Abençoada por um clima ameno e uma localização privilegiada, a linda Nagasaki já tinha para contar uma longa história de interação com forasteiros antes de, há exatos oitenta anos, receber de seus céus a mais hedionda das surpresas.
Os primeiros a chegar foram os portugueses, a quem chamaram nanbanjin (“bárbaros do sul”). Depois, os ingleses e neerlandeses foram algo melhor recebidos, decididamente não por sua aparência (que os levou a serem denominados kōmōjin,“gente ruiva”), e sim porque em sua pauta costumava estar só o comércio, e não o proselitismo católico que acompanhava os lusos, reprimido ao longo de vários xogunatos com uma violência que transformou o Japão numa usina de mártires. A reabertura dos portos japoneses, já no século XIX, trouxe ao maravilhoso porto natural de Nagasaki uma variada fauna estrangeira que aquela nação, provavelmente a de maior homogeneidade étnica de todos os tempos, perplexamente denominou ijin (“pessoas diferentes”). Com o tempo, consolidou-se o termo gaijin (“pessoa de fora”), que, aos poucos, ganhou uma conotação pejorativa que o faz ser preterido em conversas educadas em prol do polido gaikokujin (“pessoa de país estrangeiro”).
A primeira bomba atômica foi lançada sobre Hiroshima em 1945, seguida por uma segunda bomba sobre Nagasaki.
Em 1954, uma bomba de hidrogênio explodiu no atol de Bikini. A tripulação do Daigo Fukuryu Maru, um barco de pesca do porto de Yaizu, foi coberta pelas cinzas da morte. Seis meses depois, Kuboyama Aikichi morreu. Os japoneses foram vítimas de armas nucleares três vezes.
[Posfácio, maio de 1983]
Não apenas os japoneses, mas também os micronésios próximos ao atol de Bikini foram atingidos pela precipitação radioativa mortal da bomba de hidrogênio. Toda a ilha foi poluída. Aqueles que fugiram retornaram posteriormente à sua terra natal, Bikini, apenas para desenvolver câncer e leucemia devido à radiação residual. Muitos ainda sofrem.
Yaizu e Bikini — um destino compartilhado.
[1955]
Atacada meros três dias depois de Hiroshima, Nagasaki pareceu sempre tocar segundo violino para sua icônica irmã de desgraça. Hiroshima foi, desde o começo, a primeiríssima da infame lista de alvos escolhidos a dedo pelos perpetradores entre as mui poucas cidades japonesas de algum tamanho que ainda não tinham sido arrasadas por bombardeios incendiários (porque de nada valeria, segundo suas mentes brilhantes, testar o poder de destruição da arma nova onde só houvesse escombros). Já Nagasaki e suas duzentas e cinquenta mil almas não eram sequer o alvo preferencial da alegre trupe do Bockscar naquela quinta-feira de tempo casmurro: a ordem era de atacar a cidade de Kokura (hoje distrito de Kita-Kyushu), mas os céus encobertos fizeram a carga mortífera ser transportada ao alvo alternativo. As nuvens que salvaram Kokura quase repetiram a dose sobre Nagasaki, até que uma infeliz brecha entre elas permitiu o despejo de Fat Man diretamente sobre a Catedral de Urakami, aniquilando imediatamente quarenta mil pessoas e outras tantas nos meses seguintes.
Se Hiroshima, plana como uma panqueca, fora arrasada por completo por um artefato menos poderoso que Fat Man, Nagasaki acabou relativamente poupada pelo relevo montanhoso e pela localização periférica do hipocentro da explosão. Além disso, o ataque, que atingiu em cheio o subúrbio católico de Urakami, fez um número desproporcional de vítimas entre dois grupos tradicionalmente segregados: os supracitados cristãos, e os burakumin, casta associada a profissões consideradas impuras, em especial aquelas ligadas à morte, como coveiros, açougueiros e trabalhadores de curtumes. Assim, com o fardo mais letal caindo sobre lombos já marginalizados, Nagasaki nunca considerou o ataque, ao contrário de Hiroshima, como parte central de sua identidade. “A bomba caiu em Urakami, não em Nagasaki”, dizia-se na época, enquanto os jornais mostravam a catedral destruída, na tentativa de associar a desgraça às suas vítimas cristãs, e alguns praticantes do xintoísmo, então religião oficial do Império, insinuavam que a destruição vinha como castigo pela aceitação da religião agourenta trazida do estrangeiro.
