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domingo, 20 de outubro de 2024

ALICE'S RESTAURANT (1969)


por Louis Skorecki

O senhor Edouard já não está com as fúrias. Foi o Jacques que disse. Primeiro pensámos que era uma brincadeira, mas tem ar de ser verdade. Jacques viu-o a sair do Classik, aquele cinema de bairro que faz noites com danças ao fim-de-semana. Estava a falar sozinho, a falar de Arthur Penn, ria sozinho. Caroline franziu a testa, disse que era muito preocupante. Não, disse Jacques, eu falei com ele, ele vai bem, está feliz da vida, é tudo. Estava a falar de Arthur Penn?, perguntei eu, isso não parece dele, sempre o detestou. Agora adora-o, disse Jacques num tom seco. Caroline franziu a testa, disse que era mesmo preocupante. Jacques disse que não. Porquê?, perguntei. Porque não, disse Jacques, irritado. Desde quando é que duvidam da minha palavra? Nós acreditamos em ti, disse Caroline, nós acreditamos em ti. Não, não acreditam nada, disse Jacques. O senhor Edouard adora Arthur Penn, acrescentou ele, está feliz, e é tudo. E foi-se embora sem dizer uma palavra. 
 
Uma hora depois, no café, voltamos a pensar naquilo que Jacques nos disse, até que o senhor Edouard entra como uma flecha. Não amar Penn, é um escândalo, diz ele como se soubesse que tínhamos acabado de falar sobre isso. Revi o Alice's Restaurant, esse filme que toda a gente acha uma palhaçada hippie, é um filme perfeito. Ficamos de boca aberta. O senhor Edouard detesta Dylan, detesta Arlo Guthrie que sempre considerou um Dylan de segunda, detesta o desleixamento hippie. O que é que se passa com ele? Até Lourcelles reconhece a importância de Penn, diz finalmente o senhor Edouard. Aí, fico perplexo. O Lourcelles?, pergunto eu, não estará enganado? O senhor Edouard saca calmamente o Lourcelles do bolso. Lê. «Com Alice's Restaurant e Quatro Amigos, Arthur Penn evidencia-se como o melhor cronista cinematográfico dos anos 60 e como o digno sucessor de Kazan.» Não haja dúvida, já não é o mesmo.

in «Libération», 21 de Novembro de 2005.

quarta-feira, 8 de maio de 2024

BONNIE E CLYDE (1967)


1967 – USA (111') ● Prod. Tatira-Hiller Production/Warner ● Real. ARTHUR PENN ● Gui. David Newman e Robert Benton ● Fot. Burnett Guffey (Technicolor) ● Mús. Charles Strouse ● Int. Warren Beatty (Clyde Barrow), Faye Dunaway (Bonnie Parker), Michael J. Pollard (C. W. Moss), Gene Hackman (Buck Barrow), Estelle Parsons (Blanche Barrow), Dub Taylor (Ivan Moss), Gene Wilder (Eugene Grizzard), Denver Pyle (Frank Hamer), Evans Evans (Velma Davis). 
 
A odisseia sangrenta de Bonnie Parker e de Clyde Barrow começa no Texas nos anos 30. Bonnie ficou fascinada com Clyde a partir do momento em que o viu e deixou o bar onde trabalhava por ele. Ele tinha estado na prisão. Rouba uma loja à frente dela, para a impressionar, depois desaparecem de carro. Ele avisa-a logo que se interessa pouco no amor (de qualquer forma, é impotente). Ensina-a a servir-se de uma arma. Encontram uma família de camponeses despojados da sua quinta por um banco. Convidam o camponês a disparar sobra a sua antiga casa, para descomprimir. Clyde quer assaltar um banco, mas – cúmulo dos azares – foi à falência. Um gasolineiro, o jovem C. W. Moss, encontrado na estrada, deixa a sua estação de serviço para acompanhar Bonnie e Clyde nas suas viagens e nos seus saques. Depois de um assalto, Clyde mata um homem agarrado ao seu carro que lhes obstruía a fuga. O trio vai-se juntar ao irmão de Clyde, Buck, acabado de sair da prisão, e a sua esposa Blanche na sua quinta. A polícia cerca a casa e, durante o tiroteio, Buck mata um polícia. O grupo consegue escapar. No carro deles, que agora é a sua verdadeira casa, os gangsters lêem com orgulho os artigos abundantes que a imprensa lhes dedica. No Missouri, capturam um ranger do Texas, Frank Hamer, e obrigam-no a posar com eles. Depois de outro assalto, apoderam-se do carro de um desconhecido que se tornará amigo deles durante algumas horas. Mas, quando descobrem que é agente funerário, abandonam-no na natureza. O grupo vai depois a casa da mãe de Bonnie, que a quer ver uma última vez. Piquenique familiar. Moss e Blanche fazem recados e são detectados pela polícia. No tiroteio geral. Buck é ferido mortalmente. Blanche, igualmente ferida, é capturada. Bonnie, Clyde e Moss vão refugiar-se em casa do pai deste último, Malcolm Moss. Frank Hamer questiona Blanche de forma engenhosa na clínica. A ferida dela deixou-a cega. Ela dá a identidade de Moss, até aí desconhecida pela polícia. Bonnie e Clyde conseguiram fazer amor pela primeira vez. Clyde quer-se casar com a companheira. Numa estrada, não longe da quinta de Malcolm Moss, Bonnie e Clyde são abatidos por atiradores postados em emboscada. 
 
► Em 1958, num pequeno filme B nervoso e crepuscular, William Witney tinha contado a história de Bonnie Parker (The Bonnie Parker Story). Bonnie aparecia como uma verdadeira fúria libertária, desprezando os homens da sua comitiva (o seu marido e os seus amantes), comandando-os pela sua astúcia, a sua determinação, a sua audácia. Sob o plano estritamente narrativo, o filme de Penn, mais rico e mais trabalhado, não traz nenhum elemento novo (e Faye Dunaway parece-se muito com Dorothy Provine, a Bonnie de Witney, menos violenta). Não é verdadeiramente superior ao filme de Witney e é frequentemente mais convencional. A sua principal originalidade, que deve em parte ao imortal Gun Crazy de Joseph H. Lewis, é descrever a saga de dois fora-da-lei sangrentos como uma história de um casal : um casal vacilante formado por um impotente e uma mulher frustrada (que o era, parece, mesmo antes de conhecer o seu parceiro). Na altura do seu lançamento, o filme já estava um pouco desactualizado na sua concepção de personagens, herdada de Kazan, de quem Penn sempre foi uma espécie de sucessor menos criativo : a saber, dois neuróticos cheios de problemas psicológicos e sexuais procuram exorcizá-los de forma confusa pela violência. Foi sobretudo a imaturidade das duas personagens que parece ter fascinado Arthur Penn. Ele pintou-os como duas crianças degeneradas, sem objectivos, revoltadas contra uma sociedade de adultos que só lhes tem para oferecer a sua incoerência, a sua fraqueza, a sua ordem absurda e injusta. Os agricultores são arruinados pelos bancos que por sua vez vão à falência. Bonnie e Clyde colhem a sua parte ao passar, opondo-se a um sistema, não a indivíduos. O imenso sucesso do filme (lançado em França no início de 1968) veio em grande medida da sua actualidade sociológica. A crise dos anos da Depressão descrita aqui com humor e um grande sentido do absurdo dizia também respeito, de uma certa maneira, à década que nessa altura terminava, tanto pelo seu conteúdo como pelo tom com o qual ela foi abordada. O filme agradou igualmente pela sua violência barroca, coreográfica, estetizante e bastante complacente, adiantado mais de um ano em relação a A Quadrilha Selvagem que precedeu pelos seus movimentos sangrentos em câmara lenta da sua última sequência mostrando os solavancos e a queda dos dois heróis crivados de balas. 
 
N.B. Os dois argumentistas, David Newman e Robert Benton passaram rápido para a realização. Robert Benton assinou vários filmes interessantes. Mais do que o sobrevalorizado Kramer vs Kramer (1979), convém assinalar Bad Company (1972), o seu primeiro filme, western na veia da crueldade, essa veia em que se encontram nos anos 70 os raros filmes de valor de um género em vias de extinção (cf. A Gunfight, Um de Nós Tem de Morrer de Lamont Johnson, 1971; Ulzana's Raid, Ulzana, O Perseguido de Robert Aldrich, 1972; The Spikes Gang de Richard Fleischer, 1974). 

