Em um texto chamado “O absurdo e o suicídio”, publicado no livro “O mito de Sísifo” (6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 17/23), Albert Camus discute, de forma bastante profunda, a questão do suicídio e de todas as suas implicações. Para Camus, “só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da Filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois”. Segundo ele, “matar-se, em certo sentido, e como no melodrama, é confessar”.
Definido pelo escritor franco-argelino como “o gesto definitivo” ou o “percurso sutil em que o espírito apostou na morte”, o suicídio é a mais completa e irrevogável forma de renúncia: o suicida, movido por seja lá qual motivo, renuncia à própria vida. Este ato extremo sempre despertou enorme preocupação no âmbito da literatura, da psicologia, da sociologia, da psiquiatria e da filosofia. O sociólogo francês Émile Durkheim buscou as motivações sociais que impelem alguém ao suicídio. O filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard encarava o suicídio como uma tentativa de escapar aos flagelos morais originados pelo desespero, a angústia causada pela sensação de finitude inerente ao homem.
Johann Wolfgang von Goethe provocou comoção entre a juventude européia, ao publicar, em 1774, “Os sofrimentos do jovem Werther”. O livro relata as desventuras amorosas do protagonista e sua paixão impossível pela bela Charlotte. O romance não correspondido consome a alma do atormentado Werther e este acaba por ceifar a própria vida. Além de projetar o nome do seu autor como um dos mais importantes da literatura alemã, consta que o livro desencadeou uma verdadeira onda de suicídios pela Europa e chegou a ser proibido na Dinamarca. Não era incomum encontrar em cartas de jovens suicidas, inspirados pelo taciturno Werther, transcrições de trechos do livro.
Para outro alemão, o filósofo Arthur Schopenhauer, o suicídio decorre de uma insatisfação profunda com a própria vida, de uma impossibilidade de consumar a vontade de viver em sua plenitude. No clássico “O mundo como vontade e como representação” (São Paulo: UNESP, 2005, p. 504), o filósofo do pessimismo revela o paradoxo crucial de quem põe fim à própria vida: “O suicida quer a vida; porém está insatisfeito com as condições sob as quais vive. Quando destrói o fenômeno individual ele, de maneira alguma, renuncia à Vontade de vida, mas tão-somente à vida. Ele ainda quer a vida, quer a existência e a afirmação sem obstáculos do corpo, porém, como a combinação das circunstâncias não o permite, o resultado é um grande sofrimento”.
Ninguém consegue ter uma explicação exata para o fenômeno, nem as religiões e nem a ciência. O suicídio continua a desafiar a curiosidade humana e a causar perplexidade, reverberando em nossa cabeça, todas as vezes que somos informados que alguém cometeu “o gesto definitivo”. No universo jazz, alguns músicos fizeram a opção pela morte, como os trombonistas J. J. Johnson e Frank Rosolino. Ambos construíram carreiras brilhantes e, ainda em vida, mereceram um reconhecimento à altura dos respectivos talentos. O mesmo não se deu com o engenhoso Sonny Criss, que permanece, até hoje, envolto em uma injustificável obscuridade.
O olhar lançado por William “Sonny” Criss na capa do álbum “This Is Criss” diz muito acerca da sua personalidade. Tímido e reservado, não era dado a muitas palavras e preferia se comunicar por meio da música. O temperamento arredio e introspectivo escondia um músico de enorme talento e versatilidade, e até hoje o seu suicídio, ocorrido em 1977, é lamentado pelos fãs do jazz. Embora não possa ser considerado um inovador, foi certamente um dos mais notáveis discípulos de Charlie Parker.
Em seus cinquenta anos de vida, construiu uma obra honesta e de muita personalidade, que lhe assegura um lugar de honra no panteão dos grandes músicos do jazz. O reconhecimento, todavia, é inversamente proporcional à grandeza de sua obra e à sua importância como intérprete, arranjador e compositor. Passados mais de trinta anos de sua morte, é imperioso conhecer um pouco mais da vida e da carreira desse grande altoísta e fazer justiça ao seu valioso legado musical.
Ele nasceu no dia 23 de outubro de 1927, em Memphis, Tennessee, e até os 15 ano, embora costumasse ouvir música e assistir a concertos em sua cidade natal, não havia demonstrado nenhuma aptidão musical especial. Em 1942 a família se mudou para Los Angeles, e foi ali que o jovem deu os primeiros passos no saxofone alto, ainda no colegial. Sua primeira grande influência foi Benny Carter, logo substituído em seus afetos pelo mago Parker, herói de dez entre dez jovens aspirantes a saxofonista dos anos 40. Suas primeiras experiências profissionais foram em bandas de R&B locais.
Aos 19 anos, Criss chamou a atenção do trompetista Howard McGhee e juntou-se à sua banda, onde teve a honra de conhecer pessoalmente – e tocar com – o ídolo Charlie Parker, dentre outros grandes nomes do bebop da Costa Oeste, como os tenoristas Teddy Edwards e Dexter Gordon e o baixista Charles Mingus. Em seguida, tocou com o vibrafonista Johnny Otis e com o trompetista Al Killian, integrou a orquestra do bandleader Gerald Wilson e entre 1950 e 1951 acompanhou o cantor Billy Eckstine.
