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quarta-feira, 15 de maio de 2024

ACERCA DAS SEMENTES

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AC
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Resplandecem luzes naturais que emanam duma química superior, mas abrangente, pejadas de mistérios, à mercê de mil e uma histórias de encantar, qual desafio à descoberta do segredo. 
Durante o dia, com o afluxo das plantas, eternamente desejosas de irromper, o verde novo tende a amadurecer, deixando resquícios de aromas de efémeras flores, ébrias de satisfação pelo contributo para mais uma passagem de testemunho. É quanto lhes basta. A vida perpetua-se, isso é certo, por entre tantas dúvidas, com a participação de uma infinidade de actores, todos eles ligados à corrente, em equilíbrio permanente, apesar da desfaçatez dos aprendizes de feiticeiro. Até ver.
Ontem, ao princípio da noite, tocaram à campainha. Eram uns amigos de longa data, sorridentes, que traziam consigo, como prenda, várias espécies de sementes, talvez não se dando conta de que, eles próprios, eram semente preciosa. Como só os amigos podem ser.
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terça-feira, 7 de maio de 2024

PLANTAR A ESPERANÇA

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AC, Estrelícia encabeçando manifestação de rosas de Santa Teresinha
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Apesar do frio dos últimos dias, a confirmar o instável humor do clima, as papoilas teimam em chegar-se à frente, renitentes em dar espaço a imprevisíveis formas de estar. E florescem, engalanando os campos, fazendo jus em acompanhar a sinfonia da passarada. Mas é leve a resistência, pois há algo de mais persistente. E não há resiliência que perdure a tanta adversidade, com as pétalas a render-se, uma a uma, aparentemente conformadas com o seu efémero destino.
Indiferente a tanta inclemência, já maturada pelo tempo, a estrelícia do canteiro fronteiro à casa tende em manter-se viva, quase jocosa da vulgaridade, irrompendo perante um batalhão de rosas de Santa Teresinha como se da mais natural circunstância se tratasse. E há que fazer reverência a tanta persistência, mais a mais acompanhada de uma beleza ímpar. Rendo-me à evidência, dou graças por tamanho privilégio.
Entretanto, num recanto já anteriormente preparado, insiro na terra mais três dúzias de tomateiros. A tarefa é libertadora para a alma, apesar das costas começam a desenhar uma espécie de queixume. Nada que arrefeça o ânimo para o baptismo de uma dúzia de curgetes, sedentas de mergulhar na vida, com a terra a acariciar o pouso duma nova espécie. Com o devido carinho, com a água a ter um papel primordial, vão dar-se bem, com toda a certeza.
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O conceito de tempo, por aqui, não se baseia em conceitos clássicos. Fruem-se as tarefas, mergulha-se a atenção no desfolhar duma nova flor, aprecia-se o chilrear dos pintassilgos, as surtidas esquivas dos melros... Relógio só o da luz e da sombra ou, quiçá, o do corpo a pedir repouso. A este, correspondendo ao mais elementar bom senso, faço sempre a vontade.
Para amanhã prevê-se sol, finalmente. Talvez as andorinhas apareçam para adornar este Maio de mil cores, qual Primavera de eterna esperança.
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domingo, 21 de abril de 2024

OBSOLETA CRONIQUETA

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Foto de AC
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A enxada, extremidade natural dos braços, com razão e com tempo, começou a rasgar a terra com a atenção que ela merecia. 
As ervas eram um obstáculo, mas apenas pela sua delicadeza, pois cada pormenor evidenciado - a forma das folhas, a flor que se desenhava... - era constante empecilho para um cavador demasiado sensível àquilo que o rodeava. Mas, por entre tratados inaudíveis para o exterior, que apenas diziam respeito ao portador da enxada e às espécies invadidas, lá se foi criando um compromisso apaziguador de consciências. E a terra foi-se preparando, com algum trauteio, de modo a receber algumas novas espécies.
O desafio, desta vez, era aconchegar as alfaces ao calor confraternizante dum canteiro semi-selvagem, onde algumas espécies cultivadas convivessem com rosmaninhos, muito senhores dos seus domínios, em perfeita harmonia. E, sempre com outras ervas de permeio, tentou-se que as alfaces se integrassem na irmandade, qual retrato duma talvez efémera tentativa de remediar os males do mundo. Utopia na sua mais pura essência, é bom de ver, com a vantagem de se poder usufruir de cores e odores. Até porque a música de fundo estava mais que garantida, pois a passarada, por aqui, é dona por inteiro do lugar.
O Miguel, a três meses de fazer quatro anos, às vezes irrompe por aqui, sedento de conhecimentos e brincadeiras, sempre com um olhar atento por perto. Já dá atenção aos pássaros, começa a tratar as flores e as borboletas por tu, numa forma muito própria, mas com as abelhas ainda existe uma distância prudente. Tem tempo.
Perante tal cenário, e longe de Instagrams, Facebooks e outros que tais, por opção, digam-me lá uma coisa, que ninguém nos ouve: estarei fora de moda? Perdoem-me, desde já, o meu irónico sorriso. :)
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quarta-feira, 14 de junho de 2023

