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segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Clássicos da literatura russa precisam de uma nova interpretação após a invasão da Ucrânia? / Entrevista com a professora Ani Kokobobo

 

Dostoievsky


Clássicos da literatura russa precisam de uma nova interpretação após a invasão da Ucrânia? Entrevista com a professora Ani Kokobobo

Desde o século 19, a literatura é certamente uma das áreas em que a Rússia vem exercendo com mais força o seu “poder sutil”. Autores como Tchekhov, Tolstói, Dostoiévski, além de poetas como Pushkin, Akhmátova, Tsvetaeva e Brodsky são amplamente lidos, traduzidos e estudados no mundo todo. É comum vê-los como símbolos da cultura de seu país. Esse fato, porém, faz com que eles também sejam alvos de um número crescente de tentativas de cancelar a cultura russa, agora que a invasão à Ucrânia liderada por Moscou está próxima de completar 100 dias.

A Global Voices conversou com Ani Kokobobo, pesquisadora de literatura e cultura russas que leciona no Departamento de Línguas e Literaturas Eslavas e Eurasianas na Universidade do Kansas, como professora associada e chefe de departamento, a fim de saber a sua perspectiva sobre a crescente tendência da cultura do cancelamento nesse contexto:

Professora associada Ani Kokobobo, foto usada sob permissão.

 


O que eu percebi desde que a Rússia invadiu a Ucrânia foi, antes de tudo, um interesse em não promover a arte russa patrocinada pelo Estado. Também ouvi e li a respeito de maneiras pelas quais a cultura russa pode ocultar outros aspectos do genocídio que está sendo perpetrado, neste exato momento, pelas tropas da Federação Russa na Ucrânia. Suspeito que essas afirmações têm a ver com o fato de que muitas ideias presentes na literatura e na cultura russa se transformaram em armas e foram utilizadas para legitimar as ações ilegais do governo na Ucrânia.
Eu não sei se a verdadeira solução para esse problema está em não ter contato com as ideias russas. Acredito que, ao contrário, nós devamos ter um contato crítico com elas. Por outro lado, vale notar que, quando falamos da literatura e da cultura da região, costumamos privilegiar a literatura e as ideias russas em detrimento de outras existentes no Leste Europeu e na Eurásia; e eu espero que isso mude.
Não é de se estranhar que os ucranianos tenham uma certa atitude diante da cultura de seus invasores nesse momento. Mas eu vejo tais posicionamentos como posicionamentos de indivíduos confrontados com o genocídio russo. E eu não os culpo; culpo o genocídio. No fim das contas, a entidade mais responsável pelo impulso do cancelamento da cultura russa é o próprio governo russo.

Na verdade, diferentes governos russos — o tzarista, o soviético, o moderno — sempre perceberam a sua cultura como essencialmente imperial, e em poucos casos, questionaram os elementos colonialistas presentes na projeção que faziam da sua própria cultura. Kokobobo concorda que o Kremlin tem pouco incentivo para se engajar em uma missão de descolonização, se é que tem algum. Ela também levanta uma questão importante acerca da representatividade:


Como eu não tenho certeza se a Rússia teve um governo representativo adequado nos últimos tempos, não sei o que queremos dizer quando falamos em Rússia; há muitas Rússias. Penso que algumas dessas Rússias estão procurando se descolonizar, e nós já pudemos perceber sentimentos separatistas na Sibéria e em outras regiões.

Parte da especialidade acadêmica de Kokobobo é algo chamado, informalmente, de “Tolstoiévski”, ou seja, o estudo de Tolstói e Dostoiévski. Ambos os autores escreveram páginas e mais páginas, em obras de ficção e não ficção, sobre o destino e a missão da Rússia e de sua literatura, o seu posicionamento em relação às culturas europeias e asiáticas, e a sua visão da guerra e da violência. A questão que se transformou em um debate acalorado está em como abordar esses textos diante da guerra de 2022, da destruição da Ucrânia e de sua cultura, e das exigências de cancelamento da cultura russa por parte de certas entidades. Kokobobo, que já escreveu sobre o assunto, responde:


Penso que devemos estar atentos ao nacionalismo e ao sentimento de excepcionalismo russo em Dostoiévski, e também devemos levar em consideração como ele retrata outras culturas que não a de seu país. Pessoalmente, não acredito que Dostoiévski teria apoiado essa guerra, com certeza não depois das primeiras notícias da morte de civis inocentes. Porém, considero que suas outras ideias sobre a grandeza da Rússia podem ser usadas como armas perigosas, e elas têm sido usadas. Nós devemos lê-las de forma crítica e procurar vozes minoritárias em seus textos, para que nossos estudantes tenham uma imagem mais completa de Dostoiévski. Também não acho que devamos esconder as inconveniências desse autor. Na minha opinião, Dostoiévski e Tolstói não são tão frágeis a ponto de não suportar alguns escrutínios profundos de suas ideias mais problemáticas.

