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27/02/11

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"Avesso Bíblico"
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No início,
já havia tudo.
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Mas Deus era cego
e, perante tanto tudo,
o que ele viu foi o Nada.
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Deus tocou a água
e acreditou ter criado o oceano.
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Tocou o chão
e pensou que a terra nascia sob os seus pés.
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E quando a si mesmo se tocou
ele se achou o centro do Universo.
E se julgou divino.
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Estava criado o Homem.
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Mia Couto in "idades cidades divindades", Editorial Caminho, Lisboa, 2007, p 105.
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"Doença"
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O médico serenou Juca Poeira.
Que ele já não padecia da doença
que ali o trouxera em tempos.
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E o doutor disse o nome
da falecida enfermidade:
"Arritmia paroxística supra-ventricular"
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Juca escutou, em silêncio,
com pesar de quem recebe condenação.
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As mãos cruzadas no colo
diziam da resignada aceitação.
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Por fim, venceu o pudor
e pediu ao médico
que lhe devolvesse a doença.
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Que ele jamais tivera
nada tão belo em toda a sua vida.
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Mia Couto in "idades cidades divindades" Editorial Caminho, Lisboa, 2007, p 48.
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"Ourogulho"
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Nunca pedi.
Sempre me perdi.
Na eminência do triunfo
eu me esqueci de vencer.
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Onde havia escada
eu me furtei ao degrau
preferi o nada
a subir de grau.
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Outros são donos,
donos de nomes, títulos
brilhos, proezas e luzes.
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Eu, quando sou eu,
é apenas por distracção.
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E apenas
para ser ninguém
me sobeja a vocação.
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Mia Couto in "idades cidades divindades", Editorial Caminho, Lisboa, 2007, p 36.
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