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domingo, 2 de outubro de 2016

The Lobster (Yorgos Lanthimos, 2015)

David (Colin Farrell) é um arquiteto em processo de separação numa cidade distópica onde estar solteiro é tratado como um crime. Assim, tem de se retirar para um complexo no campo com todos os confortos de um hotel de luxo, onde será induzido a encontrar uma nova parceira entre os restantes hóspedes, nos 45 dias em que lá pode permanecer, ao fim dos quais é compulsivamente transformado num animal à sua escolha. Logo de início define a sua preferência por lagostas, porque vivem um século, têm sangue azul como os aristocratas e mantêm-se férteis durante toda a vida. Mais à frente, enfatizam-lhe a alta probabilidade de ser apanhado do mar e cozinhado vivo. Como se o absurdo estivesse na opção tomada e não num sistema social que obriga a metamorfoses forçadas.

O filme é hilariante e deprimente em igual medida na apresentação das regras destinadas a controlar as relações da população, tanto na metrópole, onde a polícia interroga quem anda sozinho no shopping, nesta espécie de centro de acolhimento, onde são encenadas situações cujo desfecho é muito diferente quando se tem alguém por perto e quando não se tem, para incentivar as uniões, como na floresta onde se refugiam os desertores, à qual vai parar, em que todos admitem sem inibições quando se masturbam, mas só podem dançar sem contacto físico, porque na cabeça distorcida da sua líder (Léa Seydoux) a melhor revolta não é as pessoas juntarem-se por amor, mas sim não se juntarem sob nenhuma circunstância. Nem em exílio David usufrui de um convívio genuíno e sem restrições.

Com tanto extremismo, não surpreende que na civilização os casais sejam artificiais, agarrando-se a ou inventando insignificantes pontos em comum para justificar a sua permanência na raça humana, e fora dela sejam impossíveis, quando a adversidade até cria condições para se aproximarem naturalmente. Primeiro, David junta-se à mulher mais instável do hotel, propondo simular uma total falta de sentimentos. Quando ela, para o testar, lhe mata o cão, que terá sido o seu irmão, ele, como não é um psicopata, chora, denuncia-se, atordoa-a e foge. Na clandestinidade, aproxima-se de uma míope (Rachel Weisz) só por também o ser, formatado que está para reconhecer esses detalhes como essenciais neste mundo despersonalizado, e até acaba por estabelecer com ela uma ligação tão perto do amor quanto possível.

A líder descobre e cega-a. No fim, ele ameaça tirar os próprios olhos, ou seja, apesar de tudo precisa de continuar a partilhar uma característica aleatória para validar esta afeição, não consegue libertar-se das convenções em que foi criado. Lembrei-me do alheamento visto em Her, ainda que The Lobster não o retrate apenas como consequência das novas tecnologias, estende-o aos valores atuais do ocidente em geral, nem com a leveza de Spike Jonze, antes com a gravidade (e a tortura animal enquanto metáfora) de Michael Haneke misturada com o humor seco de Wes Anderson. Quando temos a natalidade a diminuir, estudos que apontam a geração Y como a menos ativa sexualmente dos últimos 100 anos e a Dinamarca a promover o coito com efeitos reprodutivos através de campanhas de televisão, dá que pensar.

8/10

domingo, 11 de setembro de 2016

The Hateful Eight (Quentin Tarantino, 2015)

A estreia de um novo filme de Quentin Tarantino é sempre um evento, tão próprio é o seu estilo e tão idiossincrática é a sua personalidade. Ainda assim, desta vez ele decidiu levar a expressão a outro nível, reavivar o formato Ultra Panavision 70, que usa a maior bitola cinematográfica de todas e estava desaparecido desde Khartoum (Basil Dearden, 1966), obrigar à substituição dos projetores digitais de salas um pouco por todo o mundo por projetores de película e criar um espetáculo itinerante à antiga para anunciar o seu regresso.

Este circo parece-me particularmente adequado para The Hateful Eight, que representa a “experiência Tarantino” no seu estado mais extremo. Apenas o díptico Kill Bill ultrapassa os 167 minutos deste western. Os capítulos e flashbacks não faltam. Na banda-sonora, consuma o seu fetiche de ter material original do mítico Ennio Morricone. Estão de volta Michael Madsen, Tim Roth ou Kurt Russell, a juntar a outros regulares. O seu truque de abrandar o ritmo com frente a frente intermináveis e juntar protagonistas num espaço reduzido nos clímax para efeito dramático é aqui esticado a uma história inteira.

Corre a ideia de que os filmes deste realizador estão repletos de ação frenética, o que está longe da verdade. A extravagância não tem limites na construção das personagens, nos diálogos sem filtros, na violência explícita ou nos movimentos de câmara, o que dá azo a muito frenesim. No entanto, para compreender o seu funcionamento há que notar como Pulp Fiction culmina num monólogo transcendente à mesa de um diner ou como os heróis de Django Unchained são expostos num jantar de meia hora à luz das velas. As melhores cenas são lentas, compridas, tensas e reveladoras.

