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sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Notícias da província

Título da Blitz: «Todos os concertos marcados para 2022 em Portugal». [Sublinhado meu]. Clica-se, percorre-se a ambiciosa lista e confirma-se que «Portugal» é ali basicamente sinónimo de Lisboa, numa inversão da metonímia usada na linguagem diplomática clássica. As listas de final do ano do Expresso e do Público (como referiu o Victor Afonso num post há dias) também usam a mesma castiça figura de retórica.

Nos tempos que correm, os jornais «nacionais» quase só têm correspondentes locais — mas em Lisboa, para poupar nas viagens e nas comunicações. Não deve por isso surpreender que o noticiário publicado seja muitas vezes de bairro, pitoresco, se não no tom, na circunscrição.

Não é que não cheguem às redacções dos jornais notícias do mundo exterior. Chegam, não estamos na Coreia do Norte ou na Idade Média. E em geral até chegam já escritas, prontas a publicar. Ou porque a Lusa coligiu umas notas e as distribuiu magnanimamente ou porque houve agências de comunicação pagas para o fazerem. De resto, a «província», se não tiver desastres, crimes ou abóboras gigantes, se não quiser encaixar-se no estereótipo de indígena novecentista que domina o imaginário paroquial das redacções (e demasiadas vezes quer), só tem estas duas formas de chegar aos noticiários: através de uma síntese apressada da Lusa, replicada automaticamente online por programas informáticos dos restantes media, ou pagando a alguém que conhece alguém numa redacção.

Mas as fatídicas listinhas que pretendem representar um todo nacional são trabalho de autor, são fruto do crivo esforçado e pessoal dos repórteres locais — de Lisboa. Que de vez em quando se metem no comboio para o Porto, sentindo-se aventureiros — e exaustos da viagem. Por isso, a não ser que o repórter perca um dia a cabeça e, saindo das rotas seguras, se atreva a um safari, é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que a «província» ser notícia por alguma coisa deste século.

Não é que hoje a província seja totalmente provinciana — é que Lisboa não deixou de o ser. Veja-se o que fazem as televisões: transportam a sua visão estereotipada da província para a província em programas que a procuram representar e na verdade representam sobretudo um preconceito que tem os meios de se fazer realidade. Quem inventou o pimba não foi o Emanuel — foi Lisboa.

Há muitos anos, Vasco Pulido Valente, responsável pelo correio sentimental da Kapa, respondia a um leitor que se queixava por a revista só falar do Gambrinus dizendo-lhe grosso modo que se queria que se falasse das casas de pasto da sua terra fundasse a sua própria revista. A conversa não era connosco, mas um grupo onde me incluía tomou à letra o conselho e fundou uma publicação, que até teve o seu share fora de muros. Só que, ao contrário das outras folhas paroquiais, não pretendeu ser mais do que era e assumiu-o no sobrenome: Jornal de Vilarelho. Não ficava mal aos media de Lisboa adoptarem uma vez por outra um subtítulo toponímico com a mesma honestidade.

Digo eu, que nem sequer sou regionalista.

domingo, 28 de março de 2021

Fade news

Antes das fake news propaladas em massa por grupos ideológicos idiotas ou mal-intencionados, havia já a figura do «assessor de comunicação», geralmente um jornalista no desemprego ou com outras ambições que aceitava um salário para, intrometendo-se na área do publicitário mas sem a mesma franqueza etimológica deste, vender um produto: uma ideia, um projecto, uma instituição, uma personalidade, um político, um sabonete.

Em algum momento — antes até da época em que os jornalistas passaram a ser substituídos por estagiários mal pagos e mal formados —, a carreira de assessor de comunicação deixou de ter a realidade em grande conta e a energia antes gasta a dar clareza e eficácia às mensagens passou a ser empregue em golpes criativos. O saber foi substituído pela invenção e o substantivo pelo adjectivo, o eufemismo ou a hipérbole. Uma nota de imprensa sobre a actividade necessária mas banal de uma empresa ou repartição passou a ser emitida com liberdade literária ou empolgamento de prosa poética, por vezes descolando tanto da realidade que em catálogos mais escrupulosos leva, compreensivelmente, a etiqueta de ficção especulativa ou científica.

