sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Viagem XVI

 A viagem fez-se comigo dentro, sem ter visto ninguém,  tendo pressentido apenas sombras. As conversas iam e vinham num fluxo  ininteligível e monocórdio.  Não era o sono que me agrilhoava. Era uma tristeza funda que me prendia. A meio da tarde, para lá do meio da vida, imaginava se tivesse aceite os convites para  partir e tentar a sorte além fronteiras. Aconteceram propostas decentes e outras menos decentes.  Nem umas, nem outras. Declinei uma por uma. Que vida teria? Como seria o meu quotidiano? Em quem me transformaria? Adaptar-me-ia às novas circunstâncias  ? Que gentes e conhecimentos iria adquirir? Arrepender-me-ia mais tarde? Naquela altura havia dentro de mim muito receio,  pavor do desconhecido. Hoje, agora, penso como seria  importante para mim se ao menos tivesse tentado.  Nesse tempo,  a família  estava viva e boa saúde e alguns  até já  se tinham emancipado, alguns casado ou seguiram outros caminhos, outras estradas,  eu fui ficando. Não era nenhum drama, compensavam as visitas  periódicas. Também naquele altura,  os valores eram outros  que com o passar do tempo  se desfizeram, passaram de prazo.   No  meu  tempo   já  havia   filhos tornados reféns dos pais que cresciam no banco de trás  do carro, sem nenhuma liberdade mas  sem sinal de ecrãns viciantes, havia tempo para pensar, para refletir  sobre o sentido da vida.  Infelizmente era eu com os meus  receios. Uma  alma paralítica, paralisada fruto de construções periclitantes, frágeis e quem  muito  vacila e hesita não chega a lado nenhum. O enlace  do cordão umbilical  permaneceu  a vida toda.  No entanto, não lamento  nada. Sei que  deveria  acontecer um afastamento e um regresso. Não tive ânimo para dar o salto.   Deixei-me vencer pelos fantasmas.   Inconscientemente  boicotei-me por dentro  criando impossíveis, para deste modo justificar a falha em   atender aos chamados. As grandes alterações assustam,  mexe-se numa pedra e todas as outras rolam. A tendência é  não tocar, porque ao correrem vão provocar ruído, desorganizar  o que se dá como arrumado e intocável,   os sons perturbam mentes que se assustam facilmente , preferem que tudo permaneça igual e estático. Também há  gente  medrosa que se manifesta de forma contrária ao que os maxilares  audazes e perspicazes expressam. De qualquer forma, não fui mas encontrei formas de cavar túneis e pontes com acesso  ao lado de lá. Houve muita correspondência trocada que me enriqueceu como pessoa. 

Pela janela, reparei na montanha densa de nevoeiro compacto a resvalar  das serras para a parte sul,  precipitando-se de forma rala sobre a cidade, a desvanecer lentamente.  Esta imagem  remeteu-me para um dia  em que choveu torrencialmente, desde as três horas  da tarde , com algumas pausas breves que mal se notaram   e depois continou sem cessar , quando eram   dezoite e vinte tomei a real  consciência do que se estava a passar lá  fora,  um dia de inverno  incomum e invulgar. A escuridão,  as luzes emanando reflexos  embaciados. Subi de uma  rua para outra para  conseguir um  refúgio, parei e o meu guarda chuva soava a um toldo encharcado.  O consolo eram as  lojas abertas mas havia no ar uma inquietação,  um desassossego nas pessoas que entravam  e saíam a correr.  A água parecia querer  infiltrar-se pelos poros, tomar de assalto os  músculos , chegar aos ossos e encher a corrente sanguínea. Tinha-se tornado assustador. O trânsito automóvel  lento, demasiado lento,  mexia com o sistema nervoso.  Os canteiros das flores transbordavam, até parecia que a força da água queria  arrancar  as flores pela raíz.   Comecei a ligar para os meus contatos, todos indisponíveis. Recolhi-me à porta de uma das lojas,  depois vi que se tratava de  antiguidades, entretanto para disfarçar o nervosismo, eu e a dona, uma senhora atraente com olhos  sorridentes  ainda trocamos alguma conversa.  Mostrou-se simpática e amável e também ela preocupada comigo, procurou  estabelecer ligação com os seus contatos. Após  várias tentativas infrutíferas, lá  conseguiu que um primo taxista viesse, no entanto, devido aos caos instalado, teria de esperar. 

E aguardei, não sei quanto tempo, um tempo interminável, a chuva não dava tréguas, a dona da loja inquieta  por mim, pelo primo que se atrasava, olhava para a rua  apreensiva ...de seguida, colocava-se atrás do balcão, atendia um ou outro cliente mais corajoso , indiferente a toda a agitação violenta que se desenrolava, logo a seguir dirijia-me a palavra, tentando animar: Não se preocupe, o meu primo está quase a chegar e já a leva a casa, porém , a minha casa ficava longe dali e isso agoniava-me. Quando  finalmente escutei umas quantas  buzinadelas , cheguei-me à porta. Devia ser ele, a dona da loja confirmou, corra, disse ela,  ainda tive tempo de me voltar e agradecer convenientemente o favor e a gentileza, tinha sido um anjo,  de outra forma não sei como voltaria . Quando entrei no taxi cumprimentei o primo da dona da loja e foi aí  que entrei em estado de grande perturbação. Através dos vidros fortemente embaciados, uma escuridão de bréu e água a fustigar as vidraças,  não distinguia por  onde passava, as ruas familiares,  agora irreconhecíveis, o taxi seguia em marcha lenta, apenas percebia as  luzes trémulas e pouco nítida dos faróis, reflexos no meio do nada, as claridades das ruas as  luzes dos prédios. O meu coração tremia, por não ter  referências exteriores. O que apaziguava era a voz  tranquila do motorista, descrevia sem lamentações ruidosas  o quanto fora difícil chegar à loja, o estado das estradas, das ruas, os carros numa grande confusão.  À medida que seguia menos pontos de referência se avistavam. Quando finalmente entrámos na via rápida,  fiquei alarmada, a chuva deu lugar ao nevoeiro cerrado, continuei cega. Só notava o automóvel da frente pela luz fraca dos faróis.  Por fim, cheguei, destranquei a porta da rua e subi  as escadas do edifício numa corrida, tanto quanto as forças me permitiam. Que grande alívio entrar em casa. Fui a uma das janelas , pela vidraça avistei um fumo branco como uma cortina , impedia de ver  os prédios da frente. Que sensação estranha. Um cenário irreal  como se lá  fora não existisse nada e até eu própria pertencesse a um mundo suspenso e inexistente.  


terça-feira, 23 de setembro de 2025

Viagem XV

 Estou a sair da cidade rumo a casa . Sei que quando lá  chego só encontro aquele  silêncio asfixiante,  perturbador, incomodativo. A sensação viva e a consciência de que falta a presença habitual, a alma da casa, as notas coloridas já não estão ,  é tão triste, muito triste, a lembrança e o sentimento que deixou cá, o lugar vago que ninguém pode preencher. Dos cantinhos dela erguem-se montanhas de silêncio, são  vazios abissais. Olha-se em redor, a cama articulada vazia, as almofadas sem uso, as cadeiras sem o corpo.   Algo ali murchou para sempre. 