The Hateful Eight é isso quase do início ao fim. Marquis Warren (Samuel L. Jackson) crava boleia a John Ruth (Kurt Russell) no meio de uma tempestade até um alojamento conhecido na zona. São ambos caçadores de recompensas, o primeiro acredita na lei da bala, o segundo entrega os criminosos vivos à justiça. Precisamente por isso, transporta consigo Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh, a interpretação mais marcante, com a cara coberta de sangue e os olhos cheios de loucura), que deverá ser enforcada numa cidade ali perto. Eles e outros seis viajantes vão ter de esperar que a neve pare de cair à volta da mesma lareira.

Claro que cada um tem o seu motivo para ali estar e um passado com ramificações até aquele momento. As surpresas precipitam as trocas de tiros, até porque é a mais apurada coleção de misantropos de Tarantino alguma vez vista, o que claramente o divertiu durante o processo de escrita. Ruth espanca a mulher que carrega sem receio de ser apelidado de misógino. No seu masoquismo, Daisy lambe as feridas que lhe abrem na cara. Marquis mente a torto e a direito. O resto do pessoal é racista, tanto contra os pretos como contra os mexicanos (incluindo uma afro-americana que não deixa gringos entrar no seu estabelecimento).

Todos esses rótulos foram usados erradamente ao longo dos anos pelos críticos para descrever o autor em questão, por isso desta vez vira o bico ao prego e ninguém no filme tem quaisquer qualidades redentoras. Claro que não é o seu melhor trabalho, mas se todos conseguissem sambar na cara das invejosas com esta destreza e esta criatividade, o mundo seria um lugar melhor. The Hateful Eight é um espetáculo que só podia vir da cabeça de uma pessoa à face do planeta, um western na neve mais impiedoso que Day Of The Outlaw (André De Toth, 1959) que se assemelha a um whodunnit mais exaustivo do que Reservoir Dogs.

8/10

domingo, 7 de fevereiro de 2016

The Revenant (Alejandro González Iñárritu, 2015)

A qualidade dos filmes de Iñarritu é evidente. Seja nos dramas deprimentes do início da carreira ou na comédia experimental do ano passado, dificilmente se pode contestar que chegam ao patamar de verdade emocional e criatividade técnica a que se propõem. Contudo, é possível argumentar que a consistência não tem sido a sua principal preocupação. Não é uma crítica, apenas uma constatação. O caminho pelo qual vai enveredar a seguir fica cada vez mais imprevisível, o que também ajuda a criar expectativa, como aconteceu quanto a The Revenant, ainda por cima depois dos relatos emergentes de dificuldades na produção, ao ponto de elementos da equipa se despedirem ou terem sido despedidos.

Biutiful estava dependente do grau de realismo exibido desde Amores Perros até Babel para resultar, apesar de já conter tiques espiritualistas, secundários ao cerne da história. Birdman representou uma liberação do processo de montagem enquanto salvaguarda de eficácia, a passagem dos jump cuts para os planos-sequência intermináveis foi uma mudança de estilo radical. Em certa medida, a trilogia da morte, escrita por Guillermo Arriaga, autojustifica-se, existe separadamente num universo uno, e, de seguida, o realizador partiu à procura da sua identidade. Com The Revenant, baralha o que entretanto aprendeu e começa um novo jogo, o do cinema contemplativo.

A curiosidade pelo meio ambiente em que as personagens se inserem tem algo de Terrence Malick. A desarmonia no convívio de europeus e nativos ajuda a associar ao The New World (2005). Alguns pormenores visuais lembram Andrei Tarkovsky, como a igreja vazia e os sonhos repletos de simbolismo, ou o Come And See (1985) de Elem Klimov, porque a beleza natural esconde instintos humanos destrutivos (e o Will Poulter é a fotocópia do rapaz desse clássico bielorusso). O cometa que atravessa o céu ou a avalanche de neve ao longe são daqueles pequenos milagres que nada explicam e, no entanto, acrescentam algo de etéreo. Os mestres supramencionados saberiam apreciar.

Estas meditações não deixam de assentar numa caça vingativa muito direta e violenta. Hugh Glass (Leonardo DiCaprio) serve de guia a expedições de comerciantes de peles através de zonas inóspitas da América, nomeadamente ao longo do rio Missouri. A dureza dos homens rivaliza com a dos elementos. Glass é perseguido por índios, atacado por um urso e vê um companheiro de viagem esfaquear até à morte o filho. Depois de Essential Killing (Jerzy Skolimowski, 2010) achei que se tinham atingido os limites da intensidade na luta pela sobrevivência. Estava enganado. A diferença é que em The Revenant não se foge de uma ameaça, procura-se satisfazer uma vontade animalesca.

Apenas quando tem a possibilidade de a concretizar vê como é inútil. Até lá, a força de vontade de Glass e os seus métodos primitivos de caça, pesca, aquecimento, manuseamento de feridas e afins surpreendem a cada minuto. A fotografia de Emmanuel Lubezki é de uma clareza e uma fluidez que esgotam adjetivos. O trabalho de DiCaprio idem. Ninguém tem sido tão consistente na excelência das suas interpretações como ele nos últimos 10 anos. Claro que há um tal de Daniel Day-Lewis, mas esse aparece entre o comum dos mortais menos vezes do que o messias. Com esta conjugação de elementos, Iñarritu chega ao ponto alto da carreira. The Revenant é, sem reservas, um dos melhores westerns que eu já vi.

