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30 novembro, 2020

"Chegou a hora de cansar..., cansei!" (*)



"Despedida", da poeta brasileira Cecília Meireles.

Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão, 
deixo o mar bravo e o céu tranquilo:
quero solidão. 
Meu caminho é sem marcos nem paisagens. 
E como o conheces ? – me perguntarão. 
– Por não ter palavras, por não ter imagem. 
Nenhum inimigo e nenhum irmão. 
Que procuras? – Tudo. Que desejas? – Nada. 
Viajo sozinha com o meu coração. 
Não ando perdida, mas desencontrada. 
Levo o meu rumo na minha mão. 
A memória voou da minha fronte. 
Voou meu amor, minha imaginação … 
Talvez eu morra antes do horizonte. 
Memória, amor e o resto onde estarão? 
Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra. 
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão ! 
Estandarte triste de uma estranha guerra … ) 
Quero solidão.



A "Despedida" é apenas e só a de Cecília Meireles
Eu volto... amanhã. Sim, amanhã!

Fotos tiradas do Hotel Vila Galé Ericeira, Dezembro 2018.

(*) Verso do poeta português José Régio.

18 novembro, 2020

Versos (soltos) do poeta professor José Régio

Por caminhos só rectos, não sei ir.
Nos ínvios por que vou, não sei ficar.
Suspenso do passado e do porvir,
Venho e vou!, venho e vou!, não sei parar.



Sonho-te! Para te humilhar 
E me vingar da tua ausência, 
Nesse instante supremo, estrídulo, e vulgar, 
Em que o delírio atinge o cúmulo da urgência.


Na voz do mar só me ouço a mim, que choro;
Nos lamentos do vento, a mim me escuto;


Sim!, só a mim me entrego e me possuo,
Porque eu me basto para achar o mundo!


Tudo o que penso de mim, 
A minha boca o gritou.


Tinha alegrias profundas, 
Só comparáveis 
Aos meus desânimos… 
…Tenho-as.


Ah, se eu pudesse dizer tudo! E calo 
Cousas íntimas, novas, insondáveis e subtis, 
Todo esse mundo que desminto quando falo, 
Que eu valho…, mas pelo que a voz não diz.


Ai vida sem alegria,
Sem desespero nem nada!...
A gente deita-se..., é noite;
Levanta-se a gente..., é dia;



JOSÉ RÉGIO, pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira, foi um escritor, poeta, dramaturgo, romancista, novelista, contista, ensaísta, cronista, crítico, autor de diário, memorialista, epistológrafo e... (saiba mais, aqui)

Versos retirados do livro "Cântico Negro".

Fotos tiradas no paredão de Cascais.


20 outubro, 2020

Versos (soltos) do poeta açoriano Antero de Quental




A tristeza do tempo... a dor dos séculos, 
Que vão, como gemidos, 
Caindo e arrastando homens e coisas... 
Não se sabe a que abismo!

O vós! - se ides em busca da Verdade! 
Olhai bem..., que essa mão, que assim vos leva, 
Bem pode ser que seja toda treva, 
Quando se aclama toda claridade!

Suspende a minha vida dos teus olhos,
Senão deixo-a cair!

Eu quero imenso horizonte
Para poder delirar!

Aquelas nuvens que vemos,
Esses poemas aéreos,
São sonhos que nós temos,
Nossos íntimos mistérios!
São espelhos flutuantes
Das nossas dores constantes
Aquelas nuvens que vemos...

O amor! Que imenso mar!


Antero de Quental, de seu nome completo Antero Tarquínio de Quental, nasceu em Ponta Delgada, na Ilha de São Miguel - Açores, em Abril de 1842. 
Foi poeta, filósofo, político e dedicou-se à reflexão dos grandes problemas filosóficos e sociais do seu tempo. Líder intelectual do Realismo em Portugal, contribuiu para a implantação das ideias renovadoras da Geração de 70, um movimento académico de Coimbra que revolucionou várias dimensões da cultura portuguesa, da política à literatura. 
Suicidou-se com dois tiros em Setembro de 1891, num banco junto ao Convento de Nossa Senhora da Esperança, na cidade onde nasceu.
Mais sobre a vida e obra, aqui.


