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Monday, 13 January 2014

Blogger convidado: "Visão artística e mecenato", por Filiz Ova-Karaoglu (Turquia)

Quando conheci a Filiz e ouvi-a apresentar o seu trabalho, lembro-me que sorri. Apesar de tranquila e algo reservada, estava a explodir com ideias e parecia que não sabia como lidar com todas elas, o que fazer com elas. Neste post escreve sobre o seu trabalho na Sala de Concertos Is Sanat, financiada pelo banco homónimo. Os equilíbrios não são fáceis de manter, especialmente nos dias de hoje, mas a Filiz está a criar um caminho, constantemente a aprender, a experimentar, clara sobre os seus objectivos. mv

Buika Symphonic, 24 Maio 2013 (Foto: Ilgın Yanmaz)
As dificuldades financeiras nas instituições culturais são um assunto permanente na nossa área. Especialmente em países onde o apoio à cultura é algo que ainda e sobretudo diz respeito a entidades privadas, com muito pouco apoio da parte do governo. Até os pioneiros que têm mais sucesso neste sector não são sempre economicamente eloquentes. Temos a tendência de esquecer que estamos a gerir um negócio e que, apesar de não termos fins lucrativos, temos que manter as nossas instituições activas. Muito recentemente, vimos umas das mais destacadas instituições culturais turcas prestes a perder o seu edifício devido a um grande buraco financeiro. Salva pelos seus fundadores – uma grande empresa – no último momento antes de perder o seu lindo edifício, coloca a questão do envolvimento de instituições financeiras na cultura e na arte: deveriam manter-se apenas como mecenas ou interferir directamente no trabalho?

O crescente envolvimento das empresas nas instituições culturais não parece tão rebuscado. Não agem como um patrocinador, mantidas à distância e convidadas apenas para as festas, mas são uma parte essencial do nosso plano estratégico e da tomada de decisões. Num ambiente onde a indústria cultural está a florescer, com grandes investimentos em várias formas artísticas, desde as galerias de arte moderna aos museus, desde espaços para concertos e artes performativas às arenas, a questão é se os profissionais de cultura tem um know how suficiente sobre questões económicas, sociológicas e de marketing. E precisam de ter?

Sim, realmente. Vejo um modelo onde o envolvimento directo nas estratégias financeiras e de marketing é um ponto vital e uma grande vantagem. Ter o patrocínio de uma grande empresa e, ao mesmo tempo, ser parte da sua estrutura interna, proporciona uma estrutura estável e sustentável de estratégias de marketing e comunicação e permite a adaptação a um ambiente em constante mudança, sociologicamente, estrategicamente e economicamente. Apesar disto trazer alguma dependência de certas doutrinas adoptadas pela empresa e de certas expectativas, penso que podemos criar um compromisso, desde que o nosso trabalho artístico possa continuar a fluir livremente. Essas doutrinas não têm necessariamente que ser restritivas. Existem excelentes exemplos, como a Bienal Internacional de Istambul, que foi realizada com sucesso e que é, sem dúvida, um dos projectos mais corajosos e inovadores na sua área a nível internacional, especialmente a sua última edição, que enfrentou um realidade sócio-política bastante difícil na Turquia.

Mesmo assim, iria distinguir uma relação meramente de patrocínio de uma relação de interacção com uma empresa. Consideraria a questão do patrocínio um apoio externo no âmbito de uma visão artística existente, enquanto na relação de interacção é desenvolvida uma visão artística coerente. Esta não deveria estar baseada de forma alguma em preocupações ligadas ao sucesso comercial, embora tenhamos que olhar para a nossa viabilidade. Uma iniciativa nova, sem garantias de sucesso, precisa de paciência, mas, sobretudo, de uma visão baseada numa missão sólida. Apesar de não podermos registar grandes números, existem, felizmente, alguns exemplos em várias áreas, como galerias de arte, museus e espaços para as artes performativas.

L.A. Dance Project, 10 Maio 2013 (Foto: Ilgın Yanmaz)
A adopção de uma visão a longo prazo baseada em princípios de sustentabilidade resulta numa instituição estável, enraizada num terreno comercial e artístico sólido. Se isto poderia associar-se à criatividade e à liberdade artística, estaríamos num mundo perfeito de utopia artística. Mas mesmo assim, existem modelos de trabalho. Is Sanat foi fundado em 2000 como uma espaço para concertos que acolheria várias formas artísticas. A partir dessa altura, recebeu uma grande variedade de espectáculos, desde a música clássica ao jazz, músicas do mundo, actividades para crianças, recitais de poesia, música tradicional turca, concertos de pop e acoustic rock, uma série com jovens artistas emergentes, e muito mais. O espaço inclui ainda uma galeria de arte que recebe quatro retrospectivas por ano. Sendo uma entidade inovadora numa zona que se tornou num dos bairros de negócios e compras mais populares da cidade, com instituições artísticas emergentes e uma grande variedade de eventos culturais, continua a ser até hoje, de muitos pontos de vista, a única instituição do género.

Com base em certos princípios que foram definidos desde a fundação da nossa instituição, coerentes com as doutrinas de sustentabilidade e longevidade dos nossos mecenas, sendo nós a equipa artística, desenvolvemos um pacote, um casulo artístico à volta destes princípios, que apresentamos como sugestão aos nossos mecenas, e que eles têm a amabilidade de aceitar. Em troca, desenvolvemos as estratégias certas para o nosso ‘casulo artístico’, incluindo marketing e comunicação. É uma interacção mútua, um modelo de dar e de receber um do outro. Nesse sentido, a abertura para a mudança é um factor importante no nosso trabalho. Reinventámo-nos a nós próprios de várias formas ao longo dos anos. A mudança demográfica do nosso público levou-nos a incluir novos géneros na nossa programação, tal como teatro para a infância, a série Rising Star de concertos de acoustic rock, que provaram ser muito populares depois de um certo período de tempo. Mas, mais uma vez, foi preciso tempo para se desenvolverem e acentar. Juntos abraçamos um ambiente artístico, económico e social em mudança, ano após ano. Mantendo-nos fiéis aos nossos princípios, desenvolvemos e crescemos. No próximo ano Is Sanat vai celebrar o seu 15º ano neste modelo de colaboração. Uma vez que estamos constantemente a desenvolver, não sabemos se isto não vai mudar. Mas, para nós, provou ter sucesso nos últimos 14 anos e só podemos esperar que continue a tê-lo para muitos mais anos no futuro.

Nota:
Quando fazia a revisão deste artigo, a minha colega e amiga Maria, que me convidou para escrever no seu blog, perguntou e com razão:”Se nós profissionais da cultura precisamos de nos interessar e adquirir know-how em assuntos económicos, as empresas que participam no nosso trabalho precisam de saber de arte?”. Diria que um entendimento do conteúdo artístico seria necessário, sim. Mas se for comunicado em detalhe e correctamente pela equipa artística, isto não deveria causar problemas. Como referi, uma vez que o nosso trabalho artístico tem fluído livremente e temos estado a trabalhar à volta do conceito artístico, verificamos que no nosso caso a maioria das estratégias tem funcionado bem. Não tem sido impecável e ao longo dos anos temos encontrado obstáculos no nosso entendimento mútuo. Depois de 14 anos, no entanto, desenvolvemos uma unidade.



Filiz Ova-Karaoglu é directora artística da sala de concertos Is Sanat. Is Sanat tem uma lotação de 800 lugares e apresenta uma temporada de 7 meses com uma programação variada de artes performativas. Tendo trabalhado para a Is Sanat desde 2008 como Directora Assistente, Filiz Ova-Karaoglu foi nomeada Directora Artística em Janeiro 2013. É Mestre em História de Arte e Estudos Americanos pela Eberhard Karls University Tubingen, onde  continua os seus estudos a nível de doutoramento. É Summer Fellow no DeVos Institute of Arts Management no Kennedy Center for the Performing Arts.

