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segunda-feira, 30 de junho de 2025

A Surripiar — Robin Wood sobre The Missouri Breaks


The Missouri Breaks levanta com particular vivacidade os problemas de se discutir a autoria no cinema comercial americano. É realizado por Arthur Penn, que tem por hábito assumir projectos aparentemente heterogéneos, geralmente numa fase tardia da elaboração do guião (The Chase, Bonnie e Clyde), e convertê-los, apenas com uma alteração estrutural mínima, em marcos num desenvolvimento incrivelmente consistente. O argumento original desta vez é de Thomas McGuane, e nas suas linhas gerais segue de muitíssimo perto o do recente Rancho Deluxe (1975), também escrito por McGuane mas realizado por Frank Perry. Além disto, o filme deve ser visto no contexto da evolução global do western, do cinema de Hollywood, e da civilização americana—do processo social/cultural/ideológico em que a obra individual e os artistas individuais estão envolvidos. 

As semelhanças de enredo entre os dois filmes podem ser indicadas rapidamente; ajudam a salientar as diferenças. O conflito primário em ambos é entre um barão do gado e um grupo de ladrões. Em ambos, os ladrões tentam enganar o rancheiro instalando-se a si próprios mesmo debaixo do seu nariz (em Rancho Deluxe recrutando dois dos seus homens e em The Missouri Breaks comprando um rancho contíguo). Depois de uma afronta em particular (o rapto de um touro premiado para resgate, o homicídio por vingança de um capataz), o rancheiro traz um especialista reconhecido—no filme de Perry um “detective de gado” (Slim Pickens) e no de Penn um “Regulador” (Marlon Brando). Desenvolve-se um triplo conflito à medida que as tentativas pelos ladrões de gado e pelo especialista em se superarem uns aos outros são acompanhadas pela tensão crescente entre o especialista e o rancheiro. Em ambos os casos, o especialista parece ser ou ocioso ou incompetente e antagoniza o seu empregador com a sua arrogância; em ambos, quando o conflito irrompe, o especialista expressa a sua indiferença em relação ao salário mas insiste em levar o seu trabalho até ao fim, como uma questão de orgulho pessoal e profissional. 

A característica geral comum mais saliente dos dois guiões é a tendência de McGuane para conceber cada episódio em termos de uma ideia deliberadamente nova ou excêntrica. Perry, cujo trabalho anterior (e.g., Diary of a Mad Housewife, 1970) tem sido consistentemente vulgar, fácil e oportunista, executa Rancho Deluxe precisamente a esse nível. Cada cena se desenrola pela sua gracinha potencial, e o filme não gera qualquer tensão moral ou qualquer ressonância: os ladrões de gado são jovens amigáveis, o detective um velho encantadoramente engenhoso, e o filme não tem ambições para lá do divertimento casual. O argumento de The Missouri Breaks é mais sério por si mesmo (o filme abre com um enforcamento e culmina numa série de mortes violentas; ninguém morre em Rancho Deluxe para perturbar o tom predominantemente cómico); o grau pelo qual Penn se infiltrou e tornou seu aquilo que é claramente um padrão estrutural de McGuane permanece notável. 

A tensão central na obra de Penn sempre foi a que existe entre o impulso e o controlo: uma tensão central à condição humana, pode-se argumentar, mas Penn sempre a investiu de uma intensidade particular e, nos primeiros filmes, de um equilíbrio preciso de afinidades (a oposição Billy the Kid/Pat Garrett de The Left Handed Gun, o casamento do instinto e da razão em Annie Sullivan em O Milagre de Anne Sullivan, a valorização equitativa de Bubber Reeves e do xerife Calder em The Chase). The Chase (nas palavras de Penn, “mais um filme de Hollywood do que um filme de Penn”) marca um ponto de viragem tanto na sua obra como no desenvolvimento do cinema americano: um dos primeiros filmes “apocalípticos” de Hollywood, apresenta a desintegração da sociedade capitalista americana como irrevogável. Daí em diante, Penn tem-se movido consistentemente pelas margens da sociedade estabelecida para procurar grupos alternativos (e sempre extremamente vulneráveis) que encarnem valores de liberdade, generosidade, espontaneidade, uma capacidade de resposta humana mútua: o bando Barrow de Bonnie e Clyde, a comunidade hippie de Alice’s Restaurant, os Cheyenne de O Pequeno Grande Homem, os ladrões de gado de The Missouri Breaks

