é que o filme se começou a tornar palpável. Temos um entendimento muito grande, muito para lá das palavras, o que nos permitiu ir encontrando a tonalidade que procurava.

Toda a acção passa-se apenas num único dia na vida de Teresa, que não corre da melhor maneira. Esta opção é inocente ou querias envolver a plateia com o crescendo dos acontecimentos?

Adriano Mendes: Realizar é escolher. Há opções mais ou menos conscientes, mas realizar é quase o oposto de um acto inocente. Desde o início que havia o desejo de trabalhar narrativamente um daqueles dias que, de tão intensos que são, nos parece uma semana.

28½

A sequência no comboio é dos melhores momentos de 28½. Houve alguma improvisação na rodagem? De onde saiu a ideia para aquela situação em concreto?

Adriano Mendes: O processo de construção da cena foi muito complexo e é quase impossível falar sobre ele de forma justa. A ideia base surgiu de um conjunto de situações que vivi em transportes públicos, de outras situações que me contaram, e da imaginação.

Para além do crescimento e do desencanto e estagnação que sente a geração dos 20 e muitos aos 40 e poucos anos, em que outros temas pretendes que o filme faça reflectir?

Adriano Mendes: A ideia era fazer um filme sobre este intervalo, este “meio” do título. Uma sensação de instabilidade, incompletude, de procura, de desequilíbrio. Para mim não houve nenhum sentido de agenda temática ou política. Quis criar um objecto em total liberdade, e também ele aberto.

28½

Depois dos adiamentos da estreia - com uma pandemia pelo meio -, vês o teu segundo filme finalmente a chegar às salas de cinema. Como foi este longo processo de espera? O que pode o público esperar?

Adriano Mendes: Foi sempre com incerteza sobre qual a melhor altura, mas com o enorme desejo de que o filme pudesse ser visto em sala. Foi um processo muito difícil, mas tinha esperança que pudesse acontecer. O público pode esperar um filme intenso, que percorre as horas de um dia desafiante na vida de uma jovem-mulher onde, devagarinho e sem avisos a vida se vai desmoronando.

Quais os projectos que se seguem?

Adriano Mendes: Mistério. Não posso revelar.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Entrevista: Ana Moreira, protagonista de Sombra: «Compreendi imediatamente que iria ser um grande desafio»

Sombra continua nos cinemas e, depois do realizador Bruno Gascon, foi a protagonista, a actriz Ana Moreira, que respondeu a algumas perguntas do Hoje Vi(vi) um Filme sobre o desafio de interpretar Isabel e dar voz a tantas mães que continuam a procurar os filhos desaparecidos.

Como surgiu a oportunidade de protagonizar Sombra? Como encaraste o desafio?

Ana Moreira: O convite partiu directamente do realizador Bruno Gascon e da produtora Joana Domingues, onde num primeiro encontro ambos me apresentaram o projecto e a possibilidade de fazer a personagem principal. Compreendi imediatamente que iria ser um grande desafio a nível de trabalho, que era um projecto que o realizador e a produtora estavam muito motivados em concretizar e que reuniam todas as condições para o fazer. Foi uma grande viagem que resultou muito bem.

Como te preparaste para um papel tão exigente emocionalmente?

Ana Moreira: A preparação teve várias fases, desde os encontros iniciais com o realizador onde discutimos e partilhamos ideias sobre o projecto, sobre a história do filme e sobre a minha personagem, desde a leitura do argumento e ensaios com todo o elenco, às provas de figurinos que foram muito importantes para a construção da personagem, aos testes de maquilhagem e sobretudo de caracterização que marca a passagem do tempo no filme, que faz um arco de cerca de 15 anos. Mas um dos aspectos mais importantes para mim, foi a oportunidade de falar com algumas mães de crianças desaparecidas e ficar a conhecer de uma forma mais íntima e profunda as suas histórias. 

Em Sombra, a tua personagem dá voz a tantas mães que nunca encontraram os filhos. Inspiraste-te em alguma destas mulheres em especial, sendo que a mãe de Rui Pedro, Filomena, será sempre a mais mediática?

Ana Moreira: Tanto eu como o Bruno construímos esta personagem com alguma liberdade, pois, apesar de o filme ser baseado em factos verídicos, não deixa de se tratar de uma obra de ficção. No entanto, existe uma clara influência das histórias reais destas mulheres que se reflete tanto no filme como na minha personagem, a Isabel. Nesse sentido a Filomena Teixeira é talvez a inspiração maior do filme e para mim foi muito importante e especial conhecê-la e voltar a ouvir a sua história de uma forma mais pormenorizada para a preparação de personagem.