Parem a bomba atômica! Parem a bomba de hidrogênio! Parem a guerra!
O apelo das mães do bairro de Suginami, em Tóquio, espalhou-se por todo o Japão. Crianças, mães, pais, idosos e trabalhadores de todos os tipos assinaram a petição.
Pela primeira vez, o clamor abafado do povo foi ouvido, e milhões assinaram a petição pela paz.
[1955]
Os cristãos de Nagasaki, uma vez mais acuados, não demorariam a encontrar seu ícone em meio às ruínas: Takashi Nagai, um médico que sobreviveu a explosão e, a despeito de seus graves ferimentos, dedicou-se de maneira abnegada a cuidar dos feridos. Ao retornar à sua casa, dias depois do ataque, encontrou, de sua esposa, apenas alguns ossos e o rosário derretido. Católico devoto, tido como santo pelos correligionários, Nagai foi uma figura controversa por afirmar que a destruição da comunidade cristã fora um sacrifício divinamente inspirado que, aceito por Deus, teria posto um fim à guerra – o que, para seus muitos críticos, privava as vítimas do ataque, dentre outros, do direito à ira, à revolta e à busca de reparação. Antes de morrer de leucemia aos quarenta e três anos, certamente em consequência da radiação, publicou suas memórias, intituladas “Os Sinos de Nagasaki”, que foram levadas às telas do cinema num longa-metragem homônimo de grande sucesso. Sua canção-título, Nagasaki no Kane, composta pelo veterano Yuji Koseki em 1949, viria a ser a primeira obra musical a citar o ataque, ainda que de maneira muito tangencial: à sombra da ferrenha censura das forças ocupantes, a canção, discorre sobre os sentimentos de Nagai, enlutado e mortalmente doente, a alentar-se de esperança ao ouvir os sinos da catedral reconstruída – sem que haja qualquer menção ao que a destruiu:
Mesmo olhando para o céu mais brilhante,
sinto dolorosamente a tristeza mais profunda.
No mundo humano sempre ondulante,
sou apenas uma flor silvestre passageira:
Tranquilamente, alegremente, em Nagasaki,
Soam os sinos de Nagasaki.Convocada por Deus, minha esposa
Voltou para o céu, me deixando só neste mundo.
Quando olho para o rosário que deixou de lembrança,
Só encontro os traços das minhas lágrimas:
Tranquilamente, alegremente, em Nagasaki,
Soam os sinos de Nagasaki”[traduzido livremente pelo autor]
Nagai também publicou vários poemas que foram postos em música. Seu principal parceiro foi o hibakusha Fumio Kino, um músico amador que, como ele, perdera a casa e a família no ataque. Uma das composições da dupla, Ano ko (“Aquela criança”, 1949), homenageia os trezentos alunos da Escola Primária Yamasato incinerados pela explosão, ao contemplar os vestígios deixados por um deles:
Os rabiscos permanecem na parede,
O nome daquela criança,
rabiscado em letras infantis.Grito em voz baixa e
me esforço para ouvir:Ah, se aquela criança ainda estivesse viva…
[traduzido livremente pelo autor]
A escola foi reconstruída, e Ano Ko é anualmente cantada por seus alunos nas cerimônias de 9 de agosto em Nagasaki, assim como outra composição de Kino, Kora no mitama yo (“As Almas das Crianças”), homenagem à Escola Primária Shiroyama e suas quatrocentas vítimas, também honradas em coro por seus colegas de hoje em dia.
