Para honrar a memória e celebrar o legado extraordinário de Arthur Moreira Lima, um dos maiores brasileiros de todos os tempos, publicaremos a integral da coleção Meu Piano/Três Séculos de Música para Piano – seu testamento musical – de 16 de julho, seu 85° aniversário, até 30 de outubro de 2025, primeiro aniversário de seu falecimento. Esta é a nona das onze partes de nossa eulogia ao gigante.
Partes: I | II | III | IV | V | VI | VII | VIII | IX | X | XI
Arthurzinho das massas estava em todas nos anos 80.
O embrião de tal onipresença foi sua participação no Circuito Universitário, iniciativa que desde o começo da década anterior levava grandes nomes da MPB para campi, teatros, ginásios e quaisquer outros espaços em que eles coubessem. Sempre destemido, Arthur foi o primeiro músico de concerto a embarcar numa turnê do Circuito – e, convenhamos, o único capaz de aceitar um convite desses. Partiu de São Paulo, onde então morava, e prosseguiu de Kombi para Campinas e outras dez cidades do interior do estado. A experiência foi-lhe como um Caminho de Damasco: habitué de tantas paragens mundo afora, conhecedor de cada parada ao longo da Trans-Siberiana, Arthur enfim começava a descobrir seu país e a acolhida que as massas nos ginásios davam àquele pianista de raríssima figura, com cabeleira roqueira, calças de brim e a inseparável jaqueta de couro de alce.
Não que tenha deixado a casaca de lado, como atesta, entre outros, o projeto Bach-Chopin que realizou com João Carlos Martins. Tampouco deixou de ter preocupações fonográficas: farto da miríade de percalços para que seus discos fossem distribuídos pelas gravadoras e decidido decerto a cultivar mais uma úlcera, fundou o selo L’Art, tendo como sócio Lauro Henrique Alves Pinto, um dos “Filhos da Pauta”. Inda assim, preferia os mocassins e os pés na estrada. Xodó das multidões, para as quais era quase sinônimo de piano brasileiro, desfrutava uma liberdade incomum de escolher onde, como e com quem aparecer: mais que arroz de festa, o rei do rolê aleatório.
Se não, vejamos: depois de quase tocar com Elomar no formigueiro humano de Serra Pelada – com direito a transporte em avião da FAB, piano incluso -, acabou na não menor muvuca do Festival de Águas Claras, o “Woodstock” brasileiro, onde dividiu palco com Luiz Gonzaga (“esse cabra é tão bom que toca até Luiz Gonzaga”, foi o veredito do próprio) numa noite encerrada por João Gilberto. Às línguas de trapo que o acusavam de buscar as massas por estar em decadência técnica, respondia dando um tempo às turbas para, numa visita à Polônia, tocar (e gravar) Rachmaninoff desse jeito:
Sossegou? Claro que não: deixou São Paulo e mudou-se para o Rio, o qual voltou a chamar de morada depois de vinte anos. Foi fagocitado quase que de imediato pela boemia e requisitado em cada cantina, restaurante ou boteco onde, entre biritas, se cultivasse a boa prosa. Na confraria conhecida como “Clube do Rio”, aproximou-se de Millôr Fernandes, que prontamente reconheceu o potencial da avis rara e lhe escreveu um show, que também dirigiu – e assim, não mais que de repente, nascia “De Repente”.
Alternando textos de Millôr com bitacos de Arthur e grande música dos dois lados do muro da infâmia entre o dito “erudito” do assim chamado “popular”, o show foi um triunfo. Não demoraria para que o showman chegasse às telinhas, a convite de Adolpho Bloch, fundador da Rede Manchete. Conhecera-o em Moscou, nos seus tempos de Conservatório, mas estreitaram o convívio no Rio, frequentando o mesmo barbeiro, praticando o idioma russo e divertindo-se a falar, sem que ninguém mais compreendesse, bandalheiras impublicáveis. Conquistado por aquele tipo maravilhoso que parecia pronto para TV, Bloch ofereceu-lhe carta branca para criar um programa semanal. Arthur pediu alto e levou: recebeu duas orquestras, dirigidas por Paulo Moura, que também lhe fazia os arranjos, e a crème de la crème da música brasileira no rol de convidados. Nascia Um Toque de Classe, carregado daqueles momentos que, ao imaginá-los na TV aberta, fazem-me questionar em que sentido, enfim, roda a fita da civilização:
Arthur, que nunca foi muito afeito ao canto, ficou especialmente impressionado com a voz de Ney Matogrosso, que buscava novos rumos para sua carreira depois do frisson que causou com suas performances no extinto conjunto Secos & Molhados:
Ney, inacreditavelmente, ainda não se convencera de que era cantor. Arthur sugeriu que deixasse de lado a maquiagem e figurinos estrambólicos que até então tinham marcado sua carreira e que, de cara lavada, apostasse em sua rara voz. Não demorou até que o belíssimo contralto de Ney, tratado como afinado instrumento, estivesse a dividir o palco com outros quatro virtuoses.