Como olharia a Ana Moreira de Os Mutantes, a Andreia, a adolescente perdida na vida, sem pais que se preocupassem, para a Ana Moreira de Sombra, Isabel, uma mãe a quem o filho foi roubado? São duas personagens marcantes na tua carreira, e em épocas distintas da tua vida, ambas extremamente exigentes... O que diriam uma à outra?

Ana Moreira: Creio que são ambos filmes que tocam em temas sociais pertinentes. Os Mutantes fala de um conjunto de crianças adolescentes sem lugar,  abandonadas por uma sociedade que não as quer ver,  entregues a instituições que não funcionam bem e o Sombra fala da luta de uma mãe em busca de um filho desaparecido que enfrenta todo um sistema judicial que na altura também falhou. Dessa forma, ambos os filmes falam da negligência e da falta de apoio por parte do Estado e da sociedade às crianças e mães deste país. Nesse sentido, o  cinema pode também ter a função de nos dar a conhecer realidades que embora  não façam parte da vida quotidiana do espectador, são importantes e merecem um lugar de visibilidade, debate e reflexão.

O que esperas da receptividade do público português ao filme?

Ana Moreira: A receptividade tem sido muito positiva, este é um filme que reúne todos os ingredientes para ser bem recebido tanto pelo público como pela crítica especializada.

Que projectos se seguem?

Ana Moreira: Neste momento encontro-me em ensaios para o novo espetáculo do coletivo Silly Season, uma peça com o título Hotel Royal. Vamos estrear no final do mês de Novembro no Teatro Baltazar Dias, no Funchal, e logo em Dezembro vamos estar em Lisboa na Escola de Mulheres, na Estefânia, para depois seguirmos com mais datas noutros teatros pelo país fora. 

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Entrevista: Bruno Gascon, realizador de Sombra: «Num mundo de sombras queria que ela fosse a esperança»

As crianças desaparecidas e suas famílias são o foco de Sombra, o mais recente filme de Bruno Gascon, que estreou nos cinemas portugueses no passado dia 14 de Outubro. O realizador respondeu a algumas perguntas do Hoje Vi(vi) um Filme e revelou mais sobre o processo de produção do filme e a visibilidade que Sombra dá aos casos que o inspiraram.

Depois do tráfico humano, agora abordas a temática das crianças desaparecidas. Este realismo social é o que mais te dá gosto filmar, é o que te define enquanto realizador?

Bruno Gascon: Na verdade, sim. Gosto de sentir que posso colocar o que sei fazer ao serviço da sociedade levando as pessoas a pensarem sobre temas que por norma preferem relegar para segundo plano ou simplesmente ignorar. Não sei se é o que me define enquanto realizador, mas é sem dúvida algo que me satisfaz não só enquanto realizador, mas enquanto pessoa.

Entre o trabalho de pesquisa e a recolha de testemunhos, como foi toda a preparação do filme? Quais os momentos que mais te marcaram durante a pré-produção e rodagem de Sombra?

Bruno Gascon: A ideia já tinha surgido na preparação da Carga pelo que já tinha muita informação recolhida, ainda assim considero que o verdadeiro arranque começou com o contacto com a Associação Portuguesa de Crianças Desaparecidas e com os encontros com as mães e famílias. Não foi algo feito de ânimo leve, estabeleci mesmo uma relação com estas pessoas e tivemos muitos encontros não só durante a escrita, como na pré-produção, rodagem e mesmo após a rodagem terminar. Foram eles os primeiros a verem o filme, por exemplo. O mais marcante em todo este processo foi sem dúvida ouvir cada história pela primeira vez e perceber tudo aquilo pelo qual aquelas pessoas passaram e de alguma forma sentir a responsabilidade de lhes fazer justiça.

A mãe de Rui Pedro, Filomena, foi fundamental para o filme. Em que medida quiseste que a personagem de Ana Moreira se aproximasse dela?