Versos retirados dos livros: "Primaveras Românticas" e "Odes Modernas".)
Viagem aos Açores (São Miguel, Terceira, Pico, Faial), em Setembro 2019.

30 junho, 2020

"A mestra de lavores" - Fernanda de Castro


A mestra de lavores
leva, na mala de mão
estrelas, pássaros, flores.

Envelheceu a bordar
a prender em bastidores,
tudo quanto viu passar:
-- Estrelas, pássaros, flores.

Já tem os olhos cansados,
os dedos magros e picados
e sofre do coração,
mas é mestra de lavores
e tem, na mala de mão,
Estrelas, pássaros, flores.

A vida passou-lhe à porta,
passou mas não quis entrar.
Sem alegrias, sem penas,
sem a flor duma ilusão,
foi longa a vida a passar.
Mas agora que lhe importa,
Se em vez de sonhos e amores,
tem, na malinha de mão,
Estrelas, pássaros, flores?
(in "Cartas para Além do Tempo", 1990)


Fernanda de Castro (Maria Fernanda Teles de Castro de Quadros Ferro), romancista, poetisa e tradutora portuguesa (1900-1994)
Com vasta obra publicada, foi galardoada com o Prémio Nacional da Poesia, em 1969.
Nas comemorações dos cinquenta anos de actividade literária disse sobre ela o escritor David Mourão-Ferreira: "Ela foi a primeira, neste país de musas sorumbáticas e de poetas tristes, a demonstrar que o riso e a alegria também são formas de inspiração, que uma gargalhada pode estalar no tecido de um poema...".
Mais sobre a vida e obra de Fernanda de Castro, aqui.

(fotos da net, malinhas Pinterest)



09 junho, 2020

Um poema de... Agostinho da Silva


Gostava que os Portugueses
tivessem senso de humor
e não vissem como génio
todo aquele que é doutor

sobretudo se é o próprio
que se afirma como tal
só porque sabendo ler
o que lê entende mal

todos os que são formados
deviam ter que fazer
exame de analfabeto
para provar que sem ler

teriam sido capazes
de constituir cultura
por tudo que a vida ensina
e mais do que livro dura

e tem certeza de sol
mesmo que a noite se instale
visto que ser-se o que se é
muito mais que saber vale

até para aproveitar-se
das dúvidas da razão
que a si própria se devia
olhar pura opinião

que hoje é uma manhã outra
e talvez depois terceira
sendo que o mundo sucede
sempre de nova maneira

alfabetizar cuidado
não me ponham tudo em culto
dos que não citar francês
consideram puro insulto

se a nação analfabeta
derrubou filosofia
e no jeito aristotélico
o que certo parecia

deixem-na ser o que seja
em todo o tempo futuro
talvez encontre sozinha
o mais além que procuro.
(In "Uns poemas de Agostinho", póstumo 1997)

(foto da net)

Agostinho da Silva (George Agostinho Baptista da Silva,) filósofo, poeta, ensaísta, professor, filólogo, pedagogo e tradutor português (1906-1994)
Mais sobre a sua vida e obra , aqui.

(foto da net)

19 maio, 2020

"de repente os olhos são palavras" (*)


Mal nos conhecemos
Inauguramos a palavra amigo!
Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
Amigo (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!
Amigo é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado.
É a verdade partilhada, praticada.
Amigo é a solidão derrotada!
Amigo é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser, é já uma grande festa!


Poema do poeta português  Alexandre O'Neill (Alexandre Manuel Vahia de Castro O'Neill de Bulhões), Lisboa 1924-1986.

(*) Verso do poeta chileno  Pablo Neruda (1904-1973)

Imagem criada a partir de fotografia. Obrigada, meu amigo!

05 maio, 2020

"A solidão é como o vento" - Graça Pires

Obrigada querida Graça, por este livrinho cativante feito de pequenos poemas que contam histórias:  umas encantadas, outras desencantadas, sempre inspiradas na vida real.
Histórias imensamente bem escritas, que eu li e logo reli, como querendo guardar em mim verso a verso  para sempre.
Parabéns poeta!
(Mas afinal podem contar-se histórias em verso? Acredite que pode!)


