A viagem fez-se comigo dentro, sem ter visto ninguém, tendo pressentido apenas sombras. As conversas iam e vinham num fluxo ininteligível e monocórdio. Não era o sono que me agrilhoava. Era uma tristeza funda que me prendia. A meio da tarde, para lá do meio da vida, imaginava se tivesse aceite os convites para partir e tentar a sorte além fronteiras. Aconteceram propostas decentes e outras menos decentes. Nem umas, nem outras. Declinei uma por uma. Que vida teria? Como seria o meu quotidiano? Em quem me transformaria? Adaptar-me-ia às novas circunstâncias ? Que gentes e conhecimentos iria adquirir? Arrepender-me-ia mais tarde? Naquela altura havia dentro de mim muito receio, pavor do desconhecido. Hoje, agora, penso como seria importante para mim se ao menos tivesse tentado. Nesse tempo, a família estava viva e boa saúde e alguns até já se tinham emancipado, alguns casado ou seguiram outros caminhos, outras estradas, eu fui ficando. Não era nenhum drama, compensavam as visitas periódicas. Também naquele altura, os valores eram outros que com o passar do tempo se desfizeram, passaram de prazo. No meu tempo já havia filhos tornados reféns dos pais que cresciam no banco de trás do carro, sem nenhuma liberdade mas sem sinal de ecrãns viciantes, havia tempo para pensar, para refletir sobre o sentido da vida. Infelizmente era eu com os meus receios. Uma alma paralítica, paralisada fruto de construções periclitantes, frágeis e quem muito vacila e hesita não chega a lado nenhum. O enlace do cordão umbilical permaneceu a vida toda. No entanto, não lamento nada. Sei que deveria acontecer um afastamento e um regresso. Não tive ânimo para dar o salto. Deixei-me vencer pelos fantasmas. Inconscientemente boicotei-me por dentro criando impossíveis, para deste modo justificar a falha em atender aos chamados. As grandes alterações assustam, mexe-se numa pedra e todas as outras rolam. A tendência é não tocar, porque ao correrem vão provocar ruído, desorganizar o que se dá como arrumado e intocável, os sons perturbam mentes que se assustam facilmente , preferem que tudo permaneça igual e estático. Também há gente medrosa que se manifesta de forma contrária ao que os maxilares audazes e perspicazes expressam. De qualquer forma, não fui mas encontrei formas de cavar túneis e pontes com acesso ao lado de lá. Houve muita correspondência trocada que me enriqueceu como pessoa.
Pela janela, reparei na montanha densa de nevoeiro compacto a resvalar das serras para a parte sul, precipitando-se de forma rala sobre a cidade, a desvanecer lentamente. Esta imagem remeteu-me para um dia em que choveu torrencialmente, desde as três horas da tarde , com algumas pausas breves que mal se notaram e depois continou sem cessar , quando eram dezoite e vinte tomei a real consciência do que se estava a passar lá fora, um dia de inverno incomum e invulgar. A escuridão, as luzes emanando reflexos embaciados. Subi de uma rua para outra para conseguir um refúgio, parei e o meu guarda chuva soava a um toldo encharcado. O consolo eram as lojas abertas mas havia no ar uma inquietação, um desassossego nas pessoas que entravam e saíam a correr. A água parecia querer infiltrar-se pelos poros, tomar de assalto os músculos , chegar aos ossos e encher a corrente sanguínea. Tinha-se tornado assustador. O trânsito automóvel lento, demasiado lento, mexia com o sistema nervoso. Os canteiros das flores transbordavam, até parecia que a força da água queria arrancar as flores pela raíz. Comecei a ligar para os meus contatos, todos indisponíveis. Recolhi-me à porta de uma das lojas, depois vi que se tratava de antiguidades, entretanto para disfarçar o nervosismo, eu e a dona, uma senhora atraente com olhos sorridentes ainda trocamos alguma conversa. Mostrou-se simpática e amável e também ela preocupada comigo, procurou estabelecer ligação com os seus contatos. Após várias tentativas infrutíferas, lá conseguiu que um primo taxista viesse, no entanto, devido aos caos instalado, teria de esperar.
E aguardei, não sei quanto tempo, um tempo interminável, a chuva não dava tréguas, a dona da loja inquieta por mim, pelo primo que se atrasava, olhava para a rua apreensiva ...de seguida, colocava-se atrás do balcão, atendia um ou outro cliente mais corajoso , indiferente a toda a agitação violenta que se desenrolava, logo a seguir dirijia-me a palavra, tentando animar: Não se preocupe, o meu primo está quase a chegar e já a leva a casa, porém , a minha casa ficava longe dali e isso agoniava-me. Quando finalmente escutei umas quantas buzinadelas , cheguei-me à porta. Devia ser ele, a dona da loja confirmou, corra, disse ela, ainda tive tempo de me voltar e agradecer convenientemente o favor e a gentileza, tinha sido um anjo, de outra forma não sei como voltaria . Quando entrei no taxi cumprimentei o primo da dona da loja e foi aí que entrei em estado de grande perturbação. Através dos vidros fortemente embaciados, uma escuridão de bréu e água a fustigar as vidraças, não distinguia por onde passava, as ruas familiares, agora irreconhecíveis, o taxi seguia em marcha lenta, apenas percebia as luzes trémulas e pouco nítida dos faróis, reflexos no meio do nada, as claridades das ruas as luzes dos prédios. O meu coração tremia, por não ter referências exteriores. O que apaziguava era a voz tranquila do motorista, descrevia sem lamentações ruidosas o quanto fora difícil chegar à loja, o estado das estradas, das ruas, os carros numa grande confusão. À medida que seguia menos pontos de referência se avistavam. Quando finalmente entrámos na via rápida, fiquei alarmada, a chuva deu lugar ao nevoeiro cerrado, continuei cega. Só notava o automóvel da frente pela luz fraca dos faróis. Por fim, cheguei, destranquei a porta da rua e subi as escadas do edifício numa corrida, tanto quanto as forças me permitiam. Que grande alívio entrar em casa. Fui a uma das janelas , pela vidraça avistei um fumo branco como uma cortina , impedia de ver os prédios da frente. Que sensação estranha. Um cenário irreal como se lá fora não existisse nada e até eu própria pertencesse a um mundo suspenso e inexistente.