Mostrar mensagens com a etiqueta 2010. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta 2010. Mostrar todas as mensagens

domingo, 21 de julho de 2013

Catfish (Henry Joost, Ariel Schulman, 2010)

Classificar Catfish não é fácil e o desafio primordial é conseguir determinar se é real ou não. Os realizadores insistem que sim, mas basta uma rápida análise dos seus currículos para perceber que Henry Joost e Ariel Schulman têm feito carreira como funâmbulos, sempre na corda bamba entre ficção e documentário, não sendo de espantar a sua associação ao franchise Paranormal Activity. Ainda assim, não deixa de ser estranho que os dois realizadores se tenham interessado pela história a princípio inofensiva do romance platónico de um companheiro de quarto com uma artista que este apenas conhece pelo Facebook.

Tudo começa quando a meia-irmã de 8 anos da misteriosa Megan Faccio contacta Nev, um crédulo fotógrafo que vê um dos seus trabalhos publicados no New York Times e acaba por receber um quadro a reproduzir a imagem algum tempo depois, pelo correio. Através da internet e telefone, ele acaba por criar alguma afinidade com Abby, a mãe Angela, e o resto da família, residentes no Michigan. No entanto, alguns pormenores não batem certo e Nev acaba por compenetrar-se da possibilidade de estar a ser enganado, o que não é fácil de aceitar quando já está estabelecido um certo nível de confiança.

O filme nunca se desvia desta premissa, uma decisão correcta que sai prejudicada apenas pela demora em fazer avançar os acontecimentos. Perde-se bastante tempo no início com os monólogos fofos mas algo delirantes de Nev sobre mensagens trocadas, uma relação, um possível futuro com Megan, que, não obstante, aparenta ser realmente bonita e receptiva. Ilusões que o próprio não tem, felizmente, problemas em ridicularizar quando se apercebe da burla de que está a ser vítima, quando ela lhe envia ficheiros MP3 de covers supostamente feitos por si que são, afinal, tirados do Youtube.

Nada que uma viagem interestadual não resolva. Os 3 amigos especulam sobre a verdade, mas deixam-na revelar-se lentamente à sua frente a partir do momento em que conseguem localizar Angela. Acima de tudo, é mais triste do que chocante, mas revelada e recebida com compaixão. Apesar do pouco apuro técnico, propositado ou não, dependendo do contexto em que o filme foi afinal feito, é uma história satisfatória e singular, que, ao contrário do que a campanha publicitária na altura fazia crer, com referências a Hitchcock e por ai fora, tem mais de drama do que de suspense.

7/10

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives (Apichatpong Weerasethakul, 2010)


A Ásia é um continente de nações antigas, religiões herméticas e tradições milenares. As diferenças culturais e as distâncias megamétricas fazem regiões como a Indochina parecer incompreensíveis, mas ricas em História e, por isso, detentoras de um apelo bizarro. No cinema, poucos realizadores conseguem atrair o Ocidente com tal exuberante exotismo como o tailandês  Apichatpong Weerasethakul, aka Joe, e vendo um filme como Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives é e não é fácil de ver porque é que isso acontece.

Porque é que é? Bem, Boonmee é dono de uma herdade que engloba pomares de tamareiras e apicultura. Está às portas da morte devido a uma insuficiência renal e tem um médico, uma ajudante e uma máquina de diálise como melhores amigos. O lado místico de tal condição mistura-se com o da região e, em pouco tempo, o filme transforma-se num delírio de mediunidade em que as frondosas palmeiras servem de refúgio a fantasmas, princesas antigas e yetis com lasers nos olhos - miragens de vidas passadas.

Joe não apressa qualquer plano, dotando o filme de uma calma libertadora apenas possível de ser gerada por alguém que compreende a subjetividade da imagem, onde o tempo é reinventado e não tem fronteiras, o que é retratado em Uncle Boonmee com a maior naturalidade. Logo no início, a mulher e o filho falecidos do agricultor juntam-se-lhe para jantar ao crepúsculo, o que muito lhe agrada e pouco o espanta. A máquina de diálise e a câmara de filmar são dispositivos de anacronismo, portais de transição.

Porque é que não é fácil de perceber o fascínio por isto? Bem, por cada momento de transcendência, por cada detalhe cinemático de fazer babar qualquer crítico, seja na tentativa de desconstrução do passado excêntrico mais antigo ou no passado de guerra mais recente da Tailândia, seja nos diferentes estilos usados para cada uma das 6 bobinas diferentes (o que não é fácil de identificar), Uncle Boonmee carrega uma dose fastidiosa de humor seco, enredos desinteressantes e 20 minutos finais absolutamente irrelevantes.

