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segunda-feira, novembro 23, 2009

"A Invasão Aldebaranesa", de Stanislaw Lem



Eu gosto (muito) de ficção científica. Um dos meus autores preferidos é polaco: Stanislaw Lem.

Talvez o conheçam. Se não da literatura, pelo menos do cinema. Foi ele quem escreveu Solaris, um magnífico livro adaptado depois, em duas ocasiões, por Andrei Tarkovski (ver aqui), e por Steven Sodebergh (informação aqui).


Stanislaw Lem escreveu, também, algumas (enfim, muitas...) "short stories". Julgo eu que não tão boas quanto o já mencionado Solaris ou o Memórias Encontradas numa Banheira - mas, ainda assim, muito interessantes.


Neste caso, estou a referir-me a "A Invasão Aldebaranesa", publicado no volume 113 da colecção policial/FC da Caminho.

A história é mais ou menos esta.

Uma civilização "aldebaranesa" (de Aldebarã, entenda-se) anda à procura de planetas para conquistar e explorar. Interessam-se pelo nosso cantinho (a que chamamos Terra), porque tem um nível de desenvolvimento já aceitável mas não preocupante: seríamos, pois, bons escravos.
Confiantes na sua superioridade, enviam ao noso planeta dois emissários, para preparar terreno. Eles chamam-se NGTRX e PVGDRK.Mas as coisas não lhes vão correr bem e... Enfim, eu não quero estragar a surpresa. Procurem o livro, se etiverem interessados.
Aqui fica um excerto:



«Qualquer coisa que gemia e oscilava violentamente, ora curvando-se, ora erguendo-se, vinha atrás deles. Dir-se-ia uma grande criatura corcunda, de cabeça achatada. Sobre a bossa agitava-se uma espécia de pele flutuante.
- Escuta, não será o Sinctium? - disse NGTRX muito excitado.
A massa negra estava precisamente a ultrapassá-los. Pareceu-lhes aperceber rodas que se agitavam furiosamente como as de uma máquina extraordinária. Preparavam-se para se colocarem em posição de ataque quando ondas de magma projectadas no ar os inundaram. Aturdidos, encharcados dos tentáculos inferiores aos superiores, limparam-se o melhor que puderam e correram para o Telépato para saberem se os bramidos e os ronrons produzidos pelo engenho tinham um carácter articulado.
- Ruído de ritmo irregular de energo-rodopiante a hidrocarboneto e oxigénio primitivo, trabalhando em condições às quais não está adaptado - decifraram eles. Trocaram um olhar e PVGDRK disse:
- Estranho!
Reflectiu por instantes e, propenso a emitir hipóteses demasiado rápidas, acrescentou:
- Trata-se de uma civilização sadicoidal. Alimenta os seus instintos torturando as máquinas que ela própria criou.»



Como prometido, não vos conto o final da estória.


Mas digo-vos, muito inocentemente, que a imagem que ilustra este artigo é do site http://carbusters.org/

quarta-feira, outubro 21, 2009

Saramago versus Fundamentalismo Lusitano?


Estava eu aqui preocupado com a polémica criada à volta do novo livro do Prémio Nóbel (perdão, Nobel) português, José Saramago. E apetecia-me escrever sobre isso.

Mas vale a pena? Para quê - se a polémica é, afinal, pouco mais que uma tempestade num copo de água (mas que vai, certamente, ajudar a vender muitos livros)?

Saramago disse o que é óbvio: a Bíblia está repleta de cenas cruéis (o Antigo Testamento, então é, nesse aspecto, de bradar aos céus!). O Deus judaico-cristão é ele (ops... Ele) próprio, em muitos momentos, instigador (ou desculpabilizador, no mínimo) dessa violência.

A história de Abel e Caim (na qual se inspira o novo livro de Saramago) é disso um exemplo acabado.

E daí? Porquê tanto alarido?