BIBLIO. : guião e diálogos in «The Bonnie and Clyde Book» editado por Sandra Wake e Nicola Hayden, Lorrimer, Londres, 1972. O volume contém entrevistas aos principais colaboradores e artigos críticos. Igualmente no volume «Best American Screenplays» editado por Sam Thomas, Crown Publishers, Nova Iorque, 1987.

Jacques Lourcelles, in «Dictionnaire des films. **De 1951 à nos jours Suivi d’Écrits sur le cinéma», Robert Laffont, Paris, 2022.

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

FOUR FRIENDS (1981) de Arthur Penn


1981 – USA (115') ● Prod. Filmways Picture – Florin Production – Cinéma 77 – Geria film (Arthur Penn, Gene Lasko) ● Real. ARTHUR PENN ● Gui. Steve Tesich ● Fot. Ghislain Cloquet (Technicolor) ● Mús. Elizabeth Swados ● Int. Craig Wasson (Danilo Prozor), Jodi Thelen (Georgia Miles), Jim Metzler (Tom Donaldson), Michael Huddleston (David Levine), Reed Bitney (Louie Carnahan), Julia Murray (Adrienne Carnahan), David Graf (Gergley), Zaid Farid (Rudy), Miklos Simon (Mr. Prozor), Beatrice Fredman (Mrs. Zoldos), James Leo Herlihy (Mr. Carnahan), Lois Smith (Mrs. Carnahan). 
 
East Chicago, Indiana, no início dos anos 60. Três jovens, Danilo Prozor, David Levine e Tom Donaldson, amam a mesma rapariga, Georgia Miles, e formam um grupo inseparável com ela. Danilo é filho de um emigrante jugoslavo. Em criança, veio com a mãe para se juntar ao pai na América. David, um judeu um bocado obeso, é filho de um empreiteiro de uma funerária que o queria ver seguir os seus passos. Tom é o mais sedutor dos três amigos. Georgia, exaltada e sincera, acha-se destinada a uma carreira de grande bailarina, à imagem da de Isadora Duncan, o seu ídolo. Queria que os amigos também tivessem destinos soberbos e fora do comum. Uma noite, farta de ser virgem, oferece-se a Danilo. Mas ele dorme perto do pai e, pouco à vontade, rejeita-a. Ela vira-se então para Tom. Ao contrário dos desejos do pai, um homem duro, pragmático e triste, Danilo entra na universidade. Como colega de quarto tem Louie, um filho de milionário com esclerose e já paralisado das duas pernas. Louie sabe que não vai chegar a velho. Os três amigos voltam-se a ver no casamento de Georgia. Ela casa com David mas está grávida de Tom, que, em vésperas de partir para o Vietname, não se quer casar. Sempre exaltada, dá à luz o seu bebé como uma diva que projecta a nota mais alta : para o público e implorando aplausos. Mais tarde, tendo deixado David, vai ver Danilo sem aviso. Não o encontrando, dá-se a Louie que de tanto ouvir falar dela quase se tinha apaixonado. Graças a Georgia, conhecerá os prazeres do amor antes de falecer. Mesmo tendo amado sempre Georgia, Danilo envolve-se com Adrienne, a irmã de Louie, e vai-se casar com ela. É um casamento sumptuoso. Mas depois da cerimónia, o sogro de Danilo, que nunca tinha aceitado a ideia desta união dispara sobre os jovens casados e vira a arma para si. Só sobreviverá Danilo. Ao sair da clínica, ele sabe da morte de Louie. Completamente desorientado, trabalha algum tempo como taxista. Volta a ver Georgia e confessa-lhe o seu amor. Mas ela educa o bebé dela sozinha e leva uma vida desordenada que não quer partilhar com ninguém. Danilo faz-se mais uma vez à estrada com a sua preciosa mala que contém tudo o que possui neste mundo. Participa em manifestações pacifistas e vai trabalhar com o pai numa aciaria da Pensilvânia. Tem uma enfermeira de origem jugoslava como amiga. Georgia, entretanto, vai de festa em festa e move-se num universo psicadélico que está longe de a satisfazer. Um dia entra pela casa de Danilo dentro. Está em lágrimas: «Estou tão cansada de ser nova» exclama ela. Depois de uma noite de amor, continua a querer ir-se embora. Desavença, escândalo na rua; Danilo, relutantemente, deixa-a partir. Deixa a amiga e regressa a Chicago, onde volta a encontrar Tom que trouxe uma vietnamita e as suas duas meninas do Vietname, bem como David que continuou o negócio do pai e se casou. Num café, Danilo entra numa rixa com o inimigo de sempre deles, um racista, e dá-se ao luxo de vomitar sobre o seu adversário. Isso faz-lhe um bem danado. Acolhido por Tom, vê na televisão os primeiros passos dos astronautas na Lua. Nesta altura, pensa em Louie, como tinha jurado que o fazia quando este acontecimento se desse. Confessa a Georgia a sua intenção de ir ensinar inglês para muito longe no Sul. Começa uma nova desavença, que ela interrompe dizendo-lhe que só o amou a ele e a mais ninguém. Ela queria tê-los amado aos três, mas a vida decidiu doutra maneira. Danilo acompanha os pais que apanham o barco para a Jugoslávia. Expressa o desejo de ver, pelo menos uma vez na vida, o pai dele a sorrir. Este sorri, realmente, e chora ao mesmo tempo antes de dizer adeus ao filho. Uma noite, os quatro amigos reúnem-se à volta de uma fogueira na praia. Danilo queima a sua mala velha. Prepara-se para partir com Georgia para tentar viver essa vida densa e rica que sempre iluminou os sonhos deles. 
 
► Baseado num argumento original e parcialmente auto-biográfico de Steve Tesich (de origem jugoslava como o seu herói, Danilo), é o filme mais rico e bem conseguido de Arthur Penn. Também é o único que podemos admirar completamente e sem que para isso seja preciso subscrever os preconceitos que presidem desde sempre ao seu cinema de ruptura e de crise. Desde o seu primeiro filme, The Left-Handed Gun (1958), Penn manifestou um desprezo total pela composição tanto ao nível da sequência como do conjunto narrativo. A maior parte das suas obras mostra uma desordem, um emaranhado de instantes líricos e intensos a partir dos quais raramente emana uma visão de conjunto, uma ordem que o autor não quer impôr à textura dos factos mas que espera que surjam por si mesmos, e como que por milagre, pela justaposição confusa das sequências. Aqui, nesta crónica de uma geração, temos ao mesmo tempo a desordem e a composição, a descontinuidade e a continuidade, a instantaneidade lírica de momentos fulgurantes e uma reflexão que se constrói a pouco e pouco no interior do filme e no espírito do espectador. Misturando admiravelmente as tonalidades, o cómico e o comovente, Penn fala simultaneamente do fim dos modelos e das ilusões, do desgaste da noção de «classe», do desejo colectivo da juventude em ultrapassar a incomunicabilidade entre gerações. Como romancista e observador de costumes, ele pinta o seu país através de algumas pessoas e cria a história do protesto geral, tão decepcionante quando se constata os seus efeitos perto das pessoas, um pouco mais emocionante se se mantiver um sentido de perspectiva recuando um pouco. É só assim que as experiências mais dolorosas deixam entrever uma espécie de plenitude, e os oceanos de lágrimas, ao desaparecer, dão lugar à serenidade. Com Alice's Restaurant e Quatro Amigos, Arthur Penn evidencia-se como o melhor cronista cinematográfico dos anos 60 e como o digno sucessor de Kazan. O filme contém um grande número de sequências antológicas (como aquela em que Danilo se opõe ao roubo do seu carro agarrando-se ao veículo e em que o ladrão, admirado, lhe diz: «Porque é que te agarras às tuas posses, amigo, és mesmo estranho!»). Fantástica composição de Craig Wasson (Danilo) entre um grupo de principiantes e semi-principiantes galvanizados por Penn.