Bruno Gascon: A Filomena é a inspiração maior para a Isabel, embora a Isabel não seja a Filomena. São mulheres diferentes (até porque a Isabel tem também inspiração em outras mulheres), mas que partilham traços comuns: a coragem e o amor pelos filhos. Quando comecei a preparar a personagem com a Ana tentámos que a personagem não fosse colada à personalidade da Filomena (quem a conhece consegue ver as diferenças). Sobretudo não a queríamos representar como uma vítima, mas sim como uma mulher forte, corajosa e capaz de superar os seus próprios limites para encontrar o filho. Num mundo de sombras queria que ela fosse a esperança. A Ana incorporou isso magnificamente.

No elenco, como se deu a escolha da protagonista?

Bruno Gascon: Já conhecia o trabalho da Ana Moreira e senti que ela seria a pessoa ideal, mal a abordei. Procurava uma actriz que tivesse uma fragilidade e força simultâneas e que conseguisse transmitir a luz da Isabel através do seu olhar. A Ana tem isso. Não consigo imaginar este filme com outra actriz como protagonista. A Ana fez um trabalho incrível, foi um prazer desenvolvermos esta personagem juntos.


Qual a principal simbologia que quiseste colocar na cor amarela, tão presente na roupa de Isabel?

Bruno Gascon: O amarelo simboliza a esperança, o nunca desistir. A Isabel é a única personagem que caminha entre a luz e a sombra. A cor que ela veste é uma negação do luto e uma demonstração externa do seu estado de espírito. Ao longo do filme o amarelo vai alterando: quando está mais forte é quando ela sente mais esperança, ou quando acredita que está perto de algo que a leve ao filho, quando desvanece simboliza o desespero e as quebras motivadas precisamente pela desilusão que tem pela ausência de respostas.

Sombra surge como que para impedir que todos estes desaparecimentos e tantos outros caiam no esquecimento. Achas que pode ser uma forma de voltar a olhar para todos estes casos de outra forma ou mesmo surgirem novas pistas ou investigações (jornalísticas, por exemplo)?

Bruno Gascon: Sem dúvida. Obviamente a Sombra é um filme, uma obra de ficção e é assim que deve ser vista, mas acredito que a arte e a cultura têm um papel essencial na sensibilização ou na passagem de mensagens relevantes. O facto de estrearmos o filme levou a que os media colocassem na ordem do dia este tema e de repente além de se falar do filme há toda uma transmissão de informação sobre o que se deve fazer quando uma criança desaparece, por exemplo. É dada voz a associações como a Associação Portuguesa de Crianças Desaparecidas (APCD) e a outras entidades. Isso é muito positivo e gratificante. Mesmo ao nível da Polícia Judiciária, temos informações por parte da APCD de que o filme os sensibilizou muito, se isso vai fazer a diferença? Não sei. Mas não vou mentir, gostava muito que fizesse.

Que outros projectos estás a preparar?

Bruno Gascon: Filmei entre Março e Maio deste ano o meu terceiro filme. É muito diferente de tudo o que fiz até agora. Estou agora a acompanhar a pós-produção e estou a meio da investigação para um novo projecto sobre o qual ainda não posso revelar muito.

sábado, 7 de novembro de 2020

Entrevista: Marta Pessoa, realizadora de Donzela Guerreira

Donzela Guerreira, de Marta Pessoa, estreou no dia 5 de Novembro nas salas de cinema portuguesas. Através da protagonista Emília, jornalista e escritora, o filme guia-nos por uma Lisboa dos anos 50 e por histórias de mulheres desse tempo. A propósito da estreia, quisemos saber mais sobre esta longa-metragem e a realizadora Marta Pessoa satisfez a nossa curiosidade.

Marta Pessoa

Como surgiu a ideia para este filme?

Marta Pessoa: O filme teve origem na história da Donzela Que Vai à Guerra, que está incluída no Romanceiro de Almeida Garrett. Neste poema de origem popular a “donzela” assume o lugar do pai no campo de batalha. Vestida de soldado, vai à luta. É uma história de alguém que se quer superar, quebrar barreiras. Esta história levou-me a pensar que, ao contrário do que se passava na história de Garrett, às mulheres que viveram no período do Estado Novo, não lhes era permitido grande individualidade. Eram invisíveis, sem voz, sem acção. Assim são as personagens dos livros de Maria Judite de Carvalho e de Irene Lisboa. Estas duas escritoras foram as grandes fontes de inspiração para o filme. A sua escrita, muito próxima da “crónica do quotidiano”, transforma as mulheres de vidas apagadas, de gestos menores, condenadas a uma domesticidade inevitável, em protagonistas. Juntando a história da “Donzela” ao universo destas mulheres sem voz, surgiu a ideia para este filme. Um filme sobre uma mulher que escreve, que não se casa, que é, em plena ditadura, uma transgressora. Mas ao contrário da mulher do Romanceiro, esta é uma mulher que ocupa o espaço dos homens sem se travestir. Alguém cuja ousadia está em não deixar de ser quem é. E assim nasceu a protagonista, a Emília Monforte, uma escritora, na Lisboa dos anos 1950.


