Mostrar mensagens com a etiqueta coronavírus. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta coronavírus. Mostrar todas as mensagens

domingo, 23 de janeiro de 2022

ÀS VEZES

.
AC
.
.
Às vezes um gato não mia. Mas caminha.
Às vezes uma ave não chilreia. Mas voa.
Às vezes o planeta parece desfocado. Mas roda.
Às vezes uma estrela não se vê. Mas está lá.
Às vezes temos que nos isolar. Mas existimos.
Às vezes falta-nos a mão. Mas sobrevivemos.
Às vezes apetece-nos chorar. Mas cantamos.
Às vezes apetece-nos abraçar. Mas imaginamos.
Às vezes, para contrariar as nuvens negras, apetece-nos oferecer flores. E, confiantes na sua magia, enviamos uma foto do pôr-do-sol.
.
.
Uma pessoa que me é muito cara não conseguiu iludir a teia do coronavírus. Este texto é para ela.
.
.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

DESENHAR RUMOS: MAL-ME-QUERES OU BEM-ME-QUERES?

.
Margarida Cepêda, Ela, o violoncelo e as vagas
.
Para o/a futuro/a dirigente com que todos ansiamos
.
Quando as ondas pareciam tudo devastar, elevando a crista, saías do teu modo discreto e, perante o clamor, juntavas tudo à tua volta e começavas a contar uma história, a história da gente. 
O ritmo era pausado, mas melódico, como se, naquele momento, fosses o centro do mundo. E eras, embora não o quisesses.
As ondas, por fim, começaram a baixar, e, apesar do campo que se abria de fáceis promessas, nem assim baixaste a guarda. Embora preferisses refugiar-te na penumbra, continuaste a transportar a plateia pelos caminhos da serenidade possível, enquanto os cenários dramáticos se dissolviam nas vagas, cada vez mais frágeis.
Então, pressentindo a trégua das nuvens negras, pausavas ainda mais a voz, sorrias, e apelavas à reconstrução. E, como que por magia, quase todos te pareciam ouvir, imbuídos de esperança, apesar de saberem da efemeridade das coisas.
No dia seguinte, para  melhor perceberes o sentir da tua gente, começaste a receber, para as ouvir, algumas pessoas. E, para admiração de muitos, os primeiros foram os dissonantes. É que, daí o teu gesto, tu tinhas bem presente que, para seguirmos o rumo certo, não podemos pretender que todos entoem a pauta da vida a uma só voz.
.
.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

DIÁRIO - 13

.
Margarida Cepêda, Refúgio II
.
.
Olhava em volta, inquieta, respirando a alteração das ondas. Mas só quando sentiu um arrepio, com a roupa molhada colada ao corpo, é que percebeu que tinha que se resguardar. 
Na velha casa de cores desbotadas, um velho búzio, para a acalmar, entoou-lhe uma canção milenar. Depois, de mansinho, murmurou-lhe ao ouvido que nunca é bom abraçar as tempestades.
.
.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