9/10

Mad Max: Fury Road (George Miller, 2015)

Confirmo que nunca tinha visto um filme que se desdobrasse em duas perseguições a rasgar pelo deserto sem fim entre uma cidade escavada dentro de escarpas encarnadas e um acampamento de velhotas motoqueiras armadas com caçadeiras a um camião de guerra guiado por uma mulher maneta e de cabelo rapado por uma horda de homens pálidos doentes incentivados pelo Thrash Metal duma guitarra elétrica dupla com lança-chamas incorporado e liderados por um tirano polígamo com uma máscara esquelética mas acredito que o mundo é agora um local melhor por essa lacuna estar finalmente colmatada pois aqui está o quarto tomo na série Mad Max criada pelo australiano George Miller nos anos 70 que imagina um futuro distópico assolado por guerras territoriais com base na escassez extrema de recursos naturais que em muito se assemelha ao interior selvagem e abrasador do seu próprio país no qual um polícia com um fundo de bondade chamado Max Rockatansky tem de vaguear para sobreviver sem depender ou ter de fazer compromissos por ninguém e acaba por arriscar a vida mais do que seria desejável para exercer diversos atos de justiça dos quais preferiria distanciar-se desde que lhe mataram a família logo no primeiro filme.

Depois de anos e anos de atrasos motivados por todos os motivos e mais alguns este Mad Max: Fury Road é um testemunho de perseverança dum realizador que entretanto se entreteve a furar as expectativas tendo ido do drama de cortar os pulsos com Lorenzo’s Oil a deambulações no campo escolhendo como surpreendente personagem principal um porco em Babe até à animação para crianças com Happy Feet sempre sem esquecer a velocidade vertiginosa a que agora retorna duma criação povoada por personagens de uma bizarria em aspeto e intenções mais prováveis na BD enquanto produtos da decadência que as rodeia e anteriormente povoada por Mel Gibson que assim viu a sua carreira ser catapultada para o estrelato e fazia todo o sentido ceder o papel a alguém mais novo cujo carisma não atraiçoasse o espírito deste panorama pelo que dificilmente poderia ter havido escolha tão certeira quanto Tom Hardy que já tem provas dadas noutras extravagâncias como Bronson ou The Dark Knight Rises se bem que nem um nem outro sejam rivais para o imbróglio que é cair do céu no meio do monopólio de água mantido por Immortan Joe e da sua colérica perseguição pelas noivas escravas que lhe fugiram pelos dedos no espetáculo sónico e visual ímpar de Mad Max: Fury Road.

9/10

Brooklyn (John Crowley, 2015)

A emigração é um fenómeno perene. As motivações podem variar, ainda que tenham sempre como base a vontade/necessidade de procurar uma situação melhor do que aquela que se deixa para trás. Enquanto na Europa se adia uma resposta ao êxodo do mundo muçulmano que atola o Mediterrâneo de embarcações precárias, na América extrema-se o debate sobre o crescente fluxo de mexicanos através da fronteira sul. O potencial do cinema para refletir, e até prever, questões sociais contemporâneas faz com que esta já venha a ser abordada há alguns anos. Eden Is West (Costa-Gavras, 2009), Babel (Alexandro Gonzalez Iñarritu, 2008) e The Visitor (Tom McCarthy, 2007) são exemplos.

Alguns países do velho continente que hoje empurram com a barriga a iniciativa da procura de soluções realistas foram casas de partida para milhões num passado não tão longínquo quanto isso. A Irlanda tem uma relevância geográfica diminuta na recente crise de refugiados e estará a receber 4000 pessoas do médio oriente, mas pertence a uma união onde os movimentos nacionalistas ressurgem com virulência. Na década de 1950, em que Brooklyn decorre, quase 50000 irlandeses trocaram a sua pátria pelos EUA. Claro que as diferenças culturais num e noutro caso não têm as mesmas dimensões; de notar que Eilis (Saoirse Ronan) é branca, católica, fala inglês e tem emprego certo do outro lado o oceano…

A história é parca em conflitos. A Nova Iorque em que a jovem desembarca não é o labirinto em calçada de Gangs Of New York (Martin Scorsese, 2002) ou Far And Away (Ron Howard, 1992), antes a capital do mundo livre no pós-guerra. Apesar de na sua terra natal a acusarem de egoísmo por deixar para trás a irmã mais velha e a mãe, estas apoiam-na, visto a falta de perspetivas de futuro ser evidente. Mantendo-se humilde, Eilis ultrapassa as saudades aos poucos, recebe bons conselhos e acaba por conhecer um italiano com quem pode contar para iniciar uma vida de amor e respeito. No fundo, é uma sortuda, sem lhe tirar o mérito da coragem em emigrar sozinha. Isto até um golpe do destino ironizar com o seu esforço de integração.

Acaba por lhe ser oferecida a possibilidade de ter na Irlanda o que encontrou na América. Decidir entre o local que a viu nascer ou o local que a acolheu é ingrato. Qual é a sua casa? A própria não sabe responder e, na dúvida, segue em frente, escolhe as incertezas do desconhecido sobre a saturação da zona de conforto. Brooklyn é um filme ligeiro com aquela contenção britânica intemporal. Evita as analogias com o presente, mas, pelo tema, é sintomático que esteja nomeado para três Óscares neste momento. Saoirse Ronan tem liberdade total para exibir a sua maturidade e não falha uma nota. Sinceramente, graças a estes olhos azuis até o The Host (Andrew Niccol, 2013) foi bom, por isso nem valia a pena lerem esta crítica, bastava ver o nome dela no poster.