Jacques Lourcelles, in «Dictionnaire du Cinéma - Les Films», Robert Laffont, Paris, 1992.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

THE CHASE (1966) de Arthur Penn


É a personagem interpretada por Janice Rule (terrível personagem, terríveis as humilhações a que sujeita o marido interpretado por Robert Duvall, esse “filósofo de Sábado à noite” que, de qualquer maneira e como a maior parte das personagens deste filme tão triste e tão trágico, também não é flor que se cheire) que pouco depois de The Chase começar, fala do olhar de “Bubber” Reeves, dizendo que “he just stared. You know how he does, that funny stare, like everything is going all wrong and he just can’t figure out why”. Vai-se ver esse olhar muitas vezes no final arrepiante deste filme. Quando “Bubber” olha para Jake numa maca e depois para Anna, que lhe responde da mesma moeda, sem saber porque terá acontecido o que aconteceu, e, por fim, para a mãe que lhe abana cinco mil dólares à cara como se lhe fossem resolver todos os problemas do mundo. Repare-se como, nessa cena, ele só reage quando é o pai que lhe dirige a palavra. Repare-se também como, na cena imediatamente anterior, ele percebe só pelo aperto de mão de Jake que este e Anna estão apaixonados. 
 
“Bubber” parece ir parar à cidade natal por partida cruel do destino. Com fome e com pressa vai para Norte em vez de ir para Sul e em direcção à cidade dos pais e da mulher como se um íman terrível o puxasse até ela (“Are you going home?”, pergunta ele a si próprio). O burburinho que se vai multiplicando até resultar em fogo e sangue e o interesse das pessoas desta cidade pelo evadido não são mera curiosidade que se sacie por vê-lo em carne e osso, mas sim mais uma prova do vínculo misterioso que existe entre as suas próprias vidas e almas e as de “Bubber”, que é encarnação e lembrança terrena de sonhos, desejos e até crimes passados de todas estas pessoas e que, ao regressar, parece trazer tudo de volta consigo. O regresso de “Bubber” reacende feridas e revela faltas e pecados para que ninguém quer voltar a olhar. E por isso as coisas correm tão mal e por isso não andamos longe doutro filme que já aqui vimos (Some Came Running), em que outro homem voltava a casa mas para acordar os fantasmas doutra cidade (e a presença da actriz que interpretava Gwen French nesse filme também tão triste e maravilhoso – Martha Hyer – em The Chase parece confirmar este parentesco). “I was thinking of myself at that age, all the things I wanted and believed would happen,” diz Edwin, a personagem que interpreta Duvall. É esta a frase que lhe vale a alcunha de “Saturday night philosopher” dada pela mulher. Foi “Bubba”, o único que nunca deixou de ser jovem, quem pôs toda a gente a pensar no que outrora “wanted and believed would happen.” Nunca podia correr bem. 
 
Calder (uma das grandes composições do colosso Marlon Brando, comparável às dos filmes que fez com Kazan e Coppola e com o próprio Penn, em The Missouri Breaks, misteriosíssimo e fabuloso western) assiste a tudo isto da sua delegacia com um olhar incrédulo e não muito diferente do “funny stare” de Reeves, sendo acusado de aceitar o dinheiro de Val Rogers quando na verdade o enfrenta e faz de tudo para separar as coisas, recusando presentes, terras e dinheiro na mesma noite, a da festa de aniversário de tanto dinheiro, tantos disfarces e tantos negócios de Rogers. Tem que prender os inocentes e deixar os verdadeiros culpados à solta para não haver sangue nas ruas, enquanto “Bubber” se aproxima e a ânsia e os impulsos regados a álcool vão fazendo cada vez mais estragos. Defendendo o que é certo com grande impassibilidade, não consegue evitar a monstruosa carga de porrada que lhe dão na cadeia ou a morte de “Bubber” nos degraus da sua delegacia, quando o burburinho se faz trovão e tempestade (já cantava José Mário Branco: “os homens pequenos, quando são demais, não fazem por menos: tornam-se fatais”). No final, desaparece como os grandes amargurados do western americano (John Wayne em A Desaparecida, Randolph Scott em Ride Lonesome, James Coburn em Pat Garrett & Billy the Kid, etc., etc.) e deixa os lobos entregues a si próprios. 
 
The Chase, ainda que não tão vincadamente ou de forma tão justa como Penn provavelmente desejaria[1], acaba por ser também um filme sobre a difícil herança do Sul, quebra-cabeças hoje quase tão complexo e tortuoso como no rescaldo da Guerra Civil americana. Parte da dificuldade é que algo do que há de mais belo nessa herança, muito exaltada e celebrada por D.W. Griffith ou John Ford, por exemplo, assentou primeiro na escravatura e depois na exploração de seres humanos por outros seres humanos, durante a aplicação das leis de segregação de Jim Crow nos Estados do Sul e que acabaram com a Lei dos Direitos Civis de 1964, assinada por Lyndon Johnson. Esta ambivalência nunca resolvida e que continua a viver dentro de muitos sulistas, que amam e odeiam ao mesmo tempo a sua terra, sente-se nos livros de William Faulkner e nalguns dos melhores filmes feitos sobre o assunto[2] como uma adaga. The Chase não é excepção, e também o ódio racial dos habitantes da cidade é despertado pelo regresso de ‘Bubba’. Podíamos acreditar na senhora do princípio do filme que viaja com o neto de carro e, quando este tenta sair para procurar o evadido, lhe diz que “it’s a white people’s problem”. Mas até esses problemas se conseguem enredar e contaminar por toda a comunidade, voltando a abrir as feridas do passado sulista, misturando-se com todas as outras questões e transformando-se numa agressividade cega e assoladora, representada e justificada por uma forma confusa e fascinante, de tons muito antagónicos nas interpretações dos actores e na própria iluminação do filme. 
 
A produção de The Chase foi tudo menos pacífica para Arthur Penn: a proliferação de grandes temas foi uma exigência do produtor, Sam Spiegel[3], que os ia adicionando a cada nova revisão do guião, supostamente para aumentar o prestígio do filme e a sua cotação nos círculos de Hollywood[4]; além disso, Spiegel também despedia membros da equipa técnica e substituía-os sem dizer nada ao seu realizador, o que não ajudava nada ao ambiente geral das filmagens; finalmente, terminada a rodagem, Spiegel falta ao combinado com Penn (estabeleceu-se que a pós-produção seria em Nova Iorque, onde Penn ia encenar uma peça de que já tinha os direitos), leva as bobinas para Londres e monta o filme à revelia do realizador, rematando a relação de trabalho com um grande golpe nas costas. Penn descreveu a situação e os seus sentimentos em relação ao filme a Elliot Norton, em 1971, afirmando que 
o que eles fizeram foi que, do material disponível, fizeram selecções que eu nunca teria feito. Eu teria usado outros takes ou outras ênfases numa cena. Na verdade, não é tanto uma questão de deixar ou tirar material, é uma questão de tonalidade. Dado um certo número de takes de uma dada cena, por exemplo, com Brando, como podem imaginar, pode começar aqui e pode acabar de forma dramática mesmo lá no topo. Bem, na maioria dos casos, acho que eles usaram o material menos radiante e o material de interpretação menos original e, nesse sentido, acho que privaram o filme e Brando do que era potencialmente uma das interpretações mais extraordinárias que já deu na vida. 
“Há um ritmo, vemos as coisas a acumular e a ganhar velocidade, e se não tiverem isso, fica frouxo. E esse é o meu sentimento em relação a esse filme: é pomposo e é frouxo. Eu fiquei simplesmente sem palavras. Não sabia o que dizer. Sabia que tinha um filme nado-morto nas minhas mãos. O que aconteceu foi uma imersão pura nas práticas de Hollywood. E essas práticas são extraordinárias, inebriantes e detestáveis ao mesmo tempo, pelo que o filme é essas coisas todas para mim.” 
Se se mencionam os problemas de produção de The Chase, forma normalmente desinteressante e mesquinha de falar sobre filmes – porque todas as rodagens têm os seus problemas e é muito mais produtivo analisar o que os artistas conseguem fazer apesar desses problemas, tentar traçar metodologias de trabalho e motivações formais –, e se se presta tanta atenção ao que Penn pensa do seu próprio filme[5], é porque esses problemas e a postura de Penn em relação ao assunto expuseram as fragilidades e a própria legitimidade do sistema de estúdios ou das “práticas de Hollywood” durante os anos 60. O sistema de Hollywood começou a ruir no final dos anos quarenta, quando se proibiu a prática de aluguer massivo de cópias às salas de cinema pela parte dos cinco grandes estúdios, que protegiam assim os seus lucros gigantescos, sem défices e sem dívidas. Howard Hughes foi o primeiro produtor a fazer um acordo com o Estado, na esperança pôr a sua RKO em pé de igualdade com os outros quatro estúdios, mas acabando por afundar a própria companhia e levando-os a todos consigo em efeito dominó. Nos anos seguintes, as companhias de seguros começaram a comprar acções dalguns desses estúdios e não tardou a que os controlassem por inteiro. Durante os anos sessenta, as dívidas eram insustentáveis e as companhias começaram a levar as suas rodagens para a Europa de forma a tentarem controlar custos. 
 