Esta mudança de ênfase foi acompanhada por uma mudança de atitude correspondente em relação às figuras que encarnam a consciência e o controlo e dedicadas à preservação da ordem estabelecida. A última destas personagens a ser apresentada de forma empática num filme de Penn foi o Calder de Brando em The Chase; é particularmente ajustado que a prorrogação desta relação afortunada entre actor e realizador coloque Brando praticamente na mesma posição dentro da estrutura simbólica de Penn mas visto agora de forma inequívoca como um monstro. 

No entanto, seria errado ver este desenvolvimento exclusivamente em termos pessoais. Os últimos três filmes de Penn preocuparam-se todos em inverter os mitos centrais de Hollywood: o papel da cavalaria como justos defensores da civilização e agentes do Destino Manifesto (O Pequeno Grande Homem), o detective privado infalível moral e profissionalmente a dar luzes sobre as sombras da selva urbana (Night Moves), o pistoleiro como paladino heróico da lei e da ordem (The Missouri Breaks). A tendência (que não se limita de forma alguma a Penn—pense-se, entre muitos outros, nos filmes de Robert Altman) deve-se ver menos como o desejo de dizer finalmente “a verdade” e mais como um reflexo de alterações significativas nos valores americanos e na consciência nacional. 

The Missouri Breaks apresenta uma revisão concisa do mito do western do desenvolvimento da civilização americana: o rancheiro Braxton trouxe milhares de cabeças de gado e centenas de volumes de literatura inglesa para a natureza selvagem, junto com os valores civilizados do lar, família, lei e ordem. É-nos contado que a sua mulher, depois de três anos de “pesar cada palavra,” partiu com “o primeiro homem insensato que conseguiu encontrar.” O enforcamento que abre o filme marca o momento em que a lei e a ordem se endurecem em repressão; depois disso, Tom Logan (Jack Nicholson), líder dos ladrões de gado, sente “algo novo no ar.” Esse “algo novo” depressa assume a forma corpórea de Robert E. Lee Clayton, o regulador contratado. 

Clayton é uma criação extraordinária. Entre os três, Penn, McGuane e Brando levaram à sua conclusão lógica, ao seu reductio ad absurdum, a figura mítica do herói solitário da natureza selvagem, defensor da civilização, rectificador de injustiças. De Hopalong Cassidy a Shane, esta figura tem de ser desapegada, sobretudo em relação às mulheres e aos grilhões do lar, psicologicamente inexplicado e inexplicável, superior e carismático. Clayton, super-humano e sub-humano ao mesmo tempo, não tem identidade—apenas uma sucessão de roupas extravagantes e uma série de sotaques. A “única mulher que alguma vez amou” é a sua égua (que, de modo apropriado, urina durante a sua canção de amor para ela à harmónica). A definição de Tom Logan de um regulador é “alguém que mata pessoas e nunca se aproxima delas.” Clayton estabelece a sua distância da humanidade em todos os pontos, recusando qualquer contacto pessoal: a sua primeira aparição insólita de baixo do pescoço de um cavalo é imediatamente seguida pela sua exibição teatral sobre o caixão do capataz. O seu domínio depende da distância: os seus binóculos e a sua espingarda Creedmore que consegue matar a quinhentas jardas[1]—daí o cabimento da sua morte, consigo e com Logan em espaço confinado, filmados em extremo grande plano. 