CRÓNICA A PRETO E BRANCO, COM FORTE ASSOMO DE CORES

.
.
AC, Gardunha vista do pequeno paraíso
.
A manhã acordou escura e fria, reivindicando grossas roupas de lã, enquanto convidava, sem qualquer favor, ao recolhimento. Como a Natureza, sabemos nós, é avessa a salamaleques, é melhor dizer que, onde se estampa convite, se deve ler obrigação.
A reserva de lenha, no abrigo, assoma ao espírito, mas sem necessidade. Ainda por ali há combustível, com a lareira a laborar diariamente, para cerca de um mês. Há, no entanto, que providenciar para uma nova leva de lenha grossa, de sobro ou de azinho, que de lenha miúda, para iniciar a combustão, há muita por aqui.
O Whisky, um canídeo que é hóspede habitual, parece não sentir o frio. Clama por companhia, de pau na boca, para exibir a sua perícia escapatória, numa espécie de toca e foge, em que o desafiado tem que fazer o papel de cobaia, a fazer de conta que se esforça para o apanhar. É claro que, para seu deleite, o cão leva sempre a melhor, enquanto o oponente arfa, rendido, mas sorridente.
No terreno circundante, para além da área ajardinada, da horta de verão já só sobram couves e alho francês. Há, pois, que preparar a terra para a horta de inverno, que já não é cedo para iniciar o cultivo dos alhos, das favas e das ervilhas. Tal como os dias, diz o ditado que, no dia de Natal, os alhos já têm um bico de pardal.
A neve na Gardunha, mais escassa, contrasta com a abundância de branco na Estrela, mais a norte, mas com a certeza de que os cerejais agradecem a dádiva, tamanha, para eliminar as diversas pragas. Deleito-me, num epicentro de delícias várias, grato por usufruir dum horizonte tão gratificante.
Vou ao abrigo para abastecer a lareira de lenha e, por ente os paus, deparo-me com uma vespa em estado, parece-me, de hibernação. E, a propósito de tudo, ou de nada, assoma-me ao pensamento o tal bichinho omnipresente, que a todos condiciona. Oxalá a neve o aniquilasse, ou, no mínimo, adormecesse, mas parece que o frio tem efeito contrário. É por estas e por outras que ninguém quer o termómetro na mó de baixo nos contornos da sua vida. Por inerência, penso no Natal que se aproxima, em que um "bicho" maior deveria ser foco canalizador dum amor mais elevado. Mas, rendendo-me à evidência, condicionados pelas grilhetas, já quase todos se renderam às luzes ofuscantes dum amor menor, vendido em episódios, redimensionado, a todo o instante, pelos números duma qualquer caixa registadora. Adiante.
Chegam-me, entretanto, notícias do Miguel, num vídeo em que o meu neto evidencia, a cada dia que passa, uma vontade genuína de abraçar o mundo que, paulatinamente, se vai desenhando nos seus sentidos, ancorado, sempre, numa imensa ternura. Sorrio, de peito aberto, pois há coisas que não têm preço.
E a vida prossegue, bem apoiada em convicções tecidas em esperança, enquanto inicio o despertar da lareira com recurso a duas pinhas, apanhadas no final do verão num dos muitos pinhais das redondezas.
A paisagem pode arrefecer, mas a alma, em momento algum, pode deixar de se tentar aquecer. É do nosso desígnio.
.
.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

O GRITO

.
Fotografia de Flavio Scalzo
.
.
Caminhavam quase hirtos, a medo, não se desviando do rumo pré-definido, como se em cada vulto, em cada esquina, ou em cada movimento, espreitasse o perigo. 
Fazia calor, o suor começava a insinuar-se, o incómodo fazia-se cada vez mais presente. Quase sem se darem conta, iam ajeitando as máscaras, tentando aliviar o não aliviável: a insegurança no recém-viver, a incapacidade racional de estabelecer pontes harmónicas para a nova forma de estar. 
Tentavam seguir as regras, mas elas mudavam a cada instante, acentuando a insegurança geral. Além disso, na luta pela sobrevivência, só alguns podiam ficar resguardados, em casa ou em qualquer poiso distante. Os outros, a grande maioria, os tais que o cronista de antanho designou de "ventres ao sol", muitos deles achocolatados, tinham que lutar, continuamente, por um lugar no autocarro, no comboio, ou no barco, onde o distanciamento social era remetido, sem aviso de recepção, para a procedência. Tinham que chegar ao destino, ou não recebiam.
Alina, veterana desta luta diária, desceu as escadas para entrar no metro do Marquês. Aproveitando um breve momento em que não via ninguém por perto, retirou a alça da máscara da orelha direita, manteve-a a meia haste e, com toda a convicção, lançou o grito libertador, prolongado pelas paredes do túnel:
- Foooodaaaa-se!
Depois, já mais aliviada, voltou a ajeitar a máscara e correu, desalmadamente, para não perder o comboio da sobrevivência.
.
.

