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O estranho caso de Salvador Sobral




Alguém que começa e acaba o dia com uma máquina ligada ao coração. Com data marcada para uma operação que decidirá a vida inteira e onde, mesmo que tudo corra bem, não deixará de prevalecer a incerteza de tudo o que virá depois. Presumo que lhe reste uma de duas atitudes: ou se entrega à depressão ou brinca com tudo isto.

O Salvador parece ter escolhido a segunda opção. Estranha ironia que o reconhecimento do público, a celebridade e a fama sejam o destino desejado de quase todos os artistas, ou de todos nós. E ei-lo chegado tão jovem a esse lugar raras vezes atingido com a lucidez implacável que não deixa de assinalar o metrónomo que lhe auxilia o bater do coração.

Que estranho e mágico lugar deve ser a vida do Salvador Sobral. Que estranho lugar será esse, onde os dias mais felizes da tua vida podem ser também os piores dias da tua vida. Antes de brincar com a sua frágil humanidade cantava as palavras da Joni Mitchell, que estás no meu sangue como vinho sagrado, tão amargo, tão doce.

Hão-de existir sempre aqueles que estão prontos a ceifar os artistas num momento de vulnerabilidade. Não percebem que os artistas são aqueles que oferecem sempre o que têm de mais frágil, aquilo que todos os outros, todos nós, escondemos do mundo. Venham de lá as hordas indignadas, venham de lá com os vossos escândalos. São a espuma de coisa nenhuma.

O mar é lá longe.

Peter Zumthor: Different Kinds of Silence



Entrevista muito recente de Peter Zumthor ao Louisiana Channel. O arquitecto Suíço fala do seu percurso pessoal, desde a sua infância aos estudos na cidade de Nova Iorque, abordando inúmeros aspectos do seu processo de trabalho e da sua forma de encarar a vida.

In a recent interview with the Louisiana Channel, Swiss architect Peter Zumthor talked about his personal journey, from the early days of childhood to his studies in NYC, sharing insights into his work process and his thoughts on life and architecture.

O estranho caso de Shia Labeouf



O presente é um sintoma do nascimento gémeo do imediatismo e da obsolescência. Hoje, somos tão nostálgicos como somos futuristas. A nova tecnologia permite-nos experimentar e actuar simultaneamente sobre os eventos de uma multiplicidade de posições. Longe de assinalar o seu fim, a emergência das redes facilita a democratização da história, iluminando os caminhos bifurcados através dos quais grandiosas narrativas poderão sulcar o aqui e o agora.

Luke Turner, «Metamodernist Manifesto».

Um actor sentado na plateia de uma sala de cinema na baixa de Manhattan durante três dias, visualizando todos os filmes em que participou, em ordem cronológica inversa. Uma câmara apontada a si transmitindo em directo para a internet, em directo para o mundo. A indiferença, o cansaço, as gargalhadas, as lágrimas.
Espectadores vêm e vão aleatoriamente, entrando e saindo do cinema. Lá fora, o passa a palavra das redes sociais começa a motivar uma extensa fila de curiosos. As sessões são gratuitas, limitadas apenas à lotação da sala. Para os que entram não existe qualquer obrigação de sair. Podem ficar durante quinze minutos, ver um filme inteiro ou acompanhar a maratona cinematográfica até ao fim.

Ocasionalmente, o protagonista da experiência levanta-se e sai. Num momento, depois de longos esgares de explícito enfado perante um dos seus filmes, ergue-se para se ir deitar no corredor de acesso, ao fundo da sala. Alguns espectadores lançam sobre o seu corpo adormecido olhares de interrogação.
Noutros momentos a sua face preenche-se de emoção. Risos, lágrimas, olhares de profunda nostalgia, silêncios. Durante uma ausência, um casal de duas jovens senta-se, uma ao colo da outra, numa cadeira um pouco atrás. Olham para a câmara. Riem-se. Depois, uma delas, de cabelo verde, escreve ou desenha algo numa folha de papel e deposita-a na sua cadeira vazia, como mensagem, antes de sair.