Joe corre um risco grande: alude à possibilidade de uma história no título mas apenas envencilha cenas aleatórias que se pretende que representem reincarnações sucessivas, tal como são sucessivas as reincarnações do cinema, sem um óbvio fio condutor e com uma abordagem inexpressiva à beleza de tanta fantasia. Assim, Uncle Boonmee nunca chega a ter intensidade e rapidamente se transforma em clorofórmio artístico, tornando obsoleto o apelo bizarro de florestas a milhares de quilómetros de distância...

3/10

segunda-feira, 26 de março de 2012

Essential Killing (Jerzy Skolimowski, 2010)


Skolimowski é um dos maiores paradoxos do cinema mundial. Nascido na Polónia pouco antes da invasão nazi do país, haveria de ficar com cenários de destruição e situações de guerra como maiores recordações de infância. Apesar disso, ao longo da sua carreira parece ter-se sempre afastado propositadamente de assuntos históricos e concentrado em pequenas histórias de alienados e forasteiros. Longe do cinema durante 17 anos, concentrou-se na pintura, como que nunca conseguindo suprimir os seus impulsos artísticos, até voltar em 2008 ao grande ecrã com Four Night With Anna, um filme delicadíssimo e transgressivo, a que se seguiu este Essential Killing.

Um terrorista sem nome, numa terra irreconhecível, mata 3 americanos à bazucada num desfiladeiro. É perseguido por um helicóptero, donde jorra um míssil e soldados suficientes para o capturar. Metodicamente e com frieza, o filme mostra o que acontece à personagem interpretada de forma intensa por Vincent Gallo, um ator de olhos grandes e gentis, que se entrega de corpo e alma a representar um árabe que combate com a promessa de um lugar no céu na cabeça e que reage ao medo com violência, como um animal assustado e não como um crente extremista. É acima de tudo esta constatação que nos leva a interessar pelo seu destino, apesar da ideia formatada que talvez tenhamos da sua vileza.

O filme começa logo por triunfar ao virar as cartas do avesso e pôr o espectador do outro lado. Não que seja claro quais os propósitos ou ideais do homem, se é um taliban, se é um civil, se é um ocidental tipo John Walker Lindh, mas é claro que segue o Corão e que se opõe à presença militar estrangeira no seu país, seja ele qual for. Ao oferecer uma perspectiva diferente da que nos é mais afeta, mas despindo-a de posições políticas, Skolimowski realça a contemporaneidade do filme e a ambiguidade de qualquer conflito armado, pede para nos focarmos apenas na sua lógica circular de ação/reação e no processo pessoal de sobrevivência de quem fica envolvido.

Enviado para um black site algures na Europa, é vestido com um uniforme laranja e torturado. Constantemente em trânsito, a carrinha que o transporta uma noite, através duma região inóspita, sofre um acidente, cai numa ribanceira e ele consegue fugir. Na neve, pelo meio duma floresta enorme, longe do deserto por onde se movia no início, a personagem principal é obrigada a focar-se no essencial e a dar resposta às necessidades mais básicas. Um estranho numa terra estranha... Talvez como se sentem os soldados americanos destacados para o Iraque e Afeganistão? Afinal, porque razões e com que convicções vai alguém parar às fileiras de uma guerra? Nem sempre é preto no branco.

É de notar a natureza abstrata do filme e que facilmente responde ao questionável abandono do local do despiste pelos seus captores antes de se iniciar uma caça ao homem, à elevada densidade populacional de Border Collies com treino de procura e salvamento ou às constantes visões do terrorista. Não é difícil antever uma divisão dos espectadores a partir deste ponto: a fuga e sobrevivência de Vincent Gallo são, na realidade, deixadas em aberto, e o que resta é uma sensação de desconforto, que se estende até ao final. Sem sensacionalismos, o realizador opta por uma abordagem de tese: quinze minutos de enredo, uma hora de discussão, em que cada um pode ajuizar a justiça que se impõe.

Essential Killing é um ensaio impressionista filmado com uma audácia desconcertante. Atos bizarros sucedem-se no silêncio do inverno e são capturados através da câmara atenta e móvel de Skolimowski, sem descuidar a envolvente e o enquadramento, que são sempre perfeitos e que fazem de cada frame um verdadeiro quadro vivo com som (e que bela montagem). Este é provavelmente o mais enigmático e menos polarizante anti-herói da filmografia do polaco, mas que nos lembra, com a mesma força que o estudante inconformista que acaba por entrar nas forças armadas em Rysopis, como podemos ser, em simultâneo, relutantes e complacentes com algo de que duvidamos...