 Cumprida a minha missão , resta seguir por outro atalho. Outro  caminho, procurar outro espaço que me pertença. 

Li algures sobre a reencarnação,  para mim é impensal, uma idosa vai habitar um corpo de uma vida nova? Não me faz sentido nenhum, que absurdo,  ainda mais absurdo que aquela do nosso primo afastado  ser um  primata. Cada tese bizarra! E ainda há quem embarque nestes inventos pouco ortodoxos . 

 Espreito pela vidraça grupos de mulheres e homens agarrados às sombras.  É que o fogo crepita pernas fora,  como se o asfalto tivessem incendiado ,  a cozer-nos os calos,  como se estivéssemos a caminhar dentro de uma enorme frigideira, e a sermos  fritos, sente-se o  inferno  à volta, a derreter-nos, o calor dos incêndios imiscuído nas temperaturas temerárias, devoram estranhamente.  Escapar é meter-se a correr em abrigos  frescos, há  os que arriscam caminhar por entre estas  lebaredas, nao sei como suportam... 

O autocarro desanda após cada paragem, a sentir o mesmo fogo.  Por isso o carrossel continua a sua viagem sem freios. 

Através da vidraça encontro  o sorriso da minha mãe. Há lá fora uma senhora, tão semelhante,  num impeto  era atirar-se porta fora e ali mesmo, dar-lhe um abraço apertado e chorar e rir e rir e chorar. De repente,  a senhora volta o rosto num outro sentido e aí,  constato que não é ela. Não é a primeira vez que sucede , deve acontecer com toda a gente. Já me pareceu ter visto outros familiares falecidos. Espero que estejam todos reunidos no Paraíso,  local sagrado ou como ela mesma dizia, que todos os mortos iriam habitar uma nova Jerusalém.  O autocarro arranca devagar,  a cidade continua o seu percurso ora lento, ora veloz. Parecem formigas  dispersas, que se vão evitando umas às outras para não chocarem. E regresso à minha mãe,  a mágoa de não estar presente no último adeus. Não me conformo. Julgo que nunca me hei-de conformar. Metade de mim, está com ela, metade dela está comigo. Um dia, quando nos voltarmos a encontrar, as duas metades vão completar numa  só. Unidas para sempre, de mãos dadas. Em Paz, finalmente,  por toda a eternidade.  Tal como o Pai e o Filho. Entretanto, a viagem segue. Após muitos anos sem entrar numa igreja, o meu problema é com os padres, nunca com Deus. Penso  numa missa por ela e fico surpreendida, não  acredito no negócio que ali entra, por cada nome citado, quanto custa ao cidadão comum. E ainda há o peditório durante a missa. Das minhas mãos não cai uma moeda por mais pequeno que seja o seu valor.  O estado mete os tentáculos no  nosso bolso e a igreja vai pelo mesmo caminho? Não, não embarco nessa, Deus conhece as minhas  intenções. À porta da igreja, há pobres que estendem a mão, são os pobres ignorados pelos padres. Mais depressa, os estrangeiros socorrem ou um ou outro residente. 

A viagem prossegue e a tarde continua a arder. 

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Viagem XIV

 Tive de apressar o passo  para conseguir apanhar o trinta e um A, foi mesmo à tangente, a meio da  manhã,  havia sinais de cansaço  nos meus olhos, até o   coração pulava na pressa .A sorte é que outras viaturas desciam à frente  em compasso lento e eu pude me antecipar. É uma rua muito movimentada,  com estabelecimentos comercais contíguos; lavandaria , farmácia, Bazar, onde consta artigos de toda a espécie, cabeleireiro, dois mini supermercados, uma padaria, uma florista, uma frutaria, um café. Há  espaços para cargas e descargas. Os estacionamentos facilitam a vida dos condutores, desde que não sejam àquelas horas que correm todos para o mesmo. E a rua torna-se infernal. Os que apenas passam, os que procuram um estacionamento livre, os que despachados desejam sair dali à pressa. Os transportes de mercadoria que precisam de espaço para a descarga,  obras na estrada.  Cria-se um ambiente caótico, com o acréscimo da falta de cortesia e simpatia de condutores para condutores . É tudo resolvido na base do azedume, dos gestos intolerantes, palavrões feios e apitadelas  desesperadas. 

Entretanto,  sento-me a correr  ao lado de um indivíduo porque  o motorista colocou o autocarro em andamento e tive de me segurar imediatamente.

Ajeito-me na bancada e seguro-me ao varão perpendicular à cadeira,  na vertical, as curvas apertadas e  a descida desvairada.  