Kokobobo também observa que os posicionamentos mudam: se Tolstói foi um pacifista em seus anos finais e faz menção ao colonialismo russo na novela Khadji-Murát, é verdade que ele começou a sua carreira como intelectual público de outra maneira. Ela diz que:


Em “Kadji-Murát”, ele critica a violência contra os poloneses, tomando uma atitude que eu considero uma retrospectiva tolstoiana do seu sentimento anti-polonês em “Guerra e Paz”, onde retrata soldados poloneses se afogando por causa daquilo que, para ele, era a sua admiração servil a Napoleão. Sem dúvidas, a revolta polonesa de 1863 contra o domínio tzarista suscitou certos sentimentos no Tolstói da década de 1860; mas é positivo vê-lo voltar atrás e fazer uma revisão de si mesmo, rejeitando certas ideias prévias. Acredito que as leituras críticas de Tolstói costumam surgir de sua própria autocrítica, já que a sua ideologia era bem menos estável que a de Dostoiévski; nós o vemos reescrevendo e criticando a si próprio diversas vezes ao longo dos anos.

Descolonizar a própria academia

Perguntada a respeito de uma possível mudança para mais estudos sobre a Ucrânia no contexto acadêmico norte-americano, Kokobobo disse que, de fato, deveria haver mais interesse nessa área, uma vez que os estudos eslavos costumam ser dominados por estudos sobre a Rússia, o que se repete nas academias do mundo inteiro. Ela também observa que:


A língua russa simplesmente recebe mais matrículas de estudantes do que outras línguas, mas eu acredito que esse padrão também faz parte de uma história colonial mais ampla. Nós vemos coisas parecidas quando comparamos as matrículas no espanhol e as matrículas em línguas indígenas na América Latina. Para mim, descolonizar a área como um todo começa, antes de tudo, com incrementações. Começa com a integração, nas grades curriculares, de vozes ucranianas e bielorrussas, assumindo perspectivas russófonas ou não russófonas. Da mesma maneira, cabe a nós questionar a missão imperial da Rússia quando formos apresentar a sua cultura aos estudantes, tanto inserindo perspectivas, que normalmente são apagadas, quanto explicando a história do colonialismo russo.

Ela conclui dizendo que não há necessidade de a academia ser um jogo de tudo ou nada:


Agora vou ser impertinente, mas sincera: ofereço para todos os meus colegas, como um recurso, o nosso curso on-line de ucraniano na Universidade do Kansas. Às vezes, estudantes avançados de russo são os melhores candidatos para esse tipo de curso. Não se trata de uma proposta de “um ou outro”, e não há necessidade de ser territorial nesses assuntos. Eu não creio que os estudos russos vão acabar de vez se nós abrirmos espaço, em nossas unidades, para os estudos ucranianos ou se olharmos para o Leste/Centro Europeu e a Eurásia de forma mais holística, como uma região composta por muitas identidades e culturas, todas ricas e dignas de serem estudadas.

GLOBAL VOICES




 

terça-feira, 22 de março de 2022

Dostoievski e o conceito de liberdade

Dosotievsky


DOSTOIEVSKI 

E O CONCEITO DE LIBERDADE


Publicado em Literatura por Myilena Queiroz

“A preocupação exclusiva de Dostoievski, o tema único ao qual consagrou sua força criadora, é o homem e seu destino” Nicolai Berdiaev

E o destino do homem é seguir a liberdade? É seguir a norma de fazer o que bem queira desde que não venha a ferir as leis dos homens comuns? Creio que para este romancista, não seja algo tão simplório assim.


