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quinta-feira, 19 de junho de 2014

Cat People (Jacques Tourneur, 1942)

Jacques Tourneur senta-se mais uma vez na cadeira de realizador num projecto de Val Lewton e o resultado é um sucesso, no mínimo ao nível de I Walked With A Zombie, certamente maior que The Leopard Man. Em comum, este segundo tem com Cat People também uma ameaça felina, como os títulos fazem questão de revelar. Porém, a incerteza sobre a possibilidade de uma (ou mais) pantera(s) se soltar(em) que toma conta de Cat People adiciona-lhe uma camada de ocultismo que a simples espera pela próxima vítima por esgravatamento não pode dar a The Leopard Man.

Irena (Simone Simon) não é só uma imigrante sérvia bonitinha por quem Oliver (Kent Smith) é seduzido e amestrado facilmente, descende dum grupo de bruxas que escaparam à morte escondendo-se numas montanhas e desenvolvendo poderes de transfiguração. Pelo menos é nisto que ela acredita e, no mundo civilizado, este poder torna-se numa maldição. Basicamente, qualquer demonstração de afecto ou estímulo sensual podem acordar estes ímpetos e transformá-la numa gata gigante e perigosa, literalmente, o que vai tornar a atracção mútua entre a designer e o engenheiro complicada.

A história desenvolve-se pacientemente, com a devida decadência de um casamento sem interacção física. O espectador é recompensado com nuances de repressão sexual feminina. Este fenómeno sociológico roça a patologia, é-lhe imposto desde sempre pelo medo e quando o medo se instala a repressão torna-se automática, é feita pelo indivíduo. Irena não quer sequer beijar o marido, por achar que algo mau pode acontecer, e este aceita tais condicionalismos em nome de um sentimento que vem a descobrir ser só fascínio e não paixão.

Duas cenas destacam-se neste mundo de sombras: a da piscina, em que a colega e segunda namorada de Oliver no filme nada sozinha, no escuro, com laivos de luz a reflectir a ondulação da água nas paredes e a serem ocasionalmente entrecortados pela silhueta de uma pantera, talvez real, talvez simbólica da aproximação de Irena, e a do escritório à noite, onde a iluminação é outra vez maravilhosa. Quando o terror era mais do que o susto fácil, a nudez gratuita ou a mediocridade narrativa, eram possíveis obras com mérito artístico e orçamento reduzido como Cat People.

8/10

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Mrs. Miniver (William Wyler, 1942)

Quando Winston Churchill declara que um certo filme fez mais pelo esforço da Inglaterra na Segunda Guerra Mundial do que uma esquadrilha de navios, não há muito a acrescentar. Estou a falar de Mrs. Miniver, um melodrama sobre uma família burguesa que vive pacificamente nos arredores de Londres e é indelevelmente afectada pelo conflito. Como diz o padre da paróquia local, entretanto destruída por ataques aéreos, mas cheia como sempre, o povo foi chamado a participar, por força das circunstâncias, pela dimensão da destruição e pela ameaça do totalitarismo nazi, e não está no seu carácter fraquejar nestes momentos.

Apesar de a produção ser americana (os mais atentos repararão nos bamboleantes sotaques), aquilo a que se convencionou apelidar de qualidade britânica faz algum sentido aqui: a contenção sólida a todos os níveis e a atenção ao detalhe, sem grandes inovações e simplesmente funcional, dão ao filme o charme que um melodrama sofisticado requer. Começa suavemente, com episódios da vida privilegiada que Vic, o filho mais velho dos Minivers e aluno de Oxford, critica por serem prova da perpetuação do regime feudal, sempre com as mesmas famílias no topo e na base da pirâmide.

Ironicamente, quem lhe chama a atenção para a sua inacção para ajudar os menos desafogados e afortunados é Carol Beldon, a herdeira da referência aristocrática do burgo. Vic apaixona-se por ela, e ainda bem, pois é uma vantagem ter ao nosso lado alguém que nunca se coíbe de dizer a verdade. Aos poucos, a sombra da guerra substitui as compras na baixa, os bailes informais e os concursos de flores e, talvez por querer fazer algo pelo bem comum mas também proteger o que conquistou a nível pessoal, Vic alista-se na Royal Air Force. Ao mesmo tempo, o pai é um dos muitos civis convocados a participar na batalha de Dunkirk.