9/10

sábado, 24 de dezembro de 2011

Daydream Nation (Michael Goldbach, 2010)


Daydream Nation é aquele tipo de filme que mostra aos pais o que eles não sabem sobre os filhos, pela simples razão de que já não se lembram do que é ser adolescente. Em sua defesa, é uma fase difícil de perceber e descrever - por isso é que os adolescentes passam tantas horas a escrever diários, a inventar poemas, a compor músicas, a falar uns com os outros, porque eles próprios não conseguem perceber ou descrever o que está a acontecer com eles, e então, desse sentimento de confusão, partem sem rumo à descoberta do que os rodeia. Para Caroline Wexler (Kat Dennings), rapariga duma grande metrópole que se muda com o pai para uma vila exígua, o primeiro destino nessa caminhada parece ser o seu professor, Mr. Anderson (Josh Lucas). Talvez a morte da sua mãe a tenha feito crescer mais rápido, talvez a falta de entrosamento com o pai a tenha feito perder noção dos valores, certo é que Caroline se julga sofisticada, solitária e até superior aos seus colegas, e, aproveitando o facto de poder ser alguém diferente agora que está num meio diferente, decide apontar mais alto.

Este é "o ano em que tudo aconteceu", o ano em que um incêndio industrial cobre a paisagem de fumo, o ano em que um assassino à solta espalha o terror pelas redondezas, o ano em que as hormonas inundam a povoação. Thurston (Reece Thompson) perde-se nas drogas e perde-se de amores por Caroline, que o manipula para esconder a sua relação com Mr. Anderson. O filme pinta um retrato duma juventude apática, com muitas facilidades e poucos desafios, uma mistura que leva à tragédia. Cada vez que alguém quebra barreiras ou passa fronteiras, sofre as consequências e nem sempre são agradáveis ou se está preparado para elas. Thurston vive com o arrependimento de ter perdido o melhor amigo num acidente de carro à saída de uma festa e de não o ter ajudado convenientemente, mas nem isso parece forcá-lo a procurar um rumo para si, antes pelo contrário, parece paralisá-lo ainda mais. Caroline trata uma rapariga da sua escola como uma puritana idiota sem futuro, humilha-a com palavras para depois chorar de arrependimento. O realizador parece partilhar a opinião de Paul Schrader de que o que o fascina "são pessoas que querem ser uma coisa mas que se comportam duma forma contraditória a isso."

Todas as personagens vivem com medo de estar sozinhas e a maioria não resiste a distrair-se com superficialidades para afundar momentaneamente esse medo, porque é mais fácil do que tomar uma posição e mantê-la. Mr. Anderson é talvez a personagem mais paradoxal de Daydream Nation. Um trintão aparentemente seguro e educado, acaba por se revelar um frustrado depressivo, cheio de teias de aranha na cabeça, em tempos um teenager desajeitado e preguiçoso talvez não muito diferente de Thruston, que cria a ilusão de ter encontrado a mulher perfeita em Caroline. O tom desiludido do filme remete para American Beauty e Mr. Anderson não anda muito longe dum Lester Burnham mais novo. Um ótimo papel para Josh Lucas, que consegue trazer lentamente ao de cima o ridículo da sua personagem. No entanto, ao contrário da obra de Sam Mendes, há aqui, no fim, um vislumbre de esperança, apesar da maior e nem sempre eficaz urgência em criar drama.

O argumento perde-se um pouco nas suas próprias complexidades e às tantas talvez tivesse sido melhor suprimir todo o sub-enredo do serial killer, por exemplo, mas distingue-se a nível humano. Uma construção e apresentação cuidada das personagens asseguram uma grande ligação às mesmas e uma grande compreensão das mesmas, até quando cometem os maiores erros ou incorrem nas piores decisões. Não se pode dizer que haja aqui uma grande história; há sim bons momentos num filme-mosaico com bom fundo e vontade de explorar o amor e a sexualidade juvenis com honestidade, conduzido por uma voz tipicamente indie, que se ouve no ocasional humor seco (para o qual Kat Dennings já provou ter talento noutros filmes, como Nick And Norah's Infinite Playlist), em meia dúzia de planos de paisagens outonais em soft focus ou na banda sonora de Rock ligeiro. Mike Goldbach é menos polémico que Larry Clark, menos poético que Gus Van Sant, mas faz de Daydream Nation um projeto interessante e emotivo onde o romantismo acaba por ser a resposta para todo e qualquer drama que possa atingir as nossas vidas - que, afinal, não são assim tão insignificantes quanto às vezes podemos achar, quanto mais não seja porque podem significar algo para alguém.

