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domingo, 29 de setembro de 2013

The Ides Of March (George Clooney, 2011)

Quando Stephen (Ryan Gosling) diz a Mike (George Clooney), governador democrata à procura de apoio suficiente dentro do seu partido para concorrer à presidência dos EUA, em plenas eleições primárias no sempre crítico estado do Ohio, que na política “you can lie, you can cheat, you can start a war, you can bankrupt the country, but you can’t fuck the interns”, vem inevitavelmente à memória o caso Monica Lewinski. The Ides Of March joga com imagens e fantasmas recentes da história daquele país de forma extremamente eficaz, por vezes furtiva, como através da semelhança dos cartazes de apoio a Mike com os de Obama em 2008, tentando projectar à partida uma imagem de um candidato tolerante, moderno, acessível e carismático, que é depois desfeita pela revelação da sua relação extraconjugal com Molly, que trabalha na sua campanha, é filha de um amigo do topo da pirâmide do partido e tem apenas 20 anos.

O filme partilha uma grande clareza de linguagem e um olhar clínico sobre poder e corrupção com clássicos como All The President’s Men, Network e o mais recente Michael Clayton, sendo conduzido por diálogos cuidados, soluções de grande cinismo e personagens com morais ambíguas, à excepção de Stephen… pelo menos no início.

De facto, as descobertas que o jovem faz e as más decisões que toma, ainda que sem malícia, acabam por funcionar como uma bola de neve num enredo que se vai adensando e motivando traições, cobardias e confrontos, funcionando como um ritual de passagem, o fim da ingenuidade e o início de uma carreira com potencial. Enquanto a Philip Seymour Hoffman são permitidos alguns momentos de maior exaltação, como a brilhante cena em que despede Stephen, Gosling e Clooney entram num tête-à-tête sibilino, não menos memorável, de charme e trapaçaria, cada um elevando a sua poker face à perfeição. É imputada ao processo democrático a corrupção como uma inevitabilidade; enquanto eleitores e cidadãos sabemos que tal é possível mas esperamos que não seja certo. Porém, The Ides Of March não deixa espaço para optimismo nem esperança quanto ao futuro, acabando com um dos mais enigmáticos close-ups dos últimos anos.

8/10

domingo, 30 de junho de 2013

Tomboy (Céline Sciamma, 2011)

Tomboy é o termo inglês para maria-rapaz, por isso quando vemos Laure pela primeira vez, a espreitar pelo tejadilho dum carro em movimento, com as mãos a esvoaçar ao sabor do vento e à medida que as árvores correm ao longo da estrada na direcção contrária, numa sequência inicial que poderia ter saído de Last Days (Gus Van Sant, 2005) ou chegado via The Passenger (Michaelangelo Antonioni, 1975), sabemos tratar-se de uma rapariga – e no entanto, a sua androginia é tão exacerbada que duvidamos, pelas suas roupas e corte de cabelo, mas também pelas suas expressões, pelas suas reacções, pelo contraste com quem a rodeia, até a sua nudez confirmar o que sabíamos desde logo.

Esse sentido de confusão é o tónico da história e, tal como Laure, tendo-se mudado com a família para outra cidade, convence os seus novos amigos, apesar de algum desajeito, de que é um menino chamado Mickael e vai ao pormenor de pôr um chumaço de plasticina no fato-de-banho para perpetuar essa mentira, é importante que Céline Sciamma consiga estabelecer o mesmo desconforto no espectador o mais cedo possível e fazê-lo perdurar, sem intender chocar. Assim, Tomboy torna-se uma questão de identidade; o pai e a mãe de Laure são amáveis e permissivos, a irmã Jeanne é tipicamente feminina, por isso, se não é o meio, que potencia este comportamento e que consequências acarretará?

O papel resulta graças ao casting: a estreante Zoé Héran encapsula as semelhanças entre crianças em fase pré-puberdade e a sua expressividade serve na perfeição a não verbalização das questões em jogo. Vemos o que quisermos quando a vemos no campo de futebol, a tomar banho em casa, a beijar a vizinha ou a apalpar o peito em frente ao espelho. Disto resulta mais naturalidade do que embaraço, o que traz a calma necessária a uma incomum abordagem à sexualidade em idade de inocência. Sejam quais forem as perguntas e respostas, há um grau de tolerância, que até pode não se transformar em compreensão, de um ou do outro lado do ecrã, mas aguça a curiosidade.

Quando o verão se aproxima do fim, a verdade vem ao de cima. A mãe confronta Laure com pedagogia e emoção, não a punindo pelo que sente, mas expondo a desonestidade da sua atitude. Céline Sciamma alude a uma memória comum da infância, sob uma perspectiva de auto-descoberta que pode ter tanto de pessoal como de metafórica, revelando uma realizadora que em pleno processo criativo encontra a sua voz sendo evocativa. Entrelaçam-se a economia de Robert Bresson e a melancolia de Sofia Coppola, combinam-se o confronto livre-vontade/determinismo e a vontade de viver e chega-se a um filme enigmático e esteticamente irrepreensível, como já o era Water Lilies. Melhor é difícil de imaginar.

9/10

domingo, 24 de março de 2013

Take This Waltz (Sarah Polley, 2011)


A certa altura Lou (Seth Rogen) diz à esposa Margot (Michelle Williams) “I thought you were gonna be there when I died” e imediatamente somos assaltados pela memória de Away From Her, um filme de grande maturidade sobre um conflito amoroso com a doença de Alzheimer como pano de fundo, no qual fica a certeza de que estamos a privar com um casal que, em condições normais, nunca incorreria em traições. O mesmo não se pode dizer em Take This Waltz.

Casados há cinco anos, as personagens principais são apresentadas como duas crianças emancipadas que passam demasiado tempo juntos e que se esforçam muito para agradar um ao outro sem nunca discutirem, tal e qual uma relação de escola secundária, o que pode ter efeitos adversos, especialmente quando a maturidade do cônjuge é ténue ao ponto de fingir que tem um problema motor crónico para ser arrastada em cadeira de rodas num aeroporto lhe parecer cómico.