7/10

IMDb 

Carol (Todd Haynes, 2015)

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4/10

Room (Lenny Abrahamson, 2015)

Esta semana, em mais um episódio de “Quando a Realidade Ultrapassa Qualquer Ficção”, temos o caso Fritzl. Corria o ano de 2008 quando a pacata cidade de Amstetten, na Áustria, é colocada no mapa noticioso mundial dias depois de um cidadão sénior chamar uma ambulância para que fosse prestada assistência médica a uma jovem em insuficiência renal que ele teria encontrado com uma carta. Esse banal acontecimento acionaria uma reação em cadeia que levou à descoberta de uma diminuta cave na residência de Josef Fritzl onde o próprio teria aprisionado uma das suas filhas durante 24 anos e com ela tido sete crianças.

A barbaridade dos contornos criminais desvendados e a lógica retorcida das declarações daquele monstro do qual ninguém suspeitava, nem a esposa de um casamento com 52 anos que vivia na mesma casa, eram inimagináveis, mais do que em ocorrências semelhantes anteriores, pela aberrante árvore genealógica. Daí que um livro como Room apenas tenha sido possível após um exemplo desta magnitude e exposição mediática. Nele, bem como nesta adaptação cinematográfica, o foco recai em Jack (Jacob Tremblay), a criança de 5 anos que resulta dos abusos que Old Nick comete sobre Joy (Brie Larson) enquanto a mantém em cativeiro.

Jack nasceu dentro da cabana onde está aprisionado, não conhecendo nada do mundo exterior, exceto o que vê pela televisão, que não acredita ser real, qual alegoria da caverna. Apenas existe o quarto. Entre as lições de leitura, os exercícios de ginástica e a confeção de refeições, é incrível verificar como estas pessoas se adaptaram à sua condição. Lenny Abrahamson desafia-nos a aguentar uma hora de claustrofobia e depressão difícil de processar. Como pode um homem conter tanta maldade ao ponto de fechar uma mulher durante 7 anos para a torturar? Como pode uma mulher sobreviver a isto com sanidade?

Subitamente, há uma fuga, a verdade é descoberta e o filme dedica o mesmo tempo às tentativas de Joy em refazer a sua vida e em mostrar a Jack tudo o que ele nunca experimentou. Por a história ser relatada pelo rapaz, entranha-se uma certa inocência que torna Room delicadíssimo. A tentação de seguir um raptor é antiga, veja-se The Collector (William Wyler, 1965); aqui grudamos às vítimas. Os dois atores principais carregam o enorme peso de uma proximidade forçada, geradora de uma ligação inquebrável mas asfixiante. É uma química do outro mundo, à margem do mundo. Acima de tudo, Room fala sobre o amor de uma mãe pelo filho.

8/10

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Spotlight (Tom McCarthy, 2015)

A investigação jornalística é uma das demonstrações mais puras do exercício da democracia. Dependendo das implicações de uma determinada descoberta, o sistema que permite ocultar o tema e dificultar a sua exposição acaba por ser o mesmo que conduz o trabalho dos repórteres a uma conclusão coerente com a ética inerente às liberdades consagradas na constituição. Viver sob os princípios políticos comuns à generalidade dos países ocidentais acarreta inevitáveis doses de cinismo, tendencialmente inferiores às desejáveis doses de justiça. Apesar de tudo, devemos acreditar que a verdade vem ao de cima.

Claro que nem sempre é assim e quando o assunto são religiões as ambiguidades parecem perpetuar-se. O cristianismo definiu bases morais que ainda hoje estão enraizadas nas nossas sociedades… bem como a cultura da culpa, do pecado e do medo. O estado é laico, mas ninguém pode negar a influência que a igreja continua a ter, seja de que lado do oceano atlântico for. Em Spotlight ficamos com a certeza de que, numa cidade cheia de tradição como Boston, a convergência de poderes é inevitável. Não é por isso de espantar que os segredos abundem e sejam difíceis de expor.

Através de uma gestão metódica do avolumar de informação que a equipa de Robby (Michael Keaton) vai recolhendo a partir de testemunhos, registos, advogados e, ironicamente, recortes do seu próprio jornal, o filme cria uma noção de escala quanto à prática da pedofilia entre os padres celibatários. Nesta era em que somos bombardeados com notícias a toda a hora, a nossa memória do que lemos é curta. Registamos alguns factos, claro, e dificilmente se esquece do escândalo que começou com a reportagem publicada por esta equipa de jornalistas no The Boston Globe em 2002 a denunciar este problema.

Todavia, quando somos convidados a refletir no assunto com alguma distância, processamos melhor a dimensão dos crimes destes bons católicos, para além da perversidade em outras áreas que permitiu o encobrimento da realidade e abafou a voz dos inocentes durante tanto tempo. Numa cena, o psicoterapeuta Richard Sipe, que Rezendes (Mark Ruffalo) apenas conhece por telefone, qual garganta funda deste Watergate eclesiástico (All The President’s Men é o eterno padrão), fala num fenómeno psiquiátrico por classificar, estimando que cerca de 6% de todos os padres abusam sexualmente de crianças. Arrepiante.