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 As paisagens, os movimentos e as ações são para o romancista russo apenas um meio para materializar o que realmente lhe é de interesse: o homem e seus abismos espirituais. Esse ser que debate-se entre a má liberdade e o bom constrangimento certamente não tomará para si valores reles. O autor de Crime e castigo basear-se-á em teses que não são propriamente humanas, porém, pois esse estará sempre ligado às leis de Cristo. Um Cristo peculiar, um Cristo de Dostoievski.
A liberdade para esse autor, assim como o bem e o mal, tema constante em suas obras, se apresentará em seu aspecto metafísico. Isto é, a liberdade mesquinha, aquele deslocado querer de ir e vir, pouco interessa a Dostoievski. Enquanto romancista o que lhe interessa é a liberdade superior, embora os homens sejam quase sempre fracos demais para servirem a liberdade, parafraseando Ivan Karamazov.
A Liberdade (que podemos então, nas intenções do romancista, grafá-la em maiúscula) pode chegar a contradizer a liberdade política do senso comum, pois não é a prisão que consiste no seu inverso, mas as tempestades interiores, mas a consciência, mas a moral.
A vida do homem dostoievskiano, uma vida sem paisagem, uma vida voltada ao interior, faz pressupor que a lei dos homens lhe é insuficiente. Para ele, uma escolha que esteja de acordo com a maioria, mas de encontro com sua visão de mundo, provocar-lhe-á, certamente, momentos de remorso e culpa. A Liberdade, então, tem como único caminho o sofrimento e o flagelo interior. Um cumprimento de pena nada mudaria um homem que julgou-se culpado. Não trata-se da condição do ser que não vive em cativeiro, mas da condição do ser que está de acordo com seu juízo moral ferrenho.
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Nesse jogo de recompensações morais o suicídio, como faz Smerdiakov, é um aliado, porque há um tribunal inferior que o impõe. E a condenação constitui para esse tipo de culpado uma oportunidade de libertação. É a profundidade trágica do ser, que é explorada em sua obra, que guia o mundo aos olhos do romancista. Raskolnikov, indo para a Sibéria, não soltando o volume da bíblia, já se sentia reconciliado consigo e com Deus.
O bem e o mal são ambos filhos da liberdade. Os problemas humanos em Dostoievski são problemas metafísicos, e uma metafísica transcendente. Sendo assim o escritor russo, resolvendo todos os problemas humanos e super-humanos, constrói uma obra que desenvolve-se sob o signo da tragédia. Quase não vê-se em sua obra espaço para sentimentos mais comuns e aparentemente menos profundos aos seus olhos, como por exemplo o amor. Aliás, sentimento este que passa-se apenas como um momento da vida do homem. E uso o termo homem não como “ser humano em geral”, pois a alma humana tratada por Dostoievski é antes de qualquer coisa um principio masculino, completamente preso à unidade e à interiorização do ser. E o amor, sendo uma arbitrariedade, violentaria essa interiorização. Não que não haja espaço para altíssimas temperaturas e sensualidade. Todavia, parece que a realização plena do amor desvirtua o ser da preocupação dos eternos problemas e mais profundos questionamentos que o atordoam.
Esse facto de que Dostoievski entende a alma humana como algo essencialmente masculino muito importa para a sua noção de Liberdade. Isto porque o ser essencialmente masculino é tendencioso a introverter-se. E o ser introvertido tem enorme tendência de forçar os outros a sua imagem, ou negá-los para não destruir a sua ideia de como deve ser alguém.
Poder-se-ia dizer então que a introspecção é motivo para a existência dessa Liberdade em Dostoievski, porque deixa claro que esse ser julgará obstinadamente o objeto sujeito a sua projeção, e sendo esse objeto a própria pessoa, esse precisará passar pelo juiz mais tirano que poderia haver: ele próprio. Berdiaev afirmou que Dostoiévski "descobriu uma cratera vulcânica em cada ser." E esses vulcões são sempre retumbantes. (apud James Townsend)
Os filósofos mais intensos, os guerreiros mais honrados e os homens que se remetem ao âmago do agir, dos costumes e das leis que impõem a si mesmo certamente poderiam ser personagens dostoievskianos. Mas certamente isso se trata de uma minoria, porque de nada importa a Dostoievski os seres que se distanciam s



segunda-feira, 21 de março de 2022

Após 20 anos, Editora 34 traduz toda ficção de Dostoiévski

 


Após 20 anos, Editora 34 traduz toda ficção de Dostoiévski


Com “Escritos da casa morta”, todos os 23 livros do escritor russo foram vertidos para o português, sempre em traduções diretas do idioma original
Rascunho
Curitiba
(13/11/20)

Com a publicação de Escritos da casa morta, a Editora 34 completa o projeto de traduzir para o português toda a obra de ficção do russo Fiódor Dostoiévski. Foram 23 volumes ao longo dos últimos 20 anos, com traduções feitas sempre a partir do idioma original. O que até então era algo raro em se tratando das traduções do autor no Brasil.

O projeto teve início com a edição de Memórias do subsolo, em tradução de Boris Schnaiderman, em setembro de 2000. No ano seguinte, foi publicado o clássico Crime e castigo, em tradução de Paulo Bezerra.

Agora, duas décadas depois, a editora encerra a publicação das obras completas de ficção de Dostoiévski com o livro que marca a sua ressurreição como escritor, após um período de quase dez anos em que esteve preso e exilado na Sibéria. Escritos da casa morta (também conhecido como Recordações da casa dos mortos), publicado entre 1860 e 1862, parte de um registro antropológico da vida e dos costumes dos presos comuns, encarcerados com o escritor na fortaleza de Omsk, para empreender um mergulho profundo na psicologia do ser humano.

O livro foi traduzido diretamente do russo por Paulo Bezerra, que também assina a apresentação do volume, e inclui um posfácio de Konstantin Motchulski, um dos principais biógrafos de Dostoiévski, uma carta em que o escritor defende seu livro da censura e dois depoimentos de época sobre o período de encarceramento de Dostoiévski, além da série completa de 43 xilogravuras realizadas por Oswaldo Goeldi em 1945.