Desde muito cedo, Polley clarifica a receptividade de Margot para ter um caso extraconjugal, ainda que seja mais fácil falar que fazer, por isso até tomar uma decisão esta afasta e aproxima Daniel consoante a lua. É curioso como o filme soletra que é um desperdício desistir da estabilidade de um casamento com alguém que nos ama, respeita e não deixa de tornar o dia-a-dia minimamente interessante, mesmo quando já há tanta familiaridade, por fantasias irrealizadas, só para nada disso importar no fim.

Com o amante a cama é o centro da casa, até a paixão arrefecer e ser notório que a ligação tem os dias contados; até partilhar a casa de banho é desconfortável. Admiro a naturalidade com que a nudez é tratada em vários momentos da intimidade e Polley consegue aproximar-nos das personagens, quanto mais não seja por rejeitar desenvolver outro subenredo. Reduzindo Take This Waltz ao básico, é a história unidimensional de uma mente-capta que aos poucos ganha coragem para experimentar dupla penetração.

4/10

domingo, 24 de fevereiro de 2013

A Separation (Asghar Farhadi, 2011)


A Separation esteve quase para ser abortado, depois do seu realizador ter exprimido saudade e simpatia por colegas conterrâneos expatriados pelas suas convicções políticas. Amenizada a situação, e graças a financiamento americano, acabou por ver a luz do dia, ganhando o Urso de Ouro de Berlim e o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2012. Como um dos outros nomeados aquando desta segunda distinção era o israelita Footnote, o mesmo governo iraniano que inicialmente censurou Asghar Farhadi, congratulou-se com mais uma vitória, desta vez cultural, sobre o sionismo. Ai está a teocracia de Ahmadinejad em súmula.

Mas pontapeemos estas minudências para longe, porque como dizia Chantal Akerman "um filme é um filme é um filme". O título é auto-explicativo, Simin e Nader, casados há 14 anos, estão em rota de colisão. Ela quer emigrar por umas razões, ele quer ficar por outras. Termeh, a filha menor, está no meio do furacão engendrado pelos pais e também tem legalmente voto na situação. Já o avô, está completamente alheado por ter Alzheimer e ser bastante dependente. Isto tudo é discutido num long take que define o tom logo de início: pouco na vida é preto e branco.

Pensem num kitchen sink drama (onda inglesa dos anos 60) mas em Teerão. A lei árabe tem incompatibilidades com as sociedades ocidentais, sendo a mais óbvia a sinergia entre estado e igreja, e a entrada em cena de outro casal de origens mais modestas expõe muitas falências. Os maiores conflitos são, ex aequo, os do quotidiano e os judiciais, e, de uma forma ou de outra, as frustrações abrem caminho a más escolhas, mentiras e sentimentos de culpa. A Separation é uma bola de neve que testa as convicções morais de adultos que nem sempre têm noção do efeito das suas incongruências nas crianças.

A clareza da economia de meios e da linguagem de Asghar Farhadi é incisiva, e torna-se desolador ver a inocência de Termeh espezinhada por exemplo quando pergunta ao pai se mentiu ao juiz durante o processo em que é acusado de mandar uma mulher grávida escadas abaixo e este esquiva-se, depois confessa e no fim assume-se pronto a voltar atrás nas suas declarações se a filha assim o quiser, mas, para que conste, irá para a prisão entre 1 a 3 anos. As suas dúvidas são legítimas mas não merecem ser deixadas à consideração de uma rapariga que já está a ser forçada a escolher entre dois lares.

Todavia, a situação é muito injusta e é alimentada pela dor do outro casal, que procura um subterfúgio para um aborto acidental. As circunstâncias estão em constante mutação, sendo impossível definir heróis e vilões, apenas grandes actores, que fornecem às personagens o realismo e o humanismo que o filme requer. O Corão aparece em todo o lado, mas a Bíblia também tem algo a dizer sobre não julgarmos para não sermos julgados, não condenarmos para não sermos condenados, perdoarmos para sermos perdoados. Afinal, há certos conceitos que são universais.

9/10

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Faust (Aleksandr Sokurov, 2011)


In Soviet Russia, you don’t see paintings; paintings see you. Bem, a Rússia já não é um estado soviético e, mesmo que fosse, a acção de Faust desenrola-se na Alemanha do séc. XIX, mas a verdade é que este filme de Sokurov parece transportar-nos para um museu de pintura, talvez flamenga, ou melhor ainda, dá o efeito de um museu de pintura flamenga a circundar à nossa volta enquanto estamos sentados numa cadeira e mais do que obrigar-nos a prestar atenção aos contrastes de luz e significados alegóricos, perscruta-nos sub-repticiamente, como que mostrando a descida ao inferno da personagem principal, mas, acima de tudo, perguntando até que ponto qualquer um de nós consegue resistir às tentações do diabo.

O realizador, como bom aluno do mestre Tarokvsky que foi, sempre primou pelo fulgor visual, ou não estivéssemos a falar do homem por detrás de Russian Ark, uma mastodôntica viagem pelo Hermitage contida num único plano-sequência de 96 minutos, mas considero Faust mais multidimensional; a imagem, maioritariamente difusa, captada por filtros que variam na distorção que provocam e na claridade que transmitem, tem uma opressiva qualidade onírica que reflecte a fantasia e o grotesco inerentes a esta lenda, popularizada pela interpretação dramatúrgica de Goethe, de um médico que assina em sangue um contrato com Mefistófeles para obter amor e conhecimento, pagando o preço com a sua alma.

Conto pelos dedos as vezes em que já me senti a imergir tão profundamente no surrealismo de um filme unicamente graças à fotografia como aqui e a intenção desse efeito é mesmo evidenciada por um mergulho dado no rio, arrastando Gretchen, a jovem por quem Faust se baba e cuja inocência fere na tentativa de a possuir. A queda dele causa tanta vertigem que a tela chega a ameaçar rodar sobre um eixo horizontal para o seguir. Faust procura, acima de tudo, poder, e é nessa perspectiva que Sokurov o insere numa tetralogia inaugurada com Moloch, a que se seguiram Taurus e The Sun, com a diferença de esses se focarem em figuras históricas (Hitler, Lenine e Hirohito) cuja corrupção moral teve consequências bem reais.