Qual é para si a importância do Arquivo para a memória de uma cidade (ou de uma pessoa) e para o cinema?

Marta Pessoa: A transmissão da memória colectiva passa necessariamente por alguma espécie de arquivo. Por mais pequenos que sejam e por mais maltratados que possam ter sido, os arquivos são esforços de preservação daquilo que consideramos importante. Mesmo os nossos arquivos pessoais, aquilo que vamos guardando, vêm da nossa vontade de acarinhar um tempo, uma pessoa, um sítio. São colecções de fragmentos a que, muito tempo depois de nós, alguém poderá tentar encontrar um sentido.  Uma cidade só pode existir se tiver uma memória, porque é qualquer coisa - uma ideia - vivida em conjunto. A memória das cidades é o que alimenta a nossa ligação com elas, mas é também uma forma de as vivermos. No filme, é o arquivo de carácter fotográfico e cinematográfico que é usado para evocar a cidade de Lisboa. Como todo o trabalho que é feito sobre o arquivo, há muito espaço para a aprendizagem, para a descoberta, mas também para a efabulação. As imagens foram encontradas no Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa e no Arquivo da Gulbenkian, as imagens em movimento no Arquivo do ANIM. Estas imagens têm aquele efeito óbvio de nos transportar para um espaço e um tempo, que pode ser simultaneamente familiar e estranho. Já o cinema tem em si mesmo uma dimensão de arquivo, de memória e efabulação do mundo.

Arquivo Fundação Gulbenkian. Rossio (s/data)


Quais as descobertas mais inesperadas que fez nos Arquivos que consultou durante a pesquisa para Donzela Guerreira?

Marta Pessoa: A dada altura, apercebi-me da existência de um conjunto de imagens que remetem para a construção do quotidiano, para uma vivência de domesticidade. Isto acontece mais no arquivo da Gulbenkian. Ambos os arquivos fotográficos estão, em parte, digitalizados e disponíveis para consulta online. Isso é muito importante, essa disponibilidade, porque faz com que a relação com as imagens na fase de pesquisa seja muito mais intensa e constante. No meu caso, disponibilidade para o arquivo ser trabalhado a par da escrita do argumento. Na Gulbenkian, está disponível parte do acervo do Estúdio Novais, e este está dividido em álbuns com nomes como Estabelecimentos Comerciais, Interiores, Edifícios, imóveis e infraestruturas, Mobiliário, Lavores, Comércio, Lisboa e arredores. Isto indica que o Estúdio dividiu a sua actividade entre uma fotografia mais comercial e institucional e encomendas para publicidade. É neste último “grupo” que surgem as lojas de mobiliário, de loiças, de electrodomésticos. Estas fotografias foram as mais surpreendentes e estão muito presentes no filme. Há também, e isto acontece nos dois arquivos, imagens muito belas da cidade. Mas que Lisboa é uma cidade muito bela não é para mim, como lisboeta, uma novidade. 


Como se deu a escolha das três actrizes (Anabela Brígida, Joana Bárcia e Dina Félix da Costa)? O que procurava, em especial, na actriz protagonista?

Marta Pessoa: Já tinha trabalhado com a Dina e com a Anabela. Neste filme, os papéis foram escritos para elas. São, as duas, actrizes muito disponíveis e muito sensíveis. Sabia que seriam capazes de compreender que o filme não teria uma estrutura, nem um processo de filmagem, ditos clássicos e que, sendo um filme de baixo orçamento, as coisas teriam de ser feitas a um ritmo incerto e com uma estrutura muito reduzida. Correu muito bem. No caso da Joana, foi diferente. A Joana é uma actriz excepcional. Nunca tinha trabalhado com ela, mas a Etelvina foi escrita com ela em mente. O convite foi feito e a Joana aceitou.

Ainda em matéria de escolhas, a protagonista do filme é uma voz que se ouve durante todo o filme, e eu acho que a Anabela tem uma voz muito bonita, capaz de dar a cada frase uma entoação muito subtil em todas as emoções e tem uma grande paciência para trabalhar o texto, o que veio a acontecer durante o período de um ano. Para além do texto era preciso que a Emília, quando aparecesse na imagem, tivesse uma presença muito serena, contida, mas forte. A Anabela é uma actriz que consegue tudo isto, e muito mais.