E lá  vem a minha Teresinha , sorriso aberto, espontâneo,  profere o meu nome alto  em tom de brincadeira, olhos fitos em mim. Mamacita di mi coracón digo eu e minha Teresinha  solta uma gargalhada.  Ai,  mãe,  que saudades !  A minha e a tua existência unidas, desde sempre... e para sempre. Quando te visito no cemitério , não consigo, é mais forte que eu. Torno-me inconsolável.  Imagino a  tua presença lá em baixo, dentro da última  gaveta?  tinham-me dito que seria a primeira, que desconsolo!  quieta, imóvel, serena, fresca e perfumada,  pernas brancas como a neve,  o rosto  sem rugas, sem manchas,  a não ser as de expressão. Levaste a idade bem conservada. E eu a julgar que ficarias por cá  mais uns seis anos. Não era a unica a prever, havia mais gente. Quando um dia, estando a teu lado, baixei-me e cochichei  ao teu ouvido que chegarias até aos cem , tu  tomaste-me muito a sério e numa exclamação; oh! Não! Pareceu engraçada  a tua expressão, como se o que eu tinha acabado de afirmar ,  iria mesmo concretizar-se.  Atribuiste-me um poder que eu não possuía.  Tinhas plena noção e consciência  que cem anos também  seriam demais. A certa altura, viraste-te para mim, novamente  séria e confessaste ; não posso mais, também  quedei -me séria, calada,  triste e fiz-te um afago. Que dizer? Tu sentias que eu te compreendia e valorizava as indisposiçoes, aflições e dores.  Levava-te a sério,  sem risos, nem brincadeiras estúpidas.  Tratava-te como uma pessoa adulta merece, um bebé é diferente ou até uma criança. Saibamos diferenciar as idades e o tratamento não pode ser idêntico. 

 Vem à memoria aquela frase dita de forma grave, o assunto assim o merecia ; E ninguém vem contar nada, e, aquela pessoa desaparece e nunca mais se  sabe dela,e ,  sempre pensativa; grande é o poder de Deus. É mãe,  nunca imaginei  que  te perderia  desta forma, não assim! O pai  assim se foi,  a tia que viveu connosco desde que vim ao mundo, a ida pelo mesmo caminho;   foi num sábado, olhámo-nos mutuamente, olhos vivos! Fiz movimentos  com o corpo e os olhos bem abertos  seguiram os meus sem pestanejar. No domingo ao final da tarde, sem nenhuma explicação, ao telemóvel foi comunicado o falecimento. Mais tarde alguém disse que tinha sido devido à reação de um antibiótico que lhe rasgara o intestino!   Mãe, quando confessavas entusiasmada, se eu morresse naquela hora, não sentia nada, era como se estivesse a dormir... pobre mãe, foi tão diferente aquilo que observei In loco. Como eu desejava essa morte para ti,  serena , tranquila, sem sofrimento, sem interferências. Um momento em família, só nosso, privado!  Revolta-me mas  revolta-me sobejamente!  não  entendo as pessoas quando dizem ; a sua mãe já foi, não vale a pena pensar mais nisso! Siga a sua vida. Já fez a sua parte. E o luto? O tempo do luto? De entristecer, de chorar, de recordar, de mergulhar em águas turvas e escuras,  descer para poder voltar, qual fenix renascida. Cada um tem o seu tempo, um tempo só seu. Esse tempo pode ser para o resto da vida. Há quem vá ao cemitério, depositar o corpo da pessoa falecida  e imediatamente a seguir esfrega  as mãos, como fez Pilatos, enquanto foi viva, fiz, agora acabou, já se fala  em heranças, em contas bancárias, em dinheiro, em terrenos. E, ainda há  aqueles que aproveitam o momento do funeral para cumprimentar os conhecidos , os amigos, visto assim, até  esquecem onde estão, um piquenique? Um encontro de amigos? Uma descontração invulgar em nada a condizer com o momento. Que sentimento!? Um funeral com pompa e circunstância, para os presentes saberem que a família é de posses  e uma campa rica, decorada com  flores artificiais, as flores naturais implicam muito trabalho e hoje não há paciência para coisa nenhuma, é um tédio, obriga a idas periódicas, lavar jarras,  deixar água fresca, mudar de flores. Ao morto que interessa isso?  Já está morto mesmo ! Estranha forma de ver, quer seja a morte, não se sabe lidar com nada. Mesmo nada. Os cemitérios estão vazios, só habitam mortos, abandonados  porque as famílias esquecem rapidamente as boas intenções de visitar os seus entes queridos. Não se honra a pessoa falecida, nem se  dignifica os que já  partiram. É triste, olhar e ver um mar de  cruzes. Foram despejados ali, depois, a vida continua, já foi. Há tempo para passear, ir até à praia dar uns mergulhos,  espreitar frequentemente  o telemóvel,  falar com fulano e sicrano. Distrair-se no café e ficar horas mergulhados nas cervejolas e conversas banais  sobre gajas e gajos . É a  solidão dos nossos  mortos. Que insensibilidade. Eu não sei nem ninguém sabe se quando fazemos a nossa visita, há  mais alguém que vem ali para ser reconfortado, para matar saudades. No entanto, poucos se importam com isso. 

O autocarro parou , cheguei ao meu destino. 

 

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Viagem XIII

 Estava a chover  lá fora e  chover no meu coração. Sem ser Primavera , sem ser Outono, sem ser Inverno,  as minhas lagrimas escorriam  em fios delgados e estreitavam ainda mais  como canais sem margens,  interrompidos  pela linha do queixo, esmorecendo colo abaixo. Em pleno estio,  tempo estranho, mudanças repentinas, tal como nós, iguais em tudo a nós que o deixámos assim, nós, parados,  tão distraídos e não passámos de uns  deslumbrados  consumistas ,  não resistimos ao apelativo,  babados, olhos fixos e maravilhados para  rótulos  coloridos, embevecidos pela panóplia  que o virtual oferece para poluir  a nossa própria  vida.  Os deuses terrenos tiram proveito das nossas fraquezas, e assim, aprimoram cada vez mais  ardilosamente   as suas técnicas de sedução.  

 Os passageiros entraram, não  os encaro,  para   que nem vislumbrarem a intimidade  dos meus olhos sofridos. A chuva torna -se robusta, mais grossa, mais espaçada e bate no vidro como dedos a chamarem por mim.  Para onde quer que  vá,  levo a minha dor. São saudades ... a reta final foi tão breve,  tão veloz,   num pestanejar momentâneo .  Nem deu tempo de buscar consolo por entre os lençóis da cama. A cadeira de rodas parada no canto habitual do quarto, lugar fixo, onde os olhos verdes  se distraíam entre o ecrã da TV e o azul do céu que entrava janela  adentro. Deixou de se equilibrar nos passos aos noventa e três anos, uma artrose manhosamente inflamada veio  se instalar no joelho direito. 

Por ali, saltitavam passarinhos numa chilreada alegre, feito casa em forma de ninho, no cimo da árvore de flores rosa, plantada no quintal. 