PINGOS DE CHUVA EM CONTRAMÃO

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Fotos de AC
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A chuva, por estes dias, não parou de cair, iludindo a caminhada, mais que provável, para a seca, confirmando, mais uma vez, que a excepção é parte integrante da reg(r)a.
A horta, mais pragmática do que eu, agradece a bênção pluviosa para se desenvolver de forma natural, mas deixando para mim a preocupação com as ervas que, à boleia de tal escorrega, crescem desmesuradamente, nada se importando com um mero aprendiz de hortelão que, por todos os meios, tenta salvaguardar o bem-estar das suas plantas de estimação. Se as ervas agora já se insinuam, a carta de alforria irá chegar, dentro de poucos dias, quando os raios solares retomarem o seu domínio. É então que se começará a conjugar o verbo mondar.
Entretanto, aproveitando a folga da chuva, tento manter-me a par do que se passa pelo mundo, vasculhando jornais e revistas. E confirma-se uma ideia muito arreigada: tanto governantes, como oposição, apenas se preocupam com a detenção do poder, deixando para as calendas a solução dos problemas. E digladiam-se, sem fim, em busca da simpatia de potenciais eleitores. Invocando um famoso título literário, a oeste nada de novo. Felizmente, para aconchego do melhor que há em nós, existe o trabalho incansável de muitas ONG´s, mas o sentido cívico dos governados deixa muito a desejar.
Regresso à horta, aproveitando uma pausa da chuva, e reparo que a sinfonia dos pássaros também está de volta. Lá em cima, em voo planado, algumas aves de rapina povoam os ares, em voo silencioso, sempre atentas às oportunidades. Contrariando a postura das suas vizinhas mais altaneiras, as cegonhas passam num voo mais rectilíneo, com as patas bem distendidas, de modo ergonómico, em consonância com  a cabeça, no outro extremo, com destino bem delineado, sabendo bem ao que vão. As pegas rabilongas, habituais frequentadoras do espaço, afastam-se perante a minha presença. Só os pardais, muito senhores de si, teimam em se manter por perto.
Em pleno distender de sentidos, e em modo tranquilo, acabo por colher o que resta dos alperces, talvez para compota, que este foi um ano de fartura. Mas as cerejeiras, coitadas, de tão tristes, apenas se queixam de tão inesperadas pingas, que as ferem, retirando-lhes o tão esperado tempo de rainhas. São muito sensíveis, estas senhoras.
E assim vamos vivendo, por entre os pingos da chuva, quando os há, com demasiadas pessoas afectadas pelo vírus do consumo. Um dia destes, se chegarem a despertar, é muito provável que já seja tarde de mais. Nesse caso, e por mais que me resguarde, mesmo fazendo a minha parte, o meu pequeno paraíso pouco sentido fará.
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P.S. - Quando me afastava da horta, reparei que uma borboleta fazia duma couve lombarda um porto de abrigo. Voltei atrás, tentei afastá-la, não fosse ela depositar ovos que dariam lugar a lagartas, que mais tarde se alimentariam das couves, mas ela não gostou nada da interrupção, esvoaçando à minha volta com uma velocidade inusitada. Que é isto?, pensei. E lá deixei a criatura em paz, sujeita aos desígnios do seu livre arbítrio. Mas que vou passar a vigiar as couves, lá isso vou! 
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quinta-feira, 25 de maio de 2023