Joana Bárcia como Etelvina


O papel das mulheres está em grande foco no seu filme, especialmente, o das mulheres independentes e solteiras. É uma forma de redescobri-las, já que durante o Estado Novo elas eram quase como um acessório dos maridos e a própria sociedade fazia por esquecer as mais emancipadas?

Marta Pessoa: Foi isso que aconteceu durante o período de ditadura. Não sei se a sociedade esquecia as mais emancipadas, acho que mais do que esquecê-las, as ostracizava e humilhava. O que aconteceu, por exemplo, a mulheres como a Irene Lisboa, foi certamente um processo de esquecimento, mas também de humilhação. Afastaram-na da sua profissão, alguns dos seus livros só foram publicados em edições da própria autora. Outras vezes, as mulheres eram remetidas para “guetos femininos” onde só se podiam dedicar a actividades que o Estado Novo considerava apropriados. O lugar da mulher era definido pelo Estado (logo, pelo homem). Uma humilhação. Era muito habitual este afastamento da vida pública. No caso das mulheres do filme, fala-se ainda de outras – das mulheres sem história - das criadas, das empregadas de balcão (as tais mulheres sem aliança). Espero que de alguma maneira o filme possa levar mais pessoas a ler a obra de Maria Judite de Carvalho e de Irene Lisboa, porque a obra delas resgata estas mulheres do esquecimento. E esse é um gesto importante, o de dar espaço ao que não é dominante.  

A arte (literatura, cinema, pintura) está muito presente em Donzela Guerreira - desde logo na protagonista, escritora e jornalista. O que pretendia transmitir com esta representação?

Marta Pessoa: A literatura é, sem dúvida, a base do filme. A protagonista é uma escritora e é na sua voz que “ouvimos” o filme, a sua escrita. Não são só as suas memórias que ela nos vai contando ao longo do filme, é todo o seu percurso até se descobrir enquanto escritora. Achei que a melhor forma de o fazer seria evocar objectos, imagens, filmes, com que Emília se pudesse ter cruzado. Bilhetes de teatro, bibelots numa vitrine, como se estivesse num museu, filmes que poderia ter visto (como é o caso de Lisboa, Crónica Anedótica, de Leitão de Barros), músicas que ouviria. As Meninas de Velasquez aparece no filme fazendo uma ligação da pintura com o espaço privado através de uma apropriação das personagens nele representadas pela mãe da própria Emília. A mãe ensina Emília a rever-se naquele quadro, aparentemente tão distante da sua realidade. É uma forma de ensinar o processo de criação de uma história. É como se a mãe lhe atribuísse a função ou o desígnio de escritora mesmo antes de morrer. A revelação da arte. Um momento de partilha íntima e de comunhão entre uma filha e uma mãe, entre a realidade e a fábula, entre o efémero e o eterno.

Há uma nostalgia latente em Donzela Guerreira. São saudades de uma cidade aos poucos desaparecida ou das suas mulheres de armas?

Marta Pessoa: Lisboa é uma cidade em constante transformação, em constante desaparecimento. Acho que a cidade do filme é uma Lisboa que ainda hoje conseguimos reconhecer e identificar como nossa, mesmo que os edifícios, as ruas, as praças, já não existam exactamente da mesma forma. Cada prédio que vai abaixo dói, mas se calhar no lugar desses prédios já existiram outros prédios que foram abaixo e que “doeram” aos lisboetas nossos antepassados. E há sempre o rio. Enquanto o Tejo estiver (mais ou menos) no mesmo sítio, teremos sempre Lisboa.

As mulheres de armas continuam a andar por aí, porque continuam a ter que lutar por muitos direitos. São, felizmente, mais visíveis, com mais voz, mais liberdade, que as mulheres dos anos 1950. Mal de nós se assim não fosse.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Entrevista: Stefano Savio, Director da Festa do Cinema Italiano

A Festa do Cinema Italiano começou no dia 4 de Novembro, em Lisboa, e continuará a percorrer o país nas próximas semanas. Num contexto tão especial como o que vivemos, quisemos saber como tem sido organizar um festival de cinema em plena pandemia e falar sobre alguns destaques desta 13.ª edição do evento. O director da Festa, Stefano Savio, respondeu às questões do Hoje Vi(vi) um Filme.