Os realizadores formados na televisão durante os anos cinquenta aparecem em Hollywood por esta altura. Habituados à liberdade que lhes era dada durante esses primeiros anos do novo meio de comunicação, chocaram ora com presidentes de companhias que não percebiam nada de cinema, ora com produtores que continuavam a tratar os realizadores como meros funcionários e os impediam de controlar qualquer outro aspecto da produção. Durante os anos 30, 40 e 50, eram poucos os realizadores que tinham direito à montagem final ou a supervisionar guiões e escolher actores. As soluções mais conhecidas que os realizadores arranjaram eram tentar filmar o menos possível, para impedir surpresas na sala de montagem, e da forma mais compacta, para poder sugerir o que não se podia mostrar. Só que os métodos de Penn (ou Peckinpah) eram incompatíveis com a primeira solução, porque precisavam de muita cobertura para encontrar o filme na montagem, e os anos sessenta não eram tempos para subtilezas, era preciso mostrar as coisas porque já entravam pelas salas de todos os americanos, ao jantar. The Chase ilustra essas questões de bastidores de forma exemplar, bastando citar a cena do cerco a ‘Bubber’ pelos habitantes da cidade, em que a iluminação é puxada ao máximo pelo director de fotografia (contra a vontade de Penn) para filmar uma realidade também puxada ao limite, uma conjugação que só terá equivalente no napalm e no fogo-de-artifício do Apocalypse Now. É quase como se ambos os lados se enfrentassem num duelo pela supremacia. 
 
As cenas de violência de Penn (tal como as de Peckinpah, mas para efeitos totalmente opostos) também são altamente trabalhadas e manipuladas, daí a sua necessidade de cobertura e de opções para a montagem. Do culminar do duelo de vontades entre Anne Bancroft e Patty Duke em The Miracle Worker (em 1962) à longa e penosa partida de todas as partidas do infelizmente muito pouco visto e discutido Penn & Teller Get Killed (em 1989), passando pelo ataque a Brando na sua delegacia no filme que nos ocupa. A concretização desta cena foi idealizada pelo actor, envolvendo a encenação do ataque com movimentos lentos pela parte dos actores, filmados com captação acelerada da câmara. A rodagem de The Chase foi um sem fim de ideias novas para o cinema cujo resultado foi apreendido pelo produtor para ser montado como um filme de estúdio. O choque não deixa de fascinar, e por muito que Penn insista que lhe falta coesão, talvez seja mesmo a falta de coesão que o torne uma obra-prima. Primeiros sinais de uma ordem prestes a ruir, e por quantos prismas se queira ver.

[1] Não deixa de ser impressionante, no entanto, como arranjam maneira de entrar tantas questões neste filme, que se torna charneira exactamente por causa disso: além de documentar o imenso conflito geracional que assola a América nesses anos (manifesto também nas diferentes escolas e gerações de actores que entram no filme), vemos aqui abordadas a questão racial, a questão das armas e das escaladas de violência (Kennedy tinha sido assassinado há pouquíssimo tempo e a cena final é uma re-encenação assumida do assassínio de Lee Harvey Oswald por Jack Ruby, logo a seguir ao assassinato do presidente), a revolução sexual, a exploração de mão de obra pelos grandes produtores, o fim do casamento como instituição e ainda o mito da fronteira e do Oeste.

[2] E Tudo o Vento Levou é muitas vezes citado como o filme definitivo sobre a Guerra Civil, embora tenha muito mais fama do que qualidade (curiosamente, e tal como The Chase, é um filme absolutamente dominado pelo seu produtor). Band of Angels e O Nascimento de Uma Nação (filme problemático, sem dúvida, mas que ilustra muitíssimo bem a ambivalência de que falámos, não fosse Griffith um sulista encantado com a sua história e com os feitos dos seus antepassados) levam sem dúvida a melhor. Sobre o Sul e as suas ambivalências, recomendam-se muito o Mandingo de Richard Fleischer, Stars in My Crown de Jacques Tourneur e The Sun Shines Bright de John Ford.

[3] Os créditos de Spiegel incluem filmes como The Prowler (Joseph Losey, 1951), Há Lodo no Cais (Elia Kazan, 1951), Bruscamente no Verão Passado (Joseph L. Mankiewicz, 1959), Lawrence da Arábia (David Lean, 1962) ou The Last Tycoon (Kazan, 1976), adaptação do livro de F. Scott Fitzgerald com o mesmo nome e baseado na vida e no trabalho de Irving Thalberg. E junto a Thalberg e Darryl F. Zanuck, Spiegel é um dos três produtores de Hollywood a ganhar por três vezes o Óscar de Melhor Filme.

[4] in «Arthur Penn - American Director» de Nat Segaloff, The University Press of Kentucky, 2011.

[5] Como disse o grande Robin Wood sobre Penn (numa análise sobre The Chase que se recomenda vivamente, presente no livro essencial que escreveu sobre os anos 70, 80 e 90, «Hollywood From Vietnam to Reagan... And Beyond», Columbia University Press, 2003): “Se o realizador diz que o filme dele é mau, como é que o crítico pode afirmar que é bom? Se o realizador alega total desconhecimento de certas camadas de significado no seu trabalho, então como é que essas camadas de significado podem existir sem ser na imaginação do crítico? Se o realizador (“o artista”) diz que não teve controlo nenhum sobre um dado filme, então como é que pode valer a pena defender esse filme? Uma das principais preocupações da estética do século vinte tem sido responder progressivamente, e de facto descartar, tais questões: primeiro, através da utilização “primitiva” da psicanálise (o artista não se apercebe dos seus próprios impulsos inconscientes), uma utilização que se mostrou perfeitamente compatível com (e assimilável na) estética tradicional; depois, através de conceitos de ideologia marxistas (onde se separam a estética moderna e a tradicional), revelando toda uma gama de pressupostos culturais, tensões, e contradições que actuam através de códigos, convenções, e géneros, largamente fora do alcance do controlo do artista; finalmente, através da utilização sofisticada da teoria psicanalítica que procura explicar, não apenas o “caso” individual, mas a própria ideologia, a construção do sujeito dentro dela, a relação entre sujeito e espectáculo.”

in «Uma Viagem Pelo Cinema Americano», OLIVEIRA, José, PALHARES, João, A.23 Edições, 2018.

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Diálogo com Raoul Walsh


por Jean-Louis Noames (Louis Skorecki)

Tal como a sua civilização, de que é testemunha e juiz ao mesmo tempo, o cinema americano construiu a sua grandeza através de um poder de síntese incrível de elementos exteriores e locais. Assim, depois dos seus representantes autênticos que são o Inglês, Hitchcock, os Vienenses, Lang, Preminger e Wilder, o Grego, Kazan, e o Irlandês, Ford, os CAHIERS DU CINÉMA tinham de homenagear Raoul Walsh, cineasta especificamente americano, tal como Hawks. 

Cineasta da guerra e da aventura, Walsh preferiu sempre a aproximação obstinada das tropas e a coesão do exército regular às façanhas brilhantes dos atiradores (que são Nicholas Ray e Douglas Sirk, por exemplo).  Portanto não nos admira nada ver a sua obra ligada ao próprio percurso do cinema, percurso que sabemos pertencer apenas àqueles que o fundaram. 

A conversa que se vai seguir foi gravada no platêau de A Distant Trumpet, depois do primeiro dia de rodagens em estúdio: Walsh respondeu a maior parte do tempo ao nosso colaborador entre as filmagens de planos. Portanto, sem nos lamentarmos pela fragmentação que resulta de um encontro nestas condições, felicitemo-nos isso sim por poder conservar a imagem de um homem que no seu íntimo soube sempre confundir a arte com a vida, ao ponto de lidar com esta última como se fosse uma aventura e de viver a primeira como um destino. 