AVIEIRANDO

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Imagem retirada da Net
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Tudo começou na praia da Vieira, que me recebeu, e bem, há uns tempos atrás, onde o cerne do seu povoamento tem como personagens pessoas de labuta dura, em luta titânica com as vagas oceânicas, em busca de peixe para tentar estancar a fome das famílias que lhes sustentavam o pé, qual eterna antecâmara do existencialismo que se satisfazia, tão só, com comida na mesa. Era o solarengo, mas pobre, país que tínhamos, e todos, em mar ou em terra, exceptuando uma centena de famílias que estendiam a sua garra a tudo o que fosse apetecível, tinham que esgadanhar fosse no que fosse para assegurar, minimamente, a sua sobrevivência.
Seguindo as pegadas da história local, agora em busca de reabilitação, os pescadores desta zona, na impossibilidade de exercerem o mester da pesca durante a estação invernosa, perante a necessidade de aconchegar o estômago todos os dias, com família sem qualquer planeamento, que a ignorância de modernos meios era coisa do futuro, deslocavam-se para sul, para a acalmia do Tejo, onde pescavam, essencialmente, o sável, que depois as mulheres vendiam nas aldeias vizinhas. 
Desta faina fluvial, feita nos finais do século XIX até à década de trinta do século XX, os avieiros estabeleceram poiso desde Vila Velha de Ródão até à Póvoa de Santo Adrião. Alves Redol, com espírito observador e inquieto para a época, imortalizou as andanças destes nómadas do rio no livro "Avieiros", que ainda hoje é a grande referência de que dispomos para melhor entendermos esta forma de vida, em que os protagonistas, quase de ventre ao sol e à neblina, navegavam, para cima e para baixo, sujeitos às benesses que o antigo Tagus lhes concedia. 
Ainda restam, nas duas margens, vestígios desta forma de vida. E foi em busca dela que, seguindo  pequenas pistas dos Avieiros, rumámos até Escaroupim, no concelho de Salvaterra de Magos, um lugar onde se procura preservar o rasto que os nómadas fluviais, que faziam do barco casa, por aqui deixaram. E por lá se preservam memórias num museu alegórico, coabitando com antigas casas, tentando resgatar o essencial do impacto destes "intrusos" numa zona que, na origem, não era a sua.
À nossa espera, bem imbuída do espírito do antigo Tagus, estava a equipa do "Rio-a-dentro", documentada, e de que maneira, ao nível histórico e ambiental - até às Memórias Paroquiais, referência obrigatória para qualquer historiador que se preze, foram beber - e que, na manobra dos barcos, vai instruindo os visitantes dos amores e humores do rio. Na deambulação das palavras, sempre bem medidas, a acompanhar, da melhor forma, os rituais do homem do leme, ficámos a saber como se formaram, e susceptíveis de continuar a formar, as ilhas no rio. E assim surgiu a ilha das garças (na foto), que milhares de aves escolheram para nidificar; a ilha dos cavalos, que os quadrúpedes frequentam em busca de erva fresca, atravessando o rio aquando da maré baixa; e a ilha dos amores que, pela sua configuração, suscitou a imaginação dos barqueiros. Entretanto, na margem direita, lá estava a Palhota, outra aldeia avieira - onde Alves Redol chegou a viver, para melhor documentar a sua obra - com habitações palafitas muito bem preservadas e, um pouco mais a montante, deparamos com Valada do Ribatejo, que é normalmente notícia aquando das cheias na estação invernosa.
No Tejo, a sua segunda casa, os avieiros procuravam enganar a fome, com a sua cultura muito própria, mas sempre sujeitos ao olhar desconfiado dos habitantes locais, que nunca entenderam aquela forma de vida. Eram nómadas, diferentes, não se encaixavam na cultura local. E foi necessário decorrer um século para que, finalmente, em terra de cavalos, touros e toureiros, os nómadas do rio tivessem algum esboço de compreensão.
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Não levei máquina fotográfica, porque sim, mas hoje talvez o fizesse. Em suma, não vale a pena tentar entender. :)
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domingo, 9 de abril de 2023

BREVETA PRIMAVERIL

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AC, Flor de cerejeira
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Quando as andorinhas voltavam, ela ia, bem cedo, pelo caminho das cerejeiras, procurando absorver tudo como se fosse a primeira vez. O tempo parava, para a contemplar, enquanto piscava o olho às abelhas. Depois, qual eterna menina, imitava o gorjear dos pintassilgos, insinuava o voo das borboletas, acariciava esta ou aquela flor...
Quando regressava, de alma plena, ainda trazia, no brilho dos olhos, os vestígios da alquimia primaveril.
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terça-feira, 28 de março de 2023

CURTA LETRAGEM

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AC, ninho de melro
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Antes havia uma árvore, um ninho, uma abelha e o desejo de ver o mar.
Agora há uma antena, um telemóvel, um drone e um especialista em comunicação.
Antes, olhando o horizonte, faltava algo. Agora, perante tanto movimento, falta muito mais.
Antes eu queria o movimento, de preferência com mar à vista. Agora, que conheço melhor os bípedes falantes, continuo a querer ver o mar. Mas, para além disso, apenas procuro entender a arquitectura dos ninhos, com a cumplicidade de quem possa abraçar. Sempre.
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sábado, 11 de março de 2023