Pais foram forçados a abandonar filhos presos sob casas destruídas, filhos abandonaram pais, maridos abandonaram esposas e esposas abandonaram maridos, todos em fuga frenética do incêndio. Essa era a realidade na época da bomba atômica.
Ainda assim, em meio a tudo isso, muitos testemunharam a visão milagrosa de crianças que sobreviveram, seguras firmemente nos braços de suas mães mortas.
[1959]
Afora esses tributos pequenos, ainda que muito célebres, houve poucas outras contribuições de compositores japoneses em honra às vítimas do ataque a Nagasaki. A mais significativa delas viria quase trinta anos depois de Fat Man: em 1974, a cidade encomendou um poema sinfônico com seu nome a Ikuma Dan, que regeu a estreia e, aparentemente, perdeu sua partitura. Nagasaki passou cinquenta anos sem reapresentações até ser reconstruído e novamente executado ano passado, vinte e três anos após a morte do compositor. Outra contribuição, muito singela, é a canção Senbazuru (“Mil Grous”), composta por Michiru Ōshima com letra da hibakusha Kanae Yokoyama. Nascida em Nagasaki, Ōshima estreou-a na cerimônia do quinquagésimo aniversário do ataque à sua cidade, dedicando-a à menina Sadako Sasaki. Exposta à radiação em Hiroshima e desenganada pela leucemia, Sadako acreditava poder salvar-se se completasse mil tsuru (grous, símbolos tradicionais de convalescência e longevidade) em origami, a arte japonesa de dobraduras em papel. Sadako faleceu ao completar 646, e seus colegas providenciaram para seu funeral os tsuru que faltavam. Desde então, centenas de milhares de tsuru são anualmente enviados ao memorial consagrado a Sadako em sua cidade por gente do mundo todo – inclusive este escriba.
Reafirmando o compromisso com a paz,
Nós dobramos grous escarlates.Almas de coração puro,
Nós dobramos grous brancos.Em emoções ardentes,
Nós dobramos grous vermelhos.
Como puderam perceber, a indignação e as evocações cataclísmicas tão prevalentes nas composições japonesas inspiradas pelo ataque a Hiroshima estão virtualmente ausentes naquelas alusivas a Nagasaki. “Hiroshima se enfurece, Nagasaki reza”, diz-se no Japão. E parece mesmo que sim: ao reconstruir-se como a cidade aberta ao mundo que sempre almejou ser, Nagasaki tentou dar de ombros para as lembranças dolorosas da guerra. Seus visitantes de hoje em dia, diferentemente de quem vai a Hiroshima, só encontram indícios dos horrores de 9 de agosto de 1945 se os buscarem muito ativamente. Por isso, talvez, a maior parte dos tributos musicais que lhe foram prestados não veio de compositores japoneses, e sim de dedicados gaikokujin.
O primeiro entre eles (e, por muito tempo, também o único) foi o enfant terrible Alfred Schnittke, que apresentou seu oratório Nagasaki (1958) como peça de formatura aos catedráticos de composição do Conservatório de Moscou. Levou tomates, como sempre, e foi acusado de formalismo – o que lhe deve ter inspirado gargalhadas histéricas pelo resto de sua vida, cada vez que imaginava como a sisuda banca examinadora reagiria ao poliestilismo que marcaria seu estilo maduro. Mais ainda: foi obrigado a aguar as tintas sonoras com que descreveu a explosão e suas consequências, o que descaracterizou tanto a obra que o levou a renegá-la e esquecê-la. O oratório só voltaria a ser apresentado na forma original quarenta e oito anos após sua estreia, em sua primeira apresentação pública, na magnífica Cidade do Cabo. Felizmente para nós outros, a sorte resolveu sorrir um pouco para Schnittke depois de sua morte, e hoje há em sua Rússia natal tanto um Instituto Musical como uma orquestra e um coro que levam seu nome, e são eles que lhes trarão Nagasaki na gravação que ofereço, exatamente como seu autor a concebeu.