Assim, na luxuosa companhia de Arthur, Paulo Moura (saxofone), Chacal (percussão) e Raphael Rabello (violão de sete cordas), Ney inaugurou uma nova fase em sua carreira com o show O Pescador de Pérolas. De lambujem, aproximou-se de Rabello, há já muitos anos um dos maiores violonistas do mundo, com quem mais adiante gravaria À Flor da Pele, que, em minha desimportante opinião, é um dos álbuns mais sensacionais que Pindorama deu ao mundo. O Pescador de Pérolas também virou disco, ainda que se lamente que o som do piano de Arthur, aparentemente, tenha sido captado do fundo duma lata de azeite:
Lambuzado de mel pelas massas e com saudades, talvez, de ferroadas, Arthur resolveu atirar-se no vespeiro: instigado por seu guru Darcy Ribeiro, aceitou a nomeação para alguns cargos públicos no Governo do Rio. Sob sua direção, o Theatro Municipal e a Sala Cecília Meireles receberam em seus palcos muita gente que seus habitués não deixariam nem entrar pela porta dos fundos, como a Velha Guarda da Portela. Divertindo-se com o previsível reproche de quem via violados seus espaços exclusivos e sacrossantos. Arthur ligou aquele famoso botão e prosseguiu: tocou em favelas (uma imagem de “Rocinha in Concert”está no cabeçalho dessa postagem) e chamou a Orquestra de Câmara de Moscou para tocar com ele em teatros, ao ar livre e em presídios. Quem o chamava de decadente – nem sempre por méritos artísticos – acabava por ter que deglutir cenas como as do Projeto Aquarius, em que o suposto ex-pianista e a Sinfônica Brasileira tocavam para Fla-Flus de gente:
Para refrescar-se das saraivadas de tomates, o Rei do Rolê Aleatório foi harmonizar seu piano com uma das vozes mais distintas do Brasil, o barítono de Nelson Gonçalves. Com alguns milhares de canções no repertório, escolher o que iria para o álbum foi por si só uma empreitada. O mais difícil, com sobras, era a incompatibilidade de relógios biológicos: Nelson acordava na hora em que Arthur ia dormir. Ainda assim, com cantor no fuso horário de Bagdá e pianista no de Honolulu, a parceria deu liga e rendeu um dos melhores álbuns de suas imensas discografias, O Boêmio e o Pianista:
Miacabo com Arthur e sua cara de “acordei agora”
Durante a extensa turnê com Nelson por mais de trinta cidades brasileiras, Arthur encantou-se com a tranquilidade e o clima ameno de Florianópolis e resolveu, enfim, lançar nela sua âncora. Trouxe seus pianos para perto do mar e até deve ter contemplado a ideia de sossegar. O sucesso da coleção “Meu Piano”, que vendeu um milhão de CDs a preços módicos em bancas de revistas, mostrou-lhe que o público não queria seu sossego. Pelo contrário: ainda havia muito mais gente a conquistar, nos vastos horizontes brasileiros, a ser buscada em seus últimos recantos, mesmo nas grotas que nunca tinham visto um piano. Assim, o rei das harmonizações improváveis juntou um Steinway com uma caçamba de Scania e partiu, como orgulhoso Camelô da Música (o termo é dele), para a mais épica jornada jamais empreendida por um artista brasileiro.