LAUROS, MELROS E EQUILÍBRIOS

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AC
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Foi na manhã deste sábado, mas poderia ser a qualquer hora dum dia qualquer. Aproveitando a folga dada pela chuva - deveria chover mais, era bom para todos, penso para mim, apesar de, incoerente com o pensamento,  me animar com o sol que espreita - fui lá para fora podar a sebe de lauros que contracena com os dois portões da entrada, com a noção de que já era mais que tempo, pois  estas plantas, se houver qualquer descuido, tendem a crescer desmesuradamente. Até aos 12 metros, informa-me o Google.
O trabalho, ou melhor, o prazer de andar ao ar livre, sem restrições, absorvendo as múltiplas formas de vida, de forma natural e com isenção de formatações - a cada dia que passa, e num agradável aviso pré-primaveril, o chilreio da passarada, com novas espécies migradoras à compita, está mais diversificada, as abelhas e as borboletas, numa azáfama constante, estão cada vez mais presentes, as árvores começam a dar sinais de despertar, num perpétuo ciclo em constante equilíbrio - prosseguia em bom ritmo, de alma lavada, sem questões existenciais, numa progressão de baixo para cima. Às tantas, e chegado a um patamar em que a altura dos lauros já aconselhava um corte radical, não fossem eles escarnecer do estado de crescimento dos seus pares, já devidamente podados, deparo-me com um ninho de melro. A situação não me era desconhecida e, a fim de contrariar o acontecido há dois anos, interrompo de imediato a faina, com o prazer a esfumar-se, ou antes, a ter que ser reformulado. E, apesar da sensação de templo profanado a pairar no ar, ousei ir a casa em busca da máquina fotográfica para registar o momento. Com cuidado, muito cuidado, subi três degraus do escadote e preparei-me para o registo da imagem. Mas o sentimento de culpa, essa herança judaico-cristã que nos acompanha de braço dado, com garras profundas, não me permitiu captar o momento com a atenção desejável. E, quase a medo, lá despachei o clique, com receio de que a casa alheia, sabiamente tecida, fosse rejeitada pelos seus habitantes, atendendo à sua vulnerabilidade, apesar de, desta vez, ela continuar bem camuflada.
Com a preocupação de nada, ou pouco, incomodar, e só com uma apressada tentativa, pouco de acordo com os cânones, a fotografia ficou má, é um facto, e quase me regozijo por isso, qual acto de penitência pelo meu descuido no afã da arte de bem podar. Talvez, e fico a torcer muito por isso, o casal de melros continue a sentir-se em segurança, apesar da intrusão do podador. Era sinal de que, a pouco e pouco, e apesar dos meus percalços, vou conseguindo equilibrar-me com o que me rodeia, no mundo natural, com o menor impacto possível. 
Regresso a casa, devagar, com o escadote numa mão e a tesoura e o serrote na outra, num agridoce debate de sentimentos. De repente, como se os deuses me escolhessem para diversão, oiço à distância  o delicado canto do casal de pintassilgos que, de há uns tempos a esta parte, por aqui aportou. Estaco e, quase sem me dar conta, esboço um sorriso perante tal dádiva. É o suficiente para o meu sol interior começar a brilhar, sem restrições.
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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

PARA LÁ DOS CARNAVAIS

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AC
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O dia decorre cinzento, pouco apelativo, como que a ilustrar as notícias que chegam do mundo.
Contudo, quem está minimamente atento sabe que para o emissor a desgraça é que se propaga, qual fogo em terreno seco, em detrimento do gesto benigno, fazendo subir audiências. E a multidão, refém duma lógica pastoral, manipuladora do rebanho, devora a mensagem sem qualquer sentido crítico.
Como que a querer contrariar maus presságios, vislumbro lá fora, através da vidraça, um casal de pintassilgos a debicar aqui, a debicar ali, com toda a delicadeza, fora do raio de acção doutro casal, mas de melros, cuja envergadura, muito mais desenvolvida, aconselha afastamento aos pesos pluma. Os pardais, como sempre, são omnipresentes, como se fossem donos do território, e nem os gatos que por aqui deambulam os conseguem incomodar. Uma aproximação, um voo lesto, cada um sabendo ocupar o seu lugar, com os pequenos felinos a desenvolver, agora e sempre, o culto da resignação.
Saio de casa. Os pintassilgos e os melros esgueiram-se num ápice, mas os pardais, confiantes, ficam por perto. Em volta a vizinhança anda muito ocupada na lavra dos terrenos, prenúncio das sementeiras primaveris que se aproximam. À medida que lavram, num sempiterno ritual, a passarada acompanha o compasso, sempre à retaguarda, atenta a toda e qualquer lagarta colocada a descoberto, banqueteando-se sem qualquer sentimento de culpa. Isso é para os bípedes falantes.
Cinjo-me ao meu pequeno paraíso, repleto de ervas silvestres, onde as margaridas são rainhas. Reparo nas amendoeiras, cada vez mais adornadas de flores, enquanto o damasqueiro, mais dorminhoco, começa a insinuar um tom róseo, procurando imitar os marmeleiros japoneses que, mais junto da casa, há muito alegram o local. Com maior avanço seguem as nespereiras, com o fruto já na infância, aguardando por dias de mais sol para melhor se desenvolver. As outras árvores - macieiras, pereiras, cerejeiras... - sem pressa no parto, reservam-se, pacientemente, para o seu tempo de esplendor, enquanto uma ou outra ave lhes vai enfeitando, por breves momentos, os ramos nus.
Lá no alto, planando sem pressa, as aves de rapina - um ou outro milhafre, quiçá um açor, ou um bufo, talvez uma águia - aguardam pela melhor oportunidade para deitar as garras à cobiçada presa, reservando o uso do bico para quando estiverem instaladas no ninho.
Caminho, olho, absorvo. Quando, por fim, e já de alma saciada, retomo o caminho de casa, ouvir uma boa música apenas serve para complementar o efeito. Ligar a televisão é, naturalmente, a última das minhas prioridades.
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sábado, 11 de fevereiro de 2023

