Mostrar mensagens com a etiqueta contos. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta contos. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, janeiro 15, 2008

contos do gin-tónico # 2

A minha primeira caçada aos gambuzinos aconteceu pelos tempos em que eu andava ainda na escola. Convidaram-me e explicaram-me. Até me ofereceram o saco conveniente e necessário. Excitado, preparei-me em casa. Treinei devidamente, emboscado atrás da porta, a tentar caçar experimentalmente o meu pai, que subia a escada. Pareceu-me que não gostou. Os pais, não é...?Na noite da caçada, lá fomos. Eu entusiasmado, com a lanterna e o saco apropriado. E também a moca que estava atrás da porta, que à noite há ladrões, foi a justificação que me veio à cabeça no momento. Todos concordaram. Mas não me venham dizer que não há gambuzinos. Apanhei três. Um deles parece-me que se chamava António André e ficou coxo. Ainda está, creio. Uma fractura excelente, mesmo pela rótula. Tudo me leva a crer que a caça aos gambuzinos é realmente importante. Temos que apanhá-los. Temos mesmo. Seja lá como for.
Mário-Henrique Leiria

terça-feira, dezembro 18, 2007

contos do gin tónico # 1

- A vida é um problema complicado - decretou Armindo o corrector, enquanto cortava com precisão mais um pedaço do rosbife à sua frente. A luz discretamente tamisada do QUATRO ASES fazia realçar a transparência do vinho no copo alto, junto ao prato.
- Não mais complicado do que qualquer outro - retorquiu Guilhermino o xadrezista que, no lado oposto da mesa, se limitava a um puré de legumes e queijo de soja. Era vegetariano. E também Grande Mestre.
- Desculpem-me a interrupção - permitiu-se dizer o 'maître' com uma leve inclinação, aparecendo junto à mesa. - Mas creio dever informar os senhores que, por um engano inesperado, o chefe da cozinha deitou no rosbife a estricnina que tínhamos para usar nas ratoeiras. É lamentável. Podem crer que a casa está sinceramente penalizada com o acontecimento. - Com um sorriso discreto e compreensivo, retirou-se deslizando e desapareceu entre o ruído animado da sala.
Armindo estremeceu, contra vontade. O rosto mudou-lhe um pouco. Para verde. E arrotou.
Então teve um movimento em que parecia retorcer-se e começou a inclinar-se para o prato.
- Realmente não mais complicado do que qualquer outro - insistiu Guilhermino, enquanto desviava o copo para que o corrector não lhe acertasse com a cabeça. Levou à boca um pouco mais de puré de legumes. Com prazer.
- Queiram desculpar-me ainda mais esta interrupção - disse o 'maître', reaparecendo-lhes ao lado e inclinando-se levemente.
- Parece-me ser de minha obrigação informar os senhores que, por engano realmente impróprio, o chefe da cozinha deitou no puré de legumes o arsénico que estava destinado aos cães vadios. Permito-me afirmar que a casa lamenta, e que isto não voltará a acontecer tão cedo. - Com o sorriso discreto retirou-se, deslizando até desaparecer entre as mesas murmurantes.
Guilhermino o xadrezista ficou a olhar o espaço. Apenas a imaginar como conseguiria, só com um copo, o paliteiro e o saleiro, dar cheque à garrafa de Armindo o corrector. Então sentiu a dor que, fulgurante, lhe subia dos intestinos.
Pelo chão alcatifado começavam a estrebuchar clientes.

Mário-Henrique Leiria, in "Novos Contos do Gin"