Notícias sobre este caso na imprensa portuguesa:

(E apetece dizer, como Saramago citado pelo Diário Digital: «Há qualquer coisa de estranho neste país». Não apetece?...)

quarta-feira, setembro 02, 2009

Soeiro Pereira Gomes na Festa do Avante 2009


Soeiro Pereira Gomes é considerado um dos fundadores do neo-realismo "português". Mas não é "apenas" isso. Na Festa do Avante deste ano teremos a oportunidade de o (re)descobrir enquanto lutador pela liberdade. E, naturalmente, enquanto militante do PCP.
Espero que, também, como o grande escritor que - não obstante a reduzida extensão da sua obra - efectivamente, foi. Aliás, é: os grandes escritores nunca morrem!...
Sábado, às 16h45, no pavilhão "Festa do Livro", apresentação da obra de Soeiro Pereira Gomes, por Manuel Gusmão. Domingo, 15h30, no Café Concerto de Lisboa, debate "Soeiro Pereira Gomes, o Artista e o Partido, o Tempo e os Lugares", com Filipe Diniz, Manuel Augusto Araújo e Manuel Gusmão.
Texto e fotos do programa da Festa do Avante 2009

terça-feira, abril 14, 2009

No centenário de Soeiro Pereira Gomes


«Joaquim Soeiro Pereira Gomes (Gestaçô, 14 de Abril de 1909 - Lisboa, 5 de Dezembro de 1949) foi um dos grandes nomes do neo-realismo literário em Portugal.
Militante comunista, desenvolveu uma sensibilidade social muito grande, que se reflectiu no seu trabalho, onde está sempre presente a denúncia das desigualdades e das injustiças.
A sede nacional do Partido Comunista Português, em Lisboa, tem o seu nome (Edifício Soeiro Pereira Gomes), assim como a rua onde se situa.»
Fonte: Wikipédia

Principais obras: Esteiros (publicado em 1941) Engrenagem (publicado em 1951).
Sobre os livros, o autor e as personagens, escreve Raul M. Marques, num take da Agência Lusa:

«Um rio, o Tejo. Uma terra, Alhandra. Indissociável de ambos
(...)
Nunca ninguém antes, na literatura portuguesa, contou como Soeiro este rio, esta terra. Em dois romances: o rio em "Esteiros", um título maior do primeiro neo-realismo português, a terra em "Engrenagem".
"Engrenagem" é a história de uma localidade voltada para o campo e para o rio que uma fábrica vai transformar radicalmente, com pesadas consequências para gentes e ambiente. O modelo é Alhandra, no entanto nunca nomeada no livro."Esteiros", o livro, é a história de crianças que a pobreza condena ao trabalho, à mendicidade, ao abandono.
Esteiros são canais estreitos abertos pelo rio. "Minúsculos canais como dedos de mão espalmada", escreveu Soeiro. Do barro desses canais se alimentou, dos anos 30 até ao princípio dos anos 60, uma pequena indústria - de fabrico de tijolos e telhas. Nesses telhais, nos
meses quentes do Verão, trabalhavam centenas de homens - adultos e crianças -, pagos a salários de fome.
Esse mundo de trabalho violento, em condições de completa insalubridade, findou. Onde o rio foi senhor absoluto durante muitos anos, há agora o chão seguro de uma marginal, estátuas, palmeiras, praças.
Uma dessas praças tem o nome de Soeiro. Homenagem da terra a alguém que, nela não tendo nascido, a ela consagrou muito do seu saber, do seu trabalho de cidadão, de escritor e de militante nas fileiras do Partido Comunista. Nascido em Gestaçô em 1909, Soeiro fixou-se em Alhandra a partir de 1931. Trabalhou na Cimentos-Tejo, hoje Cimpor, e paralelamente desenvolveu uma intensa actividade de dinamização cultural ainda hoje lembrada e que se concretizou, por exemplo, na criação de bibliotecas populares nas sociedades recreativas, na construção de uma piscina.
Nessa piscina, anos mais tarde, formou-se como nadador de grandes distâncias, de fundo, "de águas abertas" - e nesse domínio foi campeão -, um dos humildes heróis de "Esteiros", Gineto, Baptista Pereira de seu nome. Também ele tem uma rua em Alhandra. Não longe da Praça Soeiro Pereira Gomes.»

sexta-feira, fevereiro 13, 2009

Literatura de cordel


Em Portugal, quando falamos de literatura de cordel estamos a referir-nos a literatura "barata", de má qualidade. Essa designação vem do século XVII, quando havia, efectivamente, uma literatura que era vendida na rua, em postos de distribuição nos quais as publicações eram apresentadas suspensas em fios - tipo estendal, estão a imaginar?