CRÓNICA AO CORRER DA PENA

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AC
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Segundo alguns estudiosos, há aquilo que queremos ser, aquilo que os outros querem que sejamos e, em última instância, aquilo que realmente somos.
Quase parece uma regra três simples, sujeita à nossa vontade, mas nestas coisas, quando o sentido da vida é o foco, nada é simples, por mais que se multiplique isto, divida aquilo, equacione aqueloutro. E, enquanto nos questionamos, a vida vai discorrendo, sem contemplações para angústias e dilemas, sorrindo de soslaio perante tanta interrogação. 
Para um observador mais cínico, com o desdém à flor da pele, a referência bíblica "crescei e multiplicai-vos" é motivo de motejo. É que nós crescemos cultivando a multiplicação, de tal forma que já excedemos a quota da sustentabilidade e, além de não nos desenvolvermos de uma forma espiritual, continuamos nos primórdios em termos de objectivos: limitamo-nos a sobreviver, a simplesmente sobreviver.
Bem sei que há a ciência, a arte nas suas múltiplas formas, a filosofia e a religião, mas, da forma que os auto-proclamados chefes da barca a estão a conduzir, tudo se resume, para a imensa maioria, ao (mau) exemplo romano: pão e circo. Quo vadis, humanidade?
Reparo agora que, ao iniciar a crónica, e dispondo da fotografia que encima o post, a intenção era ser positivo. E eu, que me refugiei num pequeno paraíso natural, constato o evidente, para lá da minha individualidade: crescei e multiplicai-vos, sim, mas em amor, justiça, esperança e respeito pelo outro, com cada um a fazer a parte que lhe corresponde. Tão só. O resto vem por acréscimo.
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terça-feira, 17 de janeiro de 2023

A AVÓ TITA

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AC
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Viera da grande cidade, sem dar cavaco a ninguém, ocupar a casa dos pais, gente de posses herdadas  noutras eras. Os filhos já nasceram na grande cidade, mas ela por ali dera os primeiros passos e, apesar de cedo dali sair, ficaram, para sempre, gravados na sua alma, os recantos, os sons e os aromas daquela xistosa aldeia, no sopé da serra, com uns laivos de granito, banhada por uma ribeira que, nos seus verdíssimos anos, lhe parecia um enorme rio.
Indiferente à modorra do lugar, ela passava, desconcertante, umas vezes a pé, outras de bicicleta, desafiando tabus e conveniências.  O ramerrame não era com ela, isso era garantido, indiferente ao apontar do dedo de vetustas tradições. E, quanto mais a apontavam, mais ela prosseguia. E sorria. Em modo tranquilo, diga-se, tal como a grande tília que, no fundo da propriedade, adornava o morro que circundava o espaço sobranceiro à casa, aparentemente satisfeita com o toque paisagístico que dava ao tom geral da construção. Agitava os ramos, na ventania, mas não passavam de ligeiras cócegas que sorriam, docemente, para quem sabia ver e ouvir, tal era a sua robustez e a forma com que se agarrava à terra, apesar de algumas raízes à mostra, que atraíam, sobretudo, ingénuos fotógrafos, para lá duma diversificada classe de passarada. E, contra tudo e contra todos, ela lá permanecia.
À noite, depois do jantar, quem passava perto ouvia, vindas da casa, algumas notas de piano, as suficientes para adensar a quase lenda daquela personagem. E dizia-se isto, dizia-se aquilo. Mas, lá no íntimo, começavam a admirá-la.
Um dia, sem qualquer pré-aviso, a casa inundou-se de vozes alegres, descomprometidas, que davam nova vida ao lugar. Os netos, em férias escolares, finalmente vinham visitar o velho rincão da avó Tita, que tantas vezes, de soslaio, ela mencionara antes de lhes ler qualquer história. Um mero aperitivo, mas tão sentido pela narradora que, sem se darem conta, lhes ficara tatuado na alma.
Os dias passavam, alegres, ou não fosse verão. De manhã, com toda a gente já bem desperta,  ensaiavam-se umas escapadelas até aos terrenos da família, que o ti João tratava com desvelo. A avó Tita, sempre de olhos brilhantes, aproveitava o momento para "puxar" pelo Ti João acerca daquela árvore, daquela rocha ou daquele pássaro, e o velho não se fazia rogado: discorria, compenetrado, acerca de tudo o que o rodeava, transformando o momento numa envolvente aula ao ar livre, com calorosa participação da pequenada, ávida de descodificar tudo aquilo que a rodeava.
Embalados pelo ar campestre, não lhes faltava apetite ao almoço. E, por entre risadas, depressa os pratos ficavam vazios, perante a satisfação da matriarca.
Depois do almoço, após cada um lavar o seu prato, toda a gente tinha direito a uma pequena pausa para o que lhe aprouvesse. Depois, qual maré iluminada pelos olhos da avó, sempre omnipresente, promoviam-se sessões de leitura, com alguma solenidade, e animados ensaios de uma peça de teatro, onde cada um descobria pormenores dos outros que, até aí, desconhecia.
A meio da tarde, com o sol já mais tolerante, a incursão à ribeira, mais por exigência deles, era obrigatória. E nadavam, riam, pregavam partidas uns aos outros... Imersos na sua espontânea alegria, nem se apercebiam que o seu entusiasmo provocava sorrisos de contentamento nos velhos habitantes da aldeia, alheios que estavam ao canto ingénuo do desabrochar da vida.
Já recolhidos, e após plena satisfação de apetites, a avó Tita reunia a "tropa" na varanda e, quase num murmúrio, reivindicava silêncio. Chegara a hora de, num ancestral ritual, o astro se despedir, por entre os montes, com um eterno piscar de olho, todo melado, como que prometendo, aos crédulos observadores, que o amanhã seria ainda melhor. E eles, imbuídos daquele mágico esplendor, ainda que efémero, acreditavam.
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quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