Monday, 2 December 2013

Blogger convidado: "Construindo memórias", por Ricardo Brodsky (Chile)

Ricardo Brodsky, Director do Museo de la Memoria y los Derechos Humanos em Santiago de Chile, abriu a conferência da Museums Association em Liverpool no passado dia 11 de Novembro. A fotografia que o museu colocou no Facebook fez-me logo sentir pena de não ter podido assistir ao seu discurso. Mas contactei o Ricardo e ele teve a amabilidade de me enviar o seu texto e de autorizar a sua publicação neste blog. Apresentamos aqui uma versão editada, mais curta, mas existe um link no fim para os interessados em ler o texto na íntegra. mv


Este é o nosso 11 de Setembro, o início da história à qual irei referir-me e que inspirou o Museo de la Memoria y los Derechos Humanos (MMDH) no Chile.

1. Memória

A memória não é um exercício nostálgico. A memória é a nossa identidade, o que somos. Poderíamos dizer que a memória habita em nós de tal forma que define as nossas ideias sobre o presente, os nossos valores e a nossa percepção do futuro.

No seu texto La Muralla y los Libros, Jorge Luís Borges fala do Emperador Shih Huang Ti, que construiu a muralha da China e ordenou, ao mesmo tempo, que todos os livros produzidos antes dele fossem queimados. Com a muralha pretendia proteger o seu país dos inimigos externos e queimou os livros porque os seus opositores recorriam a eles quando queriam louvar os seus antepassados. O mesmo foi testemunhado nos anos de Pinochet, quando as instituições do país foram destruídas, desapareceram pessoas, foram queimados livros e as pessoas ligadas à cultura e história popular foram banidas porque, de alguma forma, representavam todas uma epopeia que tinha que ser abolida.

Uso a palavra ‘abolida’ e não a palavra ‘esquecida’ de propósito. O género de memória de que estamos a falar não equivale à capacidade de armazenamento de um disco rígido num computador, onde tudo é registado sem hierarquia. O oposto à memória não é o esquecimento mas a abolição, a eliminação. A memória funciona com eventos exemplares, com o que nos permite aprender lições, dar sentido à experiência vivida. A memória é, por isso, um passo mais alto, além do trauma e dos sentimentos de desespero, solidão e depressão que a memória pode causar. A memória é o que permite à vida continuar, com a esperança de voltarmos atrás, de voltarmos a nos apoiar nos nossos próprios pés. Com uma narração sobre o nosso passado e uma aposta sobre o nosso futuro.

2. Ligações

No MMDH trabalhamos com material que é extremamente complexo e sensível: verdade, justiça, vitimização, memória, reconciliação, reparação. Todas estas são ideias que nos questionam permanentemente e que nos obrigam, repetidamente, a reflectir sobre os conceitos que são a base do nosso trabalho. É impossível, no entanto, perceber a nossa instituição se não percebermos o processo do qual resultou, assim como as necessidades sociais e políticas que é suposto serem consideradas.

Em 11 de Setembro de 1973 começou uma das experiências políticas mais traumáticas do Chile. As forças armadas, lideradas por uma junta militar de comandantes-em-chefe, levantou as armas contra o Governo de Unidade Popular de Salvador Allende, instalando uma ditadura cruel que durou 17 anos, suprimindo os direitos legais e cometendo graves violações contra os direitos humanos, que resultaram na morte e desaparecimento de mais de três mil pessoas e a prisão política e tortura de mais quarenta mil, assim como o exílio de quase um milhão de Chilenos.  

Dezassete anos mais tarde, no seguimento da vitória da oposição num referendo realizado em 1988, com o objectivo de prolongar o governação de Pinochet, foi iniciada uma transição complexa e difícil para a democracia, que incluiu enfrentar as dívidas espinhosas deixadas pela ditadura, não apenas na esfera social e política, mas especialmente na área da recomposição moral da nossa sociedade, ou seja, na esfera da verdade, da justiça e dos direitos humanos. As políticas de direitos humanos do governo democrático têm-se centrado em quatro pilares ou exigências básicos: verdade, justiça, reparação e memória.

Museo de la Memoria y los Derechos Humanos (Foto: MMDH)
3. Verdade

Quando a democracia foi recuperada, o primeiro esforço na área dos direitos humanos no Chile foi no sentido de procurar estabelecer a verdade sobre as mais sérias violações dos direitos humanos cometidas durante a ditadura de Pinochet. Foram estabelecidas duas comissões, envolvendo pessoas com altas credenciais, que afirmaram que as violações dos direitos humanos cometidas por agentes do estado eram massivas, sistemáticas e tinham sido aprovadas ao mais alto nível do governo de então. Esta afirmação, apoiada pela existência de provas e testemunhos irrefutáveis, permitiu ao país saber a verdade sobre a existência de mais de 3.000 detidos-desaparecidos e executados e permitiu ainda dar um segundo passo muito relevante, que foi a abertura da possibilidade de estabelecer políticas de reparação para as vítimas e as suas famílias. Em 2003, a segunda comissão, criada para investigar os casos de pessoas que foram presos políticos e que tinham sido torturadas, reconheceu a existência de 38.254 vítimas de tortura.  

4. Justiça

A luta pela justicça no processo de transição tem sido o aspecto mais difícil e polémico. Desde o fim do regime militar e até 1998, a investigação judicial teve, em geral, escassos progressos e era normal os tribunais aplicarem um decreto de amnistia passado pela ditadura militar. Em 1998, com a detenção de Pinochet em Londres, ordenada pelo juiz espanhol Baltazar Garzón, foram criadas novas condições, que produziram, lentamente mas gradualmente, alguns progressos nas investigações judiciais, que permitiram identificar aqueles directamente responsáveis por violações dos direitos humanos. Hoje em dia, existem 1.426 casos abertos, dos quais 1.402 lidam com desaparecimentos ou assassinatos. No entanto, apenas 66 agentes servem penas de prisão, entre eles algumas figuras-chave da DINA (Departamento de Inteligência Nacional) e da CNI (Agência de Inteligência Nacional); 173 agentes foram condenados mas não estão na prisão, por várias razões, e existem ainda 528 agentes cuja acusação foi concluída, mas que ainda não tiveram uma sentença definitiva. 

5. Construindo memória

Neste contexto, o governo de Michelle Bachelet criou em 2010 o Museo de la Memoria y los Derechos Humanos, como um projecto de reparação moral ou simbólica para as vítimas da ditadura e como um projecto educativo, de forma que as novas gerações possam entender o valor do respeito pelos direitos humanos.

Museo de la Memoria y los Derechos Humanos

O MMDH, onde a sociedade chilena cumpre simbolicamente o seu dever de memória, olha directamente para o seu passado e dá resposta ao direito de memória para as vítimas da ditadura. As suas origens podem ser encontradas nas recomendações do relatório de verdade de 1991 e na afirmação em 2004 da UNESCO que os arquivos de varias organizações de direitos humanos do Chile fazem parte da memória do mundo. Além disto, existe uma exigência por parte das organizações de familiares e vítimas de abusos dos direitos humanos. O museu dispõe da maior colecção de documentos, fotografias, testemunhos e filmes sobre a ditadura no país e expõe-los ao público, procurando criar empatia pelas vítimas e fazer reviver os valores e lições das experiências de abusos dos direitos humanos. Os grupos de vítimas estão activamente envolvidos na vida do museu e sentem-se incluídos.

A missão do MMDH é “dar a conhecer as violações sistemáticas dos direitos humanos em nome do estado chileno entre 1973 e 1990, de forma a – reflectindo eticamente sobre a memória, a solidariedade e a importância dos direitos humanos – a vontade da nação seja reforçada, para que não se repitam nunca mais repetidas acções que afectam a dignidade humana”.

Museo de la Memoria e los Derechos Humanos (Foto: MMDH)
Qual o lugar deste museu na sociedade chilena hoje?