A "literatura de cordel" já não se publica hoje em Portugal. Dizendo melhor: transformou-se noutras coisas a que se chama, por exemplo, "literatura light" - mas já não se vende dependurada de uma guita (citando esse obscuro vate Affonso Gallo, num dos seus mais interessantes poemas). Se nos referirmos não ao conteúdo, mas à forma, podemos dizer que as publicações "de cordel" vieram a dar em fanzines - ou poezines, se forem zines de poesia (como, por exemplo, o Debaixo do Bulcão).

Infelizmente, em Portugal, até os fanzines estão a cair em desuso. Nos anos 80 havia muitos (incluindo zines literários, como o Ara Gris ou o Fragas - que são aqueles de que me lembro melhor). Nos anos 90 foram desaparecendo. Hoje não sei de nenhum (a não ser o bulcão).

Mas isto é em Portugal.

No Brasil, Literatura de Cordel é outra coisa, está bem viva e recomenda-se. E sim, escreve-se com maiúsculas: é um género literário, rimado e popular. É, em suma, o "cordel" tal como já existiu em terras lusas.

Exportado, de cá para lá, encontrou terreno fértil para se desenvolver no Estado da Bahia. E transformou-se numa rica e muito interessante literatura, de ressonâncias orais e intenções didáticas: em rimas simples, os cordelistas contam histórias (da "pequena História" e talvez mesmo da "grande") do Brasil (com maior incidência, como é natural, em casos do Nordeste
brasileiro), e explicam, de forma acessível, por exemplo "O ABC do HIV" (título de um "cordel" de Antonio Carlos de Oliveira Barreto, publicado por edições Akadicadikum) ou, noutros casos, transmitem tradições e lendas locais.

Amigos meus, do Teatro Fórum de Moura - que sabem que eu adoro estas coisas - foram lá, à Bahia, fazer umas actuações e tiveram a gentileza de não se esquecer de mim. Trouxeram-me uma boa mão-cheia de publicações de cordel - de autores que se chamam Gutenberg Santana (Seja bem vindo / A essa literatura / É istória de cordel / Um pouco da nossa cultura / É sobre Lima Barreto / Faça um bom proveito / E uma ótima leitura); Jotacê Freitas (Numa cidade qualquer / do interior da Bahia / existia uma mulher / que respirava alegria / vivia mostrando os dentes / era chamada galinha); Antônio Klévisson Viana (Sou um poeta do povo / Porta-voz da nossa gente / E quando escrevo um cordel / Quase sempre estou contente / Pois a poesia é um dom / Que Deus me meu de presente); Sérgio Bahialista (Salvador tem tanta coisa / Coisas boas e ruins / Entre as boas tem a nossa / Grande feira de São Joaquim / Tudo que se tem no mundo / tem lá do início ao fim); Antonio Carlos de Oliveira Barreto (Xô, doenças transmissíveis... / Veja que bela lição: / eu soube que Xerazade / não contou para o Sultão / que o recurso que ela tinha / era uma camisinha: / e adeus preocupação!).

Se os meus estimados leitores querem conhecer esta literatura de sabor tão popular (tão gostosa, digo eu), encontram referências à dita em sites como a Wikipédia, o Jornal Mundo Lusíada (brasileiro), ou numa página da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (e podem aceder a esses sites clicando nas palavras ou frases sublinhadas).

Se estão mesmo interessados, não deixem de visitar o site da Academia Brasileira de Literatura de Cordel:
http://www.ablc.com.br/

ou o Portal de Literatura de Cordel
http://www.portaldocordel.com.br/

(Nem vou terminar este artigo escrevendo que seria interessante termos em Portugal uma instituição similar para incentivar a literatura popular portuguesa ou os nossos equivalenteds ao "cordel"... Para quê se, em Portugal, a malta quer é coisas modernaças - coisas das quais, provavelmente, não rezará a História, mas que, prontos pá!, são modernaças! não é?...)

quarta-feira, outubro 08, 2008

Um livro de Dennis Mc Shade (aliás, Dinis Machado, 1930 - 2008)




Estou a ler um policial português - Mulher e Arma com Guitarra Espanhola - editado em 1968 (há quarenta anos), época em que os lusos autores desse género literário não vendiam e, para terem "audiência", assinavam as suas obras com pseudónimos como Ross Pynn (Roussado Pinto), Dick Haskins (António Andrade de Albuquerque ), ou Dennis Mc Shade (Dinis Machado).