O seu estilo, contudo, é mais adequado à fábula e revela-se engrandecido com esta mudança. Não mais sob uma influência demasiado ostensiva do seu professor (The Lonely Voice Of Man ou The Second Circle, por exemplo, parecem-me ainda hoje ideias que Tarkovsky mandaria para o lixo), Sokurov encontrou, com o passar do tempo, novos caminhos por onde levar as suas próprias preocupações éticas, familiares e espirituais, ancorando-as também em vagueza narrativa e plasticidade estética. Os diálogos são incessantes e o humor passa frequentemente despercebido, é verdade (há algum no início, talvez extraviado) – mas olhem bem para esta maravilha! In (not-so) Soviet Russia, you don’t speak of the devil; the devil speaks of you.

8/10

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Hors Satan (Bruno Dumont, 2011)


Em verdadeiro espírito Bressoniano, o filme começa com um plano de mãos. Primeiro, a dele a bater à porta. Depois, a dela esgueirando-se para fora a empunhar uma sande. Acções a definirem rituais do dia-a-dia a definirem a ordem que as personagens procuram nas suas vidas mas que acaba sempre por ser quebrada, tornando a busca pela sua recuperação, na segurança de rotinas quotidianas, ainda mais incessante. Andar, por exemplo, caminhar, até à bouça, até ao silo, até a praia, mais, até mais longe, estrada acima, estrada abaixo. Pode ser que no fim se chegue a algum lado.

Os filmes de Dumont são povoados por imagens violentas, retratos de actos violentos, partos de pessoas banais que parecem estar em luta com a maldade com que, por esta ou aquela razão (ou mesmo por nenhuma razão em particular), se lhes atravessou à frente, porque o pecado pode encontrar-nos no outro lado do mundo (Flanders), pode morar na casa ao lado (Humanity) ou até dentro de nós, como parece ser o caso em Hors Satan. Ele (sempre anónimo) é feito de contrariedades e tão fácil de gostar como de odiar - não por factores subjectivos, simplesmente por ser capaz do melhor e do pior.

O ritmo é lento e o som totalmente diegético, para evidenciar a ausência de juízos de valor nas seguintes comunhões maniqueístas: justiça disfarçada de homicídio, um espancamento seguido de um exorcismo, luxúria contrabalançada com um milagre, entre outras. Só sabemos o que o título nos diz - o maior desejo é o de praticar o bem. Talvez seja o trabalho menos interessante de Dumont em termos de história (Twentynine Palms não conta, pois a economia nesse filme é tal que consome qualquer vestígio de história), mas a personagem principal é a mais completa que já criou.

Lembrei-me de The Last Temptation Of Christ (Martin Scorsese, 1988), em que só sabemos que estamos perante o messias porque é identificado pelo nome e por episódios bíblicos amplamente reconhecíveis. Se assim não fosse, teríamos apenas um homem, em conflito consigo mesmo, desesperado por ser uno com a natureza que o rodeia. Em Hors Satan é igual, com um redobrado sentimento de incerteza, porque o ambiente é mais suave e verdejante e a introspecção é proibida. Mais um filme fascinante, cru, rico em textura e significado, para o espectador paciente.

8/10

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

The Future (Miranda July, 2011)


Para uns, o termo cinema independente está relacionado a filmes realizados sem o apoio de grandes estúdios, sujeitos a uma contenção financeira que apura o sentido de improviso na sua produção, mas libertos de compromissos das mais variadas índoles e por isso com uma visão intacta. Para outros, parece ter adquirido o significado exíguo da soma de tiques e posturas, músicas desconhecidas e piadas secas, tendo mais a ver com estilo do que com empreendedorismo. Talvez o primeiro tenha surgido com as necessidades e restrições enfrentadas pelo segundo, mas numa altura em que alguém como Francis Ford Coppola passou a trabalhar por conta própria ou alguém como David Gordon Green fez o caminho inverso, o termo ter-se-á tornado algo incongruente.

Seja como for, The Future preenche requisitos em ambas as facetas. O primeiro filme de Miranda July, Me And You And Everyone We Know teve um sucesso residual, suficiente para reclamar atenção sobre a esposa de Mike Mills, que mesmo assim demorou a dar seguimento à sua carreira, surgindo agora com um orçamento metade americano, metade alemão, 6 anos depois. Deduzo portanto que tenha matutado, pensado, visto e revisto as suas ideias para este trabalho durante muito tempo, o que consegue ser ainda mais deprimente do que o filme em si. É que isto não tem ponta por onde se lhe pegue. Há um casal de mentecaptos com os impedimentos de fala característicos do movimento mumblecore que decide adoptar um gato abandonado e doente recolhido por uma instituição, processo que traz consigo uma hiperbólica percepção da efemeridade da juventude e uma deslocada noção de que a vida de ambos acaba por passarem a ter outro ser vivo dependente deles.

Contado parece uma anedota, visto é inacreditável, porque estas personagens tomam o assunto a sério e decidem mudar radicalmente. Custa-me a engolir o tipo de diálogos que tentam mascarar frases feitas com calão, simplificações babocas ou embaraço tergiversante para parecerem de uma originalidade refrescante, como "it's a drag but it's also amazing" para descrever a experiência da gravidez, mas aqui abundam, quase tanto como os tons pastel nas roupas e nos cenários, talvez um reflexo de tanta indolência (estou a tentar fazer um trocadilho com a palavra pastelão). Quando alguém fala assim fica no ar um miasma de falsidade a envolver a noção de suposta profundidade sobre amor e relacionamentos, que impera especialmente quando a histórica começa a entrar em modo Eternal Sunshine Of The Spotless Mind e a tomar contornos surrealistas.