Stefano Savio
Foto: Vera Marmelo


Num ano tão incomum, que mais parece um filme de terror, como foi organizar a Festa do Cinema Italiano? Para além do adiamento forçado, quais os principais desafios que encontrou?

Stefano Savio: Realizar um festival de cinema nesta situação é claramente um desafio difícil. Há as dificuldades logísticas, como a impossibilidade de trabalharmos todos em conjunto no mesmo escritório, assim como a redução da programação, a potencialidade da própria programação, não termos a possibilidade de ter convidados estrangeiros, nem organizar eventos sociais, principalmente. Mais que a nível de organização, é uma perda a nível do conteúdo que o festival consegue dar. Mas, ao mesmo tempo, conseguimos proporcionar uma programação forte, por isso, quem gosta de cinema, quem gosta de cinema italiano, acho que, apesar da situação, tem uma programação interessante e forte.

Itália foi o primeiro país europeu a sofrer com a chegada da Covid-19. Todos acompanhámos com consternação o evoluir da situação italiana - e europeia no geral -, mas para si e para a equipa da Festa tudo terá sido vivido de uma forma muito mais próxima e emotiva. Como foi conciliar tantos sentimentos, ao mesmo tempo que se decidia o futuro da 13.ª edição do festival?

Stefano Savio: Sim, Itália foi um dos países na Europa a ser mais afectado pela pandemia. Num período inicial, havia muita insegurança. Parte da nossa equipa é composta por italianos, e também por muitos portugueses. A proximidade com o nosso país era forte, e a ideia de realizar um festival de cinema italiano naquela altura era também uma maneira de demonstrar que "ainda estamos vivos", no sentido de que era importante lembrar a Itália, ficarmos próximos da situação italiana, mostrando também cinema italiano em Portugal. Depois, infelizmente, a pandemia evoluiu e estendeu-se a toda a Europa e a todo o mundo. É um desafio que todo o mundo teve de enfrentar.

O facto de parte da programação da Festa estar também disponível online, na plataforma Filmin, é já de si uma forma de reinventar o festival face às restrições impostas pela pandemia?

Stefano Savio: Consideramos que a pandemia acelerou um processo que já estava a crescer, uma passagem, sempre mais forte, de uma fruição cinematográfica em sala a uma online. Nós estamos bastante abertos nesse sentido, e consideramos que o importante é alcançar quanto mais público possível, chegar a novos públicos, e por isso uma plataforma online é uma ferramenta muito interessante para nós. Continuamos a considerar que um festival ou a projecção de um filme ao vivo seja a melhor experiência possível, mas também as potencialidades destas novas plataformas são muito interessantes. Por exemplo, este ano organizamos um festival de cinema online no Brasil e alcançámos 200 mil espectadores. São números muito importantes, a que provavelmente fisicamente era difícil chegar. Por isso, sim, acho que apesar da pandemia, esse será o futuro também em próximas edições; criar festivais híbridos onde haja uma parte física e uma parte online será uma realidade, não só para nós.

A estreia de Pinocchio, de Matteo Garrone, na abertura da Festa será um dos momentos altos desta edição. O que pode o público esperar desta versão mais sombria do clássico?

Stefano Savio: Pinocchio, de Matteo Garrone, é um dos grandes filmes desta temporada italiana. Um filme que demonstra, mais uma vez, o talento visionário de Garrone, que consegue transformar as fantasias de Collodi de maneira visual, mantendo o imaginário do realizador, bastante sombrio, bastante gótico, mas, ao mesmo tempo, muito pictórico e fantasioso. Acho que é um Pinocchio com uma alma diferente daquilo que conhecemos através da versão da Disney, que foi a mais divulgada do mundo. É um Pinocchio original, mas pode ser uma descoberta para muito público.

A retrospectiva de Federico Fellini, por ocasião do centenário do cineasta, representa uma oportunidade de redescobrirmos a sua filmografia. Na sua opinião, de que modo a obra de Fellini ainda comunica com o espectador contemporâneo, assim como com o cinema actual?