sábado, 18 de abril de 2020

A ENCRUZILHADA - 2

.
Margarida Cepêda, ...E o paraíso ali tão perto
.
(continuação)
.
Ali em cima, distanciado, as coisas pareciam-lhe mais claras, o pensamento discorria com outra fluidez. E o que antevia não era muito apaziguador.
A maioria das pessoas, passado o primeiro tempo de isolamento, continuava num registo de aguardar pelo sinal de regresso à normalidade, mas as coisas nunca mais seriam as mesmas. Aguardava-os um mundo periclitante, de escassez, em busca de novos equilíbrios, com profundas mossas provocadas pelo desvario duma ânsia de viver a vida numa embriaguês sem amanhã. A apreensão e o medo eram incontornáveis, com o espectro da pobreza a assomar.
Notava-se, contudo, com alguma nitidez, o movimento de certas pessoas que não se limitavam a aguardar. Numa vontade, forjada interiormente, de contribuir para apaziguar o presente e lançar sementes na construção do futuro, estabeleciam redes solidárias para fomentar equilíbrios, transformando o bem-estar dos outros no seu próprio bem-estar. Para além dos combatentes na primeira linha, fundamentais no estancar da ameaça, estas formiguinhas, longe das luzes da ribalta, teciam, a seu modo, pequenas bandeiras de esperança, encarnando aquilo que de melhor tem o ser humano.   
Do meu poiso sinto que algo começa a toldar a luz. Olho para cima. Aproximam-se nuvens negras, óbvio sinal de que a chuva se anuncia. Levanto-me, apreensivo, enquanto visto o impermeável. Estava na hora de descer.
Aguardam-nos tempos difíceis, sem dúvida, mas os escolhos serão muito maiores para quem apenas se preocupou em ter. Esses, porventura, acabarão por achar que estão pobres. 
Apresso o passo. A descer todos os santos ajudam, reza a sabedoria popular, e rapidamente chego ao sopé. Entro na zona das quintas, embalado pelo verde novo das árvores, e nem rasto do homem do tractor. Os pensamentos continuam a fluir, sem interrupção, e nem os primeiros pingos, a pedir passo ainda mais acelerado, conseguem travar a torrente. 
Naquilo que nos aguarda, quem se esforça por ser livre, cultivando o espírito, acabará sempre por sobreviver. Essas pessoas têm bem ciente que o planeta passará bem sem nós. Se conseguirmos travar o paradigma que nos trouxe até aqui - e se, em vez de uma pandemia, estivermos a inaugurar uma era de pandemias?(*) - e quisermos chegar a porto seguro, é fundamental, para além de escolher melhor quem nos lidera, começar povoar a vida com mais luz, mais espaço, mais alma. Para além do profundo respeito pelo espaço em que habitamos, é preciso ser tudo em cada coisa, pôr quanto se é no mínimo que se faz, com a poesia sempre a tiracolo.
Quando entro nas ruas da cidade já a pausa da chuva se tinha instalado. Ao longe, um homem, de máscara, passeia o cão.  Continuo. No quarteirão seguinte, junto a uma padaria, meia dúzia de pessoas, também munidas de máscara e a distância conveniente, aguardam, ordenadamente, pela sua vez. Galgo mais algumas ruas e chego ao habitualmente buliçoso centro da cidade. Nem vivalma. Apenas um ou outro carro, de forma tímida, ensaia algum movimento. Continuo a avançar, com a sensação de abandono a adensar-se, e chego à zona de escritórios. No outro lado da rua, guardando distância prudente, duas pessoas cruzam-se, com as máscaras a não conseguir esconder o olhar esquivo e desconfiado. Tiro o impermeável, dobro-o e prossigo. Junto do hiper, já a acusar algum cansaço, encontro, finalmente, algum movimento: um número considerável de pessoas, de carrinho na mão, encena um quase desfile de máscaras, configurando um perfeito cenário de filme de ficção científica. Enquanto prossigo, e sem pré-aviso, insinua-se na memória um título de antigas leituras: Um Estranho numa Terra Estranha.
.
(*) Interrogação do escritor italiano Paolo Giordano
.
.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