Ao contrário daquela peça homônima mais célebre (baixe-a aqui), escrita por Penderecki num exercício de abstração e dedicada à vítimas de Hiroshima somente a posteriori, o canadense R. Murray Schafer (autor do interessantíssimo livretinho A Nova Paisagem Sonora) tinha em mente os gritos, queimaduras e ventos nucleares que assolaram Nagasaki ao compor sua Trenodia (1970). Nas palavras do autor:
“Os textos lidos pelos jovens narradores em ‘Trenodia’ são relatos de crianças testemunhando o bombardeio atômico de Nagasaki em 9 de agosto de 1945. A orquestra e os coros ilustram essa cena aterrorizante. Recebi a encomenda de uma peça para a Orquestra Sinfônica Júnior de Vancouver logo após chegar para lecionar na Universidade Simon Fraser.
Eu queria escrever uma peça para aqueles jovens intérpretes que os fizesse refletir sobre questões sociais. A Guerra Fria estava a todo vapor em 1967, e os estoques de armas nucleares estavam crescendo rapidamente. Eu sabia que esses relatos extremamente explícitos de sofrimento e morte afetariam tanto os intérpretes quanto seus pais, forçando-os a considerar seriamente as consequências de uma guerra nuclear. Como havia inúmeras passagens em que os intérpretes eram obrigados a criar sua própria música para acompanhar textos específicos, eles tinham um papel mais sério a desempenhar do que se tivessem simplesmente herdado uma expressão pronta do compositor. Houve lágrimas após a apresentação.
Mas também me lembro de um homem que se aproximou de mim, desafiador, e disse: ‘Vamos lançar de novo!’. Remoí por meses que uma obra dedicada à causa da paz tenha provocado sentimentos tão raivosos. Mas, graças a Deus, nenhuma bomba atômica foi lançada desde então“.
Em 6 de agosto, os sete rios de Hiroshima enchem-se de lanternas flutuantes, com os nomes de pais, mães e irmãs gravados.
A maré muda antes que as lanternas cheguem ao mar, e elas são levadas de volta para a cidade pelas ondas. Agora apagadas, a massa de lanternas amassadas flutua nas correntes escuras do rio.
Naquele dia, no passado, esses mesmos rios fluíam densos de cadáveres.
[1968]
Igualmente inventiva é a composição Vozes de Nagasaki, do flautista neerlandês Wil Offermans, que faz parte da Suíte Dejima, criada por Offermans em conjunto com o Templo Kofuku-ji em Nagasaki para celebrar os 400 anos de relações entre os Países Baixos e o Japão. Inspirada pela longa tradição de interações culturais da cidade, a peça descreve sua beleza e a da natureza circundante. As “vozes aleatórias” humanas previstas na partitura representam vozes do passado e, por isso, são expressões de alegria, de medo, de amor e da existência humana em geral. Para a apresentação, as várias partes de flauta também podem ser duplicadas, com um grupo maior, de preferência o público, assumindo as “vozes aleatórias”. O resultado é encantador.
Cerca de trezentos mil japoneses morreram devido às bombas atômicas que vocês lançaram. Mas suas bombas atômicas também mataram 23 jovens do seu próprio país. Americanos que haviam saltado de paraquedas em ataques aéreos antes do bombardeio de Hiroshima foram mantidos lá como prisioneiros de guerra. Alguns disseram que também havia mulheres prisioneiras de guerra.
Nós nos perguntamos como elas eram quando morreram, que roupas, que sapatos usavam.
Fomos a Hiroshima e ficamos chocados com o que descobrimos. Como os prisioneiros de guerra americanos estavam mantidos em abrigos subterrâneos perto do centro da explosão, eles provavelmente teriam morrido em pouco tempo. Ou, talvez, alguns pudessem ter sobrevivido. Mas, antes que seu destino pudesse ser conhecido, os japoneses os massacraram, soubemos.