Dennis Mc Shade era um dos meus "ícones literários". No entanto, praticamente não conhecia a sua obra, até há poucos meses. (É uma contradição, pois é... mas talvez um dia vos esclareça sobre o assunto...)


Conhecia passagens do "Molero" (de Diniz Machado), algumas recensões literárias de obras do Mac Shade... até que encontrei este livro no lixo!


Sim, no lixo: há um par de anos atrás, ia eu e o Jorge Feliciano (do Teatro Fórum de Moura) passeando e conversando pelas ruas de Almada, e encontrámos, junto a um contentor de lixo, algus sacos de plástico cheios de livritos de BD, alguns "westerns", textos de apoio para a disciplina de História, Curso Complementar, primeiro ano, de 1974/1975 (Ministério da Educação e Cultura, Secretaria de Estado da Orientação Pedagógica), "O Estrangeiro", de Albert Camus, e alguns policiais da "colecção Rififi" (Editorial Ibis), com títulos como "A Morte Ronda a Enfermaria" (de Ann Cardwell), "O Golpe das Moedas Raras" (de Richard Stark), e este "Mulher e Arma com Guitarra Espanhola".


Eu, que sou um inculto e nunca tinha lido Camus, fiz finca-pé para ficar com o estrangeiro e chamei-lhe um figo: devorei-o, rapidamente e em força. A seguir atirei-me ao Mc Shade mas, por motivos que não vêm agora a propósito, apenas li o início do livro, e os capítulos nove e dez (porque a acção se desenrola num bar de "literatos", chamado As Vinhas da Ira...).


Até que, na passada sexta-feira (3 de Outubro de 2008), veio a triste notícia da morte do Dinis Machado. E eu - má consciência... - lá resolvi, nesse mesmo dia, ler finalmente o livro que encontrei no lixo!

E o livro é tão bom, que quero partilhar convosco alguns excertos.


Então é assim: o protagonista desta estória (Peter Maynard, um assassino profissional com escrúpulos e critérios éticos e estéticos: gosta de música, de poesia, e só aceita contratos se considerar que o "serviço" corresponde a uma causa justa...) é chamado pelo milionário Steve Ricco para matar um outro assassino profissional: George, "o Menino".


E porquê? Porque Ricco, sentindo-se "traído" pela sua amante, Nora, contratara o "Menino" para assassinar a "adúltera". Mas o "Menino" foge com o dinheiro que Ricco lhe adiantara pelo serviço. E agora, o milionário receia que o "Menino" se tenha passado para o outro lado: receia que Nora, tendo conhecimento da tramóia, o tenha contratado para matar Ricco.


Mainard não acredita (porque o "Menino", afinal, também tinha os seus princípios éticos...) e recusa o serviço. Mas fica a matutar no assunto.


Vamos encontrá-lo, Maynard, no seu "habitat natural": a mítica grande maçã americana.


Leiamos o que ele nos diz:



Estávamos em Maio, o mês das flores. Mas em Nova Iorque não há fragrância de flores, há o cheiro dos homens que correm atrás da vida e há o cheiro do cimento que lhes absorve as horas e as ideias, por causa do dinheiro. Naquele momento, eu era um dos poucos novaiorquinos que não corria atrás de coisa alguma: dinheiro, poder, mulheres ou a juventude perdida. E se não fosse a circunstância de ter contra mim o Sindicato do Crime e a Mafia, podia considerar-me do lado de fora da maior competição fratricida do mundo, uma espécie de Jogos Olímpicos do Dólar. Ou uma peça chamada Estados Unidos da América, com milhões de figurantes seguindo a bandeira do Dólar, com dólares desenhados nos olhos, com dólares escondidos no coração, com dólares atravessados na garganta, dias muito dinâmicos e noites muito cansadas, publicidade, bairros de lata e arranha-céus, publicidade, combates de boxe e avenidas a «néon», publicidade, o eterno problema dos negros e «compre hoje mesmo o seu frigorífico», publicidade, mais material de guerra e «sorria como William Holden», publicidade, comprimidos para lembrar e comprimidos para esquecer, publicidade, e a manhã que nasce e tudo recomeça.