Cada uma das suas matanças enfatiza a sua própria omnipotência distante e a vulnerabilidade humana das suas vítimas: uma abatida durante a cópula, uma enquanto defeca, etc. Ambos castrados (“nem sequer estás aí,” diz Logan, a espreitar para a espuma do banho de Clayton) e castradores, ele próprio termina (na grande tradição dos monstros do ecrã) vulnerável e patético mesmo continuando detestável. Em contraste com ele colocam-se, com uma hesitação comovente, como a vida contra a morte, as tentativas de Tom Logan em inventar por si próprio a jardinagem—o seu orgulho em salvar macieiras de pragas e em conceber um sistema primitivo de irrigação: uma façanha criativa simples que, para Clayton, “não vale um cuspo.”

[1] 457 metros. [N.d.t]

in «Times Educational Supplement», 23 de Julho de 1976.

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

A minha carreira americana de faz de conta


por Alexandra Stuart

Ainda que nunca tenha trabalhado em Hollywood, posso dizer que tive uma pequena carreira americana. No seguimento de Exodus, Arthur Penn confiou-me efectivamente um grande papel em Mickey One.

Este realizador era muito estimado em França desde The Left Handed Gun, um western que questionava a personalidade de Billy the Kid. Eu tinha adorado este filme que fez muito pela carreira de Paul Newman, impressionante como jovem bandido do Oeste selvagem.

Natural de Filadélfia, Penn tinha começado na televisão e tinha lá criado uma excelente reputação com a qualidade das suas rodagens ao vivo. Também era um encenador estimado nos palcos de Nova Iorque, onde vivia. A crítica europeia via-o como líder do novo cinema americano. Para as grandes companhias hollywoodianas, no entanto, mantinha-se um intelectual, posição que o tornava marginal na profissão.

No entanto, Anne Bancroft tinha conquistado o Óscar de Melhor Actriz e Patty Duke o de Melhor Actriz Secundária no segundo filme dele, O Milagre de Anne Sullivan. Este sucesso fez com que fosse contratado para dirigir O Comboio, parte da rodagem da qual aconteceu em França. Ao fim de dez dias, Burt Lancaster, descontente com a sua forma de trabalhar, substituiu-o por John Frankenheimer. Não era uma coisa incomum em Hollywood, as vedetas e o produtor considerando muitas vezes o cineasta como um simples executante, não como um criador, nem sequer como o autor do filme.

Durante a sua breve estadia em França, Penn teve pelo menos a oportunidade de ver Le Feu follet de Louis Mallle e de se deixar seduzir pela fotografia de Ghislain Cloquet e por uma das actrizes do filme: eu. Foi assim que fomos os dois contratados para Mickey One.

Estava nervosíssiva. Mas desta vez não quis desperdiçar a minha oportunidade.

*

Os ensaios começaram em Nova Iorque e duraram um mês. Sentávamo-nos à roda de uma mesa para trabalhar os nossos papéis. Travei imediatamente amizade com Warren Beatty, a estrela do filme. Tinha acabado de deixar Natalie Wood e era o amante secreto de Leslie Caron, ainda casada.

Sentia-me bem. Conhecia Nova Iorque, onde a minha mãe me tinha levado tantas vezes durante a minha infância. À noite, saía com Jill Jakes, a secretária de Penn e futura esposa de Terrence Malick. Ela fez-me conhecer a vanguarda nova-iorquina: a escritora Susan Sontag, o músico John Cage, os pintores Jasper Johns e Robert Rauschenberg, inventor da Pop art... mas John Cassavetes não, infelizmente!

A rodagem realizou-se em Chicago, Arthur Penn comportou-se um bocado como Jacques Doniol-Valcroze em L'Eau à la bouche: cordial e paciente. Apesar das suas atenções, a minha preocupação contínua causou-me dores de cabeça insuportáveis; sobretudo, sentia-me pouco à vontade nas minhas cenas com Warren Beatty, ainda imbuído da formação de actor por Stella Adler, como Paul Newman o estava por Lee Strasberg. Mas enquanto que tinha tido muito poucas cenas com Newman no filme de Preminger, tinha muitas com Warren em Mickey One. A minha angústia não se justificava apenas pelas dificuldades que sentia em manter-me em sintonia. Não me sentia segura de mim mesma. Consciente do meu estado, Penn, para me descontrair, dava-me as mãos para os grandes planos.