ARTHUR MOREIRA LIMA – MEU PIANO/TRÊS SÉCULOS DE MÚSICA PARA PIANO
Coleção publicada pela Editora Caras entre 1998-99, em 41 volumes
Idealizada por Arthur Moreira Lima
Direção artística de Arthur Moreira Lima e Rosana Martins Moreira Lima
Volume 24: CLÁSSICOS FAVORITOS V
Johann Sebastian BACH (1685-1750)
Do Pequeno Caderno para Anna Magdalena Bach:
Christian PETZOLD (1677–1733)
1 – No. 2: Minueto em Sol maior, BWV Anh. 114
Johann Sebastian BACH
2 – No. 20: Minueto em Ré menor, BWV Anh. 132
Anton DIABELLI (1781-1858)
Das Sonatinas para piano, Op. 168:
3 – Moderato cantabile
4 – Andantino
Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)
Das Duas Sonatinas para piano, WoO Anh. 5
5 – Sonatina em Sol maior
Robert Alexander SCHUMANN (1810-1856)
Do Álbum para Jovens, Op. 68
6 – O Camponês Alegre
7 – O Cavaleiro Selvagem
8 – Siciliana
9 – Um Pequeno Romance
10 – São Nicolau
Béla Viktor János BARTÓK (1881-1945)
Seis Danças Populares Romenas, Sz. 56
11 – Do Bastão
12 -Do Lenço
13 – Sem Sair Do Lugar
14 – Da Trompa
15 – Polka Romena
16 – Finale: Presto
Heitor VILLA-LOBOS (1887-1959)
Do Guia Prático para Piano, Primeiro Álbum:
,17 – Acordei de Madrugada
18 -A Maré Encheu
19 – A Roseira
20 -Manquinha
21 – Na Corda Da Viola
[as obras de Villa-Lobos não estão disponíveis pelos motivos aqui listados]
Pyotr Ilyich TCHAIKOVSKY (1840-1893)
Das Doze Peças para piano, Op. 40:
22 – No. 2: Chanson triste
Enrique GRANADOS Campiña (1867-1916)
Das Doze Danças Espanholas:
23 – No. 5, “Andaluza”
Edvard Hagerup GRIEG (1843-1907)
Das Peças Líricas, Op. 43:
24 – No. 6: “À Primavera”
Achille Claude DEBUSSY (1862-1918)
Dos Prelúdios, Primeiro Livro:
25 – No. 8: La fille aux cheveux de lin
Dmitry Dmitryievich SHOSTAKOVICH (1906-1975)
Das Danças das Bonecas, Op. 91:
26 – No. 1: Valsa Lírica
27 – No. 4: Polka
28 – No. 5: Valsa-Scherzo
Scott JOPLIN (1868-1917)
29 – The Entertainer
Arthur Moreira Lima, piano
Gravação: St. Philip’s Church, Londres, Reino Unido, 1998-99
Engenharia de som: Peter Nicholls
Piano: Steinway & Sons, Hamburgo
Produção, edição e masterização: Rosana Martins Moreira Lima, na Cia. de Áudio, São Paulo, 1999.
Volume 28: CLÁSSICOS FAVORITOS VI
Antônio CARLOS GOMES (1836-1896)
Transcrição de Nicolò Celega (1846-1906)
Da ópera Il Guarany:
1 – Protofonia
Carl Maria Friedrich Ernst von WEBER (1786-1826)
2 – Convite à Dança, Op. 65
Franz Peter SCHUBERT (1979-1828)
Dos Quatro Improvisos para piano, D. 899:
3 – No. 4 em Lá bemol maior
Jakob Ludwig Felix MENDELSSOHN Bartholdy (1809-1847)
4 – Rondo Capriccioso, Op. 14
Johannes BRAHMS (1833-1897)
Das Valsas para piano, Op. 39:
5 – No. 1 em Si maior
6 – No. 2 em Mi maior
7 – No. 3 em Sol sustenido menor
8 – No. 6 em Dó sustenido maior
9 – No. 15 em Lá bemol maior
George GERSHWIN (1898-1937)
10 – Rhapsody in Blue
Gravação: St. Philip’s Church, Londres, Reino Unido, 1999
Engenharia de som: Peter Nicholls
Piano: Steinway & Sons, Hamburgo
Produção, edição e masterização: Rosana Martins Moreira Lima, na Cia. de Áudio, São Paulo, 1999.