O mais eficaz dos assessores de comunicação é hoje aquele que tem os contactos certos na imprensa. Mas a consciência, improvável, de que a sua força vem das relações sociais e não da sua eloquência ou do seu estilo é insuficiente para que o assessor desista da aspiração antiga de ser um domador de linguagem. Não se resignando a entregar a mensagem e receber o respectivo e honesto salário de mensageiro, o assessor obriga-se, em horas esforçadas, queimando desnecessariamente as pestanas, sutor ultra crepidam, a «tratar» a informação, não raro distorcendo a mensagem. E ao ver mais tarde o sucesso que deve à sua agenda de contactos confunde-o de novo com o sucesso do seu artesanato, confunde o acesso aos meios com o domínio dos modos, e persiste. Por isso, informação que podia só ser amplamente difundida é não raro também amplamente deformada.

A corrente filosófica e o movimento intelectual que fundiram o assessor com o publicitário e a comunicação com a propaganda medraram também nas redacções dos media. Não apenas pela antiga, tradicional promiscuidade entre as duas profissões, mas porque passou a haver também universidades e a sua necessidade vital de expelir bacharéis da comunicação como quem expele caroços de cerejas.

Colocado num órgão de imprensa ou num gabinete de comunicação, o recém-formado vem cheio de vontade e cheio de hipérboles. A sua energia excessiva de caloiro (e as redacções tendem a encher-se deles, porque o jornalista tarimbado custa dinheiro) não concebe notícias ou comunicados sóbrios e factuais, meramente informativos. Há que dar a interpretação do mensageiro e há que introduzir emoção onde ela não existe ou é dispensável. Um lead deixa assim de ser um resumo eloquente dos elementos principais da informação para ser um slogan que vive por si próprio, com frequência perdendo a sua relação hierárquica ou semântica com a informação original. E a um título não lhe basta ser o «elemento de identificação que indica e chama a atenção para a matéria de que trata o texto»: tem de ser um apelo ou uma acusação, o cabeçalho de um manifesto ou de um libelo.

É útil aqui lembrar que o soundbite não foi inventado por políticos, mas por profissionais da comunicação.

E os profissionais da comunicação adaptam-se bem, como baratas no pós-apocalipse, a todos os ambientes, da redacção clássica à moderna sala de spin doctors, e são hoje por isso intermutáveis. Quando instalados num gabinete de comunicação, gostam de escrever como jornalistas, forjando a mensagem como uma notícia. Quando deixados à solta numa redacção, aceitam sem embaraços, antes com o alívio, a notícia que lhes chega pré-escrita pelos seus irmãos siameses, apondo-lhe simplesmente, com despudor ou apenas tédio de amanuense, a sua assinatura de jornalistas ou o carimbo do órgão que os emprega — certos, com razão, de que a sociedade já nem diferencia um comunicado ou uma opinião de uma notícia.

A comunicação que passa pelas mãos de assessores e jornalistas vocacionados para o impacto pode falhar tudo — nomes, factos, argumentos, ideias, raciocínios — desde que cumpra uma ou mais destas funções: agitar, perturbar, deslumbrar, indignar, seduzir, incomodar, emocionar. Peças deste tipo de comunicação, «caracterizadas pela predominância de situações violentas e sentimentos exagerados», antigamente subiam aos palcos e levavam o nome honesto de «melodrama». Donde não é errado concluir que estes assessores ou jornalistas seriam mais rigorosamente tributados pelas Finanças como dramaturgos.

Deve preocupar-se quem procura difundir uma mensagem através de profissionais da comunicação, porque arrisca-se a um dilema ontológico ou jurídico. O sujeito da notícia, nas mãos deles, é personagem de ficção, com discurso, pensamento e por vezes biografia inventados. Com uma frequência perturbadora, o sujeito depois de noticiado já não é um cidadão real — é um fantasma ou um apátrida. Depois de descobrir aquilo em que a sua mensagem e ele próprio se transformaram, o sujeito olha-se shakespeareanamente ao espelho duvidando de que exista — e é detido pelo SEF por não conseguir provar a sua cidadania.