Só que, ausentes as ideias de Charlie Kaufman e o seu jeito ligeiro de navegar instintivamente pelo subconsciente das personagens para chegar ao cerne dos seus conflitos emocionais, ficam apenas sequências peculiares porque sim, artifícios sem sentido. Que se pode dizer de um homem que fala com a lua e consegue parar o tempo sem qualquer explicação para tal acontecer ou de uma mulher que define como objectivo dançar pateticamente durante 30 dias para uma webcam e que trai o namorado leviana e conscientemente? Deveria achar graça a isto? Não consigo, terei achado engraçado nos primeiros minutos, mas aborrecido a longo prazo, provando que mais vale ter graça do que ser engraçado. Apeteceu-me acabar com um chavão.

2/10

domingo, 15 de julho de 2012

A Dangerous Method (David Cronenberg, 2011)


Afirmar que Cronenberg mudou nos últimos anos pode ser, como dizia um treinador português de futebol, uma "faca de dois legumes." É verdade que não se encontram em A History Of Violence as mutações corporais que se via em Naked Lunch nem se vêem em Eastern Promises os parasitas em ambientes inócuos de Shivers, mas continua presente uma grande preocupação com as transformações alavancadas por ocorrências bizarras e perturbações psiquiátricas. Talvez o caminho tenha deixado de ser feito de dentro para fora e as manifestações grotescas de exteriorização desses fenómenos seja agora mais contida, cingindo-se aos padrões comportamentais, mas continuam a ser muito reveladoras do quão negra pode ser a mente humana.

A Dangerous Method acerca-se, porquanto, com bastante naturalidade. Polido e produzido como nenhum outro dos seus filmes até agora, não é mais do que um duelo de intelectos menos sangrento que os de Scanners, uma exploração de fetiches tão sádicos como em Crash, uma história clínica de psiquiatria mais explicativa que Spider, em que Carl Jung e Sigmund Freud iniciam uma amizade com pouco futuro, dadas as suas opiniões divergentes no assunto da psicanálise, os seus caracteres arrogantes e as diferenças religiosas que também fazem a sua mossa, sub-repticiamente. No meio, claro, uma mulher, Sabina Spielrein, uma paciente em quem Jung testa os métodos de Freud e com quem desenvolve os seus próprios, para além de com ela iniciar uma relação extraconjugal.

O trio Michael Fassbender, Viggo Mortensen e Keira Knightley apresenta-se em grande forma, mas o papel do segundo acaba por ser reduzido. É o envolvimento de Jung com Sabina que ocupa 2 terços do filme, revelando o lado mais frágil de um psiquiatra que pretendia passar uma imagem de grande sobriedade e compostura, mas que acabou por não resistir aos avanços da jovem que tencionava curar e orientar para uma vida socialmente aceitável, aliás a sua grande preocupação. Jung não se contenta com a compreensão de uma doença, quer levar cada doente a ser a pessoa que sempre quiseram ser. Para isso acha vital entrar em território inexplorado, além dos factos e a todo o vapor para o terreno do inexplicável, contra os conselhos de Freud. Onde chegará?

Em privado e nas costas da mulher e das filhas, alimenta o sadomasoquismo de Sabina. São cenas incómodas, em que é difícil perceber se existe amor ou apenas um interesse mórbido. Knightley e Fassbender exploram esta relação com as quantidades corretas de embaraço e entrega. É inegável a forma como as suas inteligências se parecem complementar, especialmente à medida que os anos passam e Sabina acaba por se tornar ela própria uma médica de renome. Entrementes, a cordialidade de Freud, com quem corresponde frequentemente, revela-se falsa e efémera. Falam muito mas não há consensos e ambos parecem conscientes das limitações dos seus trabalhos. A diferença é que Freud aceita-as e Jung é atormentado por elas.

Testam-se a cada frase, dizem ver o outro como igual mas não o fazem realmente e os preconceitos de Freud não deixam muito boa imagem dele. É pouco examinada a ligação de Jung com áreas tangenciais como a astrologia, sonhos e superstições, uma das razões de divergência entre os 2 psicanalistas e da queda da saúde mental do próprio Jung. Há alguma superficialidade no argumento, que deixa o filme dependente demais, para o fim, da típica trama da amante ofendida e alguns eventos passam com muita rapidez e pouca notabilidade, como a partida temporária do suíço do hospital logo no início para serviço militar ou a ida de Jung e Freud à América, da qual acabamos por ver apenas a viagem de barco. São pormenores que acabam por não acrescentar nada.

No fim, toda a energia de Jung parece ter-lhe sido sugada por Sabina, que estará melhor na vida do que o homem que amou e que a tratou. Ceder aos seus princípios e tomar uma amante minou o seu casamento mas não há divórcio, minou a sua reputação mas continua a ter trabalho. Jung ainda tinha muitos anos de vida e os seus trabalhos mais pessoais pela frente, mas em 1913, quando A Dangerous Method acaba, ele não é o mesmo homem. É um homem que sabe o quão fraco é, desligado, prestes a refugiar-se no terreno do delírio. Estas personagens sui generis são exatamente a génese dos filmes mais surreais de Cronenberg, como os interrogatórios de abertura sugerem imediatamente. É então, de certa forma, apropriado que este seja o mais convencional e acessível da sua carreira.

7/10

terça-feira, 8 de maio de 2012

Martha Marcy May Marlene (Sean Durkin, 2011)


Falar dos Estados Unidos da América não vivendo lá é falar quase de uma realidade paralela que tem tanto de fascinante como de assustadora. O poder, a dimensão e a multitude deste país parecem ser propagandeados e comentados ao ponto de exaustão e mesmo assim conseguem soar tão distantes e inatingíveis, talvez ainda mais para quem é criado numa cultura tão introvertida como a portuguesa. Livros como On The Road de Jack Kerouac, músicos como Tom Waits ou filmes como Two-Lane Blacktop levam-nos por viagens aos confins do território, sugerindo um espírito de liberdade e aventura contagiante, que é, por vezes, motivado por razões obscuras ou que tem consequências torpes.