Vivi no entanto belos momentos neste filme e tenho lembranças comoventes das sessões de gravação da musique, que Penn confiou a Stan Getz, um homem do jazz cujo estilo eu adorava. Também tive a oportunidade de conversar com Bertrand Goldberg, o arquitecto do hotel onde nós estávamos; ele tinha construído duas torres de betão armado de 175 metros em Marina City onde foram rodadas algumas cenas. Até tive oportunidade de me cruzar com Hugh Hefner, o criador da revista Playboy, nos clubes onde Penn tinha previsto várias sequências com raparigas esculturais que não deixavam Warren Beatty indiferente...

Sempre curiosa e indisciplinada, levei uma vida apaixonante fora do local das filmagens. Fiz amizade com o escritor Nelson Algren, o autor de O homem do braço de ouro, no qual Otto Preminger tinha baseado um filme. Ele tinha sido amante de Simone de Beauvoir e essa ligação dava-lhe uma grande aura entre os intelectuais americanos, ainda entusiastas do existencialismo.

Algren era um tipo incrível. Antes de mais, ele usava laços-borboleta brilhantes! Nos dias em que eu não filmava, levava-me a visitar a penitenciária nas proximidades e, algumas noites, arrastava-me para bares mal afamados em que os irlandeses armavam confusão com os índios. Estes passeios nocturnos preocupavam o director de produção que, receando pela minha integridade física, me interditou formalmente estas escapadelas. Ditatorial e estúpido! Em sua defesa, eu ignorava que a produção andava sob tensão. Mickey One traçava o percurso de um artista sustentado pela máfia que tentava libertar-se dela. Arthur Penn tinha-se inspirado directamente no início de carreira de Frank Sinatra e a Columbia receava acções dissuasivas da máfia. Portanto esse director de produção achava imprudente que eu me expusesse assim nos bairros mais sórdidos de Chicago...

Foi sem dúvida por essas mesmas razões que Mickey One teve apenas um lançamento confidencial nos Estados Unidos. Ainda que apresentado no Festival de Veneza, foi um fracasso universal. Isso não servia para a minha carreira americana!

*

Por sorte, apresentaram-se outras oportunidades de trabalho na América. Conheci em Londres o produtor Darryl F. Zanuck, que quis muito considerar-me a mim para o papel de Shirley Eckert, a rapariga de Yang-Tsé em Chamas. Fiquei excitada com a ideia de trabalhar com Robert Wise, cujas duas comédias musicais, West Side Story et Música no Coração, tinham alcançado sucesso, rendendo-lhe cada um o Óscar de Melhor Realizador. Mas o meu interesse por ele ia além do seu estatuto de estrela das bilheteiras. Sabia que tinha sido o montador do primeiro filme de Orson Welles, O Mundo a Seus Pés, e tinha adorado os seus filmes anteriores, The Set-UpO Dia em que a terra Parou.

O assunto era sério, uma vez que Zanuck me enviou para Los Angeles para fazer testes nos cenários do filme, nos estúdios da 20th Century Fox. A jovem Emmanuelle Arsan também estava a fazer ensaios para outro papel, que aliás acabou por conseguir. Aparece no genérico com o nome de Marayat Andriane. Eu já a tinha conhecido em Banguecoque, onde o marido Louis-Jacques Rollet-Andriane era cônsul de França. Como é que podia suspeitar que mais tarde ia filmar numa continuação de Emmanuelle, a partir do romance erótico que ela tinha publicado em 1959?

A minha estadia em Los Angeles reserva-me outra surpresa.

Estava alojada num hotel muito mediano. Como não suportava ficar lá fechada quando tinha tempo livre, saía para passear, mas nesta cidade onde toda a gente andava de carro, uma jovem no passeio era imediatamente suspeita de aliciamento. A polícia controlou-me. Consegui explicar que estava a dar um passeio porque precisava de apanhar ar e de qualquer forma foi a única vez na minha vida em que me confundiram com uma puta.