EFÉMERO GRAAL, ETERNO PROCURAR

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AC
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Já discorreu algum tempo, imenso na dimensão dos homens, eterna condição efémera, mas ele, persistente na busca da cumplicidade, sem enfeites, teima em rebuscar um sol maior, olhos nos olhos, qual resguardo tecido na mais pura claridade, que é de factores como a luz, com muita água em resguardo, e do abraço, sincero, que a vida brota.
Ela, eterna garimpeira duma intenção maior, persiste em pesquisar nas estrelas, para lá de si e dos outros, como se tudo se conjugasse duma forma astral, com uns pozinhos de ancestral. 
Eu sei e, no meu íntimo, sei que ela também sabe, que as imperfeições vão muito para lá duma sessão nocturna a observar a lua, que as fraquezas são simples adornos da nossa condição, numa teia muito bem tecida por algo que nos ultrapassa.
Apesar de tudo, ela não se resigna quanto à teia, eu também não. E, enquanto especulamos, e convergimos, vamos aproveitando a luz das estrelas, com a lua, quando de feição, como aconchego. Nessas alturas o tempo deixa de contar.
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quarta-feira, 9 de novembro de 2022

O FEITICEIRO E O MENINO

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AC
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Havia uma árvore, um horizonte e um feiticeiro.
Como a ciência começava a imperar, o feiticeiro tomou a resolução da sua vida: esperou pelo fim de tarde, trepou à árvore e, solenemente, abrindo os braços, sentiu os últimos raios de sol como se da coisa mais importante se tratasse. Depois, lentamente, olhou em volta, como se tudo quisesse absorver, e preparou-se para o último mergulho da sua vida. Foi então que, vinda das proximidades, ouviu uma voz infantil:
- Olha, avô, que ave tão grande está poisada naquela árvore! Vai voar?
O feiticeiro, incrédulo, ficou estarrecido. E só então, qual revelação suprema, percebeu donde emanava a verdadeira luz. E, descendo da árvore, correu para abraçar o menino.
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sábado, 11 de junho de 2022

PARA ALÉM DO TEJO, COM BORBA COMO PRETEXTO

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AC, Fachada do antigo Hospital do Espírito Santo, em Borba
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Por entre uma história de corrupios e arrepios, desavenças e avenças, com muita insegurança de permeio, assim se cultivou um povo sobrevivente, de parcas e tímidas posses, mas que soube encontrar, na sua resiliência, a forma de escapar a um trágico destino. Muitos emigraram, povoando os dormitórios da capital, outros ficaram, cultivando um lamento muito próprio, em tom dolente, mas sempre com um sorriso muito próprio à espreita de assomar na primeira oportunidade. E, quando se conseguem libertar da canga, bebem, cantam, confraternizam, ironizam...
Em Borba, para lá das pedreiras e do vinho, a sua maior riqueza, há todo um manancial de culturas entre-cruzadas de conquistadores e conquistados, de sobreviventes e assimilados. E, por entre as fachadas de mármore, material só acessível a quem estava de bem com Deus e o Diabo, o casario  humilde, sem pretensões, acabava por agradar a todos: a uns, porque dispunham de mão-de-obra barata e sempre disponível; a outros porque, apesar de tudo, acabavam por usfruir dum tecto para abrigar os seus. Tudo isto à sombra dum castelo, obrigatório em terras tão inseguras, e do qual já pouco resta.
Entre diferenças - sempre presentes, tal era o abismo - o engenho acabou por moldar a arte.  A escassez da maioria, herança acumulada de séculos, deu azo a criatividades várias, com o campo, fora da supervisão dos poderosos, a contribuir com coentros, orégãos, poejos, hortelã, alecrim, louro e outros que tais, dando forma, consistência e sabor, a um considerável número de pratos tradicionais que muito orgulham os residentes, apesar de pouco, ou nada, se passar da cepa torta: ontem para comer, sobrevivendo, hoje para vender, continuando a sentir, no âmago, ainda e sempre, o sentido do verbo sobreviver.
O Alentejo, por mais voltas e contra-voltas que dê, nunca deixa de me encantar. As suas gentes, moldadas na herança de mil e um povos que calcorrearam o território, com um toque q.b. das planícies solarengas, com um olhar sempre projectado, inconscientemente, no horizonte, são uma espécie única. Para melhor.
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terça-feira, 31 de maio de 2022