VIOLETAS DE CHEIRO
Colheu-as para ela, a mulher:
a planície de espanto
onde alongava o corpo.
Ela, de boca colada na cal,
procurava a fenda por onde abalaria
antes que ele a visse envelhecer.
Envelheceram juntos,
falando cada vez menos
até perderem a voz.
Estas violetas de cheiro (viola odorata) são para ti, querida amiga.

Se ainda não conhece a Graça Pires, ela está aqui, toda, neste poema:

PERFIL
De passagem,
como a véspera imprecisa
do poema,
principia em mim
a planície agreste
da solidão dos outros.
E a não ser
o silêncio poente
dos meus olhos,
tudo o resto me diz
que sou um pássaro
a voar, inconsequentemente,
no sentido das palavras.
(in "Poemas", 1990)

(fotos da net)

01 maio, 2020

"Poesia presente" - António Ramos Rosa

Em qualquer parte um homem
discretamente morre.

Ergueu uma flor.
Levantou uma cidade.

Enquanto o sol perdura
ou uma nuvem passa
surge um nova imagem.

Em qualquer parte um homem
abre o seu punho e ri.
Estou vivo
mas quero viver
Não quero salvar-me porque não posso salvar-me
porque a salvação não existe
Perdi o meu percurso
e tudo o que herdei de mim próprio
No mundo as palavras não compensam
a violência absurda do sofrimento
Na página elas podem ser a invenção
de um frémito perante um corpo nu
É na palavra que se acende a minha vida
mas a minha vida sobra sempre como uma cauda cinzenta
Porque é o infortúnio a norma
e não há resgate para a morte?
O mundo é estranho mas é irrefutável
na sua contínua sucessão que nos transcende
e passa sobre nós como se não existíssemos
Teremos acaso de nos unir e reinventar as nossas vidas
para que os deuses nasçam do nosso desamparo?
O silêncio conduz-nos à sua infinita fronteira
mas o ócio iluminado pode vogar na casa
como se estivéssemos entre palmeiras e araucárias
Toda a viagem é um regresso ao ponto de partida
para partir de novo entre a água e o vento
António Ramos Rosa, de seu nome completo António Vítor Ramos Rosa, nasceu em Faro-Algarve, em 1924 e faleceu em Lisboa, em 2013.
Estudou em Faro, e não terminou os estudos secundários por motivos de saúde.
Trabalhou como empregado de escritório, e desenvolveu o gosto pela leitura de romancistas e poetas portugueses e estrangeiros.
Crítico do Estado Novo, em 1945 participou na formação do MUD Juvenil (Movimento de União Democrática) e conheceu a prisão política.
Em Lisboa, ensinou Português, Inglês e Francês, trabalhou numa firma comercial, encetou uma brilhante carreira de tradutor minucioso,
Começa a escrever poemas e é incentivado a publicá-los.
Em 1958, o jornal «A Voz de Loulé»  publicou um poema seu "Os dias sem matéria", e no mesmo ano chegou às livrarias o livro "O grito claro", o primeiro de uma obra poética com mais de cinquenta títulos.
Foi distinguido com vários prémios, entre os quais: Prémio Nacional de Poesia (1971), Prémio Pessoa (1988), Prémio da Bienal de Poesia de Liége (1991), Grande Prémio Sophia de Mello Brener Andresen (2005).
Em 2003 a Universidade de Faro atribuiu-lhe o grau de Doutor Honoris Causa.
Foi casado com a escritora Agripina Costa Marques.
No final da vida, o poeta lido e reconhecido isolou-se e trocou a arte das palavras pela arte do desenho de expressivos rostos femininos.
Quem foi afinal o poeta atento ao poder da palavra, activista e teórico literário, que escrevia poemas «numa folha, leve e livre» (título do seu último livro, publicado em 2013); com uma «capacidade imaginativa verbal raríssima» (António Carlos Cortez); o «poeta pobre. Mas poucos neste nosso século nos terão assim investido da riqueza de sermos homens» (Vergílio Ferreira)?
José Tolentino Mendonça, que prefaciou esta Antologia, diz assim:
"Para compreender o «caso» Ramos Rosa, tarefa que o futuro há-de apaixonadamente abraçar, será necessário avaliar até que ponto, até que ardente ponto, ele emerge como figura disruptiva na paisagem portuguesa entre séculos. Já Eduardo Lourenço o chamou, com total razão, «anti-Pessoa». Mas isso é apenas o preâmbulo. Ele é também um «anti-Herberto», e a história que se vier a escreve o dirá".