Os testes duraram três semanas e pareciam conclusivos. Robert Wise convocou-me ao escritório dele e afirmou-me, não sem um certo constrangimento:

- Os seus testes são perfeitos, Alexandra... mas não vai interpretar o papel de Shirley Eckert. Escolhemos uma jovem actriz, a Candice Bergen, filha do ventríloquo famoso. Lamentamos imenso...

Candice Bergen! Uma antiga modelo como eu... Tinha acabado de me ficar com um papel em The Group de Sidney Lumet. Na altura ignorava que ia ser a última companheira de Louis Malle, o pai da minha filha...

*

Dez anos depois, houve ainda outra decepção à minha espera em Hollywood.

Robert Altman, que estava a preparar Quintet, queria-me confiar um dos cinco papéis principais ao lado de Bibi Andersson, Paul Newman, Vittorio Gassman e Fernando Rey. Desta vez, foi Brigitte Fossey quem me passou a perna.

No final das contas, o outro único filme americano em que participei, mas num pequeno papel, foi The Marseille Contract de Robert Parrish, uma co-produção com a França em que o meu amigo Michael Caine era a estrela, ao lado de Anthony Quinn e James Mason. Só boa gente!

Olhando para trás, parece-me que os estúdios americanos não foram muito sensíveis aos charmes das belas musas da Nova Vaga francesa. Tirando Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, poucas actrizes terão conseguido fazer carreira em Hollywood. Certo, Anna Karina teve a oportunidade de ser dirigida por George Cukor em Justine, e isso conta na vida de uma actriz, mas nem eu nem Stéphane Audran nos conseguimos impor além-Atlântico. Quanto às outras... nem sequer atravessaram o oceano.

in «Mon bel âge - mémoires», Éditions de l'Archipel, Paris, 2014.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Os 10 Melhores dos anos 00


Não sabendo bem quando acaba ou quando começa a década (parece que começa em 2001 e acaba em 2010), também eu vou escolher os 10 filmes desta década - os que, para mim, foram os melhores e mais importantes. Aqui estão eles:

"Gosford Park" (2001)

É o 2º melhor filme de Robert Altman (o primeiro é "McCabe and Mrs. Miller" - o anti-western, um dos filmes mais fabulosos dos 70), homenagem à literatura policial inglesa dos anos 30 e 40 e, por si só, testamento vivo do que Altman acreditava ser o Cinema: os grandes elencos sem personagem ou personagens principais (com a complexidade que isso implica) e os diálogos "decorativos" (falar por falar e não para explicar a acção ou a história) - o mais próximo possível da vida. Não é por acaso que, durante as duas horas do filme, Altman "tece" um estudo social e político da Inglaterra dos anos 30. Contemplativo e sedutor como nenhum outro em 2001.

"The 25th Hour" (2002)

É um filme político (e, no fim, muito mais que isso), o primeiro a reflectir (e de que maneira) as feridas sociais, sentimentais e políticas do 11 de Setembro e, claro, é poderosíssimo, fenomenal. É o melhor filme de Spike Lee e é, também, de uma raiva e de um descontentamento desmedidos - o fim do sonho americano...

"O Quinto Império" (2004)

Retrato de D. Sebastião enquanto mito e, portanto, completamente actual ou uma análise intemporal da portugalidade. É onde Pessoa, Paredes e Régio convivem e uma emenda ao fracasso (ainda que glorioso) de "Non, ou a Vã Glória de Mandar" e que (re)avivou todos os nossos fantasmas históricos: Portugal ainda espera que Sebastião regresse numa manhã de nevoeiro...