7/10

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Due Date (Todd Phillips, 2010)

Todd Phillips tem razões para sorrir. Depois de ter desistido da mítica escola de cinema de Nova Iorque para promover o seu documentário Hated, conheceu o produtor Ivan Reitman, que o ajudou a encontrar o seu lugar em Hollywood, dando-lhe a possibilidade de escrever e realizar o seu primeiro trabalho de ficção. Assim surge Road Trip e assim começa uma carreira de sucesso com comédias subversivas.

Apenas um ano depois de fazer dinheiro como lixo graças ao original The Hangover, atirou-se à estrada com Robert Downey Jr. e Zach Galifianakis para fazer Due Date, um filme onde o destino junta um sério arquiteto e um irresponsável ator numa viagem de carro contra o tempo, pois a esposa do primeiro está prestes a dar à luz. Está bom de ver que antes de chegar ao seu destino, ele vai ter de sofrer. Muito.

As personalidades díspares do par chocam desde o início, e tudo se complica quando a carteira do irritadiço Peter se perde e o despreocupado Ethan gasta mais de metade das suas poupanças em erva, supostamente para propósitos medicinais, um dos seus muitos hábitos duvidosos (Juliette Lewis é a dealer de serviço, a quem Galifianakis recita um monólogo de The Godfather, numa das melhores cenas).

Se por um lado será mais fácil dar um desconto a Ethan, dado o seu carácter infantil e propensão para arranjar problemas, não é difícil compreender Peter. A ideia de depender de alguém que não se coíbe de se masturbar à frente de um estranho já é insuportável por si só, quanto mais quando o tique-taque do relógio não pára de relembrar que se pode estar prestes a perder um momento único.

As semelhanças com o clássico Planes, Trains And Automobiles de John Hughes são óbvias, mas Galifianakis não inspira a mesma simpatia que John Candy, e o comportamento de Ethan roça mesmo, por vezes, o constrangimento e a falta de compreensão pelo seu companheiro de viagem. Por outro lado, Robert Downey Jr. não tem o timing cómico de Steve Martin e acaba reduzido quase a um saco de porrada.

Claro que o exagero é o que faz alguns dos gags resultarem, mas Peter, por muito arrogante que seja, não deixa de ser um homem de família e um profissional de sucesso que pode ser privado de ver o nascimento do seu primogénito pela incompetência de outrem e esse pensamento está sempre presente, o que torna toda a viagem uma grande frustração, mesmo que o final seja (duh) feliz.

A força de The Hangover era a narrativa intrincada e intumescida por um grande espírito de união e camaradagem. Due Date é mais episódico, tem momentos bons e momentos não tão bons, e a tolerância que se cria entre as personagens parece forçada por atribulações e passageira. Todd Phillips deverá ter um novo sucesso de bilheteira nas mãos, mas já deu mais razões para sorrirmos.

6/10

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

True Grit (Ethan Coen, Joel Coen, 2010)

Num pico de popularidade e maturidade desde No Country For Old Men, os irmãos Coen optam por seguir para um remake. A decisão revela-se acertada: True Grit, um conto sobre os intricados caminhos da violência e do destino ambientado no velho oeste americano, serve na perfeição a clareza vitriólica do "two headed director".

Mattie Ross é uma jovem determinada, que pretende vingança pela morte do seu pai. Para o efeito, contrata não o marshal mais eficaz, não o mais justo, mas sim Rooster Cogburn, o mais cruel. Um Jeff Bridges zarolho entra então em cena. Se é verdade que os Coens conseguem sempre trazer ao de cima o ridículo da mais sisuda das histórias, muitas vezes graças a um ímpar sentido de ironia, também é verdade que poucos actores conseguem entender esse humor negro como Bridges, dar-lhe expressão e sentimento. Aqui, a sua presença é intimidante, mesmo quando se deixa levar pelo álcool ou se revela mais vulnerável e a sua relutância em ajudar uma pré-adolescente se transforma em profundo respeito pelas provas de coragem da mesma.

A evolução da relação entre os dois é cativante, ao que também não é alheia a grande interpretação de Hailee Steinfeld. Obstinada e inteligente, a jovem consegue estabelecer uma química impecável com os veteranos que a rodeiam e apesar da evidente maturidade de Mattie, há sempre uma réstia de inocência. Os seus objectivos são louváveis e é impossível não simpatizar com ela, mas está claramente a entrar em águas profundas demais para si.