Pierre Nora disse que os Lugares de Memória são construções que procuram “fazer parar o tempo, bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado das coisas, imortalizar a morte, materializar o que é imaterial de forma a cativar o maior número de sentidos no menor número de sinais”. Neste sentido, o MMDH tem como missão recuperar e preservar os vestígios desse passado traumático, dar testemunhos do sofrimento, de forma que o conhecimento do público sobre o que se passou possa quebrar o círculo de silêncio e impunidade e dar ênfase à necessidade de prevenir que algo assim volte a acontecer. Noutras palavras, o Museo de la Memoria, como expressão de uma política pública de reparações, é o principal gesto do Estado de reparação moral para as vítimas da ditadura: é aqui que a história ou a biografia de cada uma das vitimas é encontrada ou construída e onde a sua dignidade, que lhes foi arrancada, lhes é devolvida. O MMDH tornou-se numa referência para o país e a região, estando a ser construídos projectos similares em países como Peru, Brasil, Argentina e Colômbia.

Dito isto, devo também dizer que este é um projecto localizado na terra das controvérsias. Cada museu que lida com histórias traumáticas sabe da tensão entre história e memória, entre a explicação dos acontecimentos organizados cronologicamente e a experiência subjectiva das memórias apoiadas por testemunhos. Os museus de memória enfrentam, precisamente, o desafio de conjugar esta tensão, de forma que os testemunhos possam ser exemplares e representativos, transcendendo a mera experiência pessoal ou aquela dos grupos directamente afectados. Apenas resolvendo esta tensão de uma forma positiva pode a mensagem ser universal e ligar as exigências para verdade e justiça com um imaginário democrático mais amplo.

De acordo com alguns, a museografia do MMDH coincide com o que Pierre Nora chama de transformação da memória em história, ou seja, “depende completamente do que é mais preciso nos rastros deixados, do que é mais natural nos destroços, do que é mais concreto nos registos, o mais visível na imagem”. Certamente, os visitantes enfrentam os vestígios do passado, as caras dos desaparecidos, o bombardeamento de La Moneda, os testemunhos dos que foram torturados, a angústia das famílias. São forçados a viver uma experiência de apreensão, de compaixão, empatia e emoção. Mas encontram também os documentos, os ficheiros legais, os decretos que levam a uma experiência de confronto, de análise, de comparação, de visualização do contexto em que a violência teve lugar. Neste sentido, o museu propõem uma narrativa capaz de transmitir sentido, começando por um sentimento de empatia para com as vítimas.

A criação do MMDH gerou uma grande controvérsia no país desde o primeiro dia. Estes são precisamente os tópicos desta conferência. Como lidamos com questões sensíveis e controversas numa instituição que deve apresentar uma história que é ainda viva na sociedade chilena, uma vez que muitos dos seus actores ocupam ainda lugares públicos e as famílias chilenas vêem ou sofrem ainda as consequências desse período?

As atitudes críticas perante o Museu de la Memoria ou negam a existência de violações dos direitos humanos ou as justificam, invocando a necessidade de travar uma guerra contra uma ameaça representada por partidos marxistas. Há uma crítica mais ligeira da parte de outros grupos, acusando o museu de distorcer a história mostrando apenas um aspecto do período da ditadura (as violações dos direitos humanos) e fragmentando o tempo, não permitindo, assim, às pessoas visualizarem as causas da ditadura militar. Resumindo, os críticos apontam para a parcialidade do museu quando inclui uma visão desse período, aquela das vítimas. Isto significaria que a narrativa não é tão objectiva quanto devia e, sobretudo, que não nos permite saber porque é que teve lugar a crise política de 1973, culminando no golpe de estado e nas violações dos direitos humanos.

Instalação de Alfredo Jaar no Museo de la Memoria y los Derechos Humanos (Foto: Cristóbal Palma para o jornal El País) 
Para nós, a missão do museu é sensibilizar o público em relação à gravidade das violações dos direitos humanos no período Pinochet, e esta sensibilização não tem um propósito político ou eleitoral, mas, sim, um propósito moral, ou seja, transformar o respeito pelos direitos humanos num imperativo categórico na nossa coexistência, independentemente do contexto em que tem lugar.

O Museu não pode fingir estabelecer uma leitura inequívoca do passado. Pelo contrário, a sua perspectiva é abrir múltiplas possibilidades de leitura. É importante dizer que o MMDH é entendido como um museu vivo, aberto à reinterpretação da experiência e, por isso, fornece um espaço importante para a arte contemporânea. Prova disto é a presença de obras de arte na exposição permanente, tal como o poema de Jorge Tacla escrito por Victor Jara na prisão e o trabalho de Alfredo Jaar “A geometria da consciência”, que sugere que o diálogo é um tributo às vítimas.


Leiam o discurso na íntegra aqui.

Ricardo Brodsky Baudet é Director do Museo de la Memoria y los Derechos Humanos em Chile desde Maio 2011. Desenvolveu um projecto no Museo de la Memoria como um espaço de reflexão e de educação pública, dando mais importância à colecção e à exposição permanente e uma posição proeminente às artes visuais e vários eventos culturais relacionados com a memória e os direitos humanos. Foi Secretário-Geral da Federação de Estudantes no tempo da ditadura. Secretário Executivo da Fundação “Chile 21” em 1992, da Fundação “Proyectamérica” em 2006 e fundador e director da Fundação para as Artes Visuais de Santiago; organizador da primeira Trienal do Chile (2009). Foi consultor para a política cultural do Conselho Nacional para a Cultura e as Artes, Chile (2004-2007). Ocupou vários lugares no governo entre 1993 e 2010. Chefe da Divisão de coordenação interdepartamental da Secretaria-Geral do Ministério da Presidência (2007-2010), Embaixador do Chile na Bélgica e no Luxemburgo (2000-2004).


Monday, 18 November 2013

Blogger convidado: "Círculos de apoio", por Kateryna Botanova (Ucrânia)

Os meus dois amigos e colegas ucranianos, Ihor Poshyvailo e Kateryna Botanova, são a representação viva daquilo que é a Ucrânia hoje em dia. Um país que deseja fortemente preservar as suas tradições e destacar, assim, a sua distinta identidade cultural; um país determinado em olhar para a frente e para fora, em marcar a sua posição no mundo contemporâneo, livre de ideologias controladoras e de ofertas de “protecção”. Ihor escreveu para este blog no ano passado. Agora, é a vez da Kateryna partilhar connosco as suas ideias, ansiedades e, sobretudo, o enorme e consistente trabalho que ela e o resto da pequena equipa do Center for Contemporary Art tem estado a desenvolver, determinados em lutar contra as suas inseguranças e de ultrapassar os obstáculos para cumprirem a sua missão e assumir em pleno as responsabilidades que traçaram para eles próprios no sector cultural do seu país. mv

SPACES: Architecture of Common, CSM, 2013. Foto: Kosti​antyn Strilets, © CSM
A Ucrânia é um país peculiar onde a palavra “independente” significa algo completamente diferente do que no resto da Europa. Aqui, “cultura independente” e “instituição cultural independente” não estão apenas livres do controlo ideológico e/ou político do governo ou de qualquer outra entidade pública, mas são também definidas como não sendo dependentes de qualquer tipo de apoio financeiro público – porque não há.

Ser uma instituição cultural independente na Ucrânia significa escrever a sua própria missão de servir a comunidade, ser suficientemente corajoso para ver as lacunas na política cultural do Estado e tentar preenchê-las da melhor forma que puder, e ser completamente responsável pelo seu próprio futuro – financeiro e profissional.

No Foundation Center for Contemporary Art (CSM), Kiev, Ucrânia, começamos os nossos encontros mensais de planeamento com uma pergunta – para quem estamos a fazer isto? A nossa declaração de missão define que trabalhamos para criar uma plataforma de possibilidades para os profissionais da cultura – artistas, críticos, arquitectos, escritores, etc. – para promover a comunicação interdisciplinar, a experimentação e a inovação. Mas como é que o fazemos? Como é que sustentamos o seu trabalho quando o acesso à cultura está limitado - e, por isso, a apreciação por ela também – e não há apoios disponíveis, públicos ou privados? Quem pode criar círculos de compreensão e construir apoio para este género de arte?