Martha Marcy May Marlene chega a ser opressivo na sua exploração por esse negrume que também está presente na América mais profunda. De vez em quando aparecem filmes como este, em que quem os faz acusa alguma dúvida ou mesmo descrença nos ideais que se pretende associar à nação, porque para além das histórias de sucesso e riqueza há também histórias de solipsismo e tragédia e porque a sua grandeza é feita à custa de muita deceção. E, no fundo, são estes contrastes que humanizam e tornam interessante uma cultura que perde cada vez mais noção da realidade, à medida que novos paradoxos do capitalismo e da tecnologia alienam as pessoas, ao criarem padrões de vida artificiais e ao vulgarizarem a privacidade.

Por conseguinte, chegamos a esta personagem feminina, que em determinados pontos do filme acaba por ter todos os nomes do título, e cuja confusão, quer se manifeste em termos de comportamento ou raciocínio, é alimentada por uma grande recusa em se conformar com a estupidificação da sociedade e um grande desejo de pertencer a algo. Vemos Martha pela primeira vez em fuga, entrando numa bouça, sem olhar para trás, apesar do chamamento de um homem fora de câmara. Vai ao encontro da sua irmã mais velha, que se conformou voluntariamente à classe média-alta e está bem na vida, alguém que não vê há 2 anos. São órfãs que cresceram separadas, com resultados muito diferentes.

Lucy é delicada e paciente, mas é difícil esquecer que abandonou Martha ao seu destino, por isso não é surpresa que a segunda tente a todo o custo ocultar a sua experiência traumática enquanto membro de um culto naturalista, machista e criminoso que se aproveitou da sua ingenuidade, aumentando as suas inseguranças, transformando o seu comportamento em socialmente inaceitável e abusando do seu corpo, mas mantendo-a presa com um conceito artificial de família. O filme apresenta assim duas realidades: o passado, com uma quinta e uma irmandade calorosa mas distorcida e o presente, com uma casa num lago e uma irmã de sangue aparentemente perfeita mas sem noção.

O realizador Sean Durkin consegue atingir um tom de ameaça e incerteza constante, quer seja graças às atitudes erráticas de Martha, aos silêncios desconfortáveis, à argúcia déspota de Patrick, o líder do culto, ou à ambiguidade de certas cenas, tudo fatores que tornam desconfortável a simplicidade aparente do filme. A mais pequena ação das personagens parece isenta de inocência, quando Patrick apanha uma rapariga a fumar age com uma passividade ameaçadora, quando o marido de Lucy pergunta a Martha quais são os seus planos parece mais interessado em vê-la pelas costas do que perceber porque não a via há tanto tempo, até o ato de experimentar um vestido parece tudo menos natural.

Em Magnolia (Paul Thomas Anderson, 1999) ouvia-se "eu tenho tanto amor para dar e nunca sei onde o pôr", algo que me parece adequado para Martha. O vestido é cor-de-rosa, a cor do amor, e acaba manchado de urina. A identidade desta rapariga está fraturada e ela acaba por nunca reagir condignamente ou ter uma resposta emocional lógica seja em que situação estiver, o que leva o espectador à paranoia. É um papel dificílimo que Elizabeth Olsen (yup, a irmã mais nova das gémeas preferidas do cinema infantil dos anos 90) carrega com perfeição, alternando vulnerabilidade com acrimónia nas alturas mais surpreendentes. Martha conhece 2 famílias e não pertence a nenhuma. Abruptamente, acaba.

9/10

sexta-feira, 16 de março de 2012

The Help (Tate Taylor, 2011)


Não sei bem donde é que veio este Tate Taylor, mas pode estar orgulhoso por ter passado de total desconhecido para realizador de um dos filmes mais falados do ano: The Help. O racismo é um assunto delicado, especialmente numa nação que entrou em guerra civil por causa da convicção dum presidente em acabar com a escravatura, caso dos Estados Unidos da América. A terra da liberdade e das oportunidades tem uma história longa de confrontos raciais e nos anos 60 ainda se andava a discutir direitos civis, tendo surgido um movimento pacífico afro-americano que imporia o fim da discriminação.

É neste contexto que a jovem idealista Skeeter Phelan (Emma Stone), motivada pelo seu desejo de ser uma jornalista de renome em Nova Iorque, decide escrever sobre as serviçais negras, que faziam todo o tipo de trabalho doméstico nas casas de brancos abastados, mas encontrar quem queira ser entrevistada para contar a verdade sobre a vida enquanto cidadãs de segunda classe a sustentar, com muito trabalho duro e remuneração abaixo do salário mínimo nacional, o mundo dos ricos é tarefa quase impossível, ainda para mais no estado do Mississippi, onde o ódio racial era enorme, como ouvimos a certa altura.

O filme é algo manso a abordar o quadro maior, praticamente sonegando a brutalidade de grupos supremacistas do sul como o Ku Klux Klan e a luta de figuras como Malcolm X ou Martin Luther King, optando por um retrato mais íntimo e quotidiano da convivência entre raças. O seu valor está nos pormenores: famílias que constroem casas-de-banho no quintal porque o valor das casas aumenta se as empregadas negras não usarem as interiores, táxis com a inscrição "white only", mulheres brancas que esperam ter sempre prioridade com os carrinhos nos corredores dos supermercados, entre outros.

Apesar disso, Skeeter e o argumento reconhecem a importância real destas pessoas. O aumento da violência leva Aibileen e Minny a aceitar fazer confissões sob anonimato, e o que elas têm para contar revela as contradições duma sociedade cheia de dogmas e equívocos, onde mulheres superficiais, sem emprego e incompetentes para a vida têm filhos como se não houvesse amanhã, mas não participam na sua educação, não lhes dão atenção nem carinho, relegando essas funções para as serviçais negras, que acabam por ser as referências das crianças que, mais tarde, se tornam nos seus novos opressores.

