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22 agosto 2014






Parábola das mãos




Esta mão pega num fruto,
A outra afasta-o.
Uma mão recebe o falcão, tira uma luva,
A outra afugenta-o, pega numa tocha.
Uma mão escreve cartas de amor
Que a sua equívoca siamesa enche de injúrias.
Uma mão bendiz, a outra ameaça.
Uma desenha um cavalo,
A outra, um puma que o assusta.
Pinta um lago a mão direita:
Afoga-o num rio de tinta, a esquerda.
Uma mão desenha a palavra pássaro,
A outra escreve a sua jaula.
Há uma mão de luz que constrói escadas,
Uma sombra que solta degraus.
Mas chega a noite. Chega
Quando cansadas de se agredir
Fazem trégua na sua guerra
Porque procuram o teu corpo.







Juan Manuel Roca





13 junho 2014


[ festeja hoje cento e vinte e seis risonhas primaveras fernando antónio, um dos inúmeros irmãos pessoa ]









Os cinco enterros de Pessoa






Poucas vezes sucede
Que ao morrer um poeta
Sejam necessários cinco caixões.
Como poucas vezes sucede
Que um poeta seja morada
Para que nele vivam,
Para que trabalham à sua vontade
E durmam quando quiserem,
Sem pagar renda,
Sem ameaças do senhorio,
Outros 4 poetas.
Ao enterro de Pessoa
Foram com sigilo,
Tal como viveram.
Nunca protestaram
Contra a estreiteza da sua moradia,
Esse peculiar viver dentro da gabardina.
Mas não desejariam mais espaço
Agora, na rigidez das formas?
Não se viu Pessoa em tertúlia
Com os seus 4 fantasmas cardinais.
Não se viu em grupo
A caminho da tabacaria,
Partilhando viuvezes.
Pessoa e os seus compadres.
E essa forma
De não se deixarem ver nos espelhos.









Juan Manuel Roca








28 maio 2014







Anti-Odisseia






Esta sou eu, Penélope, a insubmissa
Que se nega a desfazer o já tecido,
Uma mulher só
Que penteia nas noites os seus cabelos.
Na ondulação da minha negra cabeleira
Sinto que Ulisses se afasta, se afasta sem remédio.
Não voltes, velho impostor,
Não voltes a Ítaca,
À derrubada casa onde o teu filho
E o teu cão, o teu arco e a tua mulher
Se cansam de esperas e vigílias.
Deixa-te ficar nas margens do leito de Calipso, Rei do Nada.
Deixa-te ficar engolindo os lótus, habitando o esquecimento.










Juan Manuel Roca










[ necessariamente, para a anita ]

08 maio 2014








Arte do tempo






O tempo permanece
Apanhado entre os livros.
Por este prodígio de apreensão,
Heraclito continua a banhar-se
No mesmo rio,
Na mesma página.
Tu continuarás para sempre
Nua no meu poema.









Juan Manuel Roca










04 abril 2014









O que acontece no poema







Neste poema
Entra um gato perseguindo uma trança
E trepa a um armário.
Há um homem que derrama nas almofadas do sonho
Um frasco azul de negra tinta-da-china.
Entra um cão vermelho como se fosse um quadro de Gauguin.
Neste poema, um matemático louco
Conta num ábaco o número de mortos
Recenseados no ano da peste.
A desejada mulher da venda de toranjas
Despe-se e baila a dança do ventre
À volta da minha mesa cheia de papéis.
Entre os rectilíneos carris do poema
Há um tesouro prestes a ser encontrado,
Um milagre quase a acontecer.
Neste poema regressam ao país os desterrados.










Juan Manuel Roca