O CMS é uma instituição independente e sem fins lucrativos criada em 2009, sucessor do Center for Contemporary Art estabelecido por George Soros em 1993, como parte da rede de centros de arte criada por Soros em toda a Europa Central e Oriental. Poucos sobrevivem hoje, sobretudo devido à falta de financiamento. O CSM sobreviveu graças a uma reestruturação significativa – de uma instituição grande, que tinha como objectivo apresentar o trabalho e promover a formação de artistas, para uma pequena e flexível equipa curatorial que procura promover produções experimentais, a crítica e o desenvolvimento de públicos.

Em 2010, um ano após esta transformação, quando tivemos que deixar de repente a nossa sede numa das principais universidades da capital e mudar-nos literalmente “underground”, para a cave de um prédio, Art Ukraine, uma das mais importantes revistas de arte na Ucrânia, incluiu o CSM na lista dos 10 mais importantes instituições artísticas da Ucrânia, destacando “o verdadeiro renascimento do CSM no sentido de se tornar uma das instituições mais activas”. Percebemos que a decisão desconfortável de continuarmos como uma instituição pequena - com base na convicção que é possível e necessário trabalhar nesta área onde nem as corruptas instituições estatais nem o ofensivo capital privado queiram entrar - estava certa.

SEARCH: Other Spaces. Workshop de Anton Lederer, CSM, 2012. Foto: Dmitro Shklyarov, © CSM 
A ideia de continuar a trabalhar – fazendo projectos multidisciplinares em espaços públicos, apresentando iniciativas e programas educativos e de auto-formação, criando novos espaços para o trabalho conjunto de artistas e públicos, fazendo pesquisa em história de arte e políticas culturais - foi importante. O CSM foi e ainda é um exemplo de resiliência e de criação de mudança. Enquanto nós estivermos a trabalhar, as instituições culturais independentes neste país poderão trabalhar também. É difícil, mas é possível.

Quanto mais longe vamos, melhor percebemos que, por enquanto, a maior mudança está na criação de círculos de apoio e compreensão dos públicos: apoio à cultura contemporânea e às ideias que esta articula – criando acesso não apenas aos produtos culturais, mas ao pensamento sobre o mundo em que vivemos e a sua compreensão através da cultura.

Foi em 2010 que nós no CSM tivemos a ideia de lançar uma plataforma para a reflexão crítica e a compreensão dos desenvolvimentos culturais contemporâneos – a revista digital Korydor. Criada inicialmente como uma ferramenta para a comunidade artística poder escrever e debater eventos, questões e problemas, conseguiu dentro de três anos reunir mais de 6000 leitores por mês. Quando tomámos a decisão no verão passado de lançar uma campanha de crowdfunding para a Korydor, tínhamos dúvidas e receio. A quem estamos a dirigir-nos? Os leitores de uma revista intelectual, num país sem tradição de pagar por produtos culturais, precisariam dela o suficiente para a apoiar financeiramente? Se conseguíssemos, o que é que este apoio significaria para a Korydor? Como é que a revista ia mudar? Como é que nós íamos mudar?

Mais de 200 pessoas apoiaram a Korydor, excedendo o objectivo inicial da campanha. Em três meses aumentámos o número de leitores em 20%, conseguindo mais e mais da comunidade artística para dar à comunidade de pessoas que querem que a arte faça parte da sua vida. As contribuições eram frequentemente acompanhadas pelo seguinte comentário: “(mesmo que não estivéssemos a ler a revista antes) estão a fazer algo tão importante, por favor, continuem!”.

A Korydor foi o primeiro meio de comunicação na Ucrânia que foi apoiado via crowdfunding. Seguiram-se outros, como o Public Radio, uma iniciativa independente que atingiu recentemente o seu objectivo de crowdfunding.

Project "Working Room" with Anatoliy Belov, CSM, 2013. Foto: Kostiantyn Strilets, © CSM
O CSM está a dar mais um passo no sentido de alargar o seu círculo de apoio. Daqui a três semanas, em colaboração com o Kyiv-Mohyla Business School, vamos lançar o primeiro programa especial para estudantes de MBA que permitirá a gestores de empresas falar, ver, ouvir e aprender com artistas ucranianos de diferentes géneros e gerações. Tentaremos pensar o nosso futuro juntos e ver como é que podemos todos permanecer independentes no nosso pensamento, expressão e compreensão mútua de quaisquer interesses restritos e necessidades medonhas. 


Kateryna Botanova é crítico de arte, curadora, investigadora em cultura contemporânea e políticas culturais, tradutora. Desde 2009, é a Directora do Foundation Center for Contemporary Art em Kiev, fundadora e editora principal do jornal cultural Korydor. Membro do Conselho Consultivo do festival FLOW (desde 2009), European Cultural Parliament (desde 2007), Vienna Seminar steering group (Erste Foundation, 2012), Public Council of Junist at Andrijivsky project (desde 2012), comissão de peritos do prémio PinchukArtCenter para Jovens Artistas ucranianos. A Kateryna trabalha na área do envolvimento social da arte nos processos transformativos das sociedades. Dá aulas e escreve sobre arte contemporânea, gestão cultural e crítica cultural. É Mestre em Estudos Culturais pela National University of Kyiv-Mohyla Academy. Em 2009 a sua tradução de Culture and Imperialism de Edward Said recebeu o prémio Ukrainian Book of the Year.

Monday, 4 November 2013

Blogger convidado: "Coreografia para uma estratégia de gestão", por Dóra Juhász (Hungria)

Quando fui convidada para ver X&Y pela companhia Pál Frenák em Budapeste no passado mês de Abril, não sabia que a nova gestora artística iria ser minha colega no fellowship do Kennedy Center no verão seguinte. Assim, quando vi Dóra Juhász pela primeira vez em Washington era como se estivesse a encontrar uma velha amiga. Dóra é jovem, cheia de energia, ideias e ambição. Pedi-lhe para escrever para este blog não só porque gostei muito do trabalho da companhia, mas também pela relação especial que esta mantém com públicos surdos. mv

InTimE, Compagnie Pál Frenák
O coreógrafo Pál Frenák tem uma expressão francesa especial para explicar aos seus bailarinos o que quer ver e o que quer alcançar durante o processo de criação: o frágil equilíbrio do “juste”. Quando o movimento, a presença e o conteúdo emocional em palco está “juste”; não mais, nem menos; suficiente e preciso; não criado pela rotina, não tímido ou esquecível, nem demasiado expressivo ou exagerado. “Juste” a intensidade que é precisa naquele momento, resultado de uma pesquisa profunda do corpo e da alma dos bailarinos, depois de semanas de improvisação e experimentação. Quando se atinge esse momento, temos de o reconhecer, de o cativar e manter, porque é precisamente o que precisamos. “Juste”.     

Depois trabalhar numa grande instituição de arte contemporânea durante 6 anos, com esquemas claros e definidos e estruturas já criadas, foi realmente inspirador para mim chegar à companhia de dança contemporânea franco-húngara, a Compagnie Pál Frenák (aqui e aqui), uma companhia independente internacionalmente reconhecida, que existe há 15 anos e que tem uma pequena equipa de gestão. Cheguei num momento em que a política cultural húngara está a mudar, a cena contemporânea de dança e teatro está a perder grande percentagem do seu orçamento anual e do subsídio estatal, enquanto não existe de todo no país uma tradição de financiamento de fontes privadas para a arte contemporânea. Passo a passo, tive que perceber o quanto é crucial encontrar o frágil equilíbrio, neste caso, criar uma estratégia de gestão adequada e apropriada para a minha organização neste momento específico, compreensível para os meus próprios artistas, mas inovadora, corajosa e adaptada às necessidades e ao contexto. Uma estratégia de gestão que fosse… “juste”.

Como é que se pode fazer isto? Como é que todos os nossos conhecimentos de gestão se podem transformar em algo que possa ser novo, provocantemente novo, e, ao mesmo tempo, sustentável, porque respira juntamente com a nossa companhia? Indo mais a fundo, explorando padrões na forma como os artistas trabalham e usá-los como fonte de inspiração para criar uma estratégia, uma campanha ou um projecto.  