"Cigarette Burns" (2005)

Pode não ser o melhor, mas não houve filme que me marcasse tanto esta década como o "Cigarette Burns" do Carpenter (da mesma maneira mas em grau diferente só o "Basterds" do Tarantino ou o "Ou git votre sourire enfoui" do Costa), por toda aquela paixão vincada, mesmo demente, pelo Cinema (os cinéfilos - essa raça em extinção) e a atmosfera apocalíptica que atravessa todo o filme - aqui é o apocalipse cinematográfico. E, claro, a rebeldia e a anarquia "carpenterianas", ou como um telefilme para a Showtime se transforma numa verdadeira carta de amor à Película e ao Cinema.

"Il Caimano" (2006)

É sobre Berlusconi, porque é sobre a Itália dos últimos 30 anos e, como diz Teresa (a jovem cineasta) no filme, a Itália dos últimos 30 anos é Berlusconi.
Moretti, o maior cineasta italiano em actividade, constrói uma análise ao Cinema italiano dos últimos 30 anos, do qual faz parte, filmando uma família (e um país) em crise. E faz tudo isto sem cair na condescendência ou no panfletismo. É Cinema político, sim, mas é tão mais que isso...

"The Tracey Fragments" (2006)

"The Tracey Fragments", de Bruce MacDonald, é o melhor filme com Ellen Page (a maior revelação feminina da década). Cinema digital e sobre os nossos dias, conta a história de uma adolescente à procura do irmão desaparecido, por fragmentos, fragmentos de narrativa. O ecrã também está fragmentado (e nunca vi splitscreen melhor que este - também ainda não vi o Histoires du Cinema do Godard) e os sentimentos da personagem, os medos e a própria auto-estima, ainda mais. Diz-nos que, nos tempos que correm, não conhecemos uma pessoa senão por pedaços de convivência, porque vivemos, cada vez mais, isolados uns dos outros.

"Ne touchez pas la hache" (2007)

Filme de época e adaptação de "La Duchesse de Langeais" de Honoré de Balzac, "Ne Touchez Pas la hache" de Jacques Rivette é austero, quase impenetrável, uma sátira tremenda aos costumes do séc. XIX e um conto romântico mútuo-destrutivo ("quanto mais me bates...) e de uma esperteza ("wit") inabalável. É de uma noção de ritmo e de timing cinematográfico extraordinários (colar planos, pensá-los a cada um como força viva, palpável, mesmo) e o melhor Rivette desta década (tinha, por isso, que estar aqui).

"A Londoni férfi" (2007)

Primeiro contacto com o Cinema de Béla Tarr (e único, ainda) e uma experiência única, verdade seja dita. O Tarkovski, o Antonioni e o Minnelli já têm companhia, são eles os principais destruidores daquela ilusão "baziniana" de que o plano-sequência é um plano realista.
A história é facílima de contar, mas o fácil e o simples acabam aí. O que é "A Londoni férfi"? - film noir? ficção científica? - filme de uma importância e de uma profundidade imensa, que tenta apurar (sem conseguir porque não é possível) o que é o ser humano?...

"Cztery noce z Anna" (2008)

Skolimowski não fazia um filme há dezasseis anos, Paulo Branco "resgatou-o" e, assim, nasceu Quatro noites com Anna, um dos filmes mais (dolorosamente e delirantemente) obsessivos dos últimos 30 anos ("Vertigo" dos pobres). É uma história de amor no negativo onde o ódio e o amor, o repulsivo e o sedutor, a inocência e a experiência e o mórbido e a beleza convivem. Das melhores coisas que me foram dadas a descobrir nos últimos tempos....

"Gran Torino" (2008)

Por fim, Clint Eastwood e o seu "Gran Torino". Porque não se pode compreender a América como um misto de republicanos e democratas, bidimensional, nem as pessoas como unidimensionais (e Eastwood sabe-o), eis um filme que só é simples em termos formais (alcançar essa simplicidade é que é o cabo dos trabalhos - só mesmo para alguns), uma "coça" moral como nenhuma outra em 2008.

*E custou-me muito, muito mesmo, não ter conseguido arranjar espaço para o "Spider" do Cronenberg....