O ETERNO (D)ESCAMAR

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AC, Pedreira de mármore em Borba, Alentejo
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Alentejo sonante, aparentemente adormecido, Alentejo cantante, com mil e um ais de herança. Para lá da diáspora, o território continua a reinventar-se, a sobreviver, como que a querer dizer aos demais que por ali há gente de alma nobre, afeiçoada à terra, onde se misturam, qual receita milenar dum equilíbrio identitário, a humildade, a simplicidade e o orgulho de se ser, conjugando, numa forma única de saber estar, as suas raízes profundas com a abertura, sem concessões, das janelas para o mundo. E, podem crer, para lá dos horizontes abertos, essa é a sua maior riqueza. 
Tínhamos passado o sábado em Estremoz, que nos acolheu de forma surpreendente. Se, por um lado, já estávamos à espera de nos maravilharmos com os bonecos de Estremoz, agraciados pela UNESCO como património da Humanidade, o Museu do Azulejo, que desconhecíamos - no género, é o maior da Europa, talvez do mundo - foi uma daquelas surpresas que, pelo inesperado, suscitou mais exclamações. Uau!, da forma mais espontânea, foi a mais sentida. E, por entre maravilhas e encantamentos, acabámos a sessão a comer uma belíssima sopa de cação, que rima e com muita razão (de ser).
Pernoitámos em Vila Viçosa, que continua, orgulhosamente, a recordar Florbela Espanca e, após alguns acordes tocados à monumentalidade histórica, sem araganças mas com muitos Braganças de permeio, fomos visitar uma pedreira de mármore, cartaz obrigatório desta região.
Eu dizia, a cada camada, tu dizias, deslumbrada... E, por mais que se olhasse, e sentisse, ficava sempre a sensação duma explicação incompleta. Tal como se falássemos da vida. Fotografe-se, pois, antes que a veia nos escape.
A tarde passou-se na nóvel cidade de Borba, com o mármore - tal como em Estremoz e em Vila Viçosa - sempre presente, ou não fosse esta a Rota do Ouro Branco. Como cartaz, numa arquitectura apaziguadora, bem integrada, lá estão os palácios, o castelo, os fontanários, as igrejas, o casario medieval... E sempre, mas sempre, com uma forma muita própria de estar dos residentes, qual reserva natural duma genuína identidade talhada pelos tempos.
No final, a convicção: há que voltar, mas desta vez com mais vagar. O sentir, o cantar e a forma de estar desta região bem o merecem. Talvez, quiçá, saibamos mergulhar ainda mais profundamente na alma desta gente.
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sexta-feira, 6 de maio de 2022