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* Banda sonora: https://youtu.be/p-QqRewb7V8

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Nos fundilhos de um negrilho

O fácies severo de Torga foi por estes dias esculpido na raiz sobrante do negrilho que ele amava. A ideia, decerto bem-intencionada como tantas no Inferno, é desajustada, caricatural, kitsch, até cruel, mas cheia de zeitgeist. Nenhuma iniciativa que procurasse laboriosa mas ingenuamente seduzir leitores para a obra do escritor teria maior atenção dos media do que este coelho sacado da cartola. Não há uma alma que vá ler uma linha de Torga à conta disto, mas os quinze minutos (segundos, na verdade, e bem efémeros) de fama televisiva, registados pelas equipas de reportagem com a mesma sagacidade jornalística com que antes se registavam os fenómenos do Entroncamento, já ninguém os rouba. A arte pode desprezar a ideia, mas o espírito da época promulgou-a.

Torga não é um dos meus autores de eleição (operou sobre um mundo que conheço uma mitificação que por mim dispensava), mas tendo a gostar daqueles que mantêm relações empáticas com árvores e teria apreciado, por razões literárias e botânicas, mesmo que póstumas, que quem pensou em fundir o autor com a árvore amada tivesse sabido manter a coisa no domínio da ars poetica, ao invés de enveredar por uma literalidade de moto-serra.

Custa-me, de resto, esta referência pejorativa à ferramenta do escultor, porque, sendo testemunha antiga do seu talento, temo que ele seja a terceira vítima neste caso. Não há-de ser fácil sobreviver num país onde as encomendas de arte pública se limitam geralmente a pedir abóboras gigantes fotogénicas para o imaginário pueril colectivo e a imprensa da especialidade fenomenológica.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

«Como É Que o Bicho Mexe?»

E agora para algo que não me vai tornar popular.
Só vi, e não na totalidade, o último episódio de «Como É Que o Bicho Mexe?». Perdoar-me-ão todos os meus amigos e amigas que se extasiaram com a coisa, mas fiquei pouco mais do que indiferente. Perguntei-me, e não gostei da resposta, se teria sido elevada a experiência estética uma caravana buzinante de final de taça ou campeonato, que aliás o «directo» mimetizou. Ok, concedo que talvez fosse necessário ter acompanhado a série para apreciar o seu epílogo.

Acontece que até gosto do humor de Bruno Nogueira, de uma inteligência por vezes adequadamente discreta, ainda que corrosiva, uns furos acima da média nacional de stand up comedians. A propósito deste «Bicho» (mas não só), gaba-se-lhe a criatividade «quando trabalha materiais pouco nobres, como a música pimba ou a reality TV»*, e o «profundo desejo de erguer o que está em baixo»** — e eu hesito entre concordar e lamentar. Concordo tecnicamente (o talento é notório) e lamento esteticamente.

Bem sei que a tendência crescente nalgumas artes tugas é valorizar o kitsch, o «foleiro», numa evocação ou homenagem daquilo que se toma como subcultura mas que é na verdade dominante. Por mim, prefiro um humorista sempre iconoclasta a um socialmente condescendente. A utilização de quaisquer materiais, muito ou pouco nobres, não devia fazer o humorista sentir-se penhorado em relação a eles. Ricardo Araújo Pereira, por exemplo, devia proibir-se de conversar ao vivo na TV com os alvos das suas piadas, porque geralmente fracassa no exercício do humor ao subalternizá-lo à amabilidade que julga dever (e deve) aos convidados. Para conjugar os dois deveres, irrisão e gentileza, é necessário ter-se a afabilidade e o instinto assassino de um Jon Stewart, por exemplo. Não os tendo para usufruto simultâneo, convém escolher melhor o terreno do humor ou da sátira, como acabou por fazer Vasco Pulido Valente, que fracassava ao tentar transpor para a sua fraca oralidade uma arquitectura mental, ou antes, uma forma de expressão que só funcionava na escrita.

No caso de Bruno Nogueira, a delicadeza perante «o que está em baixo» não parece ser circunstancial ou idiossincrática, mero resultado de timidez de carácter, mas sim programática. O seu projecto «Deixem o Pimba em Paz» terá talvez, a esta luz, de ser analisado com certa literalidade. Nogueira quis divertir-se com as melodias ingénuas e as letras brejeiras daquele género musical, mas, a acreditar no que se diz dele, quis também que se não demonizasse o pimba.

