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domingo, 18 de outubro de 2009

O VIBRAFONISTA QUE PERDEU AS GRAÇAS DO JAZZ


O garotinho esperto e atento tinha apenas cinco anos quando foi assistir, juntamente com os pais, a uma apresentação de Lionel Hampton. Terminado o concerto, o vibrafonista, que à época comandava uma das mais festejadas orquestras do jazz, presenteou o pequeno com um par de mallets (“baqueta em cuja extremidade há uma forração em tecido, normalmente feltro, gerando um som assurdinado à percussão da bateria e também usado na percussão do vibrafone, xilofone e tímpano”, conforme ensina o mestre Mario Jorge Jacques – in: Glossário do Jazz. Ed. Biblioteca 24x7, São Paulo, p. 310).

O nome do garoto era Roy Ayers e alguns poucos anos depois ele próprio se tornaria um dos mais importantes vibrafonistas da Costa Oeste. Esse músico nascido em Los Angeles no dia 10 de setembro de 1940, tem uma história de vida curiosa: nasceu em uma família altamente musical (a mãe era professora de piano e o pai era trombonista) e embora o presente de Hampton tenha, de alguma forma, definido a sua trajetória musical, somente aos 17 anos Ayers começou o aprendizado do vibrafone.

Antes disso, aprendera piano com a mãe e continuara a educação formal na Thomas Jefferson High School (onde estudaram, entre outros, Dexter Gordon, Art Farmer e Ed Thigpen). Também tocava guitarra, flauta, trompete e bateria. Outra curiosidade é que a suas maiores influências musicais, no vibrafone, são o estiloso Milt Jackson e o versátil Bobby Hutcherson, de quem foi aluno nos anos 60.

Não demorou muito para que o talentoso garoto, criado na área de South Central, reduto da música negra de Los Angeles, se estabelecesse como um dos mais completos e talentosos vibrafonistas da costa oeste. Profundo conhecedor do idioma jazzístico e da música negra em geral, o jovem Ayers, durante a década de 60, tocou com Teddy Edwards, Curtis Amy, Chico Hamilton, Jack Wilson, Hampton Hawes, Phineas Newborn e Leroy Vinnegar.

Entre 1965 e 1966, Ayers integrou a orquestra de Gerald Wilson e entre 1966 e 1970, graças a uma indicação do baixista Reggie Workman, foi convidado a integrar o grupo do flautista Herbbie Mann. Com este, Roy gravou diversos discos e excursionou, virtualmente, pelo mundo inteiro. Além disso, o vibrafonista mudou-se para Nova Iorque, fato que teve grande impacto sobre a sua carreira e sobre a sua forma de encarar a música.

Três anos antes de se reunir a Mann, Ayers gravou talvez o seu melhor álbum de jazz, chamado simplesmente de “West Coast Vibes” (United Artists). Gravado durante o mês de julho de 1963 e produzido pelo crítico Leonard Feather, o álbum foi o primeiro de Ayers como líder e contou com as presenças de Jack Wilson (piano), Bill Plumber ou Vic Gaskin (baixo) e Tony Bazley ou Kenny Dennis (bateria), além da participação de Curtis Amy (sax tenor e soprano) em algumas faixas.

Trata-se de um disco soberbo, com um líder capaz de transitar com igual desenvoltura por todas as correntes do jazz (bebop, hard bop, West Coast, soul jazz e até avant-garde), sem esquecer a influência do blues, do R&B e de outras manifestações da música negra norte-americana. Esse intimidade transparece logo na faixa de abertura, “Sound And Sense”, uma composição do próprio Ayers, com um pé fincado no blues e o outro na soul music, com direito a solos estonteantes de Curtis Amy, que participa apenas de cinco faixas. Amy, diga-se de passagem, é um dos grandes responsáveis pela sonoridade incomum do álbum – seu sopro é viril e agressivo nas faixas mais funky e extremamente melodioso nos temas mais relaxados.

Esse saxofonista texano é uma espécie de unsung hero do jazz, diretor musical da banda de Ray Charles por muitos anos e capaz de tocar com jazzistas de escol como Onzy Matthews, Gerald Wilson, Frank Strazzeri, Bobby Hutcherson, Victor Feldman e Kenny Barron, ao tempo em que emprestava o seu talento e sua versatilidade para astros da música pop como The Doors, Marvin Gaye, Carole King e Art Garfunkel.