Depois de acompanharmos todo o processo, somos levados a pensar que a questão está arrumada quando sai no jornal, porque, lá está, é assim que consumimos notícias estes dias, tipo fast food. Robby, Rezendes, Sasha (Rachel McAdams) e Matt (Brian d’Arcy James) chegam à redação nessa manhã e os telefones tocam incessantemente. Não são críticas – são vítimas. Até custa engolir. O argumento não tem paciência para merdas, vai direto ao assunto, e o elenco acompanha com excelência. É importante ver além dos dogmas e vigiar as instituições que agem em nome da fé, aceitar as dúvidas e procurar a objetividade.

8/10

The Big Short (Adam McKay, 2015)

Explicar a crise financeira de 2008 não é tarefa fácil, mesmo que se recorra a milhentas analogias para resumir a essência dos conceitos inventados pelos grandes bancos para mascarar a insustentabilidade de assumir um crescimento infinito da economia. O documentário Inside Job continua a ser o guia mais compreensivo desta trapalhada em que se transformou o sistema financeiro global, para além da frontalidade com que acusa entrevistados comprometidos com a desregulação e a imoralidade que a originou, em nome de todos os inocentes que foram afetados pela crise.

De certa forma, Hollywood está a aproveitar-se da evidenciação dos podres de Wall Street para reformular tramas antigamente associadas aos gangsters. Os mafiosos foram substituídos pelos banqueiros, basta reparar como Martin Scorsese, que percebe uma ou duas coisas sobre a matéria, avançou para um conto de ascensão e queda, à maneira de Goodfellas ou Casino, com a ironia afiada como nunca, em The Wolf Of Wall Street. Para a maioria, a perceção destes crimes bateu à porta com a força de uma bomba no seguimento da falência da firma Lehman Brothers. Para uma reduzida minoria, não foi surpresa.

Em The Big Short, andamos atrás de alguns iluminados. Ryan Gosling é Jared Vennett (Greg Lippmann na realidade), um corretor do Deutsche Bank que ganhou milhões a apostar contra os empréstimos hipotecários de alto risco que mantinham o imobiliário seguro dissimuladamente. Steve Carell é Mark Baum (Steve Eisman na realidade), um gestor de contas que usa o dinheiro dos clientes com o mesmo intuito. Brad Pitt é Ben Rickert (Ben Hockett na realidade), informante que gosta de se autoproclamar como reformado. Christian Bale é Michael Burry (Michael Burry na realidade), um gestor que é o primeiro a investir desta forma.

Desde o início que somos advertidos para a falta de escrúpulos quando se trata de ganhar dinheiro na alta finança. Burry é um semi-autista que arrisca o que tem baseado num palpite repentino mal explicado. Ben tenta incutir ética em dois jovens que ajuda a navegar pelo meio para juntos serem cinicamente recompensados pela audácia de remarem contra a superioridade americana. Baum é o único que tem um episódio pessoal capaz de o transformar em mais do que um desinteressante especulador. O seu estilo confrontador tem raízes que são exploradas e sente com agudeza o dilema de lucrar com a desgraça alheia.

A maioria das personagens tem pouca profundidade e justificam a sua existência com um destilar de dados sem fim. Adam McKay rasga o escasso material dramático em pedaços para o misturar com citações vagas ou despropositadas explicações “meta” dadas por Selena Gomez num casino ou Margot Robbie na banheira. The Big Short é um trabalho de colagem virulento e terrivelmente montado. Sem novidades, prova, contudo, a podridão de Wall Street e a falta de proteção que o americano comum tem, inclusive a nível político, no qual se devia zelar pela regulação e fiscalização de todas as atividades da sociedade.

5/10

The Martian (Ridley Scott, 2015)

Cada vez que Ridley Scott regressa à ficção científica é notícia. Não é para menos, afinal, para os mais distraídos, está-se a falar do homem por detrás de Alien e Blade Runner, dois filmes seminais no género. Contudo, nem o ambiente sufocante do início da saga de Ripley, nem o tom noir que envolveu a procura por quatro replicantes através de uma Los Angeles debaixo de noite e chuva perpétuas têm qualquer tipo de ressonância neste The Martian.

A história gira, como os planetas à volta do sol, em torno de uma equipa de astronautas em visita a Marte que é surpreendida por uma tempestade e tem de abandonar a superfície apressadamente. Infelizmente, um deles, Mark Watney (Matt Damon), é atingido por uma antena que se solta do habitáculo construído para apoio à expedição científica e fica para trás, supostamente morto, dado o impacto que sofre, as más condições atmosféricas e os dados vitais deficitários emitidos pelo fato.

Os restantes cinco membros da missão Ares III chegam sãos e salvos à nave e iniciam uma longa viagem de volta à Terra. A verdade é que Watney acorda no meio da areia, abandonado mas determinado a sobreviver. Com residência já estabelecida, começa a dar uso ao treino intensivo que recebeu para conseguir estabelecer comunicações, encontrar água e multiplicar os mantimentos. Como não podia deixar de ser, era o botânico de serviço, o que é muito conveniente para plantar batatas num ambiente adverso.