A Antologia  "Poesia presente" (2014) inclui várias dezenas de belíssimos poemas, escolha pessoal de Maria Filipe Ramos Rosa filha única do poeta.

Nela eu encontrei-me com um grande poeta português.
Compre, leia!

(Fotos de ARR e do desenho, da net.)

24 abril, 2020

"Os Sonetos de Shakespeare" - tradução de Vasco Graça Moura


Acusa-me de descuidar-me em tudo,
sem te retribuir grandes valias,
se a  teu amor tão grande não acudo
e o laços dele amarram os meus dias;
de que desconhecidos frequentei
e ao tempo dei direito que compraste
tão caro e de que ao vento a vela icei
a levar-me de ti longe que baste.
Regista teimosia, erros que tenho,
e junta a justas provas presunções,
inclui-me no franzido do teu cenho,
mas poupa-me nesse ódio às agressões:
        pois apelando a ti, ponho em valor
        em constância e virtude o teu amor.
(Soneto CXVII)

"É provável que o principal pilar do cânone da literatura ocidental seja a obra de William Shakespeare, poeta e dramaturgo inglês nascido em 1564, em Stratford-upon-Avon, cidade onde terá morrido em 1616. Além da sua obra dramática e de alguns poemas dispersos, os seus Sonetos constituem um monumento de composição e beleza, um atlas sobre a representação do amor, da passagem do tempo e da finitude, da paixão erótica, do desejo ou da solidão."

Quando em meu mudo e doce pensamento
chamo à lembrança as cousas que passaram,
choro o que em vão busquei e me sustento
gastando o tempo em penas que ficaram.
E afogo os olhos (pouco afins ao pranto)
por amigos que a morte em treva esconde
e choro a dor de amar cerrada há tanto
e a visão que se foi e não responde.
E então me enlutam lutos já passados,
me falam desventura e desventura,
lamentos tristemente lamentados.
Pago o que já paguei e com usura.
         Mas basta em ti pensar, amigo, e assim
         têm cura as perdas e as tristezas fim.
(Soneto XXX)


William Shakespeare escreveu 154 sonetos. 
Originalmente publicados em 1609, abordam temas como  o amor, a inconstância, a proximidade da morte, a tentação, o prazer, a passagem do tempo, e a própria poesia.
Estão todos neste livro, em versão bilingue.

(But that your trespass now becomes a fee,
Mine ransoms yours, and yours must ransom me)

Torne-se um preço a ofensa que em ti vinha;
resgate a minha a tua, a tua a minha.

"A meticulosa tradução de Vasco Graça Moura transporta para a nossa língua todo o génio do poeta inglês; é Shakespeare que escreve e ecoa na nossa língua, ora com exuberância e ironia, ora com melancolia, ora com a notável visão de um génio que sobrevive ao tempo e à morte. Só um tão notável poeta poderia traduzir Shakespeare desta forma."
Vasco Graça Moura (1942-2014), foi poeta, ficcionista, ensaísta, cronista e tradutor, além de desempenhar importantes cargos de relevância pública na vida portuguesa dos últimos cinquenta anos. Entre as inúmeras distinções que lhe foram atribuídas, contam-se o Prémio Pessoa, o Prémio Vergílio Ferreira, o Grande Prémio de Romance e Novela da APE, o Prémio Eça de Queirós. A sua obra poética está reunida em dois volumes publicados em 2012 pela Quetzal (Poesia Reunida, 1 e 2).
Entre muitos autores, traduziu Shakespeare, Racine, Dante, Corneille, Molière, Rostand, Rilke, Seamus Heaney, Hans Magnus Enzensberger, Gottfried Benn, Jaime Sabines.


Compre este livro para si, compre para oferecer àquele familiar ou amigo que gosta de Poesia.
Eu, recomendo efusivamente!

Os Sonetos de Shakespeare, tradução de Vasco Graça Moura
Quetzal Ed., 2016
345 págs.

(foto de Vasco Graça Moura, da net)

17 abril, 2020

Curiosidades “Rol de Leituras”: falemos de poesia!