SAIR DA ZONA DE CONFORTO, CRIAR DESEQUILÍBRIO

A infância de Pál Frenák foi marcada pelo facto dos seus pais terem uma deficiência auditiva e de fala profunda, o que fez com que a língua gestual fosse o seu primeiro meio de expressão. Isto tornou-o especialmente receptivo à mímica e aos gestos e a todas as outras formas de exprimir conteúdo com a ajuda do corpo humano. Para o Pál Frenák, a melhor técnica é simplesmente o mínimo. Procura, literalmente e fisicamente, desequilibrar os seus bailarinos e motivá-los a sair da sua zona de conforto e esquecer completamente a técnica aprendida.

Língua gestual, deixar a zona de conforto, criar circunstâncias físicas e mentais onde acontecem momentos de (auto)reflexão (claro que trabalhar com pessoas com deficiências auditivas tem sido uma parte importante da missão da companhia desde o princípio)… mas como é que estas componentes e forma de pensar podem influenciar a construção da estratégia dos nossos projectos de envolvimento dos públicos e estratégia educativa a longo prazo?

A equipa em Kunsthalle.
Criámos um pacote educativo para o nosso espectáculo Twins, onde convidámos adolescentes com e sem deficiências auditivas; durante o workshop de preparação nas escolas, trabalhámos intensivamente com eles em pequenos grupos separados – jogando jogos associativos, exercícios de movimento baseados na coreografia e o tema principal da peça – e todos os grupos trabalharam em conjunto com um especialista em drama com deficiência auditiva - que comunicava através da língua gestual -, um tradutor e um dos bailarinos da companhia. Finalmente, todos os grupos encontraram-se no espectáculo e houve também um workshop pós-espectáculo, onde todos participaram, e que combinava língua gestual e expressões verbais-vocais, usando o cenário do espectáculo. Depois disto, os nossos bailarinos visitaram os alunos nas suas escolas para um follow-up.

Organizamos regularmente conversas pós-espectáculo, onde grupos de pessoas com deficiências auditivas também participam, comunicando directamente com o coreógrafo em língua gestual – há um intérprete para o restante público. Porque é que isto é tão importante? Porque, tal como na sala de ensaios, estamos a criar fisicamente um desequilíbrio que provoca o pensamento para a maioria das pessoas na audiência, onde precisam de enfrentar uma situação em que se tornam numa minoria. Esta é a lógica e o quadro para a construção dos nossos projectos de envolvimento e desenvolvimento de públicos a vários níveis, com base no que se passa na sala de ensaios com os artistas, concentrando-nos sempre na procura de uma forte ligação entre a parte artística e a parte estrutural dos nossos projectos.

COMBINAÇÃO DA IDENTIDADE E DO FOCO DA ESTRATÉGIA

Na nossa estratégia de marketing envolvemos os nossos próprios bailarinos e convidamos fotógrafos e realizadores a criar conteúdos promocionais pessoais e únicos com material que encontram nos bastidores – por um lado, é uma boa forma de envolver o nosso público e trazê-lo mais próximo da vida diária da companhia Pál Frenák; por outro lado, está ajustado à equipa: como no processo criativo, o coreógrafo compõe os elementos de uma peça com base na personalidade dos bailarinos, e eles ficam mais ligados emocionalmente, envolvendo-os na estratégia de marketing cria a possibilidade de uma forma muito honesta e única de comunicação do nosso produto artístico também, e é mais que inspirador pensarmos em conjunto o até onde podemos chegar juntos.


O mesmo acontece com a nossa estratégia de fundraising e de assinaturas. A nossa companhia não tem o seu próprio espaço, por isso colaboramos com vários teatros. O que significa que podemos essencialmente oferecer aos nossos patrocinadores uma vista sobre a vida da companhia, em vez de, por exemplo, descontos no parque de estacionamento. Mas, para termos uma estrutura sustentável, quando optamos por uma forma ou evento para envolver os nossos futuros mecenas, precisamos de ver com atenção quem somos como companhia, mantendo-nos verdadeiros, honestos e livres. Se a companhia nunca quis organizar uma festa de ano novo, mas se existe, por outro lado, uma bonita tradição de nos juntarmos no 2 de Janeiro, é importante usarmos este evento para fundraising. Em alguns casos, vamos fazer picnics no parque com coreografias site-specific, em vez de organizarmos jantares formais, porque é isto o que somos; uma colecção de sacos criada por um designer de moda sobre uma peça, em vez de lápis ou ímans com logos como merchandising; porque é esta a nossa maneira.



Estamos, claro, a meio do processo, mas explorarmos juntos a identidade da companhia e encontrarmos ferramentas de gestão para estes elementos é, de alguma forma, uma actividade a longo prazo de construção de equipa, e também um desafio fantástico. Neste caso, a construção de uma estratégia de gestão é, realmente, um processo criativo – paralelo ao artístico. E quando tudo se compõe, quando a estratégia de gestão está sincronizada com a área artística e as duas encontram mutuamente a inspiração, quando está certo… não mais, nem menos do que precisamos… é a isso que chamamos… sabem… “juste”. 


Dóra Juhász é Gestora Artística da Compagnie Pál Frenák em Budapeste, Hungria. Coordena o planeamento estratégico, as relações internacionais, o branding, as digressões, o desenvolvimento de públicos, os patrocínios e o fundraising. Entre 2006 e 2012, foi Responsável de Imprensa e Comunicação para a Casa Trafó de Arte Contemporânea (Budapeste). É membro da Associação Húngara de Críticos de Teatro e dá regularmente palestras e participa em conferências em todo o mundo.

Monday, 21 October 2013

Blogger convidado: "Organizações culturais e comunidades: parceiros perfeitos", por Karen O'Neill (Reino Unido)

Não há nada mais inspirador do que ouvir a Karen O’Neill falar dos programas para o envolvimento da comunidade do Laurence Batley Theatre, onde é a Gestora. Sobretudo porque sentimos o quanto as intenções são focadas, sérias, honestas e sinceras. Tudo isto é muito mais que palavras; estas são as acções concretas de uma instituição cultural que não tem dúvidas quanto ao seu papel na comunidade em que se insere. Tudo isto é muito mais que defender o acesso e a construção de relações; é, realmente, fazê-lo acontecer. É a riqueza destas experiência que a Karen partilha connosco. mv

Todos a sentimos, aquela sensação estranha no estômago, uma mistura de excitação e nervosismo. A sensação que algo novo, algo grande está prestes a começar. É assim mesmo que nos sentimos neste momento no Laurence Batley Theatre (LBT) porque encontrámos a nossa cara metade. Sim, criámos uma parceria com uma comunidade nova!

Para uma instituição cultural, envolver-se com uma comunidade nova é como começar um novo romance. As fases são as mesmas: conhecer um ao outro, o maravilhoso período de lua-de-mel, crescer juntos e, claro, a inevitável ruptura.

Conhecer o outro
No LBT temos trabalhado nos últimos 5 anos no desenvolvimento de um programa e estratégia de envolvimento das comunidades que, tal como um verdadeiro gentleman, coloca as comunidades no centro, procurando encorajá-las a liderar e inspirar o seu trabalho. Trabalhamos com elas no sentido de criar caminhos através dos quais as pessoas possam explorar a sua própria criatividade e de as equipar para navegarem as artes. Aprendemos o quanto é importante as comunidades sentirem-se confiantes em relação ao seu envolvimento. Temos que ser pacientes e compreensivos, permitindo-lhes andar ao seu próprio ritmo. Damos resposta às vontades e desejos da comunidade com a qual criamos uma parceria, passando algum tempo a conversar e a descobrir em conjunto. O que se aprende durante esse tempo é vital para formar o envolvimento e construir uma boa base sobre a qual a relação possa florescer.