Stefano Savio: A retrospectiva integral de Federico Fellini, organizada pela Cinemateca Portuguesa, é uma grande ocasião para todos os espectadores portugueses descobrirem ou voltarem a ver a obra de um dos realizadores mais seminais e influentes do cinema mundial. A capacidade de Federico Fellini tornar os seus sonhos, os seus desejos, as suas fantasias em película foi uma fonte de inspiração para muitos realizadores contemporâneos. Facilmente podemos ver inspirações dele nos filmes de Wes Anderson, David Lynch e muitos outros. Acho que é muito importante também o trabalho que estamos a fazer ao pôr em discussão, em conversa quase, um cinema clássico italiano, com novos cineastas contemporâneos. Era também essa a ideia do Amarcord, a secção retrospectiva da Festa do Cinema Italiano, que puxa sempre por este diálogo entre passado e presente.

O que mais gostava que esta retrospectiva alcançasse, ou revelasse de novo, sobre um cineasta aclamado de forma tão unânime?

Stefano Savio: A retrospectiva integral, onde se mostra os filmes mais conhecidos do Fellini, mas também as obras, como por exemplo os episódios que ele realizou em conjunto com outros realizadores italianos menos vistos, são uma grande possibilidade para ver qual foi a trajectória de Fellini dentro do cinema italiano. Fellini nasceu fundamentalmente logo a seguir àquilo que era o neorrealismo, mas rapidamente se demarcou, criou uma linguagem completamente autónoma. É interessante ver como, ao longo dos anos, a sua linguagem, o seu estilo, as suas temáticas evoluíram, tornaram-se ainda mais complexas, mas mantendo sempre um traço de fundo, uma capacidade única de Federico Fellini concretizar em imagem - imagens que depois se tornam universais -, o que era um subconsciente, uma fantasia, um desejo que o próprio realizador tinha.

A Festa do Cinema Italiano vai percorrer diversas cidades nacionais, sendo uma oportunidade para o público poder, por alguns momentos, esquecer a pandemia e desfrutar de bom cinema, em segurança. Quais os motivos que daria aos espectadores mais receosos para que venham à Festa do Cinema Italiano?

Stefano Savio: Neste momento, uma sala de cinema é um sítio bastante seguro, apesar das indicações de que eventos públicos não são aconselhados. A verdade é que, e dou o exemplo da Itália - onde infelizmente as salas já fecharam - , em quase 200 mil sessões de cinema feitas desde Maio até agora houve só um caso de infecção por Covid-19. O que se pode dizer é que todas as salas onde a Festa do Cinema Italiano decorre respeitam integralmente as condições de segurança e de distanciamento obrigatório, por isso, ir à Festa do Cinema Italiano é ir ao Cinema em segurança. 
Realizamos este evento, não numa altura perfeita, não numa altura em que gostaríamos de realizar eventos como o nosso, mas porque é importante que o público possa voltar a encontrar uma normalidade dentro de uma situação tão específica e peculiar como esta. Ir ao cinema, distrair-se por algumas horas, frequentar um evento cultural é uma maneira de tentar voltar a uma normalidade diferente, mas que deve ser a normalidade. Além disso, é muito importante para nós, como elementos do sector audiovisual, fazer o nosso esforço pelas salas de cinema, pelos distribuidores, por tudo isto, para puxar o maior número de pessoas possível de volta às salas neste momento. Consideramos a Festa como uma tentativa de ajudar todo o sistema a voltar lentamente a uma normalidade. 
Quem não pode ou ainda não se sente seguro para ir ao cinema, pode ver mais de metade da nossa programação no Filmin, onde este ano está também disponível. Por isso, cada um faz a sua escolha.

sábado, 4 de julho de 2020

Entrevista: Gonçalo Almeida, realizador de Faz-me Companhia

Faz-me Companhia (crítica aqui) estreou nos cinemas nacionais esta Quinta-feira, dia 2 de Julho, e o realizador Gonçalo Almeida respondeu a algumas questões do Hoje Vi(vi) um Filme. Mais um convite para mergulhar no terror psicológico em português.


Depois de várias curtas-metragens, a tua primeira longa estreia nos cinemas no dia 2 de Julho, ainda com o fantasma do Covid-19 a pairar. Que oportunidades te traz o desafio que é lançar um filme numa altura de excepção?

Gonçalo Almeida: Foi a oportunidade que nos foi dada e, nesse aspecto, não foi bem uma opção. Os filmes têm que começar a estrear e alguém tem que o fazer. Penso que iremos viver numa altura de excepção durante vários anos, especialmente, na área do cinema. As coisas jamais serão como foram. Espero continuar a trabalhar e a aproximar-me da minha audiência. Espero também, que esta mudança de paradigma nos traga novas oportunidades a todos.