Tremíamos enquanto pintávamos a morte dos prisioneiros de guerra americanos.
[1971]
A obra mais significativa em cinco décadas a se inspirar em Nagasaki veio a público ano passado. Encomendada pela Orquestra Sinfônica de Saint Paul, capital do estado norte-americano de Minnesota e cidade-irmã de Nagasaki desde 1955, Green Hope after Black Rain (“Esperança Verde após Chuva Negra”) foi composta por Steve Heitzeg em tributo não só às vítimas dos ataques ao Japão, mas também aos japoneses e seus descendentes que foram confinados em campos de concentração nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra. Seu título faz referência às imensas canforeiras do santuário Sannō de Nagasaki, que, arrancadas e calcinadas pela explosão, foram dadas como mortas até que lhe surgissem brotos. Replantadas no seu lugar original, servem desde então de símbolo da reconstrução da cidade e da esperança de seus moradores em que da devastação, por fim, algum dia ressurgiria a vida. Nas palavras de seu compositor:
“Compus ‘Esperança Verde Após a Chuva Negra’ (Sinfonia para os Sobreviventes de Manzanar, Hiroshima e Nagasaki) em homenagem aos sobreviventes dos campos de concentração nipo-americanos (o maior dos quais foi Manzanar, no estado da Califórnia] e às pessoas e árvores bombardeadas em Hiroshima e Nagasaki.
A sinfonia é um apelo à paz e um protesto contra a injustiça, a bomba atômica e outras armas de destruição em massa, e a insanidade da guerra.
A partitura inclui vários instrumentos de percussão natural, como galhos, folhas, flores de cerejeira secas e vagens de sementes de ginkgo biloba, eucalipto, cânfora e cerejeiras de Hiroshima e Nagasaki, um tambor taiko, pedras do campo de concentração nipo-americano de Manzanar e de Hiroshima, um sino de templo e guirlandas de tsuru de origami.”
A gravação que compartilho foi feita a partir da transmissão por rádio da estreia mundial da obra, dada pela orquestra de Saint Paul no ano passado. Para minha grata surpresa, quando esta postagem já estava no prelo, soube que a première japonesa aconteceu há algumas semanas, quando as Orquestras de Saint Paul e de Nagasaki tocaram juntas no Japão. Melhor ainda: ela foi gravada em vídeo e está disponível na cyberesfera:
Minha homenagem às vítimas de Nagasaki encerra-se com a mais improvável das contribuições. Afinal, enquanto o garoto Franz Schubert escrevia Heidenröslein em 1815, aos dezoito anos, o Japão vivia o isolamento do período Edo, samurais singravam seu território a serviço de senhores feudais, e tanto aeronaves quanto a fissão nuclear estavam ainda muito distantes dos céus japoneses. Na segunda metade daquele século, a abertura dos portos às nações estrangeiras levaria a organização política e a sociedade do país a rápidas transformações. A música europeia tomou de assalto os salões recém-formados, e a educação musical foi incorporada ao currículo das escolas. A urgência em criar e expandir um repertório para os conjuntos vocais escolares levou não só a arranjos de canções tradicionais, como também a versões japonesas de canções europeias – entre elas, a da pequena rosa baldia imaginada por Goethe, transformada em japonês numa rosa selvagem (Nobara), que se tornou imensamente popular entre as crianças do Japão, muitas das quais sequer imaginam que a música foi composta por um genial gaikokujin.
Os leitores-ouvintes que assistiram a Rapsódia em Agosto (1991), o penúltimo filme do demiurgo Akira Kurosawa, talvez tenham reconhecido nele a melodia da rosa baldia, cantada pelas crianças que visitam a avó hibakusha em Nagasaki e ouvem da anciã suas reminiscências de luto e ressentimento. Talvez também tenham, como eu, achado a primeira hora e tanto do filme algo simplória e esquemática, e assim mordido a isca deixada pelo velho Kurosawa, mestre consumado do movimento e da manipulação, só para serem conduzidos àquela cena final que…
Bem, que nunca mais lhes permitirá escutar Nobara sem que ela lhes rasgue os corações.