Menções Honrosas: "Spider" (Cronenberg) / "Oû Gît votre sourire enfoui" (Costa) / "A.I." (Spielberg) "O Quarto do Filho" (Moretti) / "Vou para casa" (Oliveira) /"A Arca Russa" (Sokurov) / "Mulholland Drive" (Lynch) / "Femme Fatale" (Palma) / "Punch Drunk Love" (Anderson) / "Signs" (Shyamalan) / "Finding Nemo" (Santon) / "Elephant" (Sant) / "Dogville" (Trier) / "Before Sunrise" (Linklater) / "Kill Bill" (Tarantino) / "Far From Heaven" (Haynes) / "Eternal Sunshine of the spotless mind" (Gondry) / "Noite Escura" (Canijo) / "A History of Violence" (Cronenberg) / "The New World" (Malick) / "The Black Dahlia" (Palma) / "Inland Empire" (Lynch) / "98 Octanas" (Lopes) / "Livro Negro" (Verhoeven) / "Miami Vice" (Mann) / "Little Children" (Field) / "Belle Toujours" (Oliveira) / "I`m not There" (Haynes) / "Paranoid Park" (Sant) / "There Will be blood" (Anderson) / "This is England" (Meadows) / "Juventude em Marcha" (Costa) / "Vals im Bashir" (Folman) / "Lat den ratte komma in" (Alfredson) / "Che" (Soderbergh) / "Inglourious Basterds" (Tarantino)

domingo, 22 de novembro de 2009

"His Girl Friday" - 1939




Os filmes de Howard Hawks são geniais, brilhantes (não há palavras que lhes façam justiça), porque não há mais simples que aquilo: é Cinema de personagens, argumento clássico sem elipses, nem malabarismos narrativos. Parece fácil mas não é, porque não há ninguém que desenvolva personagens (ou desenvolvesse) como Hawks o fazia.

"His Girl Friday" é assim, também. Tudo reduzido ao essencial (os planos, os cenários, as situações), uma noção de ritmo arrebatadora (como colar planos entre si - e poucos têm esse dom), porque Cinema - um bom filme, como ele dizia - é "duas boas cenas e nenhuma má". É lembrar o espectador que a vida vale a pena ser vivida e que não vale a pena passá-la em sofrimento. Cada filme dele é isso, uma reflexão sua sobre a vida, a sua moral e a sua visão do Mundo em película e não é por ser bem disposto que se colocam menos questões. Haverá coisa mais profunda que o Amor ou que um estudo sobre a pena de morte (no que a "His Girl Friday" diz respeito)? Por nos rirmos perde credibilidade? (isso é treta). "His Girl Friday" não é um filme que se veja e que se esqueça: faz parte da obra de um dos maiores realizadores que já viveu e uma das mais fascinantes, diga-se de passagem. Sempre o mesmo filme e nunca o mesmo filme, como diziam os críticos cineastas da Nova Vaga. Todo e cada um desses filmes diz coisas novas, dizendo o mesmo.

De resto e se se quer saber porque é que Hawks é um génio do diálogo, o Altman responde. Se se quer saber porque é que é um génio do timing em comédia, o Bogdanovich responde. Se se quer saber porque é que é um génio da economia espacial, dos cenários confinados, o Carpenter responde. Se se quer saber porque é que é um génio do desenvolvimento de personagens, o Tarantino responde, e, finalmente, se se quer saber porque é que é um génio estético (além de ético), o Rohmer e o Rivette respondem. Rivette escreveu uma crítica a "Monkey Business" chamada "O Génio de Howard Hawks". Começa assim:
The evidence on the screen is the proof of Howard Hawks's genius: you only have to watch Monkey Business to know that it is a brilliant film. Some people refuse to admit this, however; they refuse to be satisfied by proof. There can't be any other reason why they don't recognize it.
E espero que os próximos posts não sejam só sobre Hawks, preciso de falar doutras coisas: Antonioni, por exemplo.

The Genius of Howard Hawks por Jacques Rivette