Iniciação ao teatro para adultos. (Foto: Peter Boyd)
Lua-de-mel
Sem dúvida, o melhor momento em qualquer relação, quando as coisas andam lindamente e, francamente, não podemos viver um sem o outro. O LBT oferece neste momento uma série de workshops, programas e projectos em resposta a tudo o que aprendemos sobre essa comunidade, as suas necessidades, pontos fortes, esperanças e pontos fracos. Através de um gestor de projecto que se dedica a esta parceria, o LBT procura criar fortes ligações com a comunidade e usar a criatividade como uma ferramenta para a mudança. Através de uma série de iniciativas, desde workshops de jogos criativos para jovens pais a projectos de teatro intergeracionais, o LBT usa a criatividade para gerar aspirações e promover a coesão.

The Courtyard Circus - evento de celebração produzido por jovens da comunidade (Foto: LBT) 
Crescer juntos
Quando a novidade se desgasta, é importante que ambas as partes dedicam algum tempo e energia para olharem para o futuro e enfrentar os obstáculos que possam prejudicar a relação. Como muitos especialistas em relacionamentos vos dirão, este pode ser o momento de avanço ou ruptura. Repetidamente, as instituições culturais caem de pára-quedas nas comunidades e não pensam para além da oferta inicial. É vital desenvolver um caminho entre a participação e a performance.   

No que diz respeito a um envolvimento sustentável, as instituições culturais devem trabalhar com as comunidades no sentido de identificarem e ultrapassarem as barreiras existentes. Da minha experiência em trabalhar com comunidades, sei que essas barreiras podem muitas vezes ser complexas e emotivas, podem estar relacionadas com o transporte, a confiança, o acesso, questões económicas, etc., etc. Apenas ultrapassando estas barreiras podem as comunidades passar de um compromisso de envolvimento a curto prazo (actividades gratuitas na sua área) para um compromisso de envolvimento (comprar bilhetes para um espectáculo) ou para um envolvimento alargado (participar num programa de teatro para jovens). É importante que as instituições culturais trabalhem com as suas comunidades no sentido de passar por estas etapas de envolvimento. Apenas porque alguém vem a um workshop de teatro no seu centro local não significa que automaticamente irá adquirir bilhetes para a temporada de teatro no seu teatro local. No LBT procuramos ultrapassar as barreiras usando várias tácticas, desde idas organizadas ao teatro, visitas guiadas e conversas com os funcionários do teatro, juntando diferentes grupos de teatro de jovens da comunidade, pensando em políticas de preços estruturadas, propondo visitas aos bastidores, etc. A nossa experiência ensinou-nos que esta etapa no envolvimento da comunidade é um factor chave para termos sucesso. A compreensão do papel importante que o envolvimento da comunidade tem no desenvolvimento de públicos ajuda o LBT a desenvolver públicos para hoje e para o futuro.

Re:Volt - peça produzida pela equipa do teatro com um elenco composto exclusivamente por membros da comunidade, apresentada no palco principal do LBT como parte da temporada de teatro. (Foto: Peter Boyd)

A separação é difícil
Todas as coisas boas têm um fim e, infelizmente, chega sempre o momento em que temos que nos afastar. O LBT compromete-se sempre a desenvolver um projecto de um mínimo de 3 anos com qualquer comunidade. Poderiam perguntar porque é que não ficamos mais tempo, mas a verdade é que as necessidades são muitas e os recursos poucos. Acreditamos que concentrando o nosso trabalho numa comunidade durante um período de tempo sustentável traz os melhores resultados para a comunidade envolvida e para o LBT. O LBT pensa na sustentabilidade de qualquer programa desde o primeiro momento, procurando promover projectos de capacitação paralelamente ao programa criativo. Entendemos que em parte o nosso papel é equipar as comunidades com capacidades e ferramentas que irão precisar para sustentar a prática criativa depois de nos irmos embora. Trabalhamos com a comunidade no desenvolvimento de uma estratégia de saída adaptada às suas ambições e planos para o futuro.

Podemos ainda ser amigos?
Claro que sim! Uma função fundamental de qualquer programa de envolvimento da comunidade é que serve como ferramenta para o desenvolvimento de públicos. O envolvimento da comunidade constrói um público forte e activo, extremamente envolvido com a instituição e que compreende os seus valores e também o seu valor como organização. Através das ligações profundas criadas com as comunidades através do envolvimento sustentável, o LBT tem criado públicos que estão apaixonados pelas artes e que compreendem o valor da prática criativa; um público que defende o LBT em fóruns e debates onde nós próprios nunca teríamos acesso.

Perante os cortes no financiamento, as autarquias começam a reduzir a sua oferta. É por isso vital que as instituições culturais abracem as suas comunidades e criem parcerias com elas. Através de programas de envolvimento sustentados e bem pensados, as instituições culturais podem criar uma base de públicos entusiasta e envolvida, já convencida que as artes e a cultura não são um luxo, mas, como as relações, uma parte essencial da vida.

                  

Karen O’Neill é a Gestora do Lawrence Batley Theatre (LBT) em Huddersfield West Yorkshire no Reino Unido. O LBT apresenta os melhores espectáculos ao vivo e trabalha de perto com a comunidade local. A Karen é responsável pelo desenvolvimento estratégico do teatro, desde garantir o futuro financeiro da organização através da angariação de fundos e criação de receitas à criação de um espaço onde a criatividade possa florescer. Começou a sua carreira como gestora de teatros comunitários, trabalhando tanto em projectos de envolvimento da comunidade como na estabilidade financeira das organizações. A seguir passou para as instituições de grande escala no sector do teatro comercial.  Neste momento, é fellow no DeVos Institute of Arts Management no Kennedy Centre em Washington D.C., onde se junta a gestores culturais de todo o mundo que procuram aprender, criar, capacitar-se e inspirar-se mutuamente.

Monday, 7 October 2013

Blogger convidado: "Qual cultura e de quem?", por Farai Mpfunya (Zimbabwe)

Conheci Farai Mpfunya há um ano no Kennedy Center e tive o prazer de partilhar com ele a sala de seminários, e algumas pausas para almoço, em dois verões consecutivos. O que mais gostei nas nossas conversas e ao ouvir os comentários de Farai nas aulas, foi o seu conhecimento sólido do sector cultural no Zimbabwe e no estrangeiro, assim como as suas opiniões ponderadas e equilibradas. Farai fala quando tem mesmo algo a dizer e sinto-me com sorte por o ter conhecido. mv

Cinema Mai Musodzi, Mbare (Foto: Farai Mpfunya)
Mbare, subúrbio de Harare, Zimbabwe.

A maioria dos meninos e das meninas que cresceram neste bairro nos anos 70 estava a cinco minutos de um cinema, de uma biblioteca, de um centro desportivo, de uma igreja e de uma escola. Um ambiente educacional e cultural rico para os pequenos, diriam. Ainda por cima, tratava-se de uma das mais diversas comunidades multi-étnicas. Muitas pessoas de todo o país e além fronteiras queriam viver na próspera capital de um pequeno país rico. Enquanto os residentes locais tinham trazido essas incrivelmente ricas culturas e a sua arte, a infraestrutura da cidade impôs uma cultura urbana e encorajou certo tipo de artes.
Qual Cultura e de quem?

Antes da independência do Zimbabwe do domínio britânico em 1980, Mbare era uma área onde viviam os pretos. Os brancos não viviam aqui, excepto, ocasionalmente, o pároco católico. Os polícias e superintendentes brancos das autoridades locais vinham apenas de manhã e iam-se embora à noite. Viviam nos subúrbios brancos ou em bairros resguardados pelas áreas industriais e comerciais.

Um par de ruas principais ligavam o bairro ao resto do mundo e essas ruas podiam ficar vedadas pela polícia quando os pais do meninos começavam a fazer barulho a propósito dos direitos humanos e das condições de vida na zona. A julgar pela forma como a polícia se comportava, os episódios esporádicos em que perseguiam os pretos com cães, motocicletas e veículos anti-motim, por vezes, para as crianças, parecia ser uma brincadeira de crescidos. Fazia tudo parte da paisagem cultural urbana. Uma pequena comunidade branca de origem europeia tinha governado o Zimbabwe desde 1896 e ‘construído’ uma nova ‘nação’, chamada Rodésia, cultura incluída.
Qual cultura e de quem? 