Hilly Holbrook é uma dessas mães, que não olha a meios para garantir a hegemonia branca na cidade de Jackson. Muito se tem falado no elenco feminino deste filme, sem dúvida um dos pontos fortes de The Help, com grandes interpretações de Viola Davis ou Jessica Chastain, mas Bryce Dallas Howard como Hilly merece destaque: retrograda, mentirosa, quase sádica na forma como lida com aquelas que cuidam realmente da sua casa e família, e, por fim, vítima de um simples mas inesquecível golpe de justa vingança por parte de Minny (Octavia Spencer, a segunda melhor interpretação), que não me atrevo a descrever.

As personagens são tridimensionais e numerosas, o que torna o filme num mosaico abrangente e capaz de agradáveis momentos cómicos e desconfortáveis momentos dramáticos. Um argumento bem escrito, que pede apenas uma questão, se, para um filme de 2 horas e meia, não haveria tempo para mostrar mais sobre as repercussões do ato desafiador destas mulheres e da comunidade afro-americana em geral, algo que bem podia substituir o insosso namoro de Skeeter. Mérito por, mesmo assim, escavar fundo nesta questão e neste período, quando, 50 anos depois, os EUA têm um presidente negro.

7/10

quarta-feira, 7 de março de 2012

The Artist (Michel Hazanavicius, 2011)


Quando The Artist apareceu em Maio do ano passado no festival de Cannes, dificilmente alguém anteveria o sucesso que veio a ter no seio da crítica cinematográfica internacional e, em especial, numa certa e determinada cerimónia de prémios americana. Robert De Niro, na altura presidente do júri que atribuiu a Palma de Ouro a The Tree Of Life, chegou a dizer posteriormente que gostaria de ter recompensado melhor o filme mudo e a preto-e-branco de Michel Hazanavicius, conhecido (ou nem por isso), por 2 spoofs de 007. Um estilo que, outrora, seria a norma, é agora considerado arrojado e chique. Talvez nunca o tenha deixado de ser e talvez parte do sucesso do filme venha logo daí: a forma como recicla o passado para o recordar e testar a sua durabilidade.

 Sim, está aqui toda a parafernália do século passado e do anterior ainda, os intertítulos, a música incessante, a proporção quase quadrada 4:3, homens com largos queixos e finos bigodes, mulheres com sinais pintados e mais, muito mais, o que poderia fazer de The Artist apenas uma sessão desenxabida de plágio e mímica, mas que, graças ao evidente amor pelo cinema de quem o escreveu e concebeu, o tornam tão charmoso como os filmes do antigamente com Douglas Fairbanks ou Rudolph Valentino, só que com uma nova dimensão de ludismo que uma sincera homenagem consegue trazer. Porque, mais do que isso, é uma ótima história de romance que tinha de ser contada desta forma.

O drama vem de expressões faciais, linguagem corporal e grandes contrastes de luz, e é tudo o que é preciso para contar a vida de George Valentin, estrela ficcional da Hollywoodland (como era referida, esperem para ver como era o mítico sinal na colina) dos anos 20, representado pelo ator fetiche de Hazanavicius, Jean Dujardin, uma encarnação perfeita do tipo de leading man da época. Fascinado por Peppy Miller (Bérénice Bejo), com quem parece destinado a encontrar-se casualmente, ajuda-a a entrar na indústria e destacar-se da concorrência. Com a chegada do som, os 2 iniciam carreiras antagónicas: ele vai perdendo protagonismo, fatal num homem boémio e que adora atenção, e ela vai subindo.

A química entre eles é óbvia, mas é minada pelas mudanças. Esse é o tema principal do filme, mudança, algo a que os EUA são sensíveis, basta lembrar os posters da campanha presidencial de Obama em 2008. O pior é quando o progresso parece ameaçar o que havia até ai, e nesse sentido Valentin está verdadeiramente ameaçado. Começam a ser-lhe oferecidos menos papéis, a esposa pede o divórcio (um casamento que não convence e é o elo mais fraco do guião), o dinheiro escasseia e o investimento num projeto condenado, que o próprio realiza, não ajuda. Em pouco tempo passa a caminhar as ruas da amargura e a afogar-se no álcool. Dujardin imprime dignidade a um homem demasiado orgulhoso e a duvidar de si.

Falar de Hugo, o outro filme famoso de 2011, é inevitável. Os dois vão, de formas muito distintas, dar ao mesmo - um através de um conto infantil e com o maior estardalhaço que as novas tecnologias permitem, o outro através de uma história de amor e infortúnio com aspeto vetusto. Hazanavicius revelou já, por várias vezes, ter sido inspirado por Wilder, Lubitsch e Hitchcock, chegando mesmo a roubar a música de Vertigo, mas é a influência do primeiro que mais se nota, especialmente quando Valentin inicia a sua curva descendente, desde cenas de bebedeira semelhantes a ver The Lost Weekend com o volume no mínimo, aos paralelismos com a atriz sem voz no ecrã Norma Desmond, de Sunset Blvd.

Mesmo sendo mudo, The Artist consegue subverter esse cinema, pois é mudo por escolha e brinca com o público por isso. Veja-se a cena do pesadelo de Valentin, em que ele não consegue ouvir a sua própria voz, um paradoxo fabuloso para o espectador, que também não ouve a voz dele, mas que é forçado a sentir o nervosismo da personagem principal, ao mesmo tempo que o score pára pela única vez no filme para ser possível ouvir tudo o mais, desde objetos a cair, a veículos à distância. A maior piada acaba por ser o destaque dado ao cão de Valentin, um ator que não fala nem que queira. E por fim, antes do cair do pano, um sinal de otimismo em relação ao futuro (you'll know it when you see it)...

The Artist é apenas o segundo filme mudo a ganhar o Óscar de Melhor Filme, depois de Wings, na primeira cerimónia. Divirto-me a pensar se teria tanto sucesso se tivesse sido feito nos anos 30. Talvez, pelo menos Hazanavicius deve pensar que sim, afinal fala-nos sobre a intemporalidade do verdadeiro talento, mesmo que a sua popularidade não esteja no topo. Claro que não sairia da mesma forma e algumas referências seriam anacrónicas, mas o poder da história é inegável, pelo fascínio do cinema, pelas interpretações comunicativas, pela gratidão de Peppy, pela humildade que a vida impõe a Valentin e a nós. Os sorrisos no fim são merecidos. From France, with love.