Nesta casa de três andares, no rês do chão, havia muita  alegria, risadas, música,a  espontaneidade da matriarca, única sobrevivente dos dez irmãos e dos dez cunhados,  todos falecidos. Certas visitas  deliciavam-na,  o sentido de humor aprimorado, as respostas acertivas, as gargalhadas acesas numa  escala ascendente ( ULALÁ ),  deve ter ficado gravado nas paredes do quarto,  da sala. Os diálogos prolíficos, as questões pertinentes,  o interesse por saber das coisas.   Fazíamos-lhe testes à memória e não falhava nada. Afinada e contente!As coisas mais simples da vida, faziam-na feliz, nunca foi preciso muito. Um elogio aos cabelos, aos olhos, ao vestido, aos filhos,  as prendas em momentos especiais,  um carinho, um afago  e soltava uma gargalhada  contagiante que conquistava todos. Era devota da Senhora de Fátima e procurava privacidade na hora de quotidianamente rezar o terço. E de forma ainda bem lúcida, indicou  aos filhos o cemitério onde gostaria de ser sepultada,  sobre ela, o manto de Nossa Senhora do Monte, que o seu túmulo fosse uma Campa, um retratinho para saberem  que era ela que jazia  ali, e que os filhos fossem lá rezar uma Avé Maria por ela.  Cumpriram-se escrupulosamente  as suas vontades. Foi, é e para sempre será a nossa rainha, uma rainha admirável e muito sincera. Uma rainha que quanto mais me lembro dela, conheço-a  agora, mais e melhor,  descubro o que ainda não tinha descoberto, talvez a distância venha auxiliar. Quanto à medicação,  uma série deles, uma farmácia  dentro dela, alguns de dimensões consideráveis, e deglutia, sem mastigar. Nunca foi necessário partir ou reduzir a pó.  À pergunta habitual após uma porção de água se já tinha descido. Respondia brandamente,  já foi.

As viagens de autocarro  que fizemos ambas aos Açores,  na casa anterior, sentadas, assim, deleitadas. Que imaginação fabulosa! Os passeios ao fim de semana,  muito lhe agradavam, mesmo a coxear esperava religiosamente pela minha visita de fim de semana, para eu estender o braço e apoiada em mim, lá íamos, e cada coisa que via, admirava, falava, descrevia, adorava chegar à curva, na continuação  a rua descia, e subia, ficava debruçada sobre o muro que ladeava a casa grande,  com um jardim, a árvore frondosa a meio, dava sombra em dias de calor, parávamos ali, era vida que respirava com gozo,  sabia de cor os nomes de quase todas as flores, por isso demorava-se , até não poder mais. Na vez seguinte repetia tudo de novo,como se fosse a primeira. O grande martírio eram as terríveis insónias, inquitevam-na  severamente e assombravam muitas das suas noites,  indisponha quem estivesse ao lado porque falava quase sem parar e mexia-se, colava as palmas das mãos e rezava só para si, a Nossa Senhora de Fátima para lhe dar sono, quando me aproximava para vê-la , queria falar comigo, queria rir, dar gargalhadas, já que não havia forma de adormecer. A demência tinha destas e outras coisas mais sérias, nunca Alzheimer.  Apesar disso mantinha o seu sorriso habitual.   As cirurgias chegaram  aos cinquenta anos, um tumor benigno nos ovários, aos setenta ou por aí,  uma queda;  fraturou o  fêmur direito, é colocada uma placa para ajudar a caminhar, a se movimentar, felizmente ela própria com a sua força de vontade, saiu da cadeira de rodas e foi  andando, apoiada por braços familiares. Nunca esqueci, uma enfermeira que nessa altura me disse que ela nunca mais voltaria a pousar os pes no chão,   como se enganou redondamente. Aos oitenta, as cataratas estavam a cegá-la, nem ela se queixou, através da observação, percebemos e  não  permitimos. Quando começou a ver bem , foi uma felicidade. 

 A primeira perda; a morte do marido, aconteceu aos oitenta e dois, ambos com a mesma idade, depois, a senhora que cuidava dela, ao fim de alguns anos,  teve de se ir embora, foi uma tristeza, após essa , vieram outras cuidadoras ,umas sem competência nenhuma, outras com alguma competência, um entrar e sair de gente impreparada. A penúltima andava sempre tão adoentada, tossia muito, escondeu o real estado de saúde, a proximidade com a matriarca foi inevitavelmente  grande que acabou por lhe provocar a mesma doença, como se encontrava debilitada,  venceu a morte.  Foi negligência, falta de profissionalismo, falta de responsabilidade,  uma falha imperdoável! Porque custou uma vida! É de extrema gravidade.  A última,  chegou mesmo à beira do  fim e diz a matriarca para a cuidadora: Não vai ser a primeira, nem a última! Neste caso, foi. O que era admirável nela; a   capacidade de se adaptar a muitas delas. 

Nutria um particular afeto pela segunda casa, por ser maior, mais exposta à luz solar, uma vista ímpar, a cidade por baixo dos olhos. Um quintal grande e convidativo, aberto, os vasos com as suas florinhas que tanto amava. Um lugar  mesmo para ela. Quando trazida para a atual casa, a carinha murchou , sem uma palavra de rabujice, de qualquer forma, uma pena  sentida e cavada, novamente  um entra e sai de senhoras que vinham ajudar a cuidar dela. No entanto, não se encaixavam ali. Tinha a companhia da irmã e dos filhos por perto, adaptou-se de novo a umas mais,  a  outras   menos, entretanto, a irmã partiu, mais uma perda dolorosa e significativa.  Sentia-se  desacompanhada, então chamava vezes sem conta o seu nome. Onde estaria?  a preocupação levou-nos a uma piedosa mentirinha,  encontrava-se hospitalizada.  Então onde  estava a cama dela? Porque haviam retirado? O tempo passou,  foi-se adaptando às novas pessoas que vinham e saíam, novo esforço. 