Volume 38: CLÁSSICOS FAVORITOS IX – TRANSCRIÇÕES CÉLEBRES
Ferenc LISZT (1811-1886)
Dos Doze Lieder de Franz Schubert, S. 558:
1 – No. 9: Ständchen
2 – Miserere du Trovatore de Giuseppe Verdi, S. 433
Do Wagner-Liszt Album:
3 – Isoldes Liebestod
4 – Liebeslied, S. 566 (baseada em Widmung, Op. 25 no. 1 de Robert Schumann)
De Années de Pèlerinage – Deuxième Année: Italie, S. 161:
5 – No. 5: Sonetto 104 del Petrarca
Johannes BRAHMS
Transcrição de Percy Grainger (1882-1961)
Das Cinco Canções, Op. 49:
6 – No. 4: Wiegenlied
Aleksandr Porfirevich BORODIN (1833-1887)
Transcrição de Felix Blumenfeld (1863-1931)
De Príncipe Igor, ópera em quatro atos:
7 – Dança Polovetsiana no. 17
George GERSHWIN
Transcrição de Percy Grainger
8 – The Man I Love
Oscar Lorenzo FERNÁNDEZ (1897-1948)
Transcrição de João de Souza Lima (1898-1982)
Da Suíte Reisado do Pastoreio:
9 – No. 3: Batuque
Arthur Moreira Lima, piano
Gravação: All Saints Church, Tooting, Londres, Reino Unido, 1999
Engenharia de som: Peter Nicholls
Piano: Steinway & Sons, Hamburgo
Produção, edição e masterização: Rosana Martins Moreira Lima, na Cia. de Áudio, São Paulo, 1999
Volume 40: CLÁSSICOS FAVORITOS X
Charles-François GOUNOD (1818-1893)
1 – Ave Maria (Meditação sobre o Primeiro Prelúdio para piano de Johann Sebastian Bach)
Johann Sebastian BACH
Da Fantasia e Fuga em Dó menor, BVW 906:
2 – Fantasia
Franz SCHUBERT
Três Valsas:
3 – Op. 9 nº 1
4 – Op. 9 nº 2
5 – Op. 77 nº 10
Fryderyk Franciszek CHOPIN (1810-1849)
Dos Doze Estudos para piano, Op. 10:
6 – No. 3 em Mi maior
Ferenc LISZT
Dos Três Estudos de Concerto, S. 144:
7 – No. 3: Un Sospiro
Johannes BRAHMS
Dos Três Intermezzi para piano, Op. 117:
8 – No. 2 em Si bemol menor
Leopold Mordkhelovich GODOWSKY (1870-1938)
9 – Alt-Wien
Isaac Manuel Francisco ALBÉNIZ y Pascual (1860-1909)
De Chants d’Espagne, Op. 232:
10 – No. 1: Prélude (Asturias)
Joseph Maurice RAVEL (1875-1937)
11 – Pavane pour une infante défunte
Manuel de FALLA y Matheu (1876-1946)
Transcrição do compositor
Do balé El Sombrero de Tres Picos:
12 – Danza del Molinero
Gabriel Urbain FAURÉ (1845-1924)
Transcrição de Percy Grainger
Das Três Melodias, Op. 7:
13 – No. 1: Après un Rêve
Ludomir RÓŻYCKI (1883-1953)
Transcrição de Grigory Ginzburg (1904-1961)
14 – Valsa da Opereta Casanova
Antônio CARLOS GOMES
15 – Quem Sabe?
Arthur Moreira Lima, piano
Gravação: All Saints Church, Tooting, e Rosslyn Hill Chapel, Londres, Reino Unido, 1999
Engenharia de som: Peter Nicholls
Piano: Steinway & Sons, Hamburgo
Produção, edição e masterização: Rosana Martins Moreira Lima, na Cia. de Áudio, São Paulo, 1999
“9ª parte da entrevista do pianista Arthur Moreira Lima a Alexandre Dias, em que ele abordou os seguintes tópicos, sobre sua carreira na década de 1990: concertos que tocou no morro da Mangueira e na Rocinha; período em que foi diretor da Sala Cecília Meireles; período em que foi subsecretário de cultura do estado do RJ, encarregado do interior; sua colaboração com o cantor Nelson Gonçalves; o recital que realizou juntamente com Ana Botafogo; seu disco dedicado ao compositor Brasílio Itiberê; a grande coleção de 41 CDs “Meu piano”, lançada pela Caras em 1998; a caixa de 6 CDs “MPB – Piano collection”, dedicada a Dorival Caymmi, Chico Buarque, Tom Jobim, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Roberto Carlos; disco dedicado a Astor Piazzolla, com arranjos de Laércio de Freitas”
Vassily