8/10

quinta-feira, 1 de março de 2012

Hugo (Martin Scorsese, 2011)


Martin Scorsese faz um filme para toda a família. Ninguém diria, mas é verdade. Segundo o que se diz, o que aconteceu foi o seguinte: a filha mais nova do lendário realizador americano leu um livro recente de ficção histórica chamado The Invention Of Hugo Cabret e terá gostado tanto que insistiu com o pai para fazer dali um filme que ela pudesse ver, para variar, e este acabou por ceder. Pedidos de gente próxima de si geraram já dois dos seus mais conhecidos trabalhos, depois da vontade de Robert De Niro em interpretar Jake LaMotta ter levado a Raging Bull e depois da vontade de Leonardo DiCaprio em interpretar Howard Hughes ter levado a The Aviator. Mas desta vez temos aqui algo realmente diferente.

A personagem do título é um órfão parisiense que vive nas paredes da estação de comboios de Montparnasse, no início do século XX. O seu pai era um relojeiro que morreu num incêndio e lhe deixou um bizarro autómato, que deverá conseguir escrever se for arranjado e acionado através duma chave em forma de coração. O tempo é, aliás, um tema recorrente nesta celebração dum passado não muito distante, em especial desde que Ben Kingsley entra em cena como o realizador Georges Méliès, o avô ancião de Isabelle (Chloë Grace Moretz), a rapariga que forma uma amizade com Hugo e, sedenta por uma aventura, o ajuda a desvendar o mistério do boneco herdado e a reinseri-lo no mundo.

Sim, Martin Scorsese é um notório cinéfilo e um entusiástico historiador da sétima arte, sempre fazendo longos discursos sobre as suas influências em entrevistas e replicando planos ou cenas de obras-primas em momentos-chave das suas próprias obras-primas, como a mítica imagem de Joe Pesci a enfiar umas balas na câmara no fim de Goodfellas, tal como um bandido em The Great Train Robbery (Edwin S. Porter, 1903), mas não creio que alguma vez tenha feito uma homenagem ao cinema de forma tão pronunciada como aqui, a não ser talvez nos seus documentários My Voyage To Italy e A Personal Journey Through American Movies, em que parece uma verdadeira criança a falar daquilo que mais gosta.

Esqueçam por um momento a classificação etária de Hugo e concentrem-se no que claramente interessa: o amor a este ofício. Imaginem a admiração, a revelação que deve ter sido assistir à primeira sessão pública de sempre, no Grand Café em 1895, com os irmãos Lumière a exibir a sua nova invenção. Imaginem o impacto que isso deve ter tido num homem empreendedor e sonhador como Méliès. Não imaginem só, olhem para o ecrã e testemunhem. O que Scorsese captura é magia a acontecer em frente dos nossos olhos, é o que ele, é o que eu, é o que qualquer amante do cinema deve ter sentido ao entrar pela primeira vez numa sala de projeção, um fascínio inexplicável e perene pelo meio.

Do primeiro ao último frame, Hugo é uma viagem acelerada num microambiente real moldado digitalmente de forma a quase parecer um parque de diversões, numa verdadeira overdose de efeitos especiais e planos-sequência virtuosos, com personagens caricaturescas e tropelias inofensivas. Essa visão infantil é importante numa França a recuperar da Primeira Guerra Mundial e os filmes de Méliès representam, de certa forma, a ingenuidade de outras épocas, que se deve relembrar e retomar sempre que possível. Vê-los, ainda que parcialmente, no grande ecrã, e ver a reconstituição da sua conceção, na estufa-estúdio do realizador, é por si só razão suficiente para ficar com um sorriso na cara.

O gosto de Scorsese pelo que estava a fazer devia ser tal que voltou a ter um cameo, como fotógrafo, algo que não acontecia desde Gangs Of New York, outro projeto querido do nova-iorquino. A França seguia em frente, o jovem Hugo consegue seguir em frente, o cinema segue em frente, das experiências mudas ao controverso 3-D, cujo uso teima em ser cada vez mais generalizado, mas que, mais uma vez, se revela uma forma de distorcer a imagem e obrigar o espectador a gastar dinheiro em óculos de plástico, e não um mecanismo de amplificar a experiência de ver um filme. Enfim, não quero ser velho do Restelo, que este filme é sobre juventude. A segunda juventude de Martin Scorsese.

9/10

sábado, 21 de janeiro de 2012

Moneyball (Bennett Miller, 2011)


Há seis anos vi um filme distinto e subtil como poucos no panorama do cinema americano contemporâneo, um filme que lidava com uma história de violência bem real e a explorava sob várias perspectivas, fossem mais ou menos fáceis de escrutinar e aceitar, um filme sobre um homem à procura duma oportunidade para trabalhar no sentido de mostrar ao mundo algo novo ou algo antigo duma forma nova - esse filme era Capote.

Bennett Miller volta finalmente ao ativo com Moneyball, baseado em factos reais, trocando o Kansas pela Califórnia, os anos 1950 pelo início do novo milénio, a literatura pelo desporto. Brad Pitt interpreta Billy Beane, o diretor-geral dos Oakland Athletics, uma das equipas mais fracas da liga nacional de basebol. Depois duma carreira como jogador marcada pelo insucesso, apesar do seu enorme potencial, o desejo de Beane continua a ser deixar um legado que o eternize.

Vencer a liga é o objetivo, mas tal afigura-se uma utopia para os A's. Com um orçamento muito reduzido e na iminência de perder 3 dos seus melhores jogadores, o clube parece estagnado, à procura de soluções através dos seus velhos olheiros, com os seus métodos antiquados. A frustração de Beane relativamente às tradições conservadoras do basebol e às limitações que vê à sua frente é bem evidente. Um encontro ocasional com Peter Brand (Jonah Hill) muda tudo.