No terço final da década de 40, participou de vários concertos promovidos pelo produtor Gene Norman, em um projeto chamado “Just Jazz”, acompanhando o patrão Howard McGhee, além de astros em ascensão como Stan Getz e Wardell Gray. Também tomou parte em vários concertos do projeto Jazz At The Philarmonics, organizados pelo empresário Norman Granz, o que lhe permitiu tocar com astros do quilate de Coleman Hawkins, Benny Green e Fats Navarro, além de ter lhe dado alguma visibilidade.
Esteve na orquestra de Stan Kenton em 1955 e, no ano seguinte, foi chamado a integrar o quarteto do baterista Buddy Rich. Sonny também acompanhou diversos músicos importantes, como Joe Newman, Eddie “Lockjaw” Davis, Chet Baker, Howard Rumsey, Dexter Gordon, Dodo Marmarosa, Hampton Hawes, Kenny Clarke, Memphis Slim, Plip Philips, Vince Guaraldi, Lawrence Marable, Lou Rawls e muitos outros.
Com sua reputação se firmando no meio jazzístico, o pequeno selo novaiorquino Imperial Records decidiu contratá-lo, em 1956. Álbuns como “Jazz in USA”, “Go Man” e “Sonny Criss Plays Cole Porter”, que contam com as participações de figuras como Sonny Clark, Kenny Drew, Barney Kessel e Leroy Vinnegar, são considerados pequenas obras-primas do bebop e dão uma inequívoca demonstração das habilidades do saxofonista. “West Coast Blues”, inccluída no album “Go Man” chegou a fazer algum sucesso nas rádios de R&B, mas a repercussão de seu trabalho foi bastante modesta. Esses discos foram reunidos em uma coletânea de 2 cds e relançados em 2000 pela Blue Note, com o título “The Complete Imperial Sessions”.
Entre 1962 e 1965, resolveu tentar a vida na Europa e fixou-se em Paris, onde foi muito bem recebido e tocou com grandes nomes do jazz francês, como o pianista Georges Arvanitas e o guitarrista René Thomas, tendo lançado alguns álbuns pela série Jazz In Paris, da gravadora Gitanes. Apresentou-se em diversos países do continente europeu, como Alemanha, Bélgica e Suíça, e tocou com vários músicos norte-americanos ali estabelecidos, como Kenny Drew, Johnny Griffin e Kenny Clarke, mas a saudade falou mais alto e ele decidiu retornar
De volta aos Estados Unidos, tocou com o bandleader Onzy Matthews, até ser contratado pela Prestige, em 1966, o que motivou sua mudança para Nova Iorque. Na gravadora fundada por Bob Weinstock, Criss lançou alguns dos melhores álbuns de sua carreira e teve a oportunidade de ser acompanhado por astros como Bob Cranshaw, Hampton Hawes, Monty Budwig, Shelly Manne, Cedar Walton, Tal Farlow, Conte Candoli, Ray Draper, Tommy Flanagan e Al McKibbon, entre outros.
Um desses discos é o excelente “This Is Criss!”, gravado no dia 21 de outubro de 1966, com produção de Don Schlitten, onde o saxofonista está acompanhado pelos superlativos Walter Davis Jr. (piano), Paul Chambers (contrabaixo) e Alan Dawson (bateria). “Black Coffee”, de Sonny Burke e Paul Francis Webster, abre o álbum com uma poderosa conjugação de sensibilidade e paixão, em uma interpretação magnética e encharcada de blues. Destaque para o piano sombrio de Davis e para as fabulosas harmonias costuradas pelo líder.
O sopro luminoso de Criss casa com perfeição com o clima alegre de “Days of Wine and Roses”, gema da ourivesaria de Henry Mancini, que aqui ganha uma roupagem colorida e mais acelerada que o habitual. O entrosamento da sessão rítmica é tamanho que Sonny não tem qualquer dificuldade em soltar a sua prodigiosa imaginação, em solos delirantemente belos.
“When Sunny Gets Blue” é outra imersão no blues, mas este se apresenta revestido de uma ternura sem par. A abordagem do quarteto é leve, mas não desprovida de emotividade. Criss e Davis dialogam no idioma da sensibilidade, enternecendo o ouvinte com delicadeza e frescor. Chambers, que até então vinha se mantendo bastante discreto, brilha em um solo veemente e de enorme precisão.
Davis mostra o seu conhecido talento como compositor com a trepidante “Greasy”, na melhor tradição do soul jazz feito por Cannonball Adderley. O trabalho de Dawson, verdadeiro dínamo rítmico, se sobressai tanto quanto a fluidez do líder, solista de enormes recursos e dono de uma criatividade aparentemente ilimitada. Groove de primeira, com Chambers atuando com a robustez de sempre.