Japoneses e coreanos se parecem. Como distinguir um rosto impiedosamente queimado do outro?
‘Após a bomba, os últimos cadáveres a serem eliminados foram os coreanos. Muitos japoneses sobreviveram à bomba, mas pouquíssimos coreanos. Não havia nada que pudéssemos fazer. Corvos vieram voando, muitos deles. Os corvos vieram e comeram os globos oculares dos cadáveres coreanos. Eles comeram os globos oculares.’ (Dos escritos de Ishimure Michiko.)
Os coreanos foram discriminados até mesmo na morte. Os japoneses discriminaram até mesmo os cadáveres. Ambos foram vítimas asiáticas da bomba.
Lindos chima-jeogori [traje nacional coreano], voem de volta para a Coreia, para o céu sobre a pátria. Humildemente oferecemos esta pintura. Rezamos.
Cerca de cinco mil coreanos morreram em massa em Nagasaki, para onde foram levados como trabalho forçado para os estaleiros da Mitsubishi. Há histórias semelhantes sobre coreanos em Hiroshima.
Somente na Coreia do Sul, quase quinze mil hibakusha vivem hoje sem reconhecimento oficial de seu status como sobreviventes da bomba atômica.
[1972]
NAGASAKI, ANO 80
Yūji KOSEKI (1909-1989)
Letra de Hachirō Satō
1 – Nagasaki no Kane (“Os Sinos de Nagasaki”)
Yumi Aikawa, contralto
Meisterbrass Quartett
Fumio KINO (1907-1970)
Poemas de Takashi Nagai (1908-1951)
2 – Ano ko (“Aquela Criança”)
3 – Shirayuri otome (“Virgens como os Lírios Brancos”)
Ensemble Vocal Ephémère
Fumio KINO
Poema de Hachirō Shimauchi
4 – Kora no mitama yo (“As Almas das Crianças”)
Coro dos alunos da Escola Municipal Shiroyama de Nagasaki
Alfred Garrievich SCHNITTKE (1934-1998)
Nagasaki, oratório para coro misto, mezzo-soprano, orquestra sinfônica e órgão, Op. 19
5 – “Nagasaki, cidade da dor” (poema de Anatoly Sofronov )
6 – “A Manhã” (poema de Tōson Shimazaki )
7 – “Naquele dia fatídico” (poema de A. Sofronov)
8 – “Nas Cinzas” (poema de Eisaku Yoneda)
9 – “O Sol da Paz” (poema de Georgy Fere)
Ksenia Vyaznikova, mezzo-soprano
Evgenia Krivitskaya, órgão
Coro e Orquestra Sinfônica do Instituto Estatal de Música “Schnittke” de Moscou
Igor Gromov, regência
Raymond Murray SCHAFER (1933-2021)
10 – Threnody (“Trenodia”), para coro e orquestra de jovens, cinco narradores e música eletrônica (1970)
Carole Hoskins, Elizabeth Luther, Ellen Procunier, Eric Mah e Marg Turl, narradores
Lawrence Park Collegiate Choir
Lawrence Park Collegiate Orchestra
North Toronto Collegiate Orchestra
John P. Barron, regência
Steve HEITZEG (1959)
Green Hope After Black Rain (“Esperança Verde após Chuva Negra), Sinfonia para os sobreviventes de Manzanar, Hiroshima e Nagasaki (2024)
11 – Peregrinação ao Campo de Internação de Manzanar (um conjunto de variações contra a injustiça, dedicado à memória de Sue Kunitomi Embrey): “Remoção Forçada” – “Na Entrada do Campo de Internação de Manzanar” – “Ireito (Torre de Consolação da Alma)” – “No Túmulo do Bebê Toshiro ‘Jerry’ Ogata” – “Relembrando Manzanar (Nidoto Nai Yoni: ‘Que isso não aconteça novamente.’)” – “Os fantasmas de Manzanar”