O meu último contrato rendera-me bom dinheiro. Partira para Roma seis meses antes. Parto sempre para Roma quando não me sinto seguro. Revejo a Capela Sistina, as garotas da Praça de Espanha, vejo o último Fellini ou o último Rosselini, compro livros que dificilmente encontro nos Estados Unidos, e espero que Johnny Arteleso, meu companheiro de infância e meu único verdadeiro amigo, me diga de Nova Iorque que o tempo está sereno. Então regresso.


(...)


Interessado na história que Ricco lhe contara, e disposto a esclarecer as suas dúvidas sobre o assunto, Maynard procura então o seu "único amigo" e principal informador, Johnny Arteleso, que o leva a um bar "underground" (que, por pura coincidência, me faz lembrar alguns locais que conheci em Almada e arredores, há alguns anos atrás...), onde poderão obter pistas sobre o paradeiro do esquivo George "o Menino". Porém, no desenvolvimento da narrativa, a gente até se esquece dos motivos que os levaram até lá...


(...)


- Como se chama o bar? - perguntei.
- «The Grapes of Wrath» - disse Johnny. - É um bar diferente.
- Diferente de quê?
- Diferente. É tudo.
Johnny fez o carro guinar para a direita e compreendi que existiam zonas de Nova Iorque que eu não sabia existirem. Passámos debaixo de uma espécie de arco de pedra e metemos por uma rua empedrada, com caixotes do lixo e sem candeeiros. Lembrei-me repentinamente da minha mocidade. Foi do cheiro que me chegou às narinas, o cheiro de tudo o que apodrece.

(...)

- O bar - começou a dizer Johnny - não tem que ver com o Sindicato. É um bar estranho. Altamente reservado o direito de admissão. Nem se pode dizer que seja frequentado. Normalmente, «os irados» vivem mais no bar do que o frequentam. Formam uma espécie de grupo.
- E como vamos entrar? - perguntei.
- Dizemos o nome do homem com quem vamos falar. Eles adoptam todos pseudónimos de escritores.
- E com quem é que vamos falar?
- Emílio Zola.

(...)

Entrámos e a porta fechou-se atrás de nós. A primeira coisa que vi foi um grande clarão vermelho. A casa era vermelha, era tudo vermelho: as paredes, o balcão, as poltronas, os sofás (sim, havia sofás).

(...)

- «The Grapes of Wrath» é o inferno para os inocentes - disse o homem loiro, olhando para mim e sorrindo. - Além da sala vermelha, temos também a sala branca e a sala cinzenta, onde espraiamos a ira.

(...)

Um tipo que estava mesmo debaixo do quadro de Soutine, levantou-se e encaminhou-se para a sala. Trazia a mesma merda de sorriso. Cumprimentou-nos com uma pequena vénia e disse:
- Dentro de minutos, na sala cinzenta, Baudelaire recitará um excerto de «As Flores do Mal».
Era pequeno, magríssimo, mal vestido e usava sapatos quarenta e quatro. Tinha cabelo muito ondulado e dentes muito brancos. Foi-se embora, depois de outra vénia.
- Quem é este? - perguntei.
- Marcel Proust - disse Zola. - Todos os dias escreve uma página e depois rasga-a. É um génio. - Olhou para mim com os olhos muito escuros e apertados. - Um
génio. Percebe, insecto?
- Perfeitamente - disse eu, conciliatório. - O Baudelaire já chegou?

(...)
Beeeemmm... peço desculpa por interromper, mas é só para acrescentar que a conversa que se segue não é tão inverosímil como poderá parecer a algumas pessoas
mais distraídas... ou mais... hummm... digamos que "caseiras". Adiante, portanto.