A melancólica “Sunrise, Sunset”, extraída do musical “Fiddler on the Roof”, é uma valsa que exige total entrosamento do grupo. O tema vai sendo sobreposto pelos instrumentos, como uma delicada cortina de sons. Mais uma vez, piano e saxofone dialogam com intensidade, em um crescendo dramático que somente realça as qualidades da melodia.
“Steve's Blues”, de autoria do líder, é a faixa mais energética e intrigante do álbum. Bebop sorrateiro e de aparente simplicidade, vai ganhando corpo à medida em que os executantes vão abandonando o tema e mergulhando no improviso. Os solos de Dawson e do líder são nada menos que arrebatadores, mas o destaque é Davis. Lançando mão de uma sonoridade absolutamente contemporânea e arrojada, o pianista toma emprestados elementos do free jazz de Cecil Taylor, abusando das dissonâncias e acordes desconexos, mas suas idéias se concatenam de tal maneira que é impossível ficar indiferente a um discurso melódico de tamanha inquietude.
Uma das mais belas composições do pianista Hoagy Carmichael, “Skylark” está entre os standards mais gravados pelos músicos de jazz. A versão do quarteto não traz grandes novidades, mas se situa em um patamar bem acima do meramente correto. Criss, mais uma vez, brilha nos improvisos e imprime distinção e elegância ao tema.
Para encerrar, “Love For Sale”, de Cole Porter, ganha uma versão acelerada e bastante robusta. O piano de Davis carrega nas tintas do blues, fazendo o contraponto perfeito à vigorosa interpretação do líder, muito bem arrimada na tradição bop. O trepidante Dawson, com um trabalho de pratos soberbo, e Chambers, usando o arco em seu solo fenomenal, merecem ser ouvidos com atenção redobrada. Um disco primoroso e que representa, como poucos, uma preciosa síntese da obra de Criss.
Em 1968, graças à boa repercussão dos seus discos junto à crítica especializada, o saxofonista foi agraciado com um prêmio especial da revista Down Beat (Talent Deserving Of Wider Recognition) e brilhou na edição daquele ano do tradicionalíssimo Newport Jazz Festival. Mas as perspectivas de sucesso, que se afiguravam auspiciosas, não se confirmaram e ele retornou a Los Angeles, no inicio dos anos 70.
Sem contrato com nenhuma gravadora e com poucas oportunidades de trabalho, Criss sobrevivia, basicamente, de dar aulas em escolas da região de Los Angeles e de apresentações em clubes da cidade. Apesar das adversidades e demonstrando possuir um espírito solidário, manteve uma discreta militância social, auxiliando na recuperação de dependentes químicos e ministrando palestras em escolas, universidades e centros de reabilitação – ele próprio havia enfrentado e vencido o alcoolismo há alguns anos.
Continuou a liderar seus próprios grupos e a atuar como freelancer, gravando com Esther Philips e com o velho amigo Hampton Hawes. Em 1974, fez uma nova tentativa de se estabelecer na França. Desta feita, a receptividade a seu trabalho foi bem menor e ele retornou aos Estados Unidos no mesmo ano. Algumas de suas últimas performances foram uma apresentação no Festival de Monterey, acompanhando o espetacular Dizzy Gillespie, e a participação no Beale Street Music Festival, em Memphis, ao lado do Rei do Blues B. B. King, ambas em 1977.
Sua discografia é bastante rarefeita e mal chega a 20 álbuns. Além da Imperial e da Prestige, ele gravou basicamente para selos independentes, como Peacock Records, Liberty, Savoy, Muse, 32 Jazz e Xanadu. Todavia, seus últimos álbuns foram lançados por gravadoras importantes – “Warm & Sonny”, para a MCA e “The Joy Of Sax”, para a Impulse, ambos de 1976 – e demonstram uma maior preocupação comercial.
Neles, Sonny mesclava um repertório tipicamente jazzístico, como temas de Oliver Nelson, Sonny Clark ou Wes Montgomery, com sucessos da música pop, como “You’ve Lost That Lovin’ Feeling”, “You Are So Beautifil” ou “The Way We Were”. Bem produzidos e contando com a participação de músicos respeitáveis, como os saxofonistas Buddy Collette e Ernie Watts, o trompetista Blue Mitchell e o guitarrista Dennis Budimir, os discos tiveram uma recepção morna perante a crítica e os fãs de jazz, embora tenham ajudado trazer Criss de volta aos holofotes.
Contudo, o saxofonista não chegaria a desfrutar da popularidade que esses discos poderiam lhe granjear. No dia 19 de novembro de 1977, o músico, que sofria de câncer no estômago em estágio avançado, matou-se com um tiro. A família atribuiu o gesto extremo às dores insuportáveis que a doença lhe impunha e à completa impossibilidade de cura.
O mais triste é que em poucos dias ele deveria partir para uma excursão no Japão, que poderia mudar-lhe os rumos da carreira e levá-lo a um outro patamar de popularidade. Mas os seus álbuns, especialmente aqueles lançados pela Prestige – relançados em cd pela OJC – estão à disposição do ouvinte e servem de consolo a uma perda tão traumática e prematura.
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