PONTES, BALOIÇANTES, ENTRE O VELHO E O NOVO

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AC, Ruínas do castelo de Castelo Novo
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Caminha-se pelas graníticas ruas de Castelo Novo, quase sem vivalma, com marcas evidentes dum passado já longínquo. Ainda assomam esboços de personagens por entre as rochas, à socapa, como que a querer-nos contar a história a seu modo, mas só os mais observadores reparam nelas. O passado entristece pelo desprezo, como que a augurar que, assim, o futuro não será nada risonho.
Nalguns quintais, em casas mais desafogadas, as laranjeiras e os limoeiros continuam a manter o porte digno. Mas também nalguns becos, com pequenas casas bem aconchegadas, se conseguem vislumbrar as vivências doutras eras. Incertas, pela certa, temperadas por uma religião, sob a égide da Ordem de Cristo, herdeira dos Templários, que apostava, acima de tudo, no simbolismo. Como dizia uma certa fadista, cantarei até que a voz me doa. Por mais que sofrida.
Em toda a área circundante da pequena aldeia - já foi concelho, note-se, daí ser obrigatório, para qualquer visitante, espreitar o Pelourinho e a antiga Casa da Câmara, ainda bem conservados - se sente o abraço aconchegante da Gardunha. As encostas já foram riqueza florestal, é verdade, mas o amarelo das giestas, nesta altura do ano, a substituir o negro dos incêndios, adorna os afloramentos graníticos duma beleza singela, combinando a rudeza da rocha com a delicadeza da flor.
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AC, Encosta da Gardunha sobranceira a Castelo Novo
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No castelo roqueiro, ou no que sobra dele, a visão panorâmica amplia-se. E por ali ficamos, contemplando, deixando aflorar uma mescla de informações que nos foram tatuando ao longo do tempo, embalados no cantar da água das duas ribeiras que circundam a povoação: a Ribeira de Gualdim (referência ao Mestre Templário Gualdim Pais, pela certa) e a Ribeira de Alpreade, onde ainda se podem observar as ruínas de várias azenhas que marcavam o quotidiano doutros tempos. E é neste enquadramento, com o tempo parado, que se recorda o essencial do foral concedido pelo rei, com as antigas lendas a ganharem alforria, dando vida a cada esquina, enquanto se vislumbram algumas casas senhoriais, amplas e desafogadas, contrastando com a necessidade do esforço hercúleo dos braços da populaça para garantirem o sustento, mais de uns do que de outros.
O sol começa a inclinar, tal como o tempo, convidando a uma visita diferente, entre quatro paredes, a fim de restaurar o corpo e a alma. E assim, ainda embalados por histórias de outros tempos, com um leve aroma de Belisandra no ar, se manipulou faca e garfo, com um sorriso de satisfação sempre presente. Estômagos refeitos e mentes claras, bem o sabemos, ajudam sempre a mitigar o caminho.
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sábado, 30 de abril de 2022

BARCAÇA DO BEM SER, EMBARCAÇÃO DO BEM ESTAR

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AC, Flor de macieira
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Em finais de Abril, princípios de Maio, eu já sabia que os deuses conjuravam. Pressentias o verde novo, os pássaros, as flores e a luz, vestias uma leve blusa de algodão, colocavas um chapéu de aba larga e vinhas cá para fora, como que a querer aspirar a vida que nos envolvia.
Depois, já impregnada de múltiplos sons e odores, não resistias. Abraçavas-me longamente, como que a querer transferir para mim tudo o que sentias, e encaminhavas-me para as cadeiras, com vista privilegiada para a encosta da serra, onde as cerejeiras se despediam das últimas flores. Já sentados, com o rosmaninho por perto, nada dizias, mas davas-me a mão como se sentisses, e soubesses, que partilhávamos toda a sabedoria da simplicidade das coisas. 
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terça-feira, 15 de março de 2022

A HORA DOS PEQUENOS MILAGRES

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AC
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Às vezes, quando os deuses se recostavam, enfastiados, cansados dos seus jogos de ciúmes e de guerra, ela esgueirava-se por entre os salgueiros do ribeiro e subia a encosta do pequeno promontório, onde a copa das grandes árvores envolvia a casa sedenta de vida.
Trazia com ela, não um regaço de abundantes rosas, mas um brilho no olhar pleno de promessas e anseios, com cheiro a trigo maduro. Era então que aconteciam os pequenos milagres.
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domingo, 23 de janeiro de 2022

ÀS VEZES

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AC
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Às vezes um gato não mia. Mas caminha.
Às vezes uma ave não chilreia. Mas voa.
Às vezes o planeta parece desfocado. Mas roda.
Às vezes uma estrela não se vê. Mas está lá.
Às vezes temos que nos isolar. Mas existimos.
Às vezes falta-nos a mão. Mas sobrevivemos.
Às vezes apetece-nos chorar. Mas cantamos.
Às vezes apetece-nos abraçar. Mas imaginamos.
Às vezes, para contrariar as nuvens negras, apetece-nos oferecer flores. E, confiantes na sua magia, enviamos uma foto do pôr-do-sol.
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Uma pessoa que me é muito cara não conseguiu iludir a teia do coronavírus. Este texto é para ela.
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sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

INSTANTÂNEO DE SOLTAS PONTAS

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Fotografias de AC
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O dia escoava-se, medido em ínfimas centelhas de luz, como se algo de importante estivesse a acontecer. Fosse pelas cores, pela geometria, pelos sinais ou insinuações, parecia urgente resgatar o momento para o poder perpetuar, a nosso bel-prazer, a fim de dissecá-lo, fruí-lo, ensaiar novas formas de arte, de filosofia. Mas sentia-se, quase ao de leve, que havia algo, em simultâneo, que nos escorria, nos ultrapassava, que ia para lá do olhar, que devassava a própria alma. 
Por mais que nos doa, é impossível domar o tempo. E por ali fiquei, na humildade da minha condição, mas grato pelo cenário do escoar do tempo, de sentir algo a acontecer. Seja lá o que for.
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