☆ 

— Falemos primeiro deste filme que está a rodar, A Distant Trumpet

— Pois bem, vejamos. Sabe, é uma história muito longa para contar. É a história de um jovem tenente, saído recentemente de West Point, e que enviam para o Arizona para o Forte Discovery, um posto muito avançado em pleno território Apache. Estes Apaches atravessam a região inteira, roubam o gado, pilham os ranchos e matam as pessoas. Ele chega lá e encontra um forte em péssimo estado. E portanto resolve pôr tudo em ordem. A primeira coisa que vai fazer, a primeira missão, é trazer madeira para o forte para reparar os danos mais graves. Enquanto corta essa madeira na floresta os Apaches atacam-lhe a colónia e roubam as carroças: os seus soldados fogem tomados pelo pânico. Ele vê-se sozinho, e parte. Depois de um ou dois dias a cavalo, encontra uma diligência desgovernada, cujo condutor foi morto pelos Índios. Dentro da diligência só há um passageiro: uma jovem que deixou o forte. Era casada com um tenente e ele já tinha estado com ele. Vai salvá-lo e condu-la pelas montanhas, enquanto os Índios perseguem a diligência e os cavalos que querem recuperar. Passa um dia inteiro e uma noite com essa rapariga. Depois, no caminho de regresso ao forte, são surpreendidos por uma tempestade terrível. Procuram refúgio numa caverna, e é aí que têm uma grande cena de amor. Já no forte, o tenente escreve uma denúncia sobre a deserção dos seus homens e decide acabar de uma vez por todas com aquela desordem. Quer fazer deles verdadeiros soldados: portanto começa a treiná-los. A pé, a cavalo, fá-los fazer uma série de exercícios tão puxados, que no fim mal têm forças para se manter em pé. 

A cena de amor entre o tenente e a rapariga - que de resto ainda não filmei - é a cena mais importante do filme. Como em todos os meus filmes, toda a história gira à volta dessa cena... Acho que este western que estou a fazer vai ser um óptimo filme. Tenho tudo o que preciso: centenas de índios e de soldados, uma boa história, ecrã largo e tudo o resto... Espero muito dele. 

Sabe, o que é preciso tentar fazer no cinema é introduzir uma grande variedade de elementos diferentes num filme, fazê-los entrar em acordo entre si para que o filme seja construído um pouco como uma peça de música, uma sinfonia. 

Também gosto muito do trabalho de William Clothier para este filme. É o primeiro filme que faço com ele e é um excelente director de fotografia, especialmente em exteriores. Muitos dos nossos directores de fotografia são pessoas que não sabem trabalhar sem ser no estúdio. Ele, pelo contrário, é um homem duro. Adora trabalhar em exteriores e é por causa disso que a iluminação que fez para este filme é verdadeiramente sensacional. O Lucien Ballard, por exemplo, também fazia uma fotografia a cores muito boa, mas sobretudo em interiores. A arte dele é notável particularmente com as mulheres. Quanto a Sid Hickox, que trabalhou muito comigo durante uns quinze anos, fazia um preto e branco muito bom, e tínhamos uma colaboração muito próxima, uma concordância. 

— E os seus actores... 

— Há um certo tipo de actor que eu adoro e que usei sempre: Fairbanks, Flynn, Gable, homens duros que sabem tomar as rédeas da acção sem que ela jamais abrande. 

Entre os novos actores e actrizes, não vejo quem se lhes compare. Nenhum destes jovens vai conseguir substituir os antigos. Sobretudo entre as mulheres: não há uma nova Lana Turner a revelar-se. São pouco mais que «teenagers», todas e todos. Não têm muita estabilidade, nem experiência dramática, nem personalidade, nem muito poder, e frequentemente mesmo nada. Não há força neles. Têm caras bonitas, sim. 

Em França e em Itália as vedetas femininas são um bocado mais velhas, é verdade, mas pelo menos têm ímpeto, um fogo interior e um registo variado. As nossas actrizes são plácidas. Têm medo de fazer o mais pequeno gesto porque alguém podia muito bem avistar uma pequena ruga nas caras delas. Aqui está aquilo que temos de enfrentar, de combater. E, claro, são todas estereotipadas: umas penteiam-se como a Marilyn Monroe, as outras como a Lara Turner. 

No que diz respeito aos homens a nova geração de actores não me parece muito melhor. Alguns deles, que trabalharam na televisão, têm a sorte de se conseguir impôr. Mas isso leva-lhes tempo, porque as pessoas que guiam carros e querem ver o Ben Casey no cinema da esquina dizem que fariam melhor se fossem para casa ver a mesma coisa sem pagar, nas televisões deles. Agora pode-se tirar esses actores da TV durante bastante tempo, e isso é melhor. Só um bocado melhor, porque ainda há uma coisa que pode fazer mal a esses actores: é que essas séries antigas voltem a passar cada vez mais. Mas de qualquer maneira não apareceu grande actor nenhum entre esses miúdos sem personalidade nem experiência. 

É muito fácil fazer um filme de vinte e seis minutos para a TV: mostra-se tudo o que é supérfluo, pessoas a subir escadas ou a andar durante um tempo interminável, etc. No fim das contas, o que é que resta? Três minutos de cenas «selvagens», de violência, de luta. Isso é apenas uma fórmula que se aplica, percebe o que eu quero dizer? 

O Jimmy Best, por exemplo, um desses jovens actores, utilizei-o três ou quatro vezes, e ele também trabalhou com Fuller. Ele trabalha muito, é um jovem com muita exactidão, muito bom. Tentaram usá-lo numa dessas séries para a televisão mas não deu em nada: penso que o público não aderiu. Mas também não sei porquê. Ele é óptimo como actor de complemento, muito útil e muito natural. Ouvi falar desse papel de homem do Sul (ele é-o, de facto) que ele interpreta em Shock Corridor

Na verdade, quando um actor tem de fazer uma cena, contento-me em perguntar-lhe ao princípio como é que planeia fazer essa cena. Porque com eles há sempre uma certa tendência para forçar as coisas, quer dizer, enfim, a não colocar emoção verdadeira que chegue... É preciso controlá-los. Interpreto eu mesmo a cena para lhe mostrar como fazer. Mas quando um actor não é bem a personagem, quando eles não coincidem, em vez de lutar por nada, adapto o papel à personalidade do actor, faço com que essa discrepância desapareça. 

Um dos actores de quem tenho melhores lembranças é Arthur Kennedy. É um dos maiores. Começou a carreira em High Sierra, acho eu, em que era um dos gangsters. Era um actor maravilhoso, e que só melhorou com os anos... 

— Como elabora os seus argumentos? 

— Geralmente trabalho em colaboração cerrada com os argumentistas, antes que eles estabeleçam o guião. E isto pelo menos por uma razão: é que fiz tantos e tantos filmes que conheço a maior parte dos exteriores possíveis para uma rodagem e, como os argumentistas não estão forçosamente familiarizados com essas zonas, é preciso que seja eu a eliminar alguns projectos de cenas que seriam impossíveis de filmar. 

— Uma vez estabelecido o guião, improvisa durante a rodagem? 

— Pois claro. Mas os nossos métodos de trabalho são diferentes dos que se praticam na Europa. Aí passa-se tudo em família. Podemo-nos sentar a meio de um plano e discutir com a equipa toda. Na América é mais difícil: acontece que os actores não tenham experiência alguma, e portanto é impossível falar-lhes, de discutir o filmes com eles. Na Europa os actores são mais cultos, acho eu, sabem tirar melhor proveito da sua experiência. Estão frequentemente mais interessados no sucesso artístico do filme do que pelo seu próprio sucesso. Na realidade, assim que se improvisa e se acrescentam diálogos ou jogos de cena, que de resto têm grandes probabilidades de serem cortados na montagem, é frequentemente difícil para esses actores americanos acompanharem.

Em França e em Itália, mesmo na Inglaterra, o cineasta tem a possibilidade de fazer filmes realistas, de os tornar mais vivos... Realismo e vitalidade, duas coisas que aqui nos são muito difíceis. Primeiro há o Código, que nos impede de fazer o que queremos. Depois, os grandes estúdios têm medo: evitam sempre fazer filmes que sejam apenas destinados aos «adultos». As nossas mãos estão atadas. Temos de espetar cenas melosas nos nossos filmes. Mesmo hoje, acabaram de me enviar os resultados do exame que a censura fez para ver se não havia nada de contrário ao Código Hays no filme. E, bom, disseram-se que era preciso retirar a rapariga num plano, porque ela não pode ficar no quarto onde um homem e uma mulher se beijam. É ridículo. Temos sempre aborrecimentos deste género, pequenas coisas. Existe até uma regra que proíbe que um beijo dure mais de três segundos. Juro-lhe que é verdade. É por isso que os adultos nos Estados Unidos atravessam mais facilmente a rua para ver um filme francês com muito «sexo», ou um filme italiano em que um homem dorme com três belas mulheres ao mesmo tempo e na mesma cama, enquanto ao lado passa um filme americano em que a vedeta, o rapaz, beija a rapariga na testa dizendo-lhe boa noite... Não, não é possível!