Confira a lista com todos os livros de ficção de Dostoiévski lançados pela Editora 34:

Gente pobre (1846), tradução de Fátima Bianchi [2009]
O duplo (1846), tradução de Paulo Bezerra [2011]
A senhoria (1847), tradução de Fátima Bianchi [2006]
Noites brancas (1848), tradução de Nivaldo dos Santos [2005]
Niétotchka Niezvânova (1849), tradução de Boris Schnaiderman [2002]
Um pequeno herói (1857), tradução de Fátima Bianchi [2015]
A aldeia de Stepántchikovo e seus habitantes (1859), tradução de Lucas Simone [2012]
Dois sonhos: O sonho do titio (1859) e Sonhos de Petersburgo em verso e prosa (1861), tradução de Paulo Bezerra [2012]
Humilhados e ofendidos (1861), tradução de Fátima Bianchi [2018]
Escritos da casa morta (1862), tradução de Paulo Bezerra [2020]
Uma história desagradável (1862), tradução de Priscila marques [2016]
Memórias do subsolo (1864), tradução de Boris Schnaiderman [2000]
O crocodilo (1865) e Notas de inverno sobre impressões de verão(1863), tradução de Boris Schnaiderman [2000]
Crime e castigo (1866), tradução de Paulo Bezerra [2001]
Um jogador (1867), tradução de Boris Schnaiderman [2004]
O idiota (1869), tradução de Paulo Bezerra [2002]
O eterno marido (1870), tradução de Boris Schnaiderman [2003]
Os demônios (1872), tradução de Paulo Bezerra [2004]
Bobók (1873), tradução de Paulo Bezerra [2012]
O adolescente (1875), tradução de Paulo Bezerra [2015]
Duas narrativas fantásticas: A dócil (1876) e O sonho de um homem ridículo (1877), tradução de Vadim Nikitin [2003]
Os irmãos Karamázov (1880), tradução de Paulo Bezerra [2008]
Contos reunidos, vários tradutores [2017]

RASCUNHO



quinta-feira, 11 de julho de 2019

Obsessão russa por literatura está diminuindo





Obsessão russa 

por literatura 

está diminuindo

Ainda assim, 59% dos russos leem livros todos os dias - a segunda posição no ranking mundial, atrás apenas da China. Foi na era soviética russos se alfabetizaram em massa e hábito da leitura se difundiu, mas, conquanto os leitores quisessem abrir novos horizontes com literatura que não era publicada na URSS, após sua queda e abertura do mercado a leitura vem diminuindo.

Um estudo global sobre a leitura de livros realizado pela empresa GfK em 2017 mostra que  59% dos russos leem todos os dias - ou pelo menos uma vez por semana. Assim, o país ocupa segundo lugar no ranking mundial da leitura de livros, atrás apenas da China.
Ainda pode gerar dúvidas o fato de que o estudo é baseado apenas nas respostas das pessoas. Mas, se estiver correto, ele dificilmente surpreenderá alguém na Rússia: o país, historicamente, sempre foi “literaturacêntrico”. Na Rússia, como escreveu o poeta Evguêni Ievtuchenko, “um poeta é mais do que um poeta”. E o mesmo é verdadeiro sobre quem escreve em prosa.
Tomemos Lev Tolstói, por exemplo. Nos anos 1900, ele era tão grande quanto os Beatles na década de 1960 ou a Beyoncé hoje. Quiçá ele tenha sido ainda mais popular que o próprio imperador!

Depois que o escritor passou a bater de frente com a Igreja Ortodoxa e o jovem tsar Nikolai 2° em 1901, exigindo igualdade e direitos humanos para os camponeses, o editor Aleksêi Suvôrin escreveu: “Temos dois tsares: Nikolai 2° e Lev Tolstói. Quem é mais forte? Nikolai 2° não pode fazer nada sobre Tolstói, não pode abalar seu trono - mas Tolstói, sim, balança o trono da dinastia do outro”.
É claro que o caso de Tolstói foi muito peculiar: desde a década de 1880, ele virou algo mais próximo de filósofo e figura pública do que escritor de ficção. Mas outros gigantes da literatura do século 19 e 20 - como Fiódor Dostoiévski, Ivan Turguênev, Antôn Tchékhov, Maksím Górki e outros - também tiveram impacto sobre a opinião pública russa com seus romances humanísticos, o que certamente eram mais influente do que qualquer ministro tsarista e suas ordens. Foi aí que se iniciou a obsessão da Rússia pela literatura.
Literatura no lugar de política

“Entre os séculos 18 e 20, a vida pública na Rússia estava toda voltada à literatura”, explica Lev Oborin, poeta e crítico literário. Enquanto, no Ocidente, os monarcas cediam aos poucos o poder aos sistemas parlamentares, o tsar gozava de monopólio sobre todas as formas de poder. Por isso, o único lugar onde criticar os poderes constituídos estava nas páginas dos romances.
"Devido à ausência de políticas reais, os escritores se tornaram defensores da liberdade e iluministas", escreve Oborin. Eles não tinham outra escolha, senão escrever sobre o estado de espírito dos russos comuns, os males da servidão, a estranha natureza da alma russa que balançava entre o Ocidente e o Oriente etc. Para tanto, usavam metáforas e alegorias para escapar à censura.
Infelizmente, porém, a grande maioria dos russos não sabia nada sobre a luta intelectual de seus escritores – já que não sabia ler. De acordo com um censo nacional do final do século 19 e início do século 20, pelo menos 60% dos russos adultos ainda eram analfabetos em 1913. Somente o governo soviético foi capaz de educar seu povo e fazê-lo ler os grandes escritores da era imperial.
Os soviéticos abraçam os clássicos