Nos anos 70, os meninos divertiam-se em Mbare nos cinemas. Viam o James Bond no Gold Finger e o James Coburn em A Man Called Flint e a seguir brincavam aos espiões. Viam cowboys e índios e depois do filme perseguiam índios no bairro. Viam o Bruce Lee em Enter The Dragon e imaginavam-se peritos em artes marciais.

Biblioteca Municipal de Mbare (Foto: Farai Mpfunya)
Na biblioteca local, alguns liam Shakespeare. Na escola falavam-lhes das viagens de descoberta de novos mundos e culturas de Cristóvão Colombo e de David Livingstone. Em casa, era-lhes dito que Livingstone descobriu e deu o nome às poderosas cataratas Victoria em honra da sua própria rainha. Essas mesmas cataratas faziam parte do seu património e eram conhecidas como Mosi-oa-Tunya (Tokaleya Tonga: o Fumo que troveja). Os professores pretos ensinavam nova história e cultura, enquanto os pais e os avós ensinavam a história e cultura antiga.

Nos anos 70, os meninos de Mbare divertiam-se nas piscinas públicas, cujo nome era de um dos primeiros colonos europeus que tinham expulsado os seus antepassados da sua terra. Na piscina clorada, sonhavam e treinavam para se tornarem Mark Spitz, vencedor em 1972 de sete medalhas de ouro e americano..., sem esquecer os fatos de banho Speedo. Jogavam futebol e davam-se uns aos outros novos nomes, como Pele e Sócrates, como os gigantes do futebol brasileiro. Abraçavam a cultura global antes do ‘global’ se tornar moda.
Qual Cultura e de quem?

O Zimbabwe teve eleições harmonizadas em Julho 2013, como acontece, mais ou menos, de cinco em cinco anos. Essas eleições foram declaradas pacíficas por todo o mundo. Muitos zimbabueanos tinham rezado para que prevalecesse a paz, em parte porque, da última vez, as eleições tinham-se tornado violentas em algumas zonas e o desenvolvimento tinha parado. Os zimbabueanos têm também uma genuína cultura de paz. Enquanto o partido no poder, ZANU (FP), estava obviamente eufórico com os resultados das eleições, porque ganharam com grande maioria, alguns ficaram surpreendidos e outros zangados. Mesmo assim, no dia a seguir, a vida no Zimbabwe continuava pacífica como antes das eleições. A vontade dos diversos povos do Zimbabwe tinha sido expressa. Fim da história, certo?

Não para o meu país. Os resultados tinham sido dissecados pela sua justiça e credibilidade. Internamente, o maior partido da oposição contestou tanto a justiça como a credibilidade do processo e dos resultados. Entidades políticas africanas regionais e continentais que tinham enviado observadores para o terreno, foram rápidas em endossar os resultados como uma representação credível da vontade do povo, enquanto alguns poderosos países ocidentais, aos quais não tinha sido permitido enviarem observadores oficiais para o terreno, foram rápidos a pronunciarem-se sobre a credibilidade dos resultados como uma verdadeira representação da vontade do povo… do Zimbabwe.
A cultura do voto no Zimbabwe não os tinha impressionado.

Escola de Artes Visuais da National Gallery, Departamento de Mbare (Foto: Farai Mpfunya)
O actual Presidente do Zimbabwe, um herói da guerra da independência contra o poder colonial, tem tido uma década de confrontos diplomáticos com países do ocidente. Impuseram-lhe sanções, a ele e a uma centena dos seus camaradas, também heróis da guerra de independência contra o poder colonial. Enquanto tudo isto acontecia, os meninos em Mbare tinham novos jogos em espaços não tão bem cuidados. Culpam as sanções. Enquanto uma nova cultura de pobreza penetra o território, reina uma profunda resiliência.

Não se deixando abalar pelos seus críticos, o Presidente declarou vitória nas eleições harmonizadas, tomou posse e avançou para a formação de um novo executivo. Os ministérios foram reduzidos, foi anunciado um novo Ministério do Desporto, das Artes e da Cultura. Muitos no sector cultural e artístico que tinham feito “lobby” durante anos para um ministério separado, ficaram surpreendidos. Tiveram mais do que esperavam, apesar de não saberem muito bem o que fazer com os seus irmãos do Desporto.

Os meninos e as meninas de Mbare estão ansiosos para que os seus equipamentos degradados, no seguimento de anos de sanções direccionadas, sejam renovados, para que o seu bairro seja regenerado. Nova energia irá com certeza aparecer nas suas culturas…. Facebook…. Twitter….
Qual Cultura e de quem?



Farai Mpfunya é fundador e director executivo do Culture Fund of Zimbabwe Trust, a maior entidade financiadora do sector artístico e cultural do Zimbabwe a nível local. Fez parte do Cultural Policy Task Group do Arterial Network que desenvolveu um enquadramento para a criação de políticas culturais pelos governos africanos. Educado no Zimbabwe, na França e na Inglaterra, iniciou a sua carreira profissional na função pública e depois no sector empresarial. Estudou engenharia electrónica e depois gestão de empresas (MBA), antes de se virar para a cinematografia e a gestão cultural. Farai é Chevening Scholar, fellow do Salzburg Global Seminar (Session 490) e do DeVos Institute of Arts Management no Kennedy Center.

Monday, 23 September 2013

Blogger convidado: "Onde há vontade, vai haver um poço...", por Sunil Vishnu (Índia)

Sunil Vishnu é o homem que seguiu o seu sonho: fazer teatro. Juntamente com um amigo da faculdade fundou EVAM em 2003 na cidade de Chennai, Índia. Como organização independente, a EVAM enfrenta uma série de desafios para sobreviver, crescer e manter a qualidade do seu trabalho. O que é que isto significa exactamente para uma companhia de teatro na Índia, onde os apoios do Estado são muito baixos, o mecenato para a cultura quase inexistente e onde existe um desinteresse geral relativamente às artes? Sunil ficou surpreendido ao descobrir que havia um ‘poço’ de interesse, carinho e dinheiro mesmo ali para a EVAM e partilha aqui connosco a sua experiência e aprendizagens. mv


A equipa da EVAM.
Quando comecei a escrever este artigo e estava a pensar num título achei que este, inspirado num provérbio, seria perfeito, porque descreve, para mim, o estado dos fazedores de arte no mundo. O provérbio fala da vontade humana – a única coisa que faz um artista continuar, apesar dos desafios que enfrenta – e o ‘poço’ – os meios que lhe permitem criar arte e partilhá-la com o público, ou seja, financiamento e recursos. Ao longo dos anos, a vontade permanece a mesma, mas os poços secaram. A solução neste momento não é cavar mais fundo ou encontrar novos poços, mas ir ter com todas as pessoas na aldeia que têm água e pedir-lhes para a partilharem contigo, partilhando assim a propriedade do seu sonho. É isto que o mundo chama crowdfunding e é neste contexto que escrevo este artigo.

Como é que sobrevivem e crescem os artistas e as organizações culturais independentes? Vejamos a minha organização, a EVAM. A EVAM é uma próspera organização artística que procura criar um impacto positivo na vida das pessoas usando como meio o teatro, através de espectáculos, a gestão de eventos artísticos e a educação. No ano em que festejamos o nosso 10º aniversário e tendo evitado com sucesso a ameaça de fecharmos, olho para as várias fontes de financiamento que tivemos ao longo dos anos. Começámos por investir o nosso dinheiro (2 Lakhs – 3000 USD) em 2003. Seis meses depois tivemos o nosso primeiro patrocinador (o banco privado HSBC) e pensámos em adoptar o modelo da publicidade, onde as marcas procurariam a EVAM como meio para chegarem a potenciais clientes. A receita de bilheteira e os patrocínios sustentaram-nos até 2004. Nesse ano decidimos fazer espectáculos para outras organizações cobrando um determinado preço e lançámos, juntamente com outras entidades, o Hindu MetroPlus Theatre Fest, sendo que a gestão de eventos artísticos e festivais passou a ser a nossa nova fonte de receitas. Em 2009 iniciámos os projectos educativos, realizando workshops e adicionando uma nova fonte de financiamento. Tudo isto sem nos dirigirmos ao Estado – cujo apoio para as artes é, de qualquer maneira, fraco. Esta foi uma opção. Chamem-na ego, auto-estima ou imprudência, queríamos fazer o nosso trabalho à nossa maneira, sem comprometermos a criação artística.