Grandes momentos também nas releituras tipicamente west coaster dos standards “Days Of Wine And Roses”, de Henry Mancini e Johnny Mercer, e “It Could Happen To You”, de Johnny Burke e Jimmy Van Heusen. Em ambas, destacam-se a fluidez do vibrafone de Ayers, pagando tributo ao mestre Milt Jackson, e o piano swingante e inventivo de Wilson, habitualmente um pianista reservado e econômico (daí porque é reconhecido como um dos mais completos acompanhantes da história do jazz).

Em “Reggie Of Chester”, de Benny Golson, e “Donna Lee”, de Charlie Parker, quem dá o tom é o bom e velho bebop. Na primeira, Amy imprime um colorido todo especial às harmonias dardejantes concebidas por Golson, produzindo um solo extraordinário. Na segunda, a presença iluminada de Bags e Powell conduz as atuações de Ayers e Wilson, cada um mais audacioso e cheio de idéias que o outro.

“Ricardo's Dilemma”, também composta por Ayers, é outro momento sublime – seu andamento é tipicamente uma valsa, mas com elementos de blues, lembrando os melhores momentos da third stream feita por craques como Modern Jazz Quartet e Dave Brubeck. O elegante sax soprano de Amy, aliado ao solo devastador de Bill Plumber, são dois pontos altos desse tema, mas é o solo etéreo e altamente complexo de Wilson quem merece as maiores loas.

O produtor Leonard Feather contribui com a balada “Romeo” e Wilson, exercitando seu lado composicional, presenteia Ayers com a funky “Out Of Sight”. A abordagem extremamente moderna desta última, sobretudo por conta das intervenções de Amy, lembra as intrincadas viagens sonoras que Coltrane e o seu quarteto estavam fazendo á época. Um tema arrojado e cheio de alternâncias harmônicas, no qual Ayers pode exibir toda a sua habilidade e capacidade de improvisação, com grandes momentos também do suporte rítmico proposto por Bazley e Plumber.

Mais um standard, “Young And Foolish”, onde sobressai o vibrafone delicado de Ayers, e uma releitura deliciosa de “Well You Needn't”, de Thelonious Monk encerram o set do disco original. Duas faixas bônus (“Now's The Time” e “Perhaps/Cool Blues”, ambas de Charlie Parker e extraídas do álbum “Vi Redd's Bird Call”, de 1962), complementam o cd. Em ambas, Roy Ayers (vibrafone), Vi Redd (sax alto e vocais), Carmell Jones (trompete), Russ Freeman (piano), Leroy Vinnegar (baixo) e Richie Goldberg (bateria) compõem o time.

Em 1970, já estabelecido em Nova Iorque, Ayers se lançou em uma bem sucedida carreira solo, abandonando o jazz tradicional em prol de uma linguagem calcada no fusion, na soul music, no funk e no R&B. Fundou a banda Ubiquity, por onde passaram nomes como Ron Carter, Sonny Fortune, Dee Dee Bridgewater, Billy Cobham, Omar Hakim e Alphonse Mouzon. Compôs hits que alcançaram o topo das paradas de R&B, como “You Send Me”, “Everybody Loves the Sunshine” e “Running Away”.

Ainda nos anos 70, Ayers compôs trilhas para o cinema, como a do filme “Coffy”, clássico da chamada blaxploitation, estrelado por Pam Grier. Em 1979, excursionou com o multiinstrumentista Nigeriano Fela Kuti (com quem gravaria o disco “Music Of Many Colors” no ano seguinte) e em 1981 lançou “Africa, Center Of The World”, álbum profundamente influenciado pelas experiências vividas no continente africano.

Chamado de “Padrinho do Acid Jazz”, suas composições foram sampleadas por diversos nomes dessa corrente, do R&B e até mesmo do rap, como Mary J. Blidge, A Tribe Called Quest, Dr. Dre, Madlib e Public Enemy. Em 1993 participou do projeto Jazzmatazz, ao lado do rapper Guru, além de ser presença constante em álbuns de artistas ligados ao rap, ao pop e ao R&B, como a banda Nuyorican Soul e as cantoras Vanessa Williams e Erycah Badu.

Seu envolvimento com outras vertentes da música negra implicou em um abandono quase que total ao jazz – Ayers participou de álbuns do ex-patrão Herbbie Mann e de James Moody e chegou a gravar alguns disco no clube Ronnie Scot’s, nos anos 90 – mas sua discografia e seus concertos são focados na música pop, com a habitual mistura de soul, funk e R&B. Se tal opção deu-lhe fama, dinheiro e, certamente, um público bastante numeroso, por outro lado “West Coast Vibes” demonstra que Roy é – e sempre foi – um músico talentoso e criativo. Infelizmente, tornou-se o vibrafonista que perdeu as graças do jazz – espera-se que não para sempre.


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