Apesar de brutal ao destruir seus rivais políticos (e depois, seus próprios aliados), foram os bolcheviques que melhoraram o nível de educação russa: em 1939, 87% dos cidadãos soviéticos sabiam ler e escrever, e o sempre controlador Estado fez seu melhor para fornecer ao povo toda a literatura de que ele precisava - contanto que ela estivesse de acordo com os ideais marxistas.
Foi durante o período soviético que se formou o cânone literário do programa escolar. Assim, o que os russos leem hoje na escola é uma leve variação do que os soviéticos instituíram: Aleksandr Púchkin, Lev Tolstói, Antôn Tchékhov etc.
"Esses escritores eram todos dissidentes do regime tsarista... A ideologia soviética se beneficiava de tomar como seus aliados os chamados 'democratas revolucionários'... Apesar de nem todos terem sido socialistas", explica Lev Oborin.
O desonesto império das publicações
É claro que o Estado decidia o que publicar. Clássicos russos? Obviamente! Uma prosa estrangeira não provocativa demais (Hemingway, Remarque, Salinger)? Tudo bem! Mas não se esqueça das obras completas de Lênin, Marx e Engels. E, por exemplo, memórias de Leoníd Brêjnev sobre sua experiência na Segunda Guerra Mundial – que ganharam 20 milhões de cópias em 1978.
A URSS não poupava papel em tiragens: na década de 1980, vendiam-se bilhões de cópias. "Havia quase 50 bilhões de cópias em bibliotecas pessoais [por toda a URSS]", escreve o historiador Aleksandr Govorov em seu “A História do Livro”. Esta foi a base para a URSS ser chamada "a nação que mais lê" - uma fórmula que ainda é muito popular e surge toda vez que alguém se regozija com a nostalgia dos grandes tempos soviéticos.
O único problema era a total ausência de escolha. “As tiragens aumentavam, mas a demanda pública continuava insatisfeita”, explica Govorov. As pessoas queriam literatura de ficção e entretenimento, mas o Estado continuava fornecendo livros marxistas, espalhados aos montes em livrarias sem vender.
"Eles publicavam livros suficientes em termos de quantidade, mas o que publicavam ditando ideologia e economia não refletia o que os clientes queriam ler", diz Govorov.
Atualmente

Durante a Perestroika, no final da década de 1980, que foi seguida pela queda da URSS, os leitores finalmente tiveram sua chance. É uma história longa e bastante peculiar a de como o mercado de livros emergiu e se desenvolveu na Rússia contemporânea. Mas, mesmo que os russos tenham sido a nação que mais lia, eles já não o são mais.
Segundo a pesquisa de 2017 da GfK supramencionada, a Rússia estaria em segundo lugar mundial no ranking da leitura de livros. Mas os profissionais da indústria editorial russa duvidam de uma classificação tão otimista.
"Acompanhamos as vendas no mercado de livros e, atualmente, elas não crescem na Rússia", diz a editora-chefe da revista Indústria do Livro, Elena Solovióva.
Realmente, as tiragens vêm caindo paulatinamente nos últimos 10 anos: de 760 bilhões de cópias impressas, em 2008, para 432 bilhões, em 2018. Mas a questão é muito complexa para a pesquisa devido ao aumento das vendas de livros eletrônicos e ao mercado da pirataria.
De qualquer forma, o interesse atual da Rússia em relação à literatura é estável, mas as perspectivas futuras não são encorajadoras - não há nenhum Lev Tolstói no horizonte e os anos de impressão megalomaníaca soviética terminaram.
Hoje, os russos preferem outros tipos de entretenimento: o esforço e resistência da literatura têm que competir com o Netflix, o YouTube e zilhões de páginas da Web. Assim, as chances de vitória não são muito boas. Mas a  tendência é global.
“Em todo o mundo, o interesse pela leitura está em declínio, e a Rússia, infelizmente, segue a mesma tendência. Mas, nos últimos anos, ficou absolutamente claro: a leitura tem um público estável e central que nunca trocará o livro por outros tipos de entretenimento”, afirma a crítica literária Galina Iuzefovitch.
Assim, a Rússia pode estar lendo menos do que antes. Mas é muito pouco provável que ela desista para sempre de fazê-lo


domingo, 17 de fevereiro de 2019

Vargas Llosa / Herdeiros de Nietcháiev


Dostovieski
Fernando Vicente

Herdeiros de Nietcháiev

'Os Demônios', obra-prima de Dostoievski, é muito mais que uma diatribe contra a violência política: se trata de uma exploração profunda da intimidade humana, de todas as violências que sofremos e cometemos

MARIO VARGAS LLOSA
17 FEV 2019 - 09:53 COT

O assassinato do jovem estudante Ivanov, em novembro de 1869, por um bando terrorista, causou uma grande impressão em toda a Rússia. Ivanov, que pertencia ao grupo, anunciou aos companheiros que tinha decidido se separar deles. O chefe, Serguei Nietcháiev, um discípulo do pensador anarquista Mikhail Bakunin e autor de um folheto que circulou amplamente, O Catecismo de um Revolucionário, convenceu os membros da organização de que havia o perigo de que ele os denunciasse à polícia. Então, executaram-no. A polícia czarista capturou muito rápido o bando, menos Nietcháiev, que tinha fugido para a Suíça, mas depois foi extraditado e morreu na prisão em 1882.