 No dia dos seus noventa e quatro anos não disfarçou a mágoa que cozia  por dentro, tão  forte, não condizia nada com o que conhecíamos dela em todos os outros aniversários. Era como se previsse que ia ser o último ou talvez sentiu que a irmã não voltaria  a estar em família. Todavia,ainda se  deixou provocar imensas vezes, e,  foi capaz de fazer as suas festas esporadicamente. Lentamente, deixou de falar, de rir, de ter apetite. Após o lanche, da tarde, era a hora da grande nostalgia, uma nuvem espessa  estacionava naqueles lindos olhos verdes, que se prolongava até ao jantar. Após o jantar, ficava sentada, à espera da hora em que a fossem depositar entre os lençóis.  Quando era acomodada na sua cama, de repente sem ninguém esperar soltava gargalhadas e gritava de alegria o quanto era feliz e alturas houve, que foi justamente o oposto, gritava com dores. O habitual da grande matriarca consistia sofrer em silencio. Logo a seguir à manifestação de dor, ela dizia , já passou, já passou... Sofreu calada quando se gerou nas costas uma úlcera de pressão,  que demorou meses e meses a cicatrizar , gemia quando a enfermeira lhe puxava o adesivo colado atrás . 

Caminhei a seu lado durante anos, ofereci o meu braço para se apoiar, fui sua cúmplice  em muitas ocasiões. Preocupei-me com o seu bem estar.  A minha rainha deliciava-se com os banhos que lhe dava, sabia-me tão bem vê-la colocar as mãos em concha, à aparar a água do chuveiro, sempre com agrado. Quantas idas às urgências! trazia-a sempre  comigo, de volta a casa,  desta vez  julguei que se repetiria  o mesmo, não foi.  Certa ocasião em que os olhos  se mantiveram  abertos, bem fixos nos meus, aproveitei a oportunidade e prometi  que ia levá-la para casa, quando ela melhorasse, apertou-me um dos dedos. Sentiu-se confiante.  Pela primeira vez eu sabia que estava a faltar à verdade, porém, como sempre, quis protegê-la e adiar qualquer sombra de preocupação, especialmente num  momento tão delicado. Quando a Doutora propôs alta, precisei de um tempo para colocar em andamento a nova fase. O caso era delicado e quando procurei um lar para a internar, por necessitar de cuidados paliativos, responderam-me que não havia vagas! Mas  listas de espera ?! O meu desespero foi quando me  repetiram  o mesmo, até  naqueles lares que primam pela boa qualidade !  Fiquei a pensar, se existia uma lista de pessoas à espera, onde se encontrariam? Nos hospitais?! Quantas? Que estranho!? Entretanto,  o quadro alterou-se e foi anunciado a previsão do fim. Recordei que alguns anos antes, uma médica  fez três prognósticos errados,  em três tempos diferentes , a família deveria preparar-se para o fim da matriarca, não  aconteceu. 

 Estive sempre perto e presente todos os dias, observei tudo, até o que era preferível não ter observado,  o estado das coisas, como correm, lança muita dúvida,  a não  ser que uma pessoa fosse mesmo muito ignorante. Ou cega, no meu caso, não pude fechar os olhos e pensei no  mundo miserável em que vivemos que não sabe tratar os seus idosos,  não sabe! E sabe cada vez menos! Que raio de  mundo desinteressado do outro, não  aposta nos mais desprotegidos, um mundo mentiroso,  enganador, falsificador,  maldito, um mundo desumano, perigoso, tudo isto sucede aqui, não é lá,  distante, num  reino sem rei, nem roque. Acontece nas nossas barbas, abaixo do nosso nariz!    Quando os diabos  se unem formam-se alianças e  nasce o imbróglio.  Mas a vida tem os seus meandros... A cobrança há-de chegar. Mais tarde ou mais cedo. 

A viagem chegou ao fim , sem nenhuma companhia ao lado. Há muito que a chuva tinha cessado e o céu cobrira-se de cinza  escuro


domingo, 29 de junho de 2025

Viagem Xll

 Havia poucos passageiros àquela hora, acima do começo da tarde, acontece às vezes, já  que a maioria está nos trabalhos.  O calor abafado, não me incomoda assim tanto, como o frio. A temperatura elevada, sem excessos,  agrada-me,  anuncia o começo do verão. Sempre  tivera fascínio pelos  brilhos desta estação quente, os reflexos dourados, a faísca suave, o ardor leve  até o apertar mais atrevido. O sol a lamber o casario e os telhados...as ruas...a face, a roupa vestida. Os dias mais compridos, numa linha reta, esticada a perder-se no horizonte longínquo.  Afasto a mania  de  deprimir ao antecipar já os dias curtos,  nostálgicos e taciturnos de outono,inverno O que vem depois, há-de chegar na sua altura. Agora,  quero sentir o começo desta estação, sem pensar no que virá.  A tristeza serve para agoniar o coração. E que remédio senão aceitá-la quando chegar e conviver com ela. O autocarro percorre todas as curvas numa pressa louca, tal qual uma criança a correr desalmadamente pela casa e a qualquer instante espetar a cabeça numa parede.  

Ali, na viagem, se acontecesse um despiste, como seria? Que horror! Iriam sangrar algumas cabeças e outras ficariam  em estado grave e até...Ah, a morte, ai a morte! Que momento fúnebre e  trágico! A morte é tão  definitiva, ninguém regressa  para contar aos vivos ... como é e mais importante, se estão bem.   Por alguma razão os vivos nada sabem, é um segredo, é um mistério  por muitas teorias vendido, umas mais caras, outras mais triviais,  nenhuma satisfaz. Por muito que banalizem, a ideia da  morte, será sempre  perturbadora e traumarizante , muito estranha, assustadora para quem parte e para quem fica a ver partir. Há mortes calmas, tranquilas imiscuídas no sono, na cadeira habitual, sem um ai, e há outras demasiado penosas, ruidosas, tormentosas,  resistentes. Porque será que são tão diferentes? A natureza do ser humano? Ou outra razão obscura?  e isso fará diferença para o  que  há-de vir no  outro lado da vida? Desconhecemos.  Cada um passa na sua vez ou alguém antecipa essa vez, muito discretamente,  com   morfina,  inaladores,   pulverizadores...picadas intravenosas... tudo para alívio da dor!? Será  mesmo? Ou causam mais aflição com o intuito de despachar aquele ser,    que está a ocupar uma cama que deveria ser ocupada por alguém mais novo? Não se espera, é tudo muito apressado! Venha o seguinte!  Imagine-se, será  benéfico antecipar o derradeiro momento na terra e  adiá-lo para os céus?  a  medicina interrompe o natural curso da vida, o que acontecerá  posteriormente ? Fará diferença?  A morte é o fim do acordo de paz entre corpo e alma. A carcaça  é  atacada por enfermidades sem remédio,  oxida, já  não pode acompanhar aquela alma, está pesada demais, exausta...a matéria de que somos feitos, o revestimento guarda o  tesouro, a nossa essência mais intima, a índole, o fundamento, a coragem, o valor.   O corpo utilitário fala  e comunica numa linguagem própria.  É este corpo e os órgãos que dão  guarida  durante anos , que trabalham em prol de qualquer ser humano,  aquelas células  que  defendem a existência até ao fim.   Resta saber se ao longo de  todo este tempo , o ser foi capaz de dar  afeto e em troca soube  receber, se conseguiu concretizar a arte  do encantamento, da entrega, da bondade, da delicadeza, da simpatia, da educação, da verticalidade de caráter, da postura correta. Move-se durante dias, semanas, meses , anos por  entre  momentos felizes  e momentos  infelizes.  Se foi capaz  de demonstrar pequenos gestos altruístas  que fizeram  a diferença e palavras de esperança, se confortou outras almas próximas. Aos poucos, o tempo, prega partidas para quem se distrai, e somos surpreendidos pelo surgir da enfermidade. De repente, apesar do cansaço que tomou conta do corpo de uma ponta a outra.  Após alguma falha grave, surge  aquela hora convulsiva do adeus.  Não há volta a dar, nem chance de adiar,  nem de fugir ou escapar.   Deveras pungente, é   imaginar que aquele corpo que se acarinhou, que se serviu, que se lavou,que se beijou que se abraçou  , que se tratou com imensa ternura , carinho, devoção e amor, se estrague, desfaça, apodreça e desapareça.  Mói por dentro refletir neste desfecho. O  que  reconforta, é imaginar que o  amor  dado seja  a bagagem cheia que a alma transporta consigo. 