E no entanto para mim esta intenção, dando de barato que era real, parece-me, desculpem a franqueza, fútil e fracassada, porque quase tudo o que havia para valorizar no espectáculo era o enorme talento musical, a imaginação (re)criativa dos seus compagnons de route Filipe Melo e Nuno Rafael (além da capacidade de interpretação de Manuela Azevedo). Num ensaio que escrevi há uns anos elogiei precisamente essa virtude do espectáculo e o Filipe censurou-me, porque antes de mais havia, segundo ele, que creditar Bruno Nogueira pela ideia de reinvenção do repertório. Aceitei, porque ao vivo sou também demasiado gentil, mas mantive para mim que o que havia ali de génio era eminentemente musical, coisa, parece-me, pouco creditável a Bruno Nogueira.

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* Vasco M. Barreto no blogue Ouriq: https://ouriquense.blogs.sapo.pt/bruno-nogueira-921322.
** João Miguel Tavares no Público: https://www.publico.pt/2020/05/19/opiniao/opiniao/venia-bruno-nogueira-1917122



terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Só tu, João Miguel Tavares

Só tu*, João Miguel Tavares, para minimizares o episódio da TVI com Mário Machado e a propósito dele aproveitares para bater nos do costume. Já não é ridículo, é patético.

O facto de teres razão em boa parte das acusações que fazes à esquerda não te autoriza, do ponto de vista da lógica, a desvalorizar a presença do fascista Mário Machado na TVI nos termos em que ela aconteceu.

É possível, caso te tenhas esquecido, ter uma opinião sobre um assunto sem que isso anule as outras opiniões que tens sobre outros assuntos. Não tens sempre de lembrar os erros da esquerda quando outros erros se cometem (não estás a discutir futebol). E não nos esquecemos nunca da tua opinião, até porque a vais lembrar logo no dia seguinte. Não temas, ninguém ficaria a pensar que te mudaste de campo só porque um belo dia foste sensato e percebeste o perigo que há em apresentar um fascista e criminoso sem remorsos comprovados como um tipo com opiniões polémicas num espaço que quiseram vender, a posteriori, como de debate ou confronto de ideias e na verdade nem sequer teve muito disso, mas teve beijinhos e declarações de amor.

Neste caso, como em tantos outros, poderias simplesmente fazer como qualquer pessoa inteligente, culta ou apenas intuitiva e reprovares a TVI por banalizar o mal.

Achas que «ex-presidiários como Mário Machado» terão menos responsabilidade do que ministros como João Cravinho numa eventual entrada da «malta saudosa do Estado Novo» no Parlamento. (Até na tua apresentação da besta és mais moderado do que o bom senso aconselha. «Ex-presidiário»? É o máximo que te ocorre dizer?) Menorizas imprudentemente o papel activo da extrema-direita; parece que achas que é só por reacção à esquerda corrupta ou politicamente correcta que surgem, espontaneamente, os Trumps e os Bolsonaros. Não diferes assim tanto de Manuel Alegre na apreciação facciosa e egocêntrica do fenómeno. Na tua defesa extremada e distorcida da liberdade de expressão, acabas por te juntar aos neo-Chamberlaines que minimizam o perigo da extrema-direita em Portugal. E são tantos. Aderes assim, involuntariamente, bem sabemos (por outras coisas que escreves), tacticamente, à teoria dos brandos costumes.

Deixa-me que te diga uma coisa (se não deixares digo à mesma): quando um dia a «a malta saudosa do Estado Novo» entrar no Parlamento, tu terás a tua quota-parte de responsabilidade nisso, porque do alto das tribunas onde peroras tens sido francamente irresponsável na tua condescendência com o mal de direita e de extrema-direita. Ajudas à ilusão de que a corrupção e a incompetência têm cor política, que basta livrarmo-nos da esquerda para que tudo brilhe. Nisto, acabas por te aproximar de Bolsonaro, afinal.