Uma das boas coisas que resultaram desse crime foi Os Demônios, o romance de F. M. Dostoiévski, que acabo de reler depois de muitos anos, e que ele escreveu para mostrar sua cáustica rejeição aos que, como o bando de Nietcháiev, acreditavam que mediante a violência poderiam resolver os problemas políticos e sociais, e, de um modo mais geral, buscavam fora da Rússia, na Europa culta, os modelos que, a seu ver, o país deveria importar para se transformar em uma sociedade moderna, próspera e democrática. Ele era, então, quando falava de política, um “reacionário”, bem o oposto dos que, como Herzen e Turguêniev, argumentavam que a Rússia para sair do despotismo czarista e da barbárie social deveria “europeizar-se”, tornar-se secular, romper com o obscurantismo religioso e optar por governos eleitos em vez do anacronismo czarista. Estas tinham sido as convicções do Dostoiéviski jovem, quando era membro do Círculo Petrashevski, de ideias socialistas, que em 1849 foi arrasado pela polícia de Nicolau I, e ele próprio condenado à execução por fuzilamento. Entretanto, foi vítima de uma simulação de execução e depois passou quatro anos na Sibéria. Ajudou-o a sobreviver àquela experiência a conversão religiosa e a adesão às tradições populares e, pode-se dizer, uma rejeição que beirava a xenofobia por toda aquela corrente intelectual “europeísta” que via nos socialistas utópicos, como Saint-Simon, Fourier, Proudhon e Louis Blanc, as ideias e princípios que poderiam salvar a Rússia do atraso e da injustiça em que estava imersa.







Quando Dostoiévski começou a escrever Os Demônios, estava em Dresden, profundamente desgostoso com sua experiência europeia e cheio de nostalgia da terra natal

Como Balzac, quando escrevia romances o “reacionário” Dostoiévski deixava de ser assim e se tornava alguém muito diferente; não exatamente um progressista, mas, sim, um enlouquecido libertário, alguém que explorava a intimidade humana com uma audácia sem limites, escavando nas profundezas da mente ou da alma (para designar de alguma maneira aquilo que só muito depois Freud chamaria de subconsciente) as raízes da crueldade e da violência humana. Em Os Demônios se observa de maneira claríssima esta extraordinária transformação. Não há dúvida de que Serguei Nietcháiev é o modelo que Dostoiévski usou para construir a personagem de Stiepan Trofímovitch Verkhoviénski, um ideólogo mais ou menos estúpido que para salvar a humanidade está disposto primeiro a fazê-la desaparecer por meio de crimes, incêndios e atrocidades diversas.
Mas, e o extraordinário Nikolai Stavróguin, o verdadeiro herói do romance, de onde o tirou? Para escrever aquele capítulo, A Vida de um Grande Pecador, não bastava a Dostoiévski recorrer ao espectro dos tipos políticos, sociais ou intelectuais de seu tempo. Era indispensável que fechasse os olhos, se deixasse abandonar à intuição e à imaginação que, no seu caso, como no de Balzac, eram sempre mais importantes que as ideias, e se guiasse pelos próprios fantasmas até as raízes mesmas da crueldade humana, onde moram o terror, as horríveis tentações, aqueles demônios que, na vida cotidiana, passam muitas vezes desapercebidos por trás das boas maneiras que as convenções ditam. Chamo Stavróguin de “herói” porque acho que é uma das personagens mais genialmente concebidas na história da literatura, mas muito ciente de que é a encarnação do mal, de tudo o que pode haver de repulsivo em um ser humano, um verdadeiro demônio. Como Balzac, tolerando na hora de escrever seus romances que os instintos e intuições prevalecessem sobre as convicções, Dostoiévski traçou em Os Demônios uma radiografia que permite aos seres humanos descobrirem os fundos mais tortuosos e indômitos da personalidade, e a secreta raiz de boa parte das ignomínias que desafiam a cada dia em todo o mundo aquilo que chamamos de civilização, a frágil pontezinha em que esta se equilibra sobre aquele abismo estrondoso onde se aninham os terrores.
Estou em uma pequena aldeia suíça cercada de neve, montanhas e lagos, onde a vida parece muito sossegada e aprazível, mas reler este livro soberbo me mostra que não devo confundir aparências com realidades, as que, com frequência, estão a anos-luz destas. Estes discretos caminhantes e garotas que fazem ginástica com os quais troco acenos e cumprimentos nas manhãs poderiam, como o carismático Nikolai Stavróguin do romance, cravar-me uma faca nas costas e depois jogar meu cadáver aos cachorros, ou eles mesmos comerem-no.