Quem tem familiares  que estão da partida conhece bem a dor que escava  o paciente,  um fogo aceso, crepitante, lento a crescer com os olhos esbugalhados de viés pedindo clemência, o coração a se contorcer, numa delirante  inquietação, a boca  semi aberta  ensanguentada, os olhos preocupados e  uma melancolia infinita.  Magoa por todo lado,  a aflição é tão forte que já não consegue se  pronunciar e lá se aspiram  as secreções que sufocam a garganta, o peito retoma um andamento mais sereno, mesmo assim, passados quinze minutos;   sobe e desce numa escalada cruel,  uma respiração tormentosa,  como se lhe estivessem a roubar o oxigénio pelas costas, ou um furo a esvaziar os pulmões, com as mãos e os braços fincados em almofadas,  soergue-se  numa luta tenebrosa , como se pedisse ; Por favor,  "Afasta de mim este cálice", Pai!" O corpo todo em tremuras.  Dos pés à cabeça! Porquê? Foram as instruções dadas, duas gramas de morfina!? Ninguém pensou nos efeitos secundários?!    As retinas caídas , abertas  suplicantes.  É o terror, o medo, o desespero do fim que se adivinha próximo. Que  sofrimento atroz! nem um grito, nem uma revolta? A resignação de quem já não pode, já não consegue  pedir socorro, já não há forças  para dizer não!   É um  momento  irrecusável para quem vai e para quem fica. Não há forma de impedir. 

A razão mais forte da missão na terra, julga-se cumprida  pelo amor aos outros, o virtuosismo  do bem e do bom. Na  pressa quotidiana,  ninguém pensa nela. Agora, a  alma, faz o seu caminho para Deus e espera-se que  possa renascer com todas as boas memórias que  leva consigo. Se  há consolo para quem fica, é este, saber que a Divindade estará lá, de braços abertos para receber os que partem, para conceder o perdão e alcançar a vida  eterna. Para quem ainda tem de percorrer o seu caminho terreno,  a missão não termina aqui, urge contribuir para erguer  o bem, não só para si mas em prol  dos outros, ou de nada valerá ter andado  sôfrega, egoísta, apenas voltada para si, como o Narciso inclinado para o  lago. Algumas pessoas, até voam para África, como  se todos os necessitados do mundo vivessem  apenas naquela parte do planeta e não se apoia os mais próximos que necessitam de auxílio! 

Após a perturbação  de  assistir  o ser  trancado no seu eu mais profundo , numa agonia sem limites,  sem poder sequer segurar a mão, com  suavidade , pois, as mãos  estão amarradas em cada lado da cama,   fechadas e inchadas em punhos cerrados de tensão.  E, pela sonda da alimentação enfiada numa das narinas que  cruza a máscara de oxigénio. Não há mais nada a fazer.  Para já,não corre risco de vida, simplesmente, sofreu uma lesão no sistema nervoso central. Mas porquê? Não sabemos. Pode ter sido um AVC   mais  forte ....  E porque não uma medicação demasiado potente? Há  erros assim! Aconteceu em dias posteriores,  ter entrado num estado diferente do normal  e as  reações secundárias não se fizeram esperar, neste caso; alegria esfuziante,  gargalhadas desmedidas, respostas  a estímulos  na ponta da língua. E falar muito, todo o dia e toda a noite.  Ao fim de três,  quatro dias, colapsa irremediavelmente. Agora,  falta oxigénio no cérebro,  rigidez muscular, ainda murmura até ficar sem voz, os membros superiores não mexem, não engole comida, não engole saliva. A sonda provoca secreções que nunca mais findam. muito antes, a gripe veio de fora para dentro de casa.  No domingo, após o raio X : pneumonia bilateral!
 Quem fica,  atravessa um deserto penoso,  sem qualquer bengala,  sem uma gota de consolo, um silêncio ensurdecedor, a perda irreparável de alguém que se amou desmedidamente  e neste tempo que flutua suspenso,  sai um grito  acumulado de dor ;há uma  preocupação constante,  a tentativa genuína de talvez juntar os quês , porquês e os ses,   a culpa , as perguntas sem resposta, o cansaço, a vida já enfiada pelo buraco da agulha. O amor não se perde, não  cessa. Permanece inalterável,  atravessa o palpável e segue até à eternidade, torna-se metafísico . As imagens são   revividas, processadas sem parar,  como selos colados à pele.  Tudo vem  nitidamente , as vigilâncias  sobre os diversos tipos de respiração, a tosse compulsiva,  a expectoração em trovoada  , a cascata de  espirros,  o nariz a pingar, os olhos lacrimejantes e vermelhos, os varios tipos de ressono pela noite fora, saber ler as linhas do rosto. As insónias a despertar a ânsia de falar.  A proximidade, a atenção, a compreensão,  o respeito,  a tolerância,  ter tido  em conta   a comida, o vínculo forte, a proteção,  intensificar a presença,  a confiança,  a intimidade e o reconhecimento mútuo.  As necessidades de quem padece são prioridade,  escutar e acolher. Dar segurança a quem dela necessita.   Ocorre que poderia ter sido diferente,  faz parte da insegurança, do receio, das dúvidas,  se  tivesse feito mais e melhor, no  sentido de tornar a dor suportável.   É o amor a falar mais alto. Não há   fórmulas mágicas de conviver com o  luto. Cada um segue por um caminho,  percorre atalhos, veredas, abismos  com os seus próprios passos. E nesse espaço ao  sentir-se devastado vai carpir e volta a carpir, e tornar a carpir , revoltar-se com o que viu, talvez se fosse feito de outra forma,  assolam confusões e prefere o isolamento  da  paz, para tentar enterrar a cabeça  no desgosto. Afundar-se no luto.    A  travessia terá  de ser feita. Chegarão  sempre  as imagens  daqueles  fatídicos dias.  As visitas  de todos os dias , a corrida para chegar a tempo, mas  é  tarde demais,  findou, logo naquela tarde...dispara o turbilhão emocional, a mistura densa de  nostalgia profunda , a impotência e a incredulidade, os soluços convulsivos e a repetição como se não compreendesse o impensável : " Oh , mãe,  oh mãe,  oh mãe "! O  sofrimento da perda de um  amor imenso.  E a pouco e pouco essa sensação aguda e incomodativa  vai  deixar marcas indeléveis; as saudades vão surgir,  de qualquer forma ,  esse laço nunca se vai desmanchar ou desfazer.  Permanece até à eternidade. Somente Deus é  testemunha ocular do sucedido . Somente Ele. 
Pressinto que alguém ocupou o assento ao meu lado, não senti entrar, nem ficar, só notei quando se levantou e precipitou-se para a  saída. 