Depois, apercebemo-nos que os nossos sonhos estavam a tornar-se maiores, mas que o poço estava a secar. Procurámos outros poços, mas outros artistas estavam a fazer o mesmo. Foi nessa altura que iniciei o meu fellowship no Kennedy Center em Washington. A primeira grande aprendizagem teve a ver com o mecenato cultural. A Índia não tinha nem a cultura nem o apetite para isso. Existe uma apatia geral no que diz respeito às artes, que são também entre as disciplinas menos preferidas no nosso sistema educativo. Apesar disto, sabia que tínhamos uma ‘família’ de públicos e de pessoas importantes na sociedade que poderiam querer contribuir financeiramente e participar na ‘viagem’ da nossa organização, não como investidores a tempo inteiro ou patrocinadores, mas mais como um ‘convidado especial’ num filme.

Foi aqui que as aprendizagens do fellowship (sonhar alto – concentrar em arte de excelência – partilhar o sonho com a tua família – tornar a família parte) vieram em primeiro plano: os membros da minha família não podiam patrocinar um dos meus espectáculos, mas podiam dar algum dinheiro como indivíduos para um projecto específico se acreditassem nele. Foi nessa altura, em 2012, que uma ONG chamada Nalandaway lançou um novo portal de crowdfunding, Orange Street, que oferecia aos artistas uma plataforma para apresentarem projectos relacionados com uma causa e procurarem financiamento. Inicialmente, fui céptico. Porque é que um membro do público, que gasta neste momento 1000 rupias (16 USD) por ano para ver os meus espectáculos,  me daria dinheiro para criar algo, se poderia contribuir directamente para a causa? No entanto, avançámos e criámos um vídeo, explicando o que estávamos a fazer e porque é que estávamos à procura de financiamento. O nosso projecto era a criação de uma peça, The long way home por Shekinah Jacob, que iríamos apresentar em todo o país e sensibilizar relativamente ao tráfico de crianças. 


Precisávamos de 5 lakhs (8000 USD) para realizar o projecto. Horas depois de o colocar na plataforma, alguém investiu 5000 rupias (80 USD) e ficámos boquiabertos. Apenas no primeiro dia recebemos 7500 rupias (120 USD) de pessoas que nem sequer conhecíamos! Ao mesmo tempo, iniciámos uma campanha interna: começámos a telefonar, enviar emails e sms a todos os nossos stakeholders, pessoas que conhecíamos, membros do público; pusemos um anúncio no Facebook, no Twitter e no nosso website. Lentamente mas continuamente as contribuições cresceram, isto era mesmo possível!



Mas chegou o tempo em que esgotámos todos os contactos que poderíamos fazer e o poço parecia estar a secar novamente. A minha equipa estava ocupada a preparar o espectáculo e fazer muitas outras coisas e não tinha mais tempo para a campanha. A nossa acção perdeu momentum e pensámos “OK, talvez seja tudo o que possamos fazer”.

Foi nesse momento que a banda Jersey Rhythmes nos telefonou de New Jersey e disse: “Olhem, queremos contribuir, vamos fazer um espectáculo de angariação de fundos para vós!”. Ficámos estupefactos! Uma banda de New Jersey que não nos conhecia estava, realmente, a acompanhar a nossa campanha na Índia e queria contribuir! De repente, a minha organização apercebeu-se que este movimento era maior do que nós os 9 no escritório. Ganhámos de novo fôlego e assegurámo-nos que a campanha para a angariação de fundos fosse introduzida no nosso dia-a-dia: tínhamos uma campainha que tocava sempre que fosse feito um novo donativo. Nos dois meses seguintes os Jersey Rhythmes angariaram mais de 75000 rupias (1200 USD). The long way home foi produzido e apresentado em toda a Índia, conseguindo sensibilizar relativamente à causa que procurou apoiar.



Tínhamos encontrado uma nova fonte de energia, entusiasmo e fundos. A nossa família (nomeadamente, os membros do público, organizações parceiras, indivíduos interessados em nós, patrocinadores, etc.) estava disposta a investir nos nossos projectos dentro das suas pequenas possibilidades, se nós mostrássemos abertura para partilharmos o nosso sonho com ela. Um ano depois, no verão de 2013 e, mais uma vez, através do crowdfunding, conseguimos enviar 150 crianças carenciadas a um campo de férias para as artes. O nosso objectivo para 2014 é recorrer ao crowdfunding para a produção de um filme e uma peça que será puramente “arte pela arte e não arte por uma causa”. Iremos confiar na teoria que diz que o crowdfunding é, talvez, o primeiro grande passo na direcção do mecenato cultural na Índia.
Entretanto, aqui estão algumas coisas que aprendi ao longo da viagem:

Para angariar fundos e criar projectos através de crowdfunding

a) Criar um projecto genuíno – colocá-lo num site genuíno, as pessoas conseguem identificar um projecto falso;

b) Criar um pedido forte – qual o projecto, qual o impacto que vai ter e como, porque é que o estamos a fazer e onde é que vai ser usado o dinheiro, e, assim, porque é que uma pessoa devia fazer um donativo para o projecto;

c) Ter sempre um tempo-limite para a realização da campanha – dependendo do montante, 3 meses a 2 anos; também, ser específico sobre o que se está a pedir (por exemplo, “Invista por favor 500 rupias no projecto até 15  de Janeiro de  2013”);

d) Não fazer disto a única fonte de receita para o projecto;

e) Usar a equidade da plataforma (o website) para criar notoriedade;

f) Apontar os nomes das pessoas que investem, dar-lhes feedback e agradecer. Fazê-las parte do projecto da forma como elas preferem (poderá ser tão simples como mantê-las a par via email ou tão ‘complicado’ como fazer visitas gratuitas aos bastidores);

g) Não se envergonhar em pedir dinheiro – estamos a pedir às pessoas para partilharem o nosso sonho, estão a fazer um investimento; na verdade, são quase co-produtores do projecto;

h) As pessoas precisam de sentir que fazem parte e que são importantes -  satisfazer ambas essas necessidades através da relação com elas;

i) Criar um plano de comunicação e envolver várias pessoas que possam apoiar o projecto; as celebridades são muito bem-vindas…;

j) Internamente, manter a equipa motivada, dar incentivos para continuar; recompensá-la, reconhecer o seu esforço – de outra forma, é um trabalho muito ingrato!

As pessoas contribuem quando

a) Gostam de nós como pessoas e querem participar na nossa viagem;

b) Gostam da nossa organização e da sua missão;

c) Acreditam no impacto que o projecto vai ter nas pessoas;

d) Não podem fazer o que nós estamos a fazer – assim, querem viver isto através de nós!

Como disse, onde há vontade, há um poço… Podemos ir e cavar poços, mas não podemos esquecer-nos dos rios e riachos e lagoas e mares que são as pessoas à nossa volta. Convidem a vossa família a fazer parte da vossa viagem, ficarão surpreendidos com o amor e confiança que vos vão inundar.


Sunil Vishnu K é co-fundador, CEO e director artístico de EVAM, uma premiada companhia de teatro empreendedora.  Fundada em 2003 por Sunil e Karthik Kumar, a EVAM é hoje em dia um próspero negócio artístico que conta com 10 anos de vida e que apresenta espectáculos, gere eventos artísticos e trabalha na educação artística. Sunil recebeu o prémio Performing Arts Entrepreneur do British Council em 2010 e concluiu o Summer Arts Management Fellowship do Devos Institute of Arts Management no Kennedy Center for the Performing Arts em 2013.