The Martian é um mashup de manual de sobrevivência com viagens problemáticas no espaço; imaginem Cast Away e Apollo 13 a embaterem um no outro como dois meteoritos. A interpretação de Matt Damon é também a soma das interpretações de Tom Hanks nesses filmes, em especial no esforço em transformar Watney num homem comum numa situação extraordinária. O humor quotidiano ajuda a criar esse relacionamento e a aliviar a tensão.

Teria sido um erro apostar no dramatismo dos riscos corridos pela NASA para recuperar o seu cientista, porque quando se tenta representar a incerteza de meses em solidão forçada convém haver espaço para a história respirar. Por isso acontecer, os momentos-chave acabam por ter a gravidade que merecem. Win-win. Não são precisos romances lamechas para nos preocuparmos com as pessoas que estão na tela nem elucubrações mirabolantes para atingir relevância científica (tira notas, Nolan).

Auxiliado por sólidos atores, efeitos especiais, fotografia e montagem, Ridley Scott realiza a sua incursão mais verosímil pelos meandros do espaço e da tecnologia. Mesmo que seja duvidoso que o congresso americano voltasse a gastar biliões para resgatar Matt Damon outra vez, os clássicos já mencionados têm um carácter especulativo infinitamente mais vincado. A aposta está ganha e quase arrisco a afirmar que é o melhor filme de Scott desde o subestimado Kingdom Of Heaven. Já agora: o Sean Bean não morre.

8/10

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Star Wars: The Force Awakens (J.J. Abrams, 2015)

Nunca fui grande fã de Star Wars. Talvez seja a forma mais justa de começar este texto. Enquanto ficção científica, é um universo desprovido de extrapolações para o mundo real, não havendo quaisquer comentários sociais ou culturais contemporâneos subentendidos, exceto a inoperabilidade da democracia levada ao extremo por uma república com milhões de vozes divergentes. Enquanto filme de aventura, o carisma das personagens e a dimensão dos cenários geraram momentos icónicos de ação, repletos de reviravoltas, ainda que com base em um maniqueísmo simplista, tirando Darth Vader, sendo por isso, além do seu visual, a figura que mais se destaca, merecendo o lugar central na trilogia anterior.

Isto é importante porque, mais do que qualquer Episódio até agora, The Force Awakens apela à nostalgia de quem adquiriu uma ligação emocional forte com a saga. As referências ao passado eram, obviamente, inevitáveis, mas analisemos o contexto. 30 anos depois de Return Of The Jedi, no qual Vader e Palpatine morrem, deixando a pairar a ideia de que o Império terá caído de vez, somos agora confrontados com uma organização que parece ter herdado os seus meios e fundos, mão-de-obra e vileza: a Primeira Ordem. A estética nazi-chic, nomeadamente a organização irrepreensível, o líder inflexível que adota como braço direito alguém que deve hesitar no último minuto e a procura pela arma perfeita, não engana.

Apesar de acossada pela destruição planeada pelo lado negro da Força na trilogia original, somos levados a concluir que a República terá assistido impávida e serenamente ao surgimento de uma nova ameaça, cujo crescimento foi tal que se apresentam, tão pouco tempo depois, com uma nova Death Star, que suga a energia de sóis, concentrando-a num raio capaz de destruir planetas inteiros. Um grupo de inconformistas, sob a liderança de Leia, concentra-se clandestinamente para travar a luta a que a política vira a cara. Graças a um punhado de coincidências oportunas, surgem heróis improváveis. A probabilidade de virem a dominar a Força e de terem laços de sangue com os vilões ou com antigos conhecidos é grande.

Se estiverem a pensar que isto é algo familiar é porque o enredo é exatamente o mesmo de A New Hope. Há duas agravantes, em primeiro lugar o efeito-surpresa que atingiu o cinema em 1977 é irrepetível, tornando The Force Awakens previsível, e em segundo lugar, considerando os antecedentes, não é minimamente credível que os factos se sucedam sem grandes variações em relação a esse filme. Pode-se argumentar que também não se esperaria que a Alemanha causasse duas Guerras Mundiais no espaço de 25 anos, contudo fica um sentimento de este argumento reduzir o impacto dos Episódios IV, V e VI ao mínimo. São quase irrelevantes na memória coletiva da galáxia, mas reciclados para não comprometer a relação com os fãs.

Ver Han Solo, Chewbacca e os Skywalker com os cabelos brancos é entretenimento de qualidade apenas para o espectador que já os venerava. Para o resto, as personagens Finn e Rey são bem-vindas. John Boyega interpreta um stormtrooper que rejeita ser um cordeirinho. Daisy Ridley é uma sucateira cheia de carácter. O futuro é promissor para estes jovens atores, a quem o humor ao estilo de Guardians Of The Galaxy assenta como uma luva, sem esquecer a intensidade a que, ela em especial, se sujeita nas cenas com Kylo Ren, um adolescente com tiques de Vader. Sem querer ser injusto com J.J. Abrams e restante staff, visto que mais revelações se aproximam, The Force Awakens é, numa palavra, competente.