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Viagem XI

 Enquanto viajava, imersa em pensamentos muito internos,   pessoais, traduzidos em imagens que me absorviam através de vozes e situações, chegavam alguns e  quase ficavam,  outros  provocavam-me,  mexiam comigo, rente a mim ou se  distanciavam e quedavam-se  ao largo como se me espreitassem, a insistir e  a minha cabeça fosse um  porto, uma gare. E aquele cruzar  em  todas as direções, semelhante a uma metralha , massacrava.   Havia aqui uma série de  cabeças familiares,  ideias e reflexões que me perturbavam mais que a paisagem, que sendo dominada por aglomerados de casas,  algo atraente, um pouco apelativo,  transmitia sensações estranhas,  talvez pela repetição das viagens e a monotonia do casario desalinhado, desenquadrado, as ruas assaz  estreitas,  tinha caído na rotina e na indiferença. Do que me era dado ver,  o panorama que  seduzia naquele troço, pois, nem tudo era  entediante,  nem havia assim tanta   fealdade talvez o seu contrário. Mas eu gostava mesmo era quando o autocarro   passava numa zona antiga, em que se mantinha de pé,  um casario de outro século. Era como entrar numa era  longínqua,  as  casas muito antigas, com toda a certeza pertencentes a gente abastada, a pressa do ônibus não me  permitia  deter e apreciar certas fachadas, algumas solitárias, deixadas para trás,  degradadas, de qualquer forma,   ainda exibindo a sua singularidade  exótica. Quem seriam os donos daquelas habitações? Que famílias teriam passado por ali ? Entretanto, ao fundo,  uma voz feminina  levantou-se em alto som.

Com certeza iniciava um diálogo ao telemóvel. Queixava-se da vida, da falta de dinheiro,  do trabalho duro, entrava às nove da manhã todos os dias até sábado, terminava às vinte e uma, recebia  por horas, muito mal paga, nada que lhe valesse o pagamento do aluguer do minúsculo apartamento. O marido estava preso a uma cadeira de rodas.  Era forçada a passar por cima de algumas refeições.  Comprava pão de forma e bebia leite quente quando a fome apertava. A fruta? nem pensava nela para não desejá-la. Fingia que não a via nas barracas que encontrava na rua. 

Aos poucos, um ou outro passageiro curioso voltava a cabeça para trás, como a senhora se expressava em voz alta, chamava a atenção. 

O que me vale, dizia ela,  era dormir como uma pedra. Caio na cama e só  acordo com o despertador às  cinco e meia da manhã. Devia preparar o almoço para levar consigo. Isto é  vida? Acreditas nisto? Não imaginas a distância! Ui! Como se não  bastasse,   a casa ficava fora da estrada principal,  tinha uma subida íngreme para calcorrear a pé. Onde trabalhava não lhe davam nada. E era tudo gente de posses. Até  havia três carros no quintal mas boleia nunca, nem em dias de chuva. Não  se atrevia a pedira nada, nem atirar vc bitates ao ar para ver se algum acertava. Após ter passado por engomadeira durante a noite e cuidadora de um senhor idoso de dia. Decidira deixar as noites para descansar. O  domingo destinava-se para as voltas dela;  o filho de vinte anos, já namorava  e isso eram  coisas dele, não se  metia nos assuntos pessoais do filho para não parecer intrometida , esperava  que ele viesse  contar de livre vontade. Quando ele achasse que era a hora própria, então sim, ela estaria lá,  para ouvi-lo. Receava perdê-lo se pressionasse. Já era um adulto e não era por viver com ela que ia abusar da sua intimidade.  Ele trabalhava como mecânico de carros e ajudava monetariamente em casa, colaborava nas tarefas domésticas. Era um bom rapaz, honesto e trabalhador, responsável e esforçado. E isto fazia dela uma mãe feliz. Ele só tinha conseguido chegar ao décimo segundo ano, nunca gostara da escola, não se enquadrava naquilo, custava-lhe ficar ali sentado tantas horas, havia intervalos só que eram curtos, a cabeça dele, às tantas já andava nos carros, menos escutar os professores, não conseguia se concentrar aquele tempo todo. Imaginava como podia construir um carro novo. Apesar de tudo, nunca chumbara nenhum ano, a mãe sabia que era por ela que ele estudava.  