Como Balzac, quando escrevia romances o “reacionário” Dostoiévski deixava de ser assim e se tornava alguém muito diferente

O romance me mostra também que pelas mãos dos velhos mestres tudo já foi inventado há anos e séculos, e que as vanguardas costumam “revolucionar” as formas que tinham sido revolucionadas mil e uma vezes pelos clássicos. Em Os Demônios, a astúcia com que o narrador está concebido é deslumbrante, mas é dificílimo comprovar isso quando se está tomado pelo feitiço da história, por seu lento e absorvente desenrolar. À primeira vista, o romance é narrado por um narrador-personagem, dom Anton Lavrentiévitch, um jovem solteirão que frequenta os salões de Várvara Petrovna, é amigo de alguns personagens, como Kirilov, Shatov e Piotr Verjovenski, e até sente muita atração por Liza Tushina, embora nunca se atreva a dizê-lo. Um narrador personagem dá um toque de testemunha próxima da história, pois se conta ao mesmo tempo que conta, mas também tem suas limitações, pois só pode narrar aquilo que vê, ouve ou lhe dizem, e não pode seguir os outros personagens quando se distanciam dele e se recolhem à intimidade. No entanto, de repente, com o romance já avançado, o leitor descobre que aquele narrador-personagem se volatilizou e foi substituído por outro, o narrador onisciente, capaz de narrar aquilo que o outro não viu nem pôde ver nem saber, como as sensações, emoções e pensamentos das demais personagens quando se afastam de quem narra. Que haja dois narradores no romance não incomoda em absoluto a leitura, e é possível que muitíssimos leitores nem sequer percebam, pelo modo sutil com que se produzem as trocas entre um e outro narrador, que se alternam para contar a história com tanta sabedoria. Somente se esquecendo da história e se concentrando no modo como está sendo contada é que se pode notar essas transições. E estas duas perspectivas com que a história é contada são complementares, aproximam e afastam a visão, destacando os silêncios, as distâncias e as emoções mediante as quais o narrador mantém a atenção do leitor subjugada
Quando Dostoiévski começou a escrever Os Demônios, no final de 1869, estava em Dresden, profundamente desgostoso com sua experiência europeia e cheio de nostalgia da terra natal. Acreditava estar escrevendo algo como uma diatribe contra a violência política, mas seu romance é muito mais que isso, uma exploração profunda da intimidade humana, de todas as violências que sofremos e cometemos e foram cometidas e se cometerão. Ele, quando não escrevia, acreditava que a salvação da Rússia estava em buscar o remédio em sua própria história, em suas crenças e em sua tradição. A seus leitores nos deixou, porém, com a sensação de que, pura e simplesmente, sendo os seres humanos o que somos, não há salvação.



sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Os livros que muito poucos conseguem terminar



Os livros que muito poucos conseguem terminar

O autor Nick Hornby propõe queimar os livros que se leem por pura pose



1.- O Arco-Íris da Gravidade, de Thomas Pynchon
No episódio A Pequena Garota no “Big Ten”, da 13ª temporada de Os Simpsons, a pequena Lisa quer se fazer passar por estudante universitária. Em uma cena, bisbilhota o armário de uma estudante e descobre este grande romance. A conversa das duas é a seguinte: “Você está lendo O Arco-Íris da Gravidade?”, pergunta-lhe a pequena Simpson. “Bom, estou relendo”, responde a estudante. A brincadeira, e o fato de que apareça nessa série, resume até que ponto esse e outros romances do autor mais misterioso da literatura americana alcançaram o status de literatura ilegível. Não para todos, claro. É famoso o caso do professor George Lavine, que cancelou suas aulas para se recolher durante três longos meses de 1973 com o único objetivo de devorá-lo. Quando saiu de sua reclusão, afirmou que Pynchon era o melhor que havia acontecido para as letras americanas do século XX.

2.- Crime e Castigo, de Fiodor Dostoievski
Não adianta muito que se possa ler como um thriller psicológico e torturado que não se resolve até o último parágrafo. Talvez por seu título, que alguns consideram aplicável ao que representa sua escritura e sua leitura, poucos se atrevem a criticar os delírios de Raskolnikov, ou os abandonam na sexta manifestação de tormento.

3.- Guerra e Paz, de Leon Tolstói

Outro exemplo da literatura russa, que se costuma colocar neste tipo de lista com piadas como: “Lamentavelmente, não cheguei nem ao primeiro disparo da guerra”. Embora muitos o considerem uma leitura trepidante ambientada durante a invasão napoleônica da Mãe Rússia, eles prefeririam ver a versão cinematográfica. Carrega o estigma recorrente de que ler para os russos é complicado e mais cansativo que escalar algum pico dos Urais. Seu autor o escreveu convalescendo, depois de quebrar um braço ao cair de um cavalo. Alguns leitores declaram, neste tipo de debate, ter se sentido assim durante sua leitura.