6/10

domingo, 6 de setembro de 2015

Fifty Shades Of Grey (Sam Taylor-Johnson, 2015)

Estima-se que E.L. James, já tenha vendido mais livros do que Roald Dahl, Lewis Carroll, Albert Camus, Thomas Mann, Ernst Hemingway, George Orwell, e até, imagine-se, Stephanie Meyer, a dona de casa americana elevada a portentosa referência da literatura mundial que criou a saga Twilight, fazendo mulheres de todas as idades suspirar em uníssono por vampiros fluorescentes, e inspirando, nada mais, nada menos, do que uma dona de casa inglesa que haveria de começar por escrever fan fiction na internet baseada nesse universo e acabaria a assinar um fenómeno de seu nome Fifty Shades Of Grey, fazendo mulheres de todas as idades verter líquidos variados perante a ideia de uma sessão de paulada sadomasoquista.

Como todos os bestsellers recentes, teve direito a sequelas e a contrato chorudo para ser autorizada uma versão cinematográfica. Ei-la. Para quem é demasiado conservador para consumir pornografia, para quem é demasiado preguiçoso para procurar os clássicos thrillers eróticos que já percorreram caminhos semelhantes como Nine And A Half Weeks ou Basic Instinct, para quem gosta de seguir o que está na moda sem questionar a sua validade, para quem tem, pura e simplesmente, curiosidade, seja por que razão for, mas não se queira subjugar ao martírio de ler quinhentas páginas de algo que se vê a milhas que tem valor artístico questionável, Sam Taylor-Johnson fez o trabalho por vossemecês.

E, devo dizer, não é tão mau como esperava. “Whaaaat?!”, dizeis em coro. Calma, ainda é bastante terrível. Só que, em nome da cinefilia inveterada e da imparcialidade catóptrica, dei o corpo às balas em 2008 e vi o primeiro filme do supracitado Twilight, decisão que, em retrospetiva, foi das piores que tomei na vida, talvez apenas a par daquela vez em que me lembrei de subir por um poste à varanda do primeiro andar da minha escola primária e acabei por cair, rachando a cabeça no cimento do recreio. Para algo que nunca existiria se não fosse pela inspiração advinda dos balbucios trocados entre um pedófilo de 100 anos, uma adolescente retardada e um lobisomem com abdominais, o horror anunciava-se, qual tempestade no horizonte.

Alguém aqui soube o que queria (talvez a realizadora, quero eu acreditar, pelo talento demonstrado com a estreia, Nowhere Boy, e porque não quero dar esse mérito nem à escritora, com quem não simpatizo particularmente, nem aos argumentistas que aleatoriamente foram sendo contratados para escrever fragmentos de diálogos): há muitas etapas a queimar para se transformar uma universitária virgem numa concubina aquiescente e estas sucedem-se com minúcia. O mundo que rodeia Anastacia Steele e Christian Grey é ruído de fundo quase desde o início, pelo que o chamariz pode ser a promessa de sexo à bruta, mas o magnetismo está na proximidade que temos às experiências que levam até esse ponto.

A ideia de um namorado que aparece em todo o lado como se isso fosse enternecedor ao invés de assustador é um ponto de ligação evidente com Twilight. O resultado é que é diferente, porque aqui há uma série de avanços e recuos que ajudam a suportar a atração, a passagem de certos limites, esticando a corda até rebentar. Quando Bella é salva de um atropelamento por Edward, a dinâmica do futuro casal fica definida, um namorico banal tratado com um dramatismo tão pouco convincente como muito hilariante. Quando Anastacia decide fazer à amiga adoentada o favor de lhe entrevistar Christian para o jornal da universidade, num primeiro encontro desastroso, isso é apenas a ponta do iceberg.

Fifty Shades Of Grey talvez seja um alvo fácil por ser um fenómeno de massas com pouco conteúdo e um compêndio de certas fantasias femininas, desde os mais estranhos fetiches sexuais, a algo mais típico e aparentemente inofensivo – encontrar um príncipe encantado que fique perdidinho de amores e que seja feio e pobre. Haha, claro que não, tem também de ser o homem mais bem-parecido do mundo e ser rico como o carago, nem sendo sequer necessário saber de onde lhe vêm os dólares (a sério, os pais de Christian ainda estão vivos e não ostentam tantos sinais exteriores de riqueza, por isso não é o herdeiro de um grande império, não parece ser da máfia… o que se passa mesmo na Grey Enterprises Holdings?).

Isto é a grande crítica que tenho de fazer à construção das personagens, que é o real problema deste filme. Quando a autora, a realizadora ou a atriz Dakota Johnson falam em público numa história que devolve poder às mulheres têm razão, só que duvido que se apercebam da origem distorcida dessa força. Anastacia nunca entraria em jogos sadomasoquistas se não fosse pelas atenuantes de receber um MacBook novo, um carro novo, viagens de avião pagas, etc. No fundo, a sua relação com Christian só é possível porque ele parece um modelo da Hugo Boss e materialmente há compensação, senão o rapaz não passava de um psicopata com um passado de graves crimes sofridos enquanto menor.