— Como selecciona os seus argumentos? 

— Eu recebo muitos guiões, e o meu agente também os recebe. A primeira coisa que lhe pergunto é o lugar onde se passa a acção, o local onde o filme vai ser filmado. Porque adoro viajar e trabalhar em exteriores. Não gosto nada de ficar fechado numa espécie de quarto durante três ou quatro semanas, muito menos de lá trabalhar. Se o guião me agrada continua a haver um problema que é primordial nos EUA: arranjar uma vedeta para entrar no filme. Começa-se sempre por atribuir os papéis a grandes vedetas e depois vai-se descendo gradualmente, e de repente somos forçados a aceitar um actor medíocre qualquer, porque os actores importantes que podiam interpretar o papel, bons actores, estão sob contrato, ocupados a fazer outras coisas.

Para aceitar um guião, também tenho em conta a sua originalidade: se um género de filme, uma história apaixonante que se desenrole nos mares do sul, por exemplo, ou aventuras marítimas, não é rodado há muito tempo, digo a mim próprio que há uma possibilidade de agradar. Fica a faltar a vedeta.

— Disse a uma revista americana que só havia uma forma de mostrar um homem a entrar numa sala... 

— Sim, é um dos meus princípios. Os jovens realizadores fazem demais. Para filmar a entrada desse tipo põem a câmara debaixo da mesa, fazem-no de um monte de maneiras. Enquanto que na realidade só existe uma forma de filmar isso: faz-se entrar o nosso homem na sala. Pergunta ao presidente do Banco: «Pode-me dar um aumento?» O presidente diz-lhe: «Não, está fora de questão, sai!» E o tipo sai. É tudo. Rodo essa cena em dois minutos.

O que quero dizer com isso é que quero alcançar uma maior autenticidade, muito simplesmente. Não só tornar a cena mais autêntica, mas também a coisa que filmo. Para isso até me acontece não repetir uma cena, de todo. Digo simplesmente aos actores para se lançarem. Também é por isso que prefiro ver o filme montado tal como o rodei. Quando me propõem um argumento, a primeira coisa que faço, também, é imaginar visualmente o filme inteiro: onde se desenrolam as cenas, qual vai ser o cenário, como vai progredir a acção, etc.

— Que pensa da definição de Hawks segundo a qual a forma mais alta do drama é a do homem em perigo? 

— É boa, muito boa. Justifica de alguma forma o suspense. Porque temos sempre uma personagem principal, o «herói», e mesmo que o espectador saiba muito bem que ele não vai morrer e vai estar lá no fim do filme, é preciso rodeá-lo de perigos, ainda assim, precipitá-lo para situações perigosas, ameaçá-lo com a aventura para conseguir persuadir o espectador por um instante que o herói talvez arrisque não estar lá mais no fim, para insinuar que é frágil, no fundo. E é a coisa mais difícil para um cineasta.

— Qual é para si a importância de um filme? 

— Um filme toma-nos o tempo todo. É por isso que a maior parte dos realizadores não vão às «parties» e a outras distracções nocturnas. Acontece-nos vezes demais estar sentado ao lado de uma mulher aborrecida, por exemplo, que nos vai romper os tímpanos toda a noite com a festa piscatória que está a organizar para o dia seguinte, enquanto que nós nos perguntamos como é que havemos de resolver certo problema constrangedor em relação às cenas que se têm de rodar em exteriores, no dia seguinte...

Eu adoro terminar um filme em cinco ou seis semanas, porque depois começo a ficar cansado, a desinteressar-me da história. Mas enquanto estou em cima do acontecimento, em cima da «coisa», não vou a festa nenhuma, não saio. Às vezes vou andar a cavalo no meu rancho. Felizmente tenho uma mulher que me compreende. Levanto-me de noite para reflectir, para fazer planos de trabalho para o dia seguinte. E quando sei precisamente como é que vou resolver certo problema, ou como é que as minhas personagens vão interpretar certa cena, então posso-me ir deitar.

— Que pensa da comédia? 

— Da forma como as pessoas são hoje, tornou-se muito difícil fazê-las rir. Elas já não reagem ao cómico da situação, de todo, e isso porque os argumentistas enchem o filme de diálogos e de jogos de palavras e esquecem esse género de comédia que agradaria certamente a todos os públicos. Dantes a comédia era baseada em situações. E o público seguia a história, até a antecipava ao pensar: «Meu deus, quando esse tipo entrar na sala com que é que vai levar em cima!» Hoje apenas resiste a comédia de diálogo. Chamamos ao cinema «motion picture». Não é por acaso. É preciso que se mexa. E foi por isso que fiquei desagradavelmente surpreendido quando um tipo como George Stevens rodou The Diary of Anne Frank: passava-se tudo em interiores, dava-se conta disso! Sempre em interiores!

— Quais são os realizadores que prefere? 

— Howard Hawks é um óptimo cineasta. Conheço bem os filmes dele. Também gosto muito de John Ford e Willy Wyler. Esses para mim são os melhores. Efectivamente não vejo muitos filmes. E a maior parte das vezes é-me mesmo impossível ver as minhas próprias rushes: quando volto ao estúdio, o filme já está montado, acabado! Adoro ver westerns, claro. Fui criado no Texas, na tradição do Oeste. Sei alguma coisa sobre o assunto. Conduzi gado do Texas ao Montana muitas vezes, com as grandes «cattle drives», as verdadeiras. 

Quanto a escritores, claro que é Shakespeare o que prefiro. Mas Victor Hugo também e Guy de Maupassant, que não convém esquecer, penso eu. O seu papel foi imenso, trouxe muito, e a sua maneira de descrever personagens permanece hoje para nós um modelo. Eu fiz um pouco de "pintura", retratos e naturezas-mortas, sobretudo de flores. Nunca compus música, mas fui o primeiro a fazer tocar no próprio plateau a banda sonora do filme.

— Em que medida é que fazer filmes é indispensável para si?

— Ora aí está uma preocupação bem europeia... Para mim, fazer filmes é como para um tipo que se dedica à pintura. Ele pinta sobre um certo tema, de que gosta. Tenta várias vezes. Recomeça. Pinta coisas diferentes até encontrar o seu caminho. Mas é preciso que pinte. Isso é-lhe absolutamente necessário. Ou pinta ou se embebeda. Essa, para mim, é a importância do cinema. Enfim, se eu quiser, posso sempre ir sentar-me na minha varanda, ou ir à fazenda e contar o gado durante o dia... Mas pronto... 

(Conversa recolhida com gravador)

in «Cahiers du Cinéma» nº 154, Abril de 1964.

domingo, 1 de dezembro de 2013

THE VISITORS (1972)


por João Bénard da Costa

"The whole point of brutality in war is that the nicest people do it. The sweetest, the most lovable. The most affectionate people do it"

Elia Kazan

Com The Visitors - um dos seus filmes menos vistos e mais amados - Elia Kazan abordou o problema do Vietname. Do Vietname só temos neste filme um fugitivo plano, "flash-back" rapidíssimo, que, nem por isso ou por isso mesmo, deixa de ser das coisas mais espantosas que há nele. Tudo o resto se passa em Connecticut, na própria casa de Kazan "in location". E de Connecticut nunca saímos. Quem lá mora e quem lá vai é que não esquece que esteve no Vietname.

Mas tudo o que passa na hora e meia deste filme insólito, realizado "em família" por Kazan, com argumento do seu próprio filho, actores quase estreantes, rodado em Super 16mm e pelo preço inacreditável de 135.000 dólares, tudo o que se passa dizia eu, tem a ver com o Vietname? Esse é um dos grandes mistérios deste filme fascinante e intrigante. Aparentemente tem, porque foi lá que se conheceram Harry, Bill e Tony* e porque foi lá que se passou a história da violação que tanto medo causa a Harry. Mas realmente não tem, porque o que se vai passar não foi premeditado pelos "visitantes" mas resulta do medo de Harry, da memória de Harry. É a vítima (vítima da guerra, vítima da visita) quem desencadeia, com o seu misterioso pavor, a repetição do que se passou no Vietname, quem traz o Vietname para Connecticut.