A ENCRUZILHADA - 1

.
Margarida Cepêda, Avaliando o abismo
.
Caminhava pelas ruas desertas, quase em bicos de pés, sentindo no ar a angústia e a incerteza, ampliadas em medos mil.
Deixou as casas para trás, agora mais solto, e embrenhou-se pela teia de caminhos rurais que davam acesso às numerosas quintas da zona. Um homem, concentrado na lavra dum terreno, manejava o tractor de forma tão natural que a máquina quase parecia extensão do próprio corpo. Um aceno, o retomar da faina. Para ele tudo parecia inalterável. Mais à frente, já perto da Quinta Grande, dois enormes cães, num latir ameaçador, dirigiram-se para ele em corrida vertiginosa. Estacou, de músculos tensos, preparando-se para a borrasca. Cão que ladra não morde, pensou, enquanto procurava um pau, não fosse o diabo tecê-las.
- Leão! Caniço! Venham cá!
O dono, de longe, impunha ordem na cena. Um respirar de alívio, um aceno de agradecimento. Ufa!
Caminhou mais vinte minutos em passo decidido e, finalmente, abeirou-se da falda do monte. Fez curta pausa para beber água e, saciado, embrenhou-se na encosta por uma estreita vereda,  serpenteando por entre pinheiros e carvalhos. As árvores, a certa altura, começavam a rarear, dando lugar a um extenso giestal, muito denso, em pré-parto para o festival de cor com que iria engalanar, muito em breve, toda aquela parte da encosta. Um pouco mais acima, orlado pela mancha esverdeada, assomava um afloramento granítico, miradouro privilegiado de todo o vale. Faltava pouco para o alcançar.
Quando chegou, e ainda a recobrar o fôlego, o impacto da paisagem foi imediato. Deu mais uns passos, dilatou o olhar e começou a absorver o que o rodeava, dando início ao cerimonial: trezentos e sessenta graus a rodar, muito lentamente, sentindo-se, a cada segundo, a penetrar noutro patamar. Por fim, já imbuído da essência do lugar, escolheu, estrategicamente, a rocha  que lhe proporcionasse maior amplitude e sentou-se. Estava pronto para mitigar a preocupação que o trouxera até ali.
Voltou, agora noutro registo, a distender a vista pelos campos que ladeavam o rio, outrora com águas mais recomendáveis, e acabou por se fixar, bem no extremo da paisagem, no liliputiano casario da urbe, onde as pessoas aguardavam, ansiosamente, o sinal para saírem da caverna.
Há muito que se adivinhava o desenlace. Cientistas, filósofos, biólogos, ambientalistas, sociólogos, poetas, músicos, e muitos outros, bem se esforçavam por alertar, mas os seus avisos caíam em saco roto. O mundo parecia ter enlouquecido, estimulado por uma corrida desenfreada, bem oleada por alguns gurus da economia, em que ninguém parecia querer prescindir da ilusória sensação de felicidade que lhe causavam os pequenos brinquedos, suprema recompensa de toda aquela azáfama: casas opulentas, roupas de marca, carros topo de gama, férias em terras exóticas, telemóveis de última geração... Alguns, nas ínfimas brechas que o parco tempo lhes permitia, ainda intuíam o desastre, mas logo soava o apelo da sirene. E a corrida desenfreada continuava, sem pausas, com a promessa cantada, cheia de luzes, de acesso ao paraíso consumista. O ter, ter cada vez mais, tinha-se sobreposto ao ser. Devastadoramente. Como é que permitimos que se chegasse a este ponto? Que fizemos nós da nossas vidas?
.
(continua)
.
.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

PERDOAI-LHES, PAI...