É natural que tivesse  imposto  limites, não podia ser muito branda, além disso, teve de assumir papel de pai e de mãe. O marido era muito mole, também muito boa pessoa, já  antes do acidente era, lembas-te ? Era  assim,  vivendo dentro das  possibilidades, ensinara  o  filho a gastar o necessário para fazer face  às despesas caseiras e guardar o resto, ter um dinheirinho de parte para qualquer eventualidade e uma parte, se algum restar,  dar um passeio a  qualquer lugar que viesse a gostar muito.  Desejava muito que o rapaz se tornasse independente e autónomo,  capaz de seguir com a sua vida. Queria-o um homem inteiro, preparado para o que viesse, sem se envergonhar nem envergonhar a família.  Pobres mas honrados. Uma pessoa não tivesse nada, mas a cara limpa. Via  que hoje isso pouco importava   ser ladrão estava  na moda e quando se tratavam de senhores da alta, muito menos. A decência não existia. Era um salve-se quem puder, uma autêntica selva.  Na  vida dela não queria isso, nem na família.  Quem amasse os seus filhos, queria-os bem resolvidos, independentes, dignos. Foi-lhe transmitido assim pelos pais e preferia continuar assim, a vida só por si já trazia amargos de boca.  Depois pediu  com  quem falava para aguardar que ela já ia sair. 

segunda-feira, 12 de maio de 2025

Viagem X

 Quando entrei vi os lugares quase todos  ocupados, havia um assento livre, todavia, ficava muito para cima e no fundo. Decidi quedar-me de pé, lugar que antecede as escadas, para os andares  de cima. Foi nessa ocasião que reparei em dois indivíduos, sentados no primeiro andar do lado direito,  um usava bigode, moreno e cabelo escuro, muito bem penteado e bem vestido. O outro à esquerda, um rosto charmoso, mais interessante,  ainda mais elegante,  pele clara, cabelo ondulado, ligeiramente grande. Fiquei rente ao lugar deles, escostada com as mãos sobre o varão,  voltada para o janelão. Fiquei de perfil para os dois homens. O que ficava na minha direção, usava  bigode chamava-se Carlos, ao lado, era o Miguel, consegui perceber quem era quem. Assim que o veículo retomou o andamento: 

- Carlos,  como te estava a dizer, estou farto desta situação ! 

- Miguel,  compreendo...só que..

- Só o quê? - tornou Miguel 

- Ela é  uma amiga muito querida. 

- Eu também simpatizo com ela mas sabes como é ... - argumentou Miguel 

A conversa entre os dois, não era alta, o ronco ensurdecedor do automóvel,  abafava qualquer tentativa de diálogo,  então o tom de ambos subiu. Como me  encontrava rente e na posição inferior,  escutava o que falavam, havia hiatos no respectivo diálogo,  em virtude das circunstâncias, ainda assim, era possível captar alguma conversa. Com efeito, não me atrevia a espreitá-los. 

- Sei como é e tu sabes o porquê... vamos deixar as coisas assim...

- Ela deve suspeitar...  não compreendo...

- Ela ajudou-me imenso em certas ocasiões da minha vida, Miguel! 

- Ajudou-te ou já  estava de olho em ti? 

- Ela de olho em mim e eu de olho nela! A amizade que nos unia tornou-se imensa...

- Tão grande que se despiram e afundaram numa cama de prazeres carnais !  

- Não terias feito o mesmo ? 

- Não, não teria feito o mesmo! 

- Miguel, tu és tu, eu sou eu! 

- Queres me dizer que nunca mais vamos ter sossego?

- Nos tempos mais próximos, penso que não! 

- Não me agrada nada, ou dentro de ti ainda há sentimento por ela? 

- Lembra-te do início, tu vinhas com ela, de mão dada...com a minha namorada! 

- Foi ela que me deu a mão! Ficou nervosa por uma briga de cães de rua. Estava aflita porque um deles, o medroso refugiou-se  nas saias dela  . Eu afugentei-os  e ela aliviada agarrou a minha mão. 

- E eu assim que te vi, Miguel, foi como se um raio me tivesse atingido de cima a baixo.  Um céu aberto, uma nova claridade encheu-me todo a mim e ao dia.
- Fiquei confuso com o teu nervosismo! 
- Na vida, nada semelhante me tinha apanhado daquela forma, foi num estalar de  dedos! 
- E eu sem saber de nada,  quando te dirigiste à  Alice como tua namorada, quem ficou nervoso fui eu, larguei imediatamente a minha mão da  dela. 
- Miguel, foi preciso cavar fundo para te conquistar, não tive caminho fácil. 
- Sempre fui fechado e discreto e tu foste a novidade que  surgiu. Jamais me tinha imginado com outro homem...
- Fui a dentro do armário , puxei-te para fora e iniciei-te no meu mundo gay. 
Não ouvi resposta, depois o Carlos continuou:
- Sabes, o me assustava era quando te via os olhos tristes, isso deixava-me agoniado! Foi um período sofrido para mim, nunca tinha experimentado algo semelhante, tive os homens que quis, as mulheres que quis. Como tenho dinheiro e posição social, não foi difícil.  De repente tu chegaste e  alteraste os meus planos.  Às vezes os teus silêncios ainda me desconcertam. 
- Sou de silêncios,  sou introvertido, sou assim Carlos, mas sou-te fiel, quero muito continuar contigo, sem a Alice entre nós.  
- Isso quer dizer o quê? 
- Carlos, é simples, demasiada Alice. Não suporto as gargalhadinhas eufóricas para te agradar, nem os olhares de esguelha com o intuito de se inteirar se olhas para mim ou para ela, constantemente a fazer-se presente, convida-se para estar connosco, a passar à minha frente, como se fosse quase  invisível. Ela é tua amiga. Entendes? Não tenho paciência para este tipo de situações. 
- Devo-lhe muito, ela foi, uma grande amiga, uma namorada, uma irmã, uma mãe, no entanto, compreendo-te. 
- Tens uma dívida de gratidão para com ela, isso não faz de ti refém. Coloca-lhe limites. 
- Compreendo , mas custa-me...
- A mim também me custa ...
Alguém antecipou-se a mim e tocou a  campainha, antes de descer os degraus da escada, voltei-me para saciar a minha curiosidade. Consegui observar que um olhava numa direção e o outro, noutra direção.