Muita gente escreveu ou disse que o medo era a principal razão de todos os nossos males. Este filme faz-me vir à memória (outro tema central dele) um texto admirável publicado em 1968 por Nuno Bragança em que tal hipótese era exposta. E Nuno Bragança recordava (cito de memória) que o medo foi a primeira palavra que ocorreu a Adão depois do pecado ("tivemos medo e escondemo-nos) e que, de cada vez que Deus ou os seus anjos nos visitaram, começaram por dizer, invariavelmente, "não temais". Semelhante insistência dizia ele (Nuno Bragança) talvez nos obrigue a pensar duas vezes.

Se há filme que me parece ilustrar essa moral é The Visitors. Tudo é tão calmo no início, naquelas neves de Connecticut, não tão bela luz daquele Inverno, e na simpática casa daquele casal com um bébé (só depois saberemos que não são casados e que talvez haja alguma razão para isso). Tudo é tão silencioso (neste filme, até se ouvir Bach, não há música e toda a música que depois se ouve é música "in"). Tudo é tão calmo também na casa do pai de Martha, de quem ela toma tanta conta como do "marido" ou do filho. Mas há qualquer coisa e logo o "sentimos": os cães que ladram (ao longe) o vento que sopra (de leve). Se nos dissessem que era um filme de terror (estou a voltar ao medo) pensávamos que o realizador nos estava a manipular, género espera um bocadinho e já vais ver o susto que apanhas. Mas não é - nesse sentido - um filme de terror. E quando chegam os "Kansas Dealers" (um porto riquenho e um americano de origem alemã) parece não haver razão para qualquer sobressalto. São "Visitors, friends of the army", que não tiveram tanta sorte na vida como Harry e andam por aqui e por ali à busca de emprego. Martha recebe-os com a maior naturalidade e o pai dela gosta muito deles, tanto que lhes pede que fiquem mais tempo, já que por ali a companhia é pouca e ele gosta dela. Quem tem medo (ou se quiserem mal-estar) é Harry. Porquê? Tony explica-lhe e explica-nos que não há "hard feelings". E quando Harry conta à mulher a história da vietnamita, esta não se escandaliza nem se indigna. Guerra é guerra e tanta gente fez coisas dessas. Porque demorou ele tanto tempo a contar essa história "insignificante"? E a história só deixa de ser "insignificante" quando é repetida e repetida na pessoa dela. Porquê? Repito-o: nada leva a supor que Bill tenha voltado para se vingar ou para violar a mulher do amigo. Aquele "nice guy" que vimos a dormir junto ao velho Harry (no plano de que Kazan mais gosta) que ouvimos referir-se a Martha tão ternamente como "a good - looking girl" não é um violador compulsivo ou um tarado sexual. Mas cada olhar que Harry lhe lança tem contida essa recordação comum, algo nela faz muito medo a Harry. E esse algo é bastante mais complexo do que a violação da rapariga vietnamita. E não é só medo dos "visitantes". É medo do pai de Martha (a sequência do dedo cortado e do sangue, a sequência da morte do cão) é medo da própria Martha que talvez por causa desse medo nunca se tenha querido casar com ele. E esse medo é contagiante e vai provocar tudo quanto Harry talvez fantasiasse e que certamente o seu comportamento precipita. "Há algo de masoquista nele" - escreveu Kazan - "não tenham dúvidas quanto a isso. Tenta lutar contra esse masoquismo e para isso continua a ler no mesmo jornal ou a tomar conta da casa durante todo o tempo do filme - mas não faz nada nunca e, no fim, fica ainda em casa. Já devia ter saído dali, há tanto tempo". E eu acrescento a Kazan a última frase que ele diz, aquele assombroso "are you all right?" Depois de tudo o que se passou e como se alguma coisa entre ele e a mulher pudesse voltar a estar all right. E até talvez o acredite, como acreditou que estava all right depois do Vietname. E o seu medo dos "visitantes" talvez não fosse sequer o de que a mesma cena se passasse duas vezes, mas que a primeira lhe fosse lembrada pelas meras presenças deles.

Mas se o medo de Harry tudo contagia, ecoa-o em surdina - como tudo neste filme - o desejo de Martha. Também não é ostensivo, mas há uma sequência fabulosa que o insinua mais do que qualquer ostentação: a sequência na casa de banho, quando, depois da chegada dos "visitantes", ela tira os óculos e põe as lentes de contacto. Vêmo-la (só a cara) num espelho. A câmara recua e a seguir mostra-a, em calcinhas, semi-nua, para essa oferenda secreta e aparentemente inocente. Mas, depois da violação, voltamo-la a ver de óculos, esses que já nos esquecêramos que usara no início do filme. E há a relação dela com o pai e há o plano em que toca no casaco de Bill. Dou de novo a palavra a Kazan: "She feels almost motherly towards him, as though he needs someone. She's touched by him (...) It's a fascinating character. She sometimes looks very cruel, and very harsh: and other times she looks like a baby. The actresses I like (...) are able to look both plain and lovely, good-looking and brutish, to be both cruel and sweet. This girl is just a beginner, but she has some of that quality".

Nesse sentido - ou em todos deste filme tão densa e belamente elíptico - o casal e os visitantes estão, naquele paraíso, a leste dele (talvez por isso a luta entre Harry e Bill tanto lembra a luta dos irmãos em East of Eden, com o automóvel a surgir como figura de ocultação). Todos estão marcados por esse medo (sobretudo medo de si próprio). Por isso vem o "flash" do Vietname, de que ninguém quer falar e em que todos pensam. Porque, ao contrário do pai que fala ainda da II Guerra como de coisa épica, da "necessary war", todos estão divididos pelas dúvidas de terem sido portadores do mal e jamais salvadores de coisa ou causa nenhuma.

Quanto maior é essa dúvida - ou esse medo - mais perto se está de coisas terríveis. Talvez fosse a coisa mais necessária para dizer aos americanos em 1972, quando ainda havia guerra no Vietname. Talvez por isso ninguém (ou raros) tenham querido entender o filme e tenham falado dele como de obscura história (favores de pais a filhos, neste caso de Elia Kazan a Chris Kazan, argumentista e produtor de The Visitors) sem qualquer nexo.

Mas tudo lá está e mesmo para quem achar que deliro e persistir em considerar The Visitors um Kazan menor, terá que concordar (se souber ver) que há nele três das mais fabulosas sequências da obra de Kazan. Já falei do velho e de Bill deitados; já falei de Martha na casa de banho. Resta-me falar do plano da mão de Bill a convidá-la a dançar, nesse gesto repetido com que se inicia a repetição do que ninguém queria que se repetisse e acabou por se repetir. O Vietname em Connecticut e o "flash-back". Depois, "the visitors" podem-se ir embora. Já tudo ficou mais dentro.

in AS FOLHAS DA CINEMATECA - Elia Kazan

* Nós, que temos a sorte de ter nomes de personagens e actores muito à mão nem por isso conseguimos escrever textos que mereçam coçar as côdeas desta (e doutras frases): "nesse gesto repetido com que se inicia a repetição do que ninguém queria que se repetisse e acabou por se repetir". Certo, o "Harry" de que Bénard da Costa tanto fala nesta folha deve-se ler "Bill" (o nome da personagem de James Woods)  e "Bill" deve-se ler "Mike". Harry é o nome do pai de Martha. Enfim, ninharias.

sábado, 12 de dezembro de 2009

"A Streetcar Named Desire" - 1951



STELLA! STELLA !

Mais do que por ter grandes actores, porque isso não chega (se ajuda? - ajuda, sim senhor), é este momento que me faz adorar o filme de Kazan. Porque se acontecem desgraças antes e depois de Stanley começar a olhar para a escadaria da casa dos vizinhos (onde Stella está) elas deixam de importar quando ela ouve o grito animalesco do marido - e o mundo continua, como sempre continuou e há-de continuar. É por isto acontecer (o grito selvagem) que as coisas são como são e é por as coisas serem como são que acontece isto, é o fechar e o abrir do ciclo de acontecimentos do filme, das relações amargas à imundície do bairro, o negro e o escuro. Não há, lá, lugar para alguém com o nome de Blanche, não pode haver...