Depois de Thursday Night, em Faz-me Companhia segues a mesma linha do terror ambiente, agora mais psicológico mas com a ideia da assombração sempre presente. É um estilo onde gostas especialmente de trabalhar? Vês-te a continuar no terror ou a arriscar outros géneros? 

Gonçalo Almeida: Vejo-me a continuar a fazer filmes de género, de terror, de ficção científica e também o que está nas fronteiras entre ambos e entre estes e outros géneros. Cresci a gostar de cinema por ver filmes de género. Os filmes que me fizeram sonhar foram os filmes de terror dos anos 80, nomeadamente o Pesadelo em Elm Street. Em miúdo, era muito assustadiço, qualquer barulho me assustava. Tendo essa sensibilidade e sendo exposto a filmes de terror, em criança, o impacto que estes tiveram em mim acabou por ser intenso. O género de terror é um espaço vasto onde vale tudo, pois existe no mundo da imaginação. Gosto de caminhar por este mundo e contemplar as possibilidades. Ter um sonho e poder partilhá-lo, tornando-o visível.


Quais as tuas principais influências cinematográficas ou artísticas? 

Gonçalo Almeida: As influências vão mudando ao longo dos anos. Em relação à maior parte delas, nem estou consciente do quanto me influenciam. Nos tempos que decorrem, dou por mim cada vez a ler mais e a ver menos filmes. Tenho deambulado pela literatura gótica e a “weird fiction”. Comecei há uns anos atrás por escritores mais conhecidos como H.P. Lovecraft e agora tenho me aventurado a conhecer nomes menos sonantes como E.T.A. Hoffmann ou Maurice Sandoz. Basicamente, encontro-me sempre mais ou menos perto dos surrealistas. Sem André Breton não teria tido a força para achar que era sequer legítimo tentar fazer o que faço. Acho que o cinema de terror é uma forte expressão do movimento surrealista.

Faz-me Companhia é a prova de que com pouco se pode fazer muito. Duas actrizes, uma casa, uma história simples, o resto é a tua imaginação a trabalhar. Como surgiu a ideia para este filme? 

Gonçalo Almeida: Imaginei que uma piscina poderia funcionar como metáfora para representar o espaço que duas pessoas ocupam numa relação amorosa. Quando estamos dentro de água, não vemos nem ouvimos o que está do lado de fora. E quando estamos fora de água, não vemos nem ouvimos o que se passa dentro de água. Ou seja, cada pessoa ocupa a sua realidade e ausência de comunicação entre as duas realidades poderá causar ruptura e até tragédia.

Como foi todo o processo de rodagem? Como foi trabalhar com a Filipa Areosa e a Cleia Almeida, ainda para mais com a particularidade da Cleia estar grávida?

Gonçalo Almeida: A equipa e o elenco portou-se optimamente. A Cleia surpreendeu-me muito, pois estando grávida, manteve o profissionalismo e o nível de trabalho que eu esperava. Tanto a Cleia como a Filipa foram actrizes que me deram a sua confiança e me ajudaram a ultrapassar as dificuldades que tive que enfrentar durante a rodagem. Sendo um filme independente, Faz-me Companhia foi rodado em pouco tempo e com pouco dinheiro, o que faz com que o processo tenha sido mais difícil do que é normal. Desta forma, foi bom contar com uma equipa e elenco lutadores e competentes para enfrentar as adversidades que surgiram no nosso caminho. 


Em Faz-me Companhia, para além da paranóia crescente, encontrei uma espécie de hino à feminilidade e à maternidade. Fiz uma leitura correcta das tuas intenções? O que pretendias transmitir com este filme?

Gonçalo Almeida: Penso que tenhas feito uma leitura correcta das minhas intenções. Fui criado por mulheres muito fortes e num ambiente, de certa forma, matriarcal. Interesso-me portanto em entender melhor as mulheres, trabalhando personagens femininas. O que pretendia transmitir no filme, nele está implícito. A reflexão sobre a solidão, nas suas diversas formas, é algo recorrente no meu processo mental.

Porque é que o público português deve ir ver o teu filme?

Gonçalo Almeida: Acho que numa altura destas precisamos de outro tipo de terror do que aquele a que nos estão a tentar habituar. Precisamos de ficção, de sonhar, chorar e ter medo, tudo isto num ambiente seguro. Precisamos de expressar essas emoções de forma catártica e em segurança.