Ainda vais a tempo de te corrigir, és novo. Basta que escrevas mais vezes como curiosamente fizeste a propósito da eleição de Bolsonaro, e que não te sintas impelido (como infelizmente também fizeste) a invocar logo a cretinice dos outros a propósito de um cretino. Não o faças sempre no mesmo artigo. Nem necessariamente no artigo seguinte, porque parece que te arrependeste do que disseste antes. Deixa que as pessoas assimilem cada cretinice por si, sem competições que resultem na desculpabilização de um só cretino que seja. Podes perfeitamente continuar a acusar a incompetência e a corrupção da esquerda (agradecemos-te isso) e não ter receio que te interpretem mal se escreveres (também com certa regularidade) que Bolsonaro, Trump e o criminoso e fascista Mário Machado são bestas que jamais deveriam ter qualquer tipo de poder numa democracia decente.

* Este «Só tu» é retórico, claro.

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Polígrafo

Surgiu um ‘jornal’ com site e uma página no Facebook que pretende analisar notícias e afirmações públicas para fazer uma verificação de factos. Tarefa louvável e muito necessária. Acontece que o Polígrafo, assim se denomina, publica na sua primeira página demasiados posts em que o título é uma interrogação. Ora, como, além da imagem, o título é o único texto visível (se não clicarmos para entrar no artigo) no site e nas partilhas no Facebook, e sabendo nós que muita gente se fica pelos títulos, parece-me que o Polígrafo vai alimentar mais as ambiguidades, os equívocos e os boatos. Faria melhor o seu trabalho se cada título não deixasse margem para dúvidas: se limitasse a ser uma declaração assertiva e inequívoca sobre o facto que pretende verificar ou esclarecer. Percebo que o título em forma de pergunta seja uma tentativa de seduzir leitores, procurando o efeito de suspense, alimentando o mistério para levar as pessoas a entrarem no texto. Mas nas plataformas digitais e nos tempos que vivemos, corre o risco de ser apenas sensacionalista, promovendo a polémica para muitos antes de a esclarecer apenas para alguns.
Chegou talvez a altura de os jornais deixarem de querer seduzir leitores e passarem a informá-los. Com qualidade jornalística e literária, se possível, mas desejando sobretudo informar, sem agendas paralelas nem objectivos comerciais nem ambição de popularidade.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Best-sellers à portuguesa

Não vi nenhum dos filmes da trilogia Balas & Bolinhos — mas apenas porque não calhou (no que se refere a cinema sou muito diverso e laxo na disposição). Li porém com curiosidade uma entrevista do realizador, que agora lança Bad Investigate, por causa da frase em destaque no jornal: «Ando com este saco de pedras às costas por ter levado pessoas às salas de cinema.»

Em Portugal os autores não vivem geralmente felizes com o sucesso comercial. Não porque os repugne o êxito comercial (os que o têm em geral procuram-no com diligência e método), mas porque gostariam de ter igualmente o aplauso da crítica e dos seus pares. No cinema, como no teatro e na literatura, temos os nossos mártires vivendo vidas amarguradas porque levaram o público às salas, às livrarias ou aos multiplexes e há quem com desfaçatez não veja nisso motivo de regozijo. Como consequência, os nossos best-sellers tornam-se críticos ressentidos das abordagens não comerciais.

Diria que Luís Ismael, o realizador nortenho, não constitui uma excepção. Na entrevista até procura ser magnânimo com quem faz «cinema de autor» e afirma que ele próprio não quer andar toda a vida a fazer o género de cinema que tem feito. Mas, como se fosse imperiosa a retaliação àquela personalidade que numa gala dos Globos de Ouro «se levantou para ir receber o prémio» e «foi criticar quem fazia cinema comercial», não resiste a deixar, entre insinuações e contradições, algumas frases assassinas que desdizem a magnanimidade e o aproximam do bravo grémio de José Rodrigues dos Santos, Miguel Sousa Tavares, Leonel Vieira ou Filipe La Feria, embora ainda não tenha a arrogância destes.

Ismael acha que «as pessoas que, ano após ano, recebem milhares e milhares de euros de apoios e subsídios têm a obrigação de tratar bem o público português.» E tratar bem o público português não é necessariamente realizar um bom filme, é ir ao encontro das expectativas «que o público tem nele». Por exemplo: «Se o cinema atrai, hoje, sobretudo os putos, é importante perceber que os cinco euros deles têm de ser respeitados.»