4.- Orgulho e Preconceito, de Jane Austen
Outro romance que esconde pistas em seu título. Alguns leitores terminam de lê-lo pelo primeiro elemento, por orgulho, enquanto outros nem se aproximam dele por causa do segundo, por puro preconceito. É um festival de murmúrios e vaivéns românticos, inclusive cômicos, mas o leitor contemporâneo frequentemente se cansa das tensões sexuais que celebra, entretanto, nas comédias da televisão. Esse leitor pouco paciente não é o único. O gênio Mark Twain chegou a declarar: “Cada vez que leio Orgulho e Preconceito, tenho vontade de desenterrar [a autora] e golpeá-la no crânio com sua própria tíbia”.
5.- A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, de Laurence Sterne
Foi publicado por volumes durante oito anos. O autor morreu antes que se publicasse como romance; de fato, muitos especialistas consideram a obra inacabada depois de tantas páginas. O livro pretende ser a autobiografia do narrador, que se perde em digressões e rodeios infinitos e hilários, mas não adequados para todos os gostos. É uma peça fundamental da narrativa moderna e cômica, mas o fato de que o protagonista não nasça até o terceiro volume não ajuda muita gente a aguentar manter o livro nas mãos. Talvez prefiram a adaptação de Michael Winterbottom, embora seja uma adaptação pouco fiel, como não poderia deixar de ser.
6.- A Divina Comédia, de Dante
O poema escrito por Dante Alighieri no século XIV pertence ao grupo dos que talvez enganem o leitor desprevinido pelo título. Crucial na superação do pensamento medieval e ácido como um limão nos olhos graças aos comentários sobre sua época, foi até adaptado em um monólogo por Richard Pryor. No entanto, muitos ficam na primeira parte (intitulada Inferno) ou não passam pela segunda, o Purgatório, e muito menos terminam a última, batizada de Paraíso.

 7.- Moby Dick, de Herman Melville
Se o protagonista de outro relato deste autor, Bartleby, o Escrivão – esse advogado nova-iorquino entediado, entre outras coisas, com seu trabalho – diz aquilo de “Preferiria não fazer isso”, muitos leitores adotam essa frase quando encaram o romance definitivo de Melville. Não compartilham a obsessão cega do Capitão Ahab por caçar a baleia e se enjoam com a primeira tormenta em alto mar. Não estão sozinhos, apesar da legião de fãs que realmente vibram com o livro. Em uma recente reedição em castelhano desta obra, o autor do prólogo inclui uma saborosa curiosidade. O músico Moby (sim, aquele que faz canções que saem em oitenta anúncios) admite que, embora tenha adotado esse pseudônimo, jamais terminou de ler o romance porque lhe parece “muito longo”. Uma pista: esse músico calvo se chama, na verdade, Richard Melville. Seu tio-bisavô é o consagradíssimo autor.
8.- Paradiso, de José Lezama Lima
As mais de 600 páginas desta espécie de romance de aprendizagem, exuberante em sua prosa como uma árvore repleta de frutos, são um inferno para muitos leitores. Muitos resolvem abordar a formação do poeta José Cemí aconselhados por Julio Cortázar, um autor fundamental para muitos adolescentes, do qual tentam devorar todas suas pistas, mas a linguagem personalíssima e o longo alcance afugentam uma altíssima porcentagem do público de um dos principais romances em castelhano do século XX. É mais curioso ainda quando se sabe que o autor é cubano, já que os cubanos geralmente são pouco dados a introspecções. Na narrativa latino-americana, apesar do recente culto global a Roberto Bolaño, também se costuma brincar com 2.666, do escritor chileno, que não alcança esse número de páginas, mas tem mais de mil.
 9.- As Aventuras do Bom Soldado Svejk, de Jaroslav Hasek / Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes
O mesmo bufo de tédio e desinteresse nas salas de aula checas e espanholas. E o pior é que ambos são emitidos pela obrigação de ler dois dos romances mais divertidos e delirantes da história. Duas histórias pitorescas com dois anti-heróis absolutamente inesquecíveis que carregam o problema de ser o clássico mais aplaudido de ambos os países. Seu problema? Obrigar alunos imberbes com os feromônios disparados a mergulhar em suas numerosíssimas páginas para transformá-los em “um livro de La Mancha – ou de Praga – do qual não quero me lembrar”. No entanto, quando lidos mais tarde, são mais viciantes que um saquinho de pipocas ou que a série de TV com maior audiência.
10.- Graça Infinita, de David Foster Wallace
 É curioso que um romance que trata, entre outras coisas, do vício e do colapso da cultura do entretenimento desanime tantas pessoas. Suas mais de mil páginas – centenas delas são notas de rodapé – o convertem em um dos livros pós-modernos fundamentais na história da literatura, mas também fazem com que muitos acreditem que seu depressivo autor, que acabou se suicidando, tenha escrito, efetivamente, uma espécie de piada infinita sem graça. Os leitores atuais traçam uma linha no chão e formam dois grupos: aquele dos que amam o livro e aquele dos que o odeiam.