Apesar de submissa no sexo, ela torna-se dominante na relação. Christian é frágil e por isso procura mulheres que lhe agradem, enche-as de mimos, sentindo-se um machão quando consegue prendê-las na sua masmorra e enfiar-lhes uma parafernália de brinquedos pelos orifícios. Com Anastacia não é igual, realmente. Porquê? Porque ela é muito mais forte do que ele e, provavelmente, do que as dezenas de mulheres que usufruíram da mesma atenção anteriormente. Isto vira o feitiço contra o feiticeiro de tal forma que Christian julga estar apaixonado. A desorientação é tanta que o intimidante homem de negócios é abandonado à porta do elevador com um “stop” categórico, uma ordem prontamente obedecida, qual escola de treino de cães.

Bem distante de certas alegações de antifeminismo ou de promover violência contra mulheres. Antes pelo contrário, Anastacia usufrui da fortuna do namorado e acaba por dar outra machadada emocional numa pessoa já bastante perturbada. O resto é pinners, ninguém obriga ninguém a nada, as premissas eram explícitas desde o início. Não estou a querer dizer que ela é intencionalmente manipuladora. Estou a querer dizer que o modernismo da história é assente em pressupostos errados e as críticas idem. Isto para nem falar de Mrs. Grey, interpretada pela terrível Marcia Gay Harden, uma suposta santa e “galinha” adorável, apesar de a sua incompetência maternal ter sido tanta que nunca deu fé que o filho fora abusado anos a fio por uma amiga.

Contudo, os melhores filmes de amor estão repletos de desequilíbrios, de segredos que enquanto espetadores partilhamos com as personagens (que não podem ser partilhados com ninguém do seu mundo ficcionado), sentimentos de culpa, paixões assolapadas… Os casais discutem porque têm ideias diferentes, origens diferentes, personalidades diferentes e o fim anuncia-se, independentemente do esforço de ambos os lados para o contrariar. É triste chegar à conclusão que não se pode continuar a estar com uma pessoa que amamos, porque isso faz pior aos dois do que seguir em frente. Descontando as mensagens confusas, os artifícios XXX e o consumismo séc. XXI, até resta um romance bem construído. É preciso descontar muito, mas sim.

4/10

sábado, 1 de agosto de 2015

Mission: Impossible - Rogue Nation (Christopher McQuarrie, 2015)

O realismo nunca foi a maior preocupação no universo Mission: Impossible, nem na série original, nem na sua tradução cinemática, como os planos elaborados, as máscaras de látex, as one-liners ou a presença dos Limp Bizkit na banda-sonora sempre fizeram questão de sublinhar, o que não quer dizer que não há um nível de discrição mínimo que seja exigível, para nos fazer crer que, com mais ou menos explosões, talvez até fosse possível existir uma agência de espionagem especializada em situações de alta complexidade e que estivesse constantemente a correr o risco de ser exposta, como a Impossible Missions Force, ou IMF.

Claro que tal aura se torna difícil de manter quando, ao quarto filme, o Kremlin é obliterado, o Burj Khalifa é escalado e a Transamerica Pyramid é trespassada por uma bomba nuclear, colocando Ethan Hunt (Tom Cruise) no patamar de alguns super-heróis da Marvel e DC Comics no que diz respeito à destruição de edifícios icónicos. Este franchise tenta equilibrar alguma extravagância com alguma sobriedade e, sob esta perspectiva, o primeiro filme tem-se mantido inigualado, ao qual a única crítica que se pode fazer é a falta de consideração pela personagem principal na televisão, Jim Phelps, que se revela um traidor.

Rogue Nation percebe os fatores que tem de balançar. O argumento não cai no erro de tornar a história demasiado pessoal, como aconteceu em 2000 e 2006, encontrando novos elementos que a engrandecem. Como se sabe, a cena em que o líder da equipa recebe uma gravação que descreve a missão e acaba com “esta mensagem vai-se autodestruir em cinco segundos” é obrigatória e raramente adulterada. Essa regra é quebrada aqui, tal é a influência do Sindicato, uma organização composta por antigos agentes secretos de várias nacionalidades, como Solomon Lane (um Sean Harris sibilino).

A escala absurda de Ghost Protocol é mesmo realçada pelo diretor da CIA Alan Hunley (Alec Baldwin) para suportar a ideia de que não faz sentido manter uma unidade tão rebelde como a IMF, o que manda Ethan Hunt para a clandestinidade à procura de criminosos que podem não passar de um rumor. O seu chefe William Brandt (Jeremy Renner) chega a duvidar da sanidade do agente, assim como o espectador, o que é um elemento interessante de ver, porque éramos sempre levados a desprezar o aparente acaso dos métodos de Hunt. O carisma de Tom Cruise e de Simon Pegg (estilos completamente diferentes) vem ao de cima.

A atriz Rebecca Ferguson agarrou o melhor papel da sua carreira até agora e também o melhor papel feminino dos filmes feitos até agora. Não é estritamente colega, como Emmanuelle Béart e Paula Patton foram, nem “damzel in distress”, como Thandie Newton e Michelle Monaghan foram, é uma espia com lealdade questionável, objetivos em conflito com os da IMF, fria e bem treinada. Robert Elswit na fotografia é outro destaque. A forma como a cena na ópera de Viena se desenrola é de pura mestria visual, em especial nos ângulos utilizados. Rogue Nation sobe assim automaticamente para segundo no ranking Mission: Impossible.

8/10