Não é preciso citar a entrevista toda (nem ir ver os filmes) para se perceber que o discurso de Ismael, como o dos autores atrás referidos, busca no número de espectadores um apoio para a sua legitimação artística — o que há uns anos teria talvez certa simpatia do ex-auto-despromovido-secretário de estado Francisco José Viegas. E o número de espectadores não precisa de estar necessariamente ligado aos méritos intrínsecos da obra, mas à simples virtude de esta cumprir o que as massas esperam dela.

Não há muito espaço neste tipo de discurso para a reflexão sobre como respeitar a diversidade de públicos e expectativas, sobre a funesta estandardização do gosto promovida pelos media e não obstada pela escola e pela universidade, muito menos (por definição) pelos blockbusters. Não há, naturalmente, espaço para discutir como estimular pessoas para ver filmes que não sejam feitos a pensar nos cinco euros ou nos cinco neurónios dos «putos». Mas há, como sempre há, bastante espaço para a mágoa e o ressentimento: «Por isso, se não critico os meus colegas que defendem o cinema de autor, o que critico é esta visão preconceituosa, limitada e que se tem por intelectual, que às vezes é quase uma forma de racismo intelectual, de que quem faz cinema comercial é filho de um deus menor.»

Fingindo amar o seu público acima de todas as coisas, os best-sellers à portuguesa tomam-no muitas vezes apenas como instrumento para o êxito e, no fim de contas, menosprezam-no, já que na verdade ocupam mais do seu esforço argumentativo e auto-justificativo em queixinhas ou a procurar convencer a crítica de que têm por ela desprezo. Provando com isso que algures no seu íntimo sentem falta da aprovação dela para a certificação positiva final da própria obra.

(Se leu isto até ao fim, talvez se possa interessar por este post antigo: "Deixem o pimba em paz? As artes e o público".)

terça-feira, 18 de julho de 2017

Da democracia do gosto

É fácil invocar o chavão «gostos não se discutem» para terminar uma conversa (ou, mais rigorosamente, para fazer calar o interlocutor).
Talvez os gostos não se discutam (não se deviam impor, isso sim). Mas pode-se tentar explicar serena e sabiamente a qualidade e a singularidade de uma obra de arte, como se faz neste vídeo.
Apelar à difusão do vídeo pode contudo valer-nos a acusação de proselitismo, porque, como se sabe, o único proselitismo válido, mas não assumido, é o que praticam com denodo as televisões e a imprensa “popular”.
Claro que nunca veremos a TVI ou a CMTV a substituir um dos programas do seu circo de horrores por uma aula destas. Mas podemos sempre observar que, ao contrário do que apregoam, a sua noção de democracia está errada.
A chave da democracia não é fazer cumprir a opção da maioria (muito menos a opção previamente decidida pelos populistas de serviço). A chave da democracia é, exactamente, a possibilidade de optar. E isso só se assegura permitindo a diversidade e a singularidade. O que acontece é que demasiado frequentemente, como lembra Luís Figueiredo no final do vídeo, «as pessoas não estão a escolher». Como poderiam, não é?



segunda-feira, 22 de maio de 2017

O abcesso da manhã


Ele não o diz assim, e decerto repudiaria a última frase, mas a verdade é que custa resumir de outra maneira a defesa que João Miguel Tavares faz do Correio da Manhã, o lixo onde uma quantidade previsivelmente grande de pessoas escreve porque o dinheiro dá jeito ou porque não tem a força de carácter necessária para recusar o apelo sedutor das audiências que por aquela via miserável lhe são emprestadas.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Malícia

Descobri há pouco que o slogan da RTP2 é “Culta e Adulta”. Nestes tempos de condescendência, há que apreciar o mote — e sobretudo a provocação e a malícia.
Não é tanto o que o lema diz sobre o segundo canal da televisão pública, mas o que incita a concluir sobre todos os outros.