A fazer trabalho de secretária num clube rival, Beane ouve as suas ideias sobre a importância que a matemática podia ter no jogo e como construir uma equipa com base apenas em estatísticas pode ser a solução para uma equipa vencedora. Com o seu estilo tipicamente breve e seco, Beane contrata-o para assistente e desde cedo se surpreende com as análises objetivas de Brand, que ignora o carácter e o físico dos jogadores em favor dos números apenas.

Esta nova forma de pensar encontra vários detratores no meio, a começar pelo treinador Art Howe (Philip Seymour Hoffman). Quando a época começa, os resultados tardam em surgir e o desemprego paira sobre as cabeças destes homens. Estará Beane a reagir arrogantemente aos falhanços que pautaram a sua vida à conta do basebol, depois de se ter recusado a ir para Stanford e de se ter tornado um flop tanto como outfielder e diretor-geral? Será Beane simplesmente incompetente?

Os paralelismos entre Moneyball e Capote revelam-se de forma peculiar. Se em termos estilísticos Miller preza a simplicidade e orienta toda a nossa atenção para as personagens principais, apenas numa análise superficial se poderá achar que estes filmes são veículos para atores populares. Tanto Pitt como Hoffman dão cara e corpo a homens com um grande sentido de responsabilidade e de esforço, que escondem o quanto isso lhes pesa na alma.

Para o realizador, o sucesso vem de encontro àqueles que fazem sacrifícios para o procurar com paciência, mesmo que de formas inicialmente não antecipadas. Ao mesmo tempo, quando esse sucesso é mediático, assume-se como imperativo manter os pés bem assentes no chão. No caso de Beane, é claro que sente uma grande vontade de vencer e isso chocou sempre com a sua vida, tendo perdido outras oportunidades, incluindo a de ter uma família convencional.

Moneyball, para um filme de desporto, contorna algumas regras e convenções, raramente usando jogos como fator de suspense (e a única vez que o faz é através dum silêncio quase anti-climático) ou jogadores como indispensáveis para a narrativa. O holofote é acima de tudo apontado na direção dos bastidores e até para além deles. Cada vez que Beane, pai divorciado, consegue passar tempo com a filha, parece ganhar forças para enfrentar novos desafios.

Claro que, no fim de contas, isto resulta em grande parte por causa de Brad Pitt. Não há em Hollywood uma personalidade com a mesma combinação de carisma, aparência e talento. Bem vestido, sem cabelo facial e de queixo ligeiramente para fora, ele revela um homem digno e sincero que ainda sente o peso das más escolhas que fez no passado, ao ponto de achar que dará má sorte aos Athletics caso veja um jogo destes ao vivo. Mas ninguém se pode distanciar emocionalmente de tudo.

A participação de Philip Seymour Hoffman acaba por, em comparação, ter pouca força, não é fácil simpatizar com Howe, especialmente quando ele começa a receber crédito pela grande mudança de mentalidade operada em Oakland. Jonah Hill é uma agradável surpresa, num papel mais contido que o costume, ainda que, mesmo assim, seja usado aqui e ali para comic relief. Afinal, apesar da elevada qualidade, este filme não deixa de ser algo leve e comercial, certamente mais do que Capote.

Apesar de alguma falta de segurança na montagem e da estranha decisão de fazer a pequena Casey Beane passar por compositora de The Show da cantora Lenka, Moneyball é dominado por um argumento bem escrito e pelo garbo de Miller. E assim, este ano voltei a ver um filme paciente, um filme com menos impacto emocional que Capote mas com a mesma honestidade, um filme sobre um homem à procura duma oportunidade para trabalhar no sentido de mostrar ao mundo algo antigo duma forma nova...

7/10

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Bad Teacher (Jake Kasdan, 2011)

Regra geral, o nível de consideração que o espectador adquire por um filme é grandemente influenciado pela relação que estabelece com as personagens na tela, pela tridimensionalidade que adquirem com o desenvolvimento da história e por ser ou não fácil para qualquer um de se identificar ou emocionar com o que está a ver. A complexidade dessa tarefa aumenta exponencialmente à medida que diminui a escrupulosidade do protagonista, porque é natural condenarmos pensamentos ou comportamentos que chocam com as nossas morais, e poucos são os filmes que conseguem ter sucesso a este nível. Lembro-me de Kind Hearts And Coronets (1949), A Clockwork Orange (1971) ou American Beauty (1999). Claramente, Bad Teacher não entra nesta lista. A razão é simples: Elizabeth Halsey, a professora interpretada por Cameron Diaz, é horrível, em todos os sentidos possíveis da palavra. Mal escrita, mal interpretada, de má rés, não havendo um segundo que nos leve a simpatizar com ela. O seu noivado com um ricalhaço qualquer é cancelado e Elizabeth vê-se forçada a reiterar o seu trabalho como professora. Sem fundos infinitos para alimentar a sua vaidade, não se conforma com a sua abrupta descida na pirâmide social e prefere continuar a alimentar-se de superficialidades e a comportar-se como uma cabra sem sentimentos. Negligencia a educação dos seus alunos, manipula todos à sua volta; apenas lhe interessa arranjar outro homem com dinheiro, que pode muito bem ser o seu novo colega Scott (Justin Timberlake no seu pior). Não dá para perceber o que é que os argumentistas de Bad Teacher tinham em mente. Recomendo o suicídio a quem olhar para Elizabeth como um modelo a seguir por dizer o que lhe vem à cabeça, perseguir os seus objectivos ou qualquer treta desse género. Podia ser uma mulher independente e forte, mas é só desprezável. Podia ser uma mulher amargurada à procura de uma catarse, mas é só insidiosa. Elizabeth é assim porque sim, por egoísmo, o que torna o filme irrelevante, inconsequente, intragável. Juntando a isto a total falta de química entre os actores, a típica falta de qualidade técnica destas comédias descartáveis de Hollywood e um final incompreensível e irresponsável, que existe apenas para iludir o espectador de que tudo está bem quando acaba bem e que ainda bem que a nossa protagonista não sofreu consequências depois de todo o mal que fez, Bad Teacher é um sério candidato a pior filme do ano.

2/10