(...)
Coloquei os cotovelos em cima da mesa, olhei em volta e perguntei:
- Mas vocês fazem isto a sério ou a brincar?
- A sério, meu amor - disse a Charlotte (nota do vitorino: Charlotte Bronte) - Não há nada mais sério do que isto. Acreditamos na arte como única forma de aproximação. Acreditamos especialmente na literatura, na força da palavra.
- Pois.
- O facto de tu não entenderes - disse ela - estava previsto nos textos sagrados, como diriam os místicos. És uma besta, meu amor. Não há nada a fazer a isso. Há milhões de bestas lá fora. Nascem, vivem e morrem a fazerem coisas estúpidas. Têm cultos mesquinhos, têm profissões e coisas assim. Alimentam inconscientemente tiranias, políticas e guerras.
- O templo do conhecimento - disse eu, quase para mim próprio.
- Não és estúpido de todo - disse ela, olhando para mim com certa benevolência. - Até já percebi que aprendeste umas coisas e vives no pior dos mundos: o mundo duplo, que é aquele em que morres e aquele que já te foi sugerido.
- Isso é verdade.
Houve uma pausa. O Zola sorria e Johnny olhava para ela com a sua natural timidez, quando alguém discorria sobre um certo número de coisas que lhe escapavam.
- Ali o teu amigo - disse ela, percebendo a timidez de Johnny - está muito mais certo do que tu. Vive de valores errados, mas são os valores que conhece. Um esquimó não sabe o que são os Trópicos, portanto os Trópicos para ele não existem.
- Johnny é um sábio - disse o Zola. - Vive no mundo do crime e é puro como um anjo. O inocente é o que não explica nada.
- Camus - disse eu.
- É exacto - disse ele. - Citei Camus. E depois?
- Depois, nada.
- Muito bem - interrompeu ela, com a mão transparente no ar. - Vive no mundo do crime e não perdeu a inocência. Mas o mundo do crime é apenas um sub-produto do mundo civilizado em que eles vegetam. - E apontou para nós. - Têm as pequenas emoções ilegais, coitadinhos.
- Charlotte - disse o Zola, metendo na boca um cigarro de ponta doirada - não é fácil, seja para quem for, escolher como tu escolhes. Quanto mais para eles. Não têm, sequer, iniciação. E vês o meu caso: existo nos dois mundos.
- Porque não és suficientemente rico - disse ela. - Se tivesses muito dinheiro, o mundo deles não te interessava. De resto, não te interessa: é ali que vais buscar o carvão para alimentar esta fogueira. Ao passo que eles, não. Podiam ser ricos como eu, que sempre seriam o que são: umas doninhas mentais.

(nota do vitorino: por esta altura, já eu me estou a desmanchar a rir... adiante)
Nunca ninguém me tinha chamado doninha. E disse:
- Nunca ninguém me chamou doninha.
- Já era tempo, meu amor - disse ela.
- Qual é a tua profissão?
- Assassino profissional.
- E depois, é parvo. Que é isso de assassino profissional?
- Matar pessoas, Charlotte. Por exemplo: tu zangas-te com o teu amigo Zola, queres ver-te livre dele e pagas-me para eu o matar. E eu mato-o, se achar que o devo fazer. Esqueci-me de dizer que sou um assassino profissional específico. Um assassino profissional com consciência. Um conflito vivo.
Ela olhou para mim com os olhos quase tristes.
- E fazes isso a sério ou a brincar? - perguntou a meia voz.
- Nem eu sei - disse eu, também a meia voz. - Mas vou dizer uma frase bonita: as coisas mais sérias são aquelas que fazemos a brincar.
- Não gosto da frase - disse o Zola. - Não gosto de trapézios literários. Pelo menos, daqueles que são muito evidentes.
Alguém bateu as palmas e uma voz disse:
- Baudelaire vai recitar «As Flores do Mal».
- Venham, meninos - disse a Charlotte. - E tu, meu amor - disse ela para mim - não mates ninguém no meio do recital, é de mau gosto.

O tio Baudelaire estava à entrada da sala que devia ser cinzenta. Sorria. A mesma merda de sorriso.

(...)


E pronto: como é de esperar, segue-se, no livro, um recital de poesia.





Não sei como termina esta estória. Sei que estou deliciado com o mui subtil sentido de humor, e com o génio (sim, génio - palavra que até uso
parcimoniosamente, mas que agora vem a propósito) de Dennis Mc Shade. Sei que vos recomendo vivamente este autor e este livro.