.
Hieronymus Bosch, Jardim das Delícias Terrenas
.
Este blogue sempre fez questão de apenas publicar textos originais do  seu autor. Contudo, e porque sim, há sempre uma primeira vez para tudo. No abrir da excepção, deixo-vos com uma crónica de Antonieta Garcia, minha antiga professora, publicada na semana passada no Jornal do Fundão.
.
.
Eis que de repente o axioma do progresso contínuo cai, o Coronavírus entra em cena e dá a volta ao mundo. Roído de miasmas de tédio, embarcou. Vestiu-se de mandarim, pôs a coroa. Cruel, compilou memórias doridas da maldade humana, sentiu prazer, inoculou-se com o fascínio da violência. Agora, viaja, contagia, ceifa vidas, não dá tréguas. Encerrou-nos no Medo, excluiu a Vida. Maledictus! Tanto que sonhámos com a construção de uma parúsia humana, iluminada pela Ciência, pela Cultura, pela Arte… Onde se ocultam as luzes? Agora, somos uma bastilha tomada por mensageiros de ignorância. Aqui, habitam senhores construtores de fronteiras, xenófobos, que afetam as relações entre povos, poluem emoções…. Há refugiados em peregrinações de angústia, a suplicar solidariedade e não se salvam. Que incapacidade de amar o próximo é esta? O céu vê, ouve, emudece. 
Germinam, agora, mil diabos que atormentam. Levantam muros de crueldade. Novos tiranos tanto negam como afirmam; as palavras desfazem-se-lhes em bolor lento, enterram-se na vala comum das redes sociais, os mais recentes pilares dos senhores do mundo. Por ali, formigam robôs em textos formatados. Manipulando glórias quixotescas e grupais, soltaram a hipocrisia e são feras vigilantes de comportamentos e falas. Tuítam e regurgitam ódio, brigam furiosa e desesperadamente com o Tempo devorador de certezas. 
Quem abre as janelas à fraternidade? Que mistério rege a doença do poder, do conformismo e da indiferença? 
Já se ouvem profetas da desgraça a apregoar o valor purificador do sofrimento, a lembrar Job, o homem justo, protagonista do texto bíblico, que ousa debater com a divindade o seu tormento e manifestará um desejo: 
Pereça o dia em que nasci! E Cristo perdoará aos fariseus: Perdoai-lhes Pai, porque eles não sabem o que fazem. Mas em cada dia, no mais fundo de si, os meninos da Síria que enregelam de frio e todos os peregrinos de fomes e vizinhos da morte hão de repetir a súplica de Jesus: Afasta de mim este cálice, Pai! 
Mil diabos atormentam o nosso tempo; fervilham ideias que agigantam o deserto do espírito. O mundo empobreceu pela banalização; a verborreia caótica, oca e ruidosa infernizou a sociedade. O “fascismo da vulgaridade” (Steiner) irrompeu. Agora, a nostalgia alia-se ao desencanto de um período que divorcia a Humanidade da ciência, da arte, da filosofia. O dinheiro tornou-se deus de um público massivo, formatado, antítese da auctoritas, da cultura animi. Quanto ódio suscitam intelectuais, artistas… 
Por todo o lado, reina uma inquietação a enfrentar a Esfinge, a tentar romper a teia enovelada em expectativas disfóricas alimentadas pelo Medo do futuro, pela fatalidade do fim. Agora, o reino é o da roleta russa. E o Coronavírus jogou. Como é Senhor Trump e apaniguados? Que é do Muro para o impedir de entrar, para o deter? Com que armas vai refrear a contaminação do Coronavírus, microscópico, mas dono do mundo? 
Ai, que anseio tão forte de alívio! Ai, o desconcerto entre a solidão da doença e o desejo de amar, entre o odor sufocante de tantos cadáveres e o sopro de vida… 
O Coronavírus vestiu-se de mandarim, fez-se deus do mal. Agora, que ressoe a esperança numa voz louca de amor e enrouqueça a gritar que a vida gira que gira, geração em geração…. 
Quantos somos os que ajudamos a virar? Estamos tão cheios de fome do Sol, das cerejas…. Queremos tanto abraçar todos os amigos!
.
Antonieta Garcia
.

sábado, 21 de março de 2020

ACERCA DA EMERSÃO DO QUE DE MELHOR HÁ EM NÓS

.
AC, Alho francês e cebolas
.
.
Os deuses, desesperados, parecem ter enlouquecido. Cansados da ambição desenfreada dos homens,  alimentada na incapacidade de percepção dos limites, lançaram invisíveis chispas que tudo tolhem, tudo paralisam, pondo à prova a capacidade de sobrevivência da espécie humana. Seremos, socorrendo-nos daquilo que de melhor existe em nós, capazes de vencer este desafio?
Aproveitando uma pausa da chuva, saio de casa  para uma rápida surtida pelo espaço da horta, qual piparote em cinzentas cogitações que me vão toldando o espírito. As cebolas, o alho francês, as alfaces, as cenouras, as curgetes e os tomateiros, recém inquilinos da terra, parecem-me bem instalados, agradados com as últimas chuvas. Ao lado, num verde mais volumoso,  em completa maturação, também as couves galegas e os repolhos parecem ter ganho uma nova vida, começando a piscar o olho para a colheita. Mais além, numa singular elegância, as ervilhas começam a pavonear-se medalhadas de belas e abundantes vagens. Espalhadas estrategicamente pelo terreno, também as novas árvores começam a dar sinal de si, a esboçar os primeiros sorrisos. Só as duas nogueiras parecem querer continuar no aconchego do saco umbilical, teimando em não dar sinal de vida. 
Um raio de sol começa a espreitar, timidamente, por entre as nuvens, enquanto a pardalada, em eterna omnipresença, se mostra incansável na procura de alimento. Duas andorinhas, chilreando, saem do telheiro da lenha, adaptado a condomínio privado há já vários anos. Lá em cima, num voo planante, quase majestoso, uma cegonha cruza os ares, talvez em busca de novos materiais para retocar o ninho. E, sem me dar conta, começo a abrir os braços, como que a querer abranger toda aquela grandiosidade, delicadamente tecida em simplicidade.
A chuva volta a mostrar-se. Regresso a casa, sem pressa, convicto do essencial: aquilo que de melhor há em nós vai continuar a emergir, qual força avassaladora que tudo reconverte, tudo redime. Sim, vamos vencer este desafio.
.
.