No final, também a RTP2 há-de ser acusada de contribuir para a vitória de Trump, Le Pen e afins. Porque ignora as angústias do público néscio e infantil.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Referências culturais

Notar a frequência com que os meus escritos evocam banda desenhada, música pop, cinema ou livros pouco recomendáveis remete-me para a pergunta certeira que Nuno Costa Santos faz no Marginal Ameno
«como é que alguém com 40 anos pode criar hoje — nas escritas, nas representações, nas artes em geral — fingindo que não cresceu a ver televisão e a jogar ZX Spectrum? Como se viesse de um mundo de abstracção só com referências cultíssimas. Recusar é uma coisa, fingir que nunca se fez um zapping antes de ir dormir é outra.»

Na verdade, e não desfazendo, não andamos assim tão longe dos helenistas e dos latinistas de gerações anteriores. Eles evocam As Metamorfoses e nós Asgard, versão Marvel. Eles falam da Odisseia de Homero e nós da saga sobre a ascensão e queda do Daredevil, por Frank Miller. Somos todos bons rapazes, amantes de seres fantásticos e aventuras. Uns, nostálgicos de canções napolitanas, outros, de 16 Lovers Lane. No fundo, ninguém sai da adolescência, tenha ela como referência a Renascença ou os eighties.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Redireccionando a bigorna

«Sonho com uma bigorna a cair sobre o servidor global do Facebook, interrompendo a "comunicação" entre tantas pessoas desejosas de mostrar fotos da roupa interior ou de espalhar ignomínias. Antes, os idiotas andavam um pouco por todo o lado, mas distinguiam-se bem. Agora, estão escondidos na Internet.»
Não sei se Francisco José Viegas escreveu isto (espero que não) e, se o fez, em que contexto, mas parece-me coisa mais digna de Miguel Sousa Tavares (que considerou o Facebook uma mera «agência de namoros») do que dele. Vejamos: o mesmo tipo de idiotas que pulula no Facebook andou (e anda) pelas caixas de comentários dos jornais há muito, pelos fóruns das rádios desde sempre, e consta que frequenta (em larga maioria, arrisco) os cafés da classe média. Mais: este tipo de idiotas, atrevo-me a dizer, constitui a maior fatia de leitores do Correio da Manhã, esse órgão onde parece ser possível ir entregar artigos de opinião sem pisar nas vísceras e sobretudo na merda que há pelos corredores. (Ok, talvez muitos destes idiotas não leiam jornais, nem sequer o CM. A Internet é de facto um bom substituto para voyeurs.)  

O Facebook é também por certo uma agência de namoros. E está cheio de idiotas. São talvez a maioria, que sei eu? Agora, reclamar para ali uma pureza e uma elevação de espírito que a sociedade não tem, que os jornais, as rádios e as televisões não têm, parece-me ridículo. Ou melhor: reclamar essa pureza está certo. Era o que toda a gente devia fazer. O que é ridículo é achar que ela pode existir ali não existindo nos outros lados.

Já me parece mais acertada a crítica de Sousa Tavares à subserviência do jornalismo em relação ao Facebook. Mas, de novo, diabolizar o FB não adianta de muito. O problema não é a subserviência em relação a isto ou aquilo. O problema é a subserviência. A idiotice que existe no Facebook não é pior nem mais generalizada do que a idiotice que existe nas televisões, por exemplo. Televisões que, aliás, mais do que revelarem subserviência face à idiotice, promovem a idiotice, são em grande medida responsáveis pelo tipo de sociedade idiota que temos. (Não, não são apenas espelho, não sejam ingénuos.)

A cair uma bigorna (e Deus sabe como eu sonho com uma há décadas) que caia primeiro nas TVs, onde traz mais proveito e tem bem menos probabilidades de esmagar inocentes.

domingo, 15 de dezembro de 2013

Bruteza

No dia em que o JN noticiou a morte de Nadir Afonso, a sua manchete cumpria a rotina de informar em letras garrafais sobre um novo assalto ou um novo crime. Para o pintor ficou um quadradinho. Sendo inadequado ter vergonha do JN (porque não sou seu comprador nem seu accionista), tenho vergonha do país que o engendra. E quero que se foda a conversa sobre o país real. Um país, seja ele real ou imaginário, devia ter limites para a bruteza.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Talvez coisar