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Elia Kazan - 100 Anos

1909 - 2009

E, pelo meio, três Prodigiosos Filmes:

"A Streetcar Named Desire" - 1951

"East of Eden" - 1955

"Wild River" - 1960

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Uma Viagem Pelo Musical - 6



Nos anos 60, deixámos Hollywood para ver as prodigiosas propostas francesas no que ao Musical dizem respeito. Regressando à América nos anos 70, a coisa está diferente, muito diferente. O declínio dos estúdios americanos que começou no final dos anos 40 e acabou no princípio dos anos 60, mudou por completo o sistema de trabalho em Hollywood. Começou por "cortes" na distribuição, para permitir a estreia de filmes estrangeiros, passou pela completa banalidade dos argumentos duma forma geral, e claro, nos anos 50 e 60, o CINEMA passou a ter a televisão como adversário - a televisão ganhou.

E é curioso constatar que os três próximos Musicais são , de uma maneira ou outra, uma ode ao sistema de estúdios e à época de ouro do Musical (da escolha de filmar em estúdios, ao ecrã 4/3 do cinema clássico, passando pelo amor pela coreografia), sem por isso deixarem de ser eminentemente modernos (e cada um o é à sua maneira). Nostálgicos e utópicos.

1977. Martin Scorsese faz o seu primeiro e único Musical. Tendo Liza Minnelli como vedeta, Scorsese marca já uma filiação com o Musical da Golden Age (Vincente Minnelli, Judy Garland são pais de Liza), e Robert de Niro acrescenta um realismo demolidor ao filme. E é precisamente esta dualidade que interessa a Scorsese:
"I was trying to deal with what I knew to be the underlying emotional truth (...) I was experiencing in the theatres as a child from the screen into the reality I knew in the foreground of the picture, which was a style that I felt more confortable with, that was coming right out of Elia Kazan working with actors, and John Cassavetes (...) I wanted to put the two styles together: the artifice and the truth."
Martin Scorsese

E "New York, New York" é isso mesmo, uma tentativa de conjugar duas ideologias de trabalho e de concepção fílmica, à partida, incompatíveis, mas que faz ,para o filme, todo o sentido. O artificialismo dos décors vs. a vericidade das emoções, a artificialidade da técnica (iluminação, som) vs. o uso da improvisação. Minnelli vs. Kazan.
Uma carta de amor ao Cinema de Vincente Minnelli, principalmente, mas também (e através do filme dentro do filme - "Happy Endings") a todo o cinema Musical ("Singin In The Rain", "A Star is Born"), quanto mais não seja, por ser praticamente todo filmado em estúdio.
O filme acabou por marcar a vida profissional de Scorsese. O facto de não ter um "happy ending" e outras coisas, fizeram com que o filme fosse um fracasso. Deixou Scorsese profundamente deprimido (artística e emocionalmente), antes do regresso, 3 anos depois, com a sua OBRA-PRIMA, "Raging Bull".
Mas o Musical na Nova Hollywood está sempre associado à desgraça (seja fora ou dentro dos filmes).


Em 1979, há um novo Musical. "All That Jazz" de Bob Fosse. Venceu a Palma de Ouro em Cannes, e é o melhor filme do seu realizador (obra-prima? - talvez). É também o melhor dos Musicais da Nova Hollywood (se bem que Fosse não faça parte da "trupe"). Filme testamento, reflexo do mundo do Espectáculo, auto-retrato. A vida e a morte de Fosse em filme.

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1982 é o ano de "One From The Heart", que por grande lapso, me esqueci de incluir aqui. Visão utópica do Amor e também do Cinema. Filme que marca Coppola como um verdadeiro visionário. Porque o método de trabalho é , quase, o que se pratica hoje em dia. Blue screens e ideologia digital, em 1982. Só que demorou mais de 15 anos a vingar na Indústria e este filme é um verdadeiro "ovni" do Cinema Americano. Fez menos de um milhão de dólares, e custou mais de 20. Coppola passou 7 anos a pagar dívidas com filmes (7 também).
Filmado inteiramente em estúdio (como "Brigadoon"), na sede da Zoetrope, o filme foi feito em ambiente familiar, e teve como consultor (não creditado) Gene Kelly. Coppola como grande experimentalista, e sobretudo, como grande teórico do processo fílmico:
"A minha sensação era que o meu trabalho, iria centrar-se mais numa zona em que pudesse controlar os elementos do drama, para que, em vez de nos sentarmos numa esquina, durante horas à espera que a luz fosse certa, trabalhássemos num novo tipo de Cinema, mais teatral, sendo capazes de controlar todos os elementos do filme."
Francis ford Coppola

Planeado ao pormenor por Coppola, o filme é encenado meticulosamente. É, também, objecto de estudo, inserido na ideologia do Cinema Digital: o plano deixa de ser a unidade mínima do filme, é a cena; e o trabalho de pós-produção não existe, ou melhor, é inserido no da produção: montagem e realização são uma e a mesma coisa.



Little Boy Blue, come blow your horn
The dish ran away with the spoon
Home again, home again Saturday morn
He never gets up before noon

Well, she used to render you legal and tender
When you used to send her your promises, boy
A diller, a dollar, unbutton your collar
And come out and holler out all of your noise


Hinos à ideologia do sistema de estúdios, estes Musicais foram os últimos dos seus realizadores, anunciando a morte lenta do género (sim, porque vai haver mais dois posts), e deixando neles marcas profundas...

Fim da 6ª Parte

sábado, 25 de julho de 2009

"El Angel Exterminador" - 1962



Primeiro pensei que se tratasse de um estudo sobre o fim da privacidade, como "A Streetcar Named Desire" de Elia Kazan e "Rear Window" de Alfred Hitchcock, havia vários pontos em comum: a acção confinada a um espaço: o bairro no filme de Kazan, as traseiras do apartamento em "Rear Window" e a mansão nesta obra-prima de Luis Buñuel. O desespero, os suores...
Também pode passar por isso, mas o principal a reter de "El Angel Exterminador" (quanto a mim) é o repúdio à religião, seja ela qual for...
O Señor Edmundo e a mulher Lúcia, convidam uns amigos a jantar em sua casa... As horas passam e eles por lá ficam. Passam a noite, e vários dias ficam... Não é por não conseguirem sair, mas sim por não conseguirem tentar sequer. Por isto, acabam por passar fome, sede, rebaixando-se a meros animais, a bestas. Não há poder de iniciativa, o grupo tem que permanecer junto como as ovelhas (que são aliás um motivo recorrente durante o filme), como um rebanho dependente de um líder...
Religião, privacidade, crítica à sociedade abastada, à riqueza. É um filme tão completo e tão complexo que é impossível avaliar ou descobrir qual a exacta extensão do seu discurso, do seu significado...
Genial.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

"Jackie Brown"-1997


Da obra de Tarantino consegui separar as que acho boas ("Pulp Fiction", "Jackie Brown", "Kill Bill"), das que acho menos boas ("reservoir dogs", "death proof"). Das boas sempre preferi "Jackie Brown". Em "Jackie Brown" as "homages" não se sobrepõem à história (como em "reservoir dogs") nem a forma, o estilo "atropela" o conteúdo (como em "death proof").


"Jackie Brown" adapta "Rum Punch" de Elmore Leonard, é o único argumento adaptado de Quentin Tarantino e no entanto é neste filme que eu sinto mais originalidade. Em "Kill Bill" pensamos repetidamente: "De que filme será isto?" e será esse o seu principal objectivo e a sua principal força: a crença de estarmos numa viagem alucinante pelo cinema asiático mais ou menos obscuro ou até pelo western clássico e spaghetti. A "Pulp Fiction" associa-se todo um conjunto de filmes "noir" dos anos 40 e 50, "Kiss Me Deadly" de Robert Aldrich, "Panic on the Streets" e "On the Waterfront" de Elia Kazan, entre outros.
Eu considero tanto "Pulp Fiction" como "Kill Bill" excelentes filmes e sou o primeiro a fazer a vénia a Tarantino pela sua capacidade de referenciar filmes e de ver os filmes ou antes a cinefilia como uma força capaz de influenciar a vida e de ser a própria vida, seguindo o exemplo de Godard.
Ainda assim, "Jackie Brown" é o meu preferido ( se "Inglorious Basterds" não o suplantar). Por ser um filme carregado de maturidade, adulto e por ser a melhor história de amor dos anos 90 ex-aequo com "The Bridges of Madison County" de Clint Eastwood.