E sei também que quem, se algum de vós tem a triste ideia de me contar como a estória acaba, eu junto uns trocos e contrato o senhor Peter Maynard para um
servicinho muito eticamente - e, sobretudo, literariamente - justificável... Um desses serviços que Maynard não rejeita, capisce?

Se quiserem conhecer mais sobre Dinis Machado - e sobre Dennis McShade - estejam à vontade para consultar:





quinta-feira, abril 26, 2007

Como isto não pode ser só brincadeira, aqui vai um excerto da "Peregrinação", de Fernão Mendes Pinto:



(leitura altamente recomendada aos candidatos a "nacionalistas", já agora)

«Nesse dia, logo pela manhã, vimos chegar um pequeno barco à ilha pelo que fomos forçados a escondermo-nos no interior do mato para não sermos descobertos. Seriam cerca de trinta homens que decidiram logo fazer aguada e lenha, lavarem a sua roupa e guisarem de comer.
Vendo António de Faria quão descuidados eles andavam e que no barco não havia nenhuma pessoa que o pudesse defender, disse-nos:
- É escusado dizer-vos, senhores e irmãos meus, que importa agora trabalhar para tomarmos esta embarcação que Nosso Senhor milagrosamente aqui nos trouxe, pois nela está a nossa salvação. Logo que eu disser três vezes "Jesus, nome de Jesus", fazei o que me virdes fazer.
Quando António de Faria fez o sinal combinado, corremos juntamente com ele e, chegados ao barco, apoderámo-nos dele sem qualquer resistência e afastámo-nos em direcção ao mar. Os chineses, surpreendidos, acudiram apressadamente à praia mas já era tarde.
Acabrunhados, recolheram ao mato onde choraram a sua má sorte, enquanto nós agradecíamos ao Senhor a sua misericórdia.

Como um menino deu mostras de grande sabedoria e coragem

Depois de bem instalados no barco, pusemo-nos a comer descansadamente o jantar que um velho preparara para os chineses. E que bem que nos soube aquele arroz de aves e toucinho picado! Para além disso, a mercadoria a bordo era valiosa: seda, cetins, damascos e três grandes boiões de almíscar, tudo avaliado em quatro mil cruzados.
Entretanto, António de Faria, vendo um menino de doze a treze anos que também ali estava, perguntou-lhe o que fazia ali.
- Este barco era do infeliz do meu pai que, numa hora perdeu o que lhe custou mais de trinta anos a ganhar.
António de Faria disse-lhe que não chorasse, prometendo que o trataria como filho seu. O moço, olhando para ele com um sorriso de escárnio, respondeu:
- Não penses que sou parvo. Se gostas assim tanto de mim, peço-te por amor do teu Deus que me deixes ir a nado até àquela triste terra onde está quem me gerou, porque esse é o meu pai verdadeiro.
Alguns dos presentes repreenderam-no pela forma como ele respondeu ao capitão. Mas o menino continuou:
- Vi-vos louvar a Deus mas sabei, senhor capitão, que roubar e matar são dois pecados sem perdão.
Espantado com a coragem e sabedoria deste moço, António de Faria perguntou-lhe se queria ser cristão.
Pondo os olhos no céu e as mãos no peito, o menino respondeu:
- Bendita seja, Senhor, a tua paciência, que tanto sofre por haver na terra gente que fale tão bem de ti e use tão pouco a tua lei. Assim procedem estes cegos e miseráveis que pensam que roubar e pregar te pode satisfazer como aos príncipes tiranos que reinam na terra.
Não querendo mais responder a qualquer pergunta foi pôr-se a um canto a chorar.
E nós continuámos peregrinando.»

Fernão Mendes Pinto
"Peregrinação"
(Narrativa adaptada por Fernando Cardoso
Areal Editores, 1999)

Mais sobre Fernão Mendes Pinto:
Na wikipédia
pt.wikipedia.org/wiki/Fern%C3%A3o_Mendes_Pinto
Em Vidas Lusófonas
www.vidaslusofonas.pt/fernao_m_pinto.htm

E a escola secundária onde eu andei, faz já muitos, muitos anos:
www.esfmp.net
(Naquele tempo a escola ainda não tinha uma página na internet.
Aliás, naquele tempo não havia internet...)