Impressionante é o realismo e a reconstituição da época. Este filme era talvez inevitável, considerando as inúmeras referências ao western na carreira dos Coens (o narrador cowboy de The Big Lebowski, por exemplo), e o cuidado com que eles abordam o género e o homenageiam ao mesmo tempo é admirável. Eram tempos duros, com homens duros e expressões duras.

A linguagem, aliás, quer seja auditiva quer seja visual, sempre foi uma obsessão de Joel e Ethan. O filme soa à inexorabilidade da lei da bala, com os seus sotaques arcaicos, silêncios contemplativos e tiros ruidosos e aparenta uma rudeza que não deixa de ser evocativa, muito graças ao sempre esclarecido trabalho de cinematografia de Roger Deakins, não havendo um único plano descuidado ou desnecessário.

Simultaneamente, no seu âmago, True Grit acaba por ser também menos desiludido e negativo que trabalhos como Burn After Reading ou A Serious Man, onde todas as relações pessoais parecem condenadas ao fracasso e onde os dogmas e as superficialidades da sociedade moderna parecem sabotar os desejos e objectivos íntimos das personagens principais, quase como se os irmãos apenas conseguissem encontrar justiça e morais em épocas passadas e de menos facilidades.

Austero, cru, directo e memorável, esta é uma obra maior no trajecto de dois dos maiores realizadores da actualidade.

9/10

IMDb 

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Shutter Island (Martin Scorsese, 2010)


Para um cineasta cinéfilo e adepto confesso de thrillers históricos e do género film-noir como Martin Scorsese, realizar um filme nos mesmos moldes terá sido sempre uma tentação. Se em 2007 se ficou por uma curta com claras influências de Hitchcock (The Key To Reserva), em 2010 não resiste a atirar-se de cabeça para a conversão ao cinema do livro Shutter Island de Dennis Lehane (o mesmo autor de Mystic River). Denso, povoado por reviravoltas e flashbacks, a roçar o terror, este argumento parece algo atípico no currículo de Scorsese... ou se calhar nem por isso.

O facto é que os filmes do realizador americano têm experimentado mudanças em forma, mas não em conteúdo. Seria difícil imaginá-lo nos anos 80 a preocupar-se com uma narrativa ou a preterir virtuosismos com a câmara para homogeneizar o conjunto, mas The Departed parece ter demarcado uma nova fase na sua carreira (o próprio terá dito há alguns anos que esse foi o seu primeiro filme com enredo, afirmação que não parecerá totalmente verídica para quem já viu Cape Fear) e Shutter Island aparece também nesse seguimento.

No entanto, não deixa de ser um filme visualmente fascinante, com uma atmosfera intimidante, e sobre temas recorrentes, em especial sobre violência, claro. Que consequências tem a violência na psique humana? O que nos leva a incorrer em actos violentos? Que justificação, se alguma, pode ter uma conduta violenta? Será a violência intrínseca à nossa natureza? Scorsese pergunta, Teddy (Leonardo DiCaprio) procura responder. Isolado numa instituição em forma de ilha para criminosos insanos, este agente federal deslinda o desaparecimento de uma mulher lá internada.

Perseguido pelos seus próprios traumas (como num bom film-noir, a história já vai a meio quando a acção principia), Teddy tem também a sua agenda pessoal neste caso: encontrar o pirómano que causou o incêndio em que morreu a sua mulher, Dolores (Michelle Williams). Enxaquecas e fotossensibilidade minam-lhe o bem-estar físico e mental, mas Teddy prossegue a sua investigação a todo o custo, apesar da relutância em colaborar dos responsáveis pela instituição, Dr. Cawley (Ben Kingsley num papel enigmático e muito bem conseguido) e o germânico Dr. Naehring (Max von Sydow), que desperta em Teddy memórias do Holocausto, que presenciou, in loco, enquanto militar participante na libertação do campo de concentração de Dachau.

Leonardo DiCaprio (alguém lhe dê um Óscar, por favor...) é fenomenal a fazer transparecer gradualmente o comportamento paranóico e incoerente da sua personagem. Cada nova cena parece aumentar a incerteza do seu destino, e para isso muito contribui também o negrume do trabalho de fotografia de Robert Richardson. Com Shutter Island, um dos seus filmes mais complexos a nível psicológico e sociológico, Martin Scorsese continua em alta, como sempre olhando para o passado para seguir em frente, apoiando-se na história do cinema para suportar o seu presente.

9/10