Há algo de fascinante em #ALLMYMOVIES, uma nova experiência social de Shia Labeouf, fruto da sua colaboração artística com o grupo Labeouf, Rönkkö & Turner . Os mais cínicos dirão que se trata de mais um artifício sensacionalista em busca de exposição gratuita. Mas parece-me que encontramos ali um homem à procura de si próprio, depois de uma fase de declínio pessoal, sob a luz implacável dos holofotes mediáticos. Um homem que decide confrontar-se com o seu trabalho à vista de todos, sem filtro, sem máscara.
Possa este espírito desalinhado superar os fantasmas que o têm atribulado nestes anos, da dependência e da violência, para ocupar o lugar que o seu talento e o seu carisma tanto merecem.

Uma mulher chamada Lina Bo Bardi



Não podia ser mais oportuno o interesse renovado que vem suscitando a vida e a obra de Lina Bo Bardi, reflectido através de um vasto conjunto de sítios web de arquitectura e motivado pelo destaque dado à arquitecta italo-brasileira na exibição Latin America in Construction: Architecture 1955–1980 promovida pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA), bem como pelo anúncio da chegada da exposição itinerante Lina Bo Bardi: Together ao território norte-americano no final deste mês.

Nascida em Roma no ano de 1914 Lina Bo Bardi tornar-se-ia uma activista dos princípios humanistas do Movimento Moderno, sendo hoje reconhecida como uma das grandes figuras da arquitectura do século XX. Nos seus trabalhos, que se estendem também ao domínio do desenho e da pintura, à edição gráfica, à joalharia e à cenografia, revela-se o encontro feliz entre as referências da sua formação Europeia com a espontaneidade da cultura Sul-Americana.
Abraçando o Brasil como sua pátria a partir da segunda metade da década de 1940 Lina viria a desenvolver uma obra muito diversa, vertendo nos seus textos críticos o seu pensamento enquanto defensora diligente da responsabilidade ética da arquitectura e da vontade de sensibilizar a sociedade para uma consciência mais profunda da História.



Se a casa de um arquitecto é a sua confissão, a casa de Lina no Morumbi revela-nos a sua sensibilidade estética de partida. Uma das suas primeiras obras construídas em território Brasileiro, a Casa de Vidro ostenta orgulhosamente a sua matriz modernista com uma frente suspensa sobre o parque: dois planos de betão armado assentes sobre pilotis e uma generosa envolvente envidraçada, aberta para a natureza.



A arquitetura é arte. É arte, só que não no sentido mofado das escolas de belas artes. Vejo a arquitetura profundamente vinculada com a ciência e a técnica. Na verdade não há diferença nenhuma.
A Tecnologia colocada em seu justo lugar nada pode causar de ruim, como impedir a Poesia, o Belo, até os sonhos bonitos.




A elevação e a transparência foram motivos que acompanharam alguns dos seus projectos mais notáveis, destacando-se a proposta para um Museu à Beira do Oceano, desenhada no mesmo ano de 1951, e aquela que é para muitos considerada a sua obra prima, o Museu de Arte de São Paulo, desenvolvido a partir de 1957.
Ícone da arquitectura Brasileira, o MASP é um exercício assumido de democracia e verdade construtiva. Um edifício suspenso sob uma híper-estrutura oferece um extenso espaço público ao nível da Avenida Paulista, bem como um prolongamento visual sobre o Parque Trianon. O volume-museu é todo ele generosamente envidraçado e a permeabilidade visual é acentuada pelos próprios suportes expositivos no interior, desenhados pela arquitecta, formados por lâminas de cristal temperado amparadas por singelos blocos de betão.



Acho que no Museu de Arte de São Paulo eliminei o esnobismo cultural tão querido pelos intelectuais (e os arquitetos de hoje), optando pelas soluções diretas, despidas. O concreto como sai das formas, o não acabamento, podem chocar toda uma categoria de pessoas.




A par com os seus projectos de cariz assumidamente moderno, Lina viria a ensaiar outros trabalhos de expressão mais vernacular, reflexo da sua sensibilidade artística e do seu fascínio pela cultura popular Brasileira. O seu descomprometimento gera, ainda hoje, alguns mal-entendidos naqueles que confundem com populismo a sua capacidade de abraçar com entusiasmo as contingências e os condicionalismos locais.
Em boa verdade, Lina Bo Bardi compreendia – e deixou disso testemunho escrito – o alcance do funcionalismo e da estandardização como instrumentos poderosos para democratizar o acesso à salubridade, ao conforto e à qualidade de vida das pessoas; enfim, à urbanidade – valores base da própria arquitectura moderna num tempo de profundas carências sociais.