sábado, 14 de março de 2020

E COMO AS VERDADES SÃO O QUE SÃO, PELO SIM, PELO NÃO, SAIA UMA TEORIA DA CONSPIRAÇÃO

.
Ferdinand Barth, Goetthe's Werke (1882)
.
.
Havia um vale, restrito, em que cada um sabia quem era quem.
Agora há um vale, global, em que cada um cogita para saber quem é quem, ficando sempre muito aquém. E, neste espaço imenso, fértil, propenso à cogitação, uma minoria manobra, porque sim, semeando falsos deuses de perlimpimpim, os outros são apenas o que são -  manobrável multidão -  limitando-se a beber a água que lhes dão.
Por detrás da cortina, devidamente mandatados e submersos na escuridão, aprendizes de feiticeiro ensaiam caldos químicos em profusão, à procura do melhor grau de combustão. Mas no fundo são humanos, coitados, e, distraídos, serviram ontem, à mesa, um bichinho que lhes "fugiu" da mão, provocando a maior agitação.
Hoje, é bom de ver, o mundo é uma enorme confusão. Ou será apenas, bem vistas as coisas, mera teoria da conspiração?
Em jeito de remate, e tentando aproveitar a lição, o bichinho concedeu, pelo menos, um condão: o de olharmos, com outra atenção, para quem temos mais à mão. E o que se descortina, para lá da rima, é que de todos nós se poderá gerar a vacina.
.
.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

PAISAGEM COM CORONA AO FUNDO

.
AC, Ervilhas
.
.
Começam a chegar dias mais soalheiros, por vezes gaiteiros, confirmando que a roda das estações anda a precisar de um bom ajuste.
A passarada, com um relógio biológico bem apurado, imune a cogitações humanas, faz-se notar, e de que maneira, a cada dia que passa. O olhar espraia-se, aprovador, deixando-se envolver pelo resultado das movimentações dos últimos tempos: já se apararam as quatro sebes; plantaram-se novas árvores; limparam-se os canteiros; queimaram-se alguns sobrantes; fez-se a poda de algumas árvores mais antigas; começou a preparar-se a terra para a horta de verão; as ervilhas, na horta de inverno, começam a sorrir...
Tudo parece no seu lugar, em harmonia, mas desta vez o pensamento não se liberta por completo. Insinuam-se os ecos do coronavírus que, de tanto matraquear, começam a fazer alguma mossa. Diz-me o instinto que eles, os deuses pardos, não nos estão a contar tudo, chinesices rima com segredices, que a coisa está muito longe de estar controlada. Aguardemos.
Indiferente às minhas cogitações, o Whisky, o canzarrão trazido pelas visitas de almoço, saltita à minha volta, insinuante, a salivar com um pau na boca. Ele tem razão. Vamos lá mexer essas pernas e brincar um pouco, amigo.
.

Domingo, 16/02. Os donos do Whisky estiveram cá novamente a almoçar e, claro, trouxeram-no com eles. Habitante de apartamento, o rapaz aproveitou para pintar a manta, quase sempre de pau na boca, envolvendo toda a gente na brincadeira. No final, satisfeito com as emoções da vida ao ar livre, mostrou pouca vontade de se ir embora. Começa por aqui a criar laços, o malandreco.
.
.