12 – Vento sem Retorno (para os hibakusha – o povo bombardeado), dedicado a Setsuko Thurlow: “Sombras Nucleares” – “Guirlandas de tsuru de Papel de Origami” – “Rumo a Mil tsuru de Origami”
13 – Sementes da Paz (para as hibakujumoku — as árvores bombardeadas de Hiroshima e Nagasaki), dedicada a Nassrine Azimi e Tomoko Watanabe: “Dança das Sementes” — “Entre Árvores Sagradas” — “Testemunha das Árvores” — “As Cerejeiras de Kayoko” (21 notas para os 21 dias de busca de Tsue Hayashi por sua filha Kayoko) — “A Cura das Folhas”
The Saint Paul Civic Symphony Orchestra
Jeffrey Stirling, regência
Gravação da estreia mundial
Wil OFFERMANS (1959)
14 – Voices of Nagasaki (“Vozes de Nagasaki”) para conjunto de flautas
Conjunto de Flautas de Zagreb
Ikuma DAN (1924-2001)
15 – Nagasaki, Poema Sinfônico para coro misto e orquestra (1974)
Coro da Federação Coral de Nagasaki
Orquestra Sinfônica de Kyushu
Ikuma Dan, regência
Gravação da estreia mundial
Michiru ŌSHIMA (1961)
Letra de Kanae Yokoyama
16 – Senbazuru (“Mil Grous”)
Coro da Federação Coral de Nagasaki
Orquestra Sinfônica de Nagasaki
Masanori Mikawa, regência
17 – Senbazuru
Amane Machida, soprano
Franz Peter SCHUBERT (1797-1828)
Poema de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), traduzido por Sakufu Kondo (1880-1915)
Arranjo de Shin’ichirō Ikebe (1943) para a trilha sonora do filme Hachigatsu no Kyōshikyoku (“Rapsódia em Agosto”) de Akira Kurosawa (1991)
18 – Nobara (“Rosa Selvagem”), versão japonesa de Heidenröslein, D. 257
Coro Infantil Hibari (Hibari Jido Gasshodan)
A cidade-alvo de Kokura estava coberta por nuvens espessas, e os dois B-29 voaram para o alvo alternativo, o porto de Nagasaki. A visibilidade também era ruim, então a bomba atômica foi lançada sobre a siderúrgica Mitsubishi, nos arredores da cidade.
A bomba explodiu diretamente acima da catedral católica em Urakami, matando os padres e aqueles que ali se reuniam para o culto. Os mortos foram espalhados em círculos concêntricos infinitos, com a catedral no centro.
A bomba de Nagasaki era feita de plutônio e era mais poderosa que a bomba de Hiroshima. Mais uma bomba atômica. Nagasaki foi devastada. Cento e quarenta mil pessoas morreram.
[1982]
As pinturas e legendas que ilustram esta postagem são parte da série de quinze Painéis de Hiroshima, realizada entre 1950 e 1982 pelo casal Iri e Toshi Maruki, e que se encontra em exibição permanente na Galeria Maruki, em Saitama, Japão (exceto o último painel, intitulado Nagasaki, doado ao Museu da Bomba Atômica daquela cidade). Convido os leitores-ouvintes uma vez mais a me acompanharem numa doação em prol da preservação dessas inestimáveis obras de arte, bem como em outra para apoiar a ICAN (Campanha Internacional para Abolição das Armas Nucleares), recipiente do Prêmio Nobel da Paz de 2017, e ajudar a manter, entre outras iniciativas, seu Memorial às 38 mil crianças mortas nos ataques.
Publicado no 80° aniversário do ataque criminoso a Nagasaki e dedicado à memória de suas dezenas de milhares de vítimas inocentes.
Nunca as esqueceremos.
Vassily