Mas Lina tinha de igual modo consciência da necessidade de prover a uma experiência “espiritual” da vida, denunciando uma perda cultural que vinha a par com a especulação urbana e a massificação dos processos do fazer da cidade, dando lugar ao aparecimento de técnicos sem erudição e consciência ética que, nas suas palavras, iam reduzindo a vida humana a uma aventura sem fantasia, alheia à natureza, num divórcio que não pode ser normal, que contradiz as necessidades orgânicas, tendendo para uma arrogância suspeita, como que num desafio às origens das quais não podemos nos esquecer.




Para um arquiteto, o mais importante não é construir bem, mas saber como vive a maioria do povo.
O arquiteto é um mestre de vida, no sentido modesto de se apoderar desde como cozinhar o feijão, como fazer o fogão, ser obrigado a ver como funciona a privada, como tomar banho.
Ele tem o sonho poético, que é bonito, de uma arquitetura que dá um sentido de liberdade.
A arquitetura é profundamente ligada com a vivência, na medida que ela é tudo.





Obra de grande maturidade, que encerra o reencontro decisivo das suas múltiplas ideias e de todo um percurso de vida, encontramos no centro cultural SESC Pompéia projectado em 1977. Ali podemos descobrir uma arquitectura de contenção, de economia de desenho, de envolvimento social e de ética, dando corpo a um equipamento comunitário vibrante erguido sobre o casco de uma antiga unidade fabril.




Em Lina Bo Bardi encontramos alguém para quem a Modernidade foi, acima de tudo, um corpo de princípios, muito mais do que um depositário estilístico de formas e feitios. A sua obra afirma-se como um percurso de consciência cívica e de humildade, palavra tão ao gosto de Lina – uma humildade que nos serve de exemplo da força daqueles que, seguros de si próprios, não fazem de cada gesto autoral uma imposição sobre o espaço “do outro” mas antes uma oportunidade para participar generosamente no território da comunidade, na defesa intransigente de uma vivência rica e plena.
Por isso foi capaz de projectar obras profundamente modernistas, ousadas e híper-estruturais, ou dedicar-se com descomplexada sensibilidade artística a processos minuciosos e participativos, abertos a todas as influências, construídos no seio das maiores limitações materiais e humanas.
A arquitectura de Lina Bo Bardi é assim a antítese da starquitectura e é, também por isso, perene e contemporânea. Fala-nos do passado e continuará a transportar-nos para o futuro.

Lina Bo Bardi faleceu em 1992. Tinha 78 anos de idade. A sua obra vive e continua a ensinar-nos.



Mas o tempo linear é uma invenção do ocidente,
o tempo não é linear,
é um maravilhoso emaranhado onde,
a qualquer instante,
podem ser escolhidos pontos e inventadas soluções,
sem começo nem fim.

Mujer de mano de Leonardo Abince



A famosa cópia da Mona Lisa que existe no Museu do Prado, que se pensa ter sido desenhada por um dos pupilos do próprio Leonardo da Vinci, foi restaurada há cerca de dois anos. Análises efectuadas nessa altura por radiografia e infra-vermelhos permitiram concluir que a obra havia sido repintada em data posterior a 1750. Foi possível revelar que, oculto sob o fundo pintado de preto, se conservava ainda a paisagem envolvente inicial em bom estado. Apesar de persistirem receios em relação a limpar a frágil Mona Lisa original, o restauro da cópia do Prado permite conhecer a natureza vibrante da luz e das cores da obra-prima de da Vinci e imaginar quantos detalhes poderão estar escondidos debaixo da sua superfície enegrecida pelo tempo.

Elvas, illustrations by André Letria






A beautiful set of illustrations by André Letria, dedicated to the Portuguese city of Elvas. The Garrison Border Town of Elvas and its Fortifications is a Unesco World Heritage Site since 2012, and you can find more about it here.

The long journey of the Trafaria Praia


Joana Vasconcelos, Trafaria Praia, Bienal de Arte de Veneza, Itália, 2013. Fotografia de Gabriela Vasconcelos, via O meu iPad veste Prada. Este texto só está disponível em Inglês.