A importância histórica do filme advém da assumida intenção de Wyler em envolver os EUA na guerra, por acreditar que a luta do Reino Unido era valorosa mas a força nazi tinha de ser combatida com mais aliados. As motivações alemãs e a perigosidade dos seus ideais são vincadas pela raiva, talvez exagerada, talvez não, dum piloto perdido e a monte que entra na casa dos Minivers; é um momento tensíssimo a vários níveis. Efectivamente, a simpatia dos americanos por esta causa aumentou e o próprio realizador voluntariou-se para o exército a seguir, estando ao serviço quando ganhou o Óscar da categoria (o primeiro de três).

É interessante verificar a evolução do cinema em menos de uma década. Cavalcade tinha sido eleito o melhor do ano pela Academia em 1934 - ainda muito influenciado pelo teatro e com uma fotografia deficitária, essa saga familiar britânica está a milhas desta posterior, a nível técnico (o selo de qualidade William Wyler não falha) e de representação (Greer Garson e Teresa Wright em especial têm cenas conjuntas exigentes, que lidam com uma classe à parte). Os créditos finais aparecem, mas o maior conflito armado de sempre estava ainda longe de terminar…

8/10

sábado, 22 de dezembro de 2012

To Be Or Not To Be (Ernst Lubitsch, 1942)


Certamente já ouviram falar do grande actor polaco Joseph Tura... não? A sério? Bem, vou tentar relativizar essa falha, visto ele ser uma personagem ficcional, mas se um dia alguém vos repetir esta pergunta, digam que sim - há uma grande probabilidade de ser o próprio a fazê-la. Seja no momento de confirmação do início da 2a Guerra Mundial, seja a tentar extrair informação secreta a um oficial de topo da Gestapo, nas piores ou mais tensas condições possíveis, o ego do actor parece sempre insaciável e necessitado de validação.

Claro que as situações são exageradas, mas Lubitsch acreditava (e falará por experiência própria) que actores são criaturas em constante procura de atenção, por vezes perdendo noção do mundo que os rodeia. Quando se predispôs a juntar isto com uma sátira ao regime nazi em 1942, a confusão foi significativa, dada a ameaça que Hitler representava e os relatos distantes dos horrores em ocorrência na Europa, apesar da real mestria da tragicomédia de To Be Or Not To Be.

O próprio pai de Jack Benny, o protagonista, terá odiado a ideia de ver o filho brincar com uma questão tão séria. Compreensível, mas o tempo encarrega-se de acalmar os ânimos e trazer objectividade a todas as discussões e Benny tem aqui, na realidade, o desempenho de uma carreira. Arrogante, mas de bom fundo, possessivo, sempre preocupado com a possibilidade de a sua mulher o trair, Tura é um desafio, por exigir interpretações sobre interpretações.

Tentando impedir que um espião germânico trafique mais informação, a companhia de teatro de Varsóvia improvisa esquemas perigosos de roubo de identidade e Benny acaba a fazer de Tura a fazer de coronel da Gestapo, quase conseguindo enganar o vil Professor Siletski, e de Tura a fazer de Professor Siletski, quase conseguindo enganar o ignorante coronel Ehrhardt. Este jogo de espelhos torna esta farsa hilariante e excitante de seguir, tanto mais que o seu falhanço pode resultar em morte.

Não há em To Be Or Not To Be um vestígio de desrespeito pelas vítimas da guerra, apenas uma tentativa de ridicularizar uma ideologia desumana através de uma história de equívocos resolvida por um grupo em frequente ilusão, actores. Como tal, consegue ser leve, ao que não é alheio o toque de Lubitsch na escrita de superpiadas, ou seja, trabalhar para uma boa piada que é logo seguida de outra inesperada e ainda melhor, e consciente, em simultâneo, não fosse o realizador ser um judeu alemão.

Apesar da proeminência do mítico solilóquio de Hamlet a que o título se refere, usado como senha para os encontros sem consumação da senhora Tura (Carole Lombard, fantástica de muitas formas) com um jovem aviador, é outra passagem de Shakespeare que melhor resume o filme, recitada por uma personagem menor após captura pelas SS: "if you prick us, do we not bleed? If you tickle us, do we not laugh? If you poison us, do we not die?" Afinal, um audaz apelo à tolerância.

8/10