Ouço no programa do provedor de uma rádio que ouvintes se queixam de passarem ali músicas com palavrões. (Um dos exemplos é “Anos de bailado e natação”, o belíssimo tema dos Mundo Cão com letra feliz de Valter Hugo Mãe de que já aqui falei.) Isto no mesmo santo dia em que a televisão dedica todo o período da tarde a fazer desfilar um inesgotável repertório de grosseria e brejeirice.
Pergunto-me se os provedores das TVs (existem?) recebem queixas de badalhoquices verbais no pequeno ecrã, mas suspeito que não. A cultura pimba é ali hegemónica ou exclusiva. E, mesmo que não primem pela subtileza ou pela elegância, os letristas pimba conseguem nos seus trocadilhos soezes evitar nomear as coisas de que obsessivamente se ocupam. Ora, a hipocrisia nacional tolera o mau-gosto, o machismo, a misoginia, a homofobia, o kitsch mais obsceno e a mais estridente ausência de talento — mas nunca o vernáculo radiotransmitido.

Se não tivesse há muito sido banida qualquer forma de arte da TV lusa, os Mundo Cão teriam na conjugação do verbo foder, ainda que poética, a razão do seu ostracismo hertziano. 

sábado, 12 de outubro de 2013

Lobbies e doping na genitália alheia

O José Mário Silva diz na sua página de Facebook que «a edição desta semana do 'Actual' é capaz de dar polémica», e acrescenta um link para um post do blogue Bibliotecário de Babel que, dá para perceber, lista os temas da secção de livros do dito suplemento. O problema é que chegamos ao blogue e deparamo-nos com um artigo sobre Viagra.
Num primeiro momento concluímos que é spam ou vírus. Regressamos por isso ao Facebook e espreitamos os inúmeros comentários (de críticos e outros literatos) que entretanto foram surgindo.

Dada a temática e o teor da discussão gerada, ocorrem dois pensamentos: 

a) o blogue de José Mário Silva foi atacado por um hacker que não tem conseguido entrar no lobby do Expresso.

b) o blogue de José Mário Silva foi atacado por um hacker com sentido de humor: quando se trata de medir pilinhas, a questão do doping na genitália alheia não demora a chegar.

(Ok, mais tarde compro o jornal para não falar de cor.)

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Never mind the gap

Na altura, entre a província e a capital havia um gap um pouco maior do que aquele para que avisa intemporalmente a voz do Metro de Londres. A admiração que a província tinha pela coreógrafa Olga Roriz, por exemplo, era reflexa. Obediente aos media — no tempo em que os media gastavam tempo com artistas como a Olga Roriz —, a província remetera-a para a galeria dos notáveis da nação e tinha-lhe a vaga estima que se dedicava a influentes estadistas estrangeiros, vivos e mortos, ou mesmo a um ou outro mais distante político da pátria.
Um dia a coreógrafa trouxe a companhia à província e a província acorreu engalanada ao recinto. Era a Olga Roriz! Ali chegada, a província não conseguiu mais do que deixar cair desajeitadamente os queixos. Foi como se alguém revelasse que afinal a Torre de Belém não era maior do que uma torre de xadrez. Ou antes, como se fosse anunciado que o Tejo não era um rio, mas um laguito de águas paradas e rasas. A província embasbacou. O que era aquilo? Que farsa era aquela? Quem tinha mentido à província?
O problema era que a companhia de dança de Olga Roriz não dançava, não nos termos em que a província se tinha habituado a imaginar a dança. Pensava-se no folclore, no ballet ou no Fame e nada daquilo encaixava, não sem grandes esforços da imaginação.
(O mito Pina Bausch durou porque a alemã teve o bom senso de não sair de Lisboa sempre que veio a Portugal. E de morrer entretanto.)

Mas felizmente o desacerto entre a província e a capital foi já bastante ultrapassado. Tirando uma ou outra distracção do jornal de Belmiro, os media passaram basicamente a ignorar tanto Roriz como Bausch e, muito adequadamente, inauguraram-se feiras e piqueniques na Praça do Comércio. Suponho que a província esteja assaz satisfeita com a aproximação que a capital lhe fez. Mas o melhor é que hoje já ninguém é enganado, já não se fazem notáveis que não sejam transparentes à mais desarmada vista e apresentáveis em qualquer romaria, de Unhais da Serra à TVI.