It’s been a long journey for the Trafaria Praia, a Lisbon ferry converted into a floating pavilion by Joana Vasconcelos to represent Portugal at the Venice Biennale. Built in Hamburg in 1959 by the German company Schell & Johnhk, this passenger boat was decommissioned in 2011 and was parked on dock waiting to be disassembled.

The artist rescued this object of Lisbon iconography, one of several commuter boats – locally known as cacilheiros – that are used to connect the shores of the Tagus, crossing the estuary several times a day. Under the direction of Joana Vasconcelos, the Trafaria Praia has undergone a profound process of transformation in a shipyard on the outskirts of the Portuguese capital.

From the official website:

On the outside of the ship, from prow to stern, she applies a large-scale panel of azulejos (tin-glazed, blue and white, hand-painted ceramic tiles) that reproduces a contemporary view of Lisbon's skyline, from the Bugio Tower to the Vasco da Gama Tower. The work takes its inspiration from another large-scale panel of azulejos, the Great Panorama of Lisbon, which depicts the city before the legendary earthquake of 1755 and is a quintessential expression of the baroque-style golden age of azulejo production in Portugal. Vasconcelos has made other works that involve covering objects in azulejos; in doing this she evokes the material's frequent deployment in architecture.

On the ship's deck is an environment made of textiles and light. This also echoes past works by Vasconcelos, such as Contamination (2008–10) and the series Valkyries (2004–ongoing), in which organic, often colorful forms hanging from the ceiling interact with the surrounding architectural elements. This new work consists of a complex medley of blue-and-white fabrics all over the ceiling and walls, from which crocheted pieces, intertwined with LEDs, emerge to create a compelling effect. The installation suggests a surreal, womblike atmosphere or the deep ocean—something out of Jules Verne's Twenty Thousand Leagues Under the Sea, perhaps, or the Bible story of Jonah and the Whale. It envelops visitors, eliciting both an intellectual and a sensorial response.






The original Trafaria Praia before the intervention.



Construction plans.


Tile panel layout design and detail.


Tile panel (partial view), image by Tiny Domingos, via Areashape.




Interior views.





Trafaria Praia, an intruder in the realm of the Venetian Vaporetti, a Portuguese icon cruising the waters of a sibling city. The floating pavilion can be visited until November 24th. More details can be found at www.vasconcelostrafariapraia.com.

Oitocentos anos de escárnio e maldizer

Em oposição à exaltação não-crítica do “autor” está o papel desempenhado pelos blogues e as redes sociais enquanto espaços de opinião no directo da rede. Se por um lado temos a incapacidade em produzir asserções sobre “a obra” baseadas em argumentos substantivos, subjectivos mas qualificáveis, temos por outro o exercício infeliz do “achómetro”. Oitocentos anos de escárnio e maldizer encontraram na internet a placa de petri ideal para a fermentação, tudo reduzindo a uma caricatura do outro.

Exemplo deste fenómeno são os ataques recorrentes que a artista portuguesa Joana Vasconcelos parece merecer na nossa blogosfera. Se é certo que não devemos sustentar a ideia provinciana de que só porque alguém é “reconhecido lá fora” será merecedor de vassalagem “cá dentro”, também não devemos alimentar a agressão moral sobre outrem pelo simples facto de ter conquistado notoriedade.
O facto torna-se mais grave quando não encontramos nesses ataques qualquer substância argumentativa que os sustente. Os casos variam entre o engraçadismo habitual, assente na adjectivação mais ou menos colorida, a ataques de classe dirigidos à “política cultural do governo” para quem a artista é um mero dano colateral, ignorável e até desejável. Sobre as obras, invariavelmente, nada se diz.

A subserviência acrítica sobre uns e a destruição liminar de outros são duas faces da mesma moeda, de uma grosseira incapacidade de produzir juízo de valor sobre as coisas. Em boa verdade pouco falamos de obras, antes enfatizamos a chancela do autor – e para quem não tem chancela não há obra que lhe valha, por melhor que seja.
O que perpassa de tudo isto é o modo como olhamos uns para os outros neste tempo tóxico que estamos a viver. A cultura do escárnio é produto da descrença e do cinismo, inimiga maior de uma sociedade meritocrática, entusiástica e desinteressada, motivada por descobrir, partilhar e proteger aquilo que tem valor.

Adenda: uma resposta e um comentário, aqui.