Continuando com as curiosidades, desvendo hoje os dois livros de poesia e os dois poemas mais visualizados no “Rol de Leituras”.
Li muita poesia nos nove anos da existência do Rol. Em livros, em blogues de poetas que sigo, aprendi a gostar por demais de palavras ditas com precisão absoluta.
Se consegui que alguém começasse a ler/gostar de poesia, não sei. Eu tentei!

Vagas e Lumes”, livro de Mia Couto  (Ler mais...)
Não me basta ser:
eu quero o transbordar de tudo,
o desassombro
que toda margem desconhece.

Não me basta morar:
quero ser habitado
por quem ao destino desobedece.

Não me basta viver:
quero a vida como febre,
o amor como lume e água.

No final, saberás:
o que se ama não regressa

O que se vive
não começa.

E o sonho
nunca tem pressa.
"Se eu pudesse trincar a terra toda", poema de Fernando Pessoa
Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento…
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural…

Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva…

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica…
Assim é e assim seja…
(Alberto Caeiro)

"Versos”, livro de Amália Rodrigues  (Ler mais...)
LÁGRIMA
Cheia de penas
Cheia de penas me deito
E com mais penas
Com mais penas me levanto
No meu peito
Já me ficou no meu peito
Este jeito
O jeito de te querer tanto

Desespero
Tenho por meu desespero
Dentro de mim
Dentro de mim um castigo
Não te quero
Eu digo que não te quero
E de noite
De noite sonho contigo

Se considero
Que um dia hei-de morrer
No desespero
Que tenho de te não ver
Estendo o meu xaile
Estendo o meu xaile no chão
Estendo o meu xaile
E deixo-me adormecer

Se eu soubesse
Se eu soubesse que morrendo
Tu me havias
Tu me havias de chorar
Uma lágrima
Por uma lágrima tua
Que alegria
Me deixaria matar
A minha dor”, poema de Florbela Espanca
A minha Dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.

Os sinos têm dobres e agonias
Ao gemer, comovidos, o seu mal…
E todos têm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias…

A minha Dor é um convento. Há lírios
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca ou viu alguém!

Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém, ouve… ninguém vê… ninguém…


Bom fim de semana.
Protejam-se.

(fotos da net)

06 março, 2020

Espaço dos amigos (2): um Céu sem limites, um Rio de poemas!

Chica e Jaime,  dois amigos que encontrei na  blogosfera.
A Chica é aquela amiga que todos os dias, bem cedo, nos manda palavras perfumadas, carinhosas e motivadoras, escolhidas como flores frescas. A amiga generosa, que recorda datas importantes, participa em todos os desafios, manda mimos quando percebe que algo nos preocupa. A amiga que fotografa céus, mares, raízes, plantas... (e até férias praianas...), e escreve frases e versos encantadores. A amiga que gosta de dar destaque ao que publicam os amigos (eu já  por lá vi céus e mares meus).  Muitas vezes me interrogo: como consegue a Chica publicar tanto e dar-se tanto, a tantas amigas e amigos?
(Diz-me só a mim, querida amiga, qual é o teu segredo. Já deves ter percebido que eu a «gerir» comentários sou um zero, um zerinho!)
O amigo Jaime é mais recatado, um avô babado (é tudo o que eu sei dele), um criador poético inspirado e inspirador. Semanalmente, brinda-nos com versos ricos em ritmo e emoção, que exigem a nossa atenção e instigam a nossa imaginação. Poetiza sobre vários temas, mas é o amor o seu «amor de perdição». (Hoje, aqui, eu confesso que por mais que investigue lendo e relendo verso a verso dum mesmo poema, ainda não descobri se naquele tanto amor o poeta a si se revela...)
Uma coisa não me sai da cabeça: porque não publica ele os seus poemas em livro?
(Se preferires, oh meu amigo diz agora, só para mim, aqui que ninguém nos ouve!)


                                                            ( Chica,  blogue "Céus da Chica", 12 Fevereiro 2020)

"Brilhos que nos chegam  aos pedacinhos..." (Chica)
"Nada melhor para os olhos e coração do que o lindo mar de perto ou longe admirar!" (Chica)
"Por mais tortos e enroscados que seja nossos "galhos", sempre poderemos com eles conviver!!!" (Chica)

                                                                   (Chica,  blogue "Mares da Chica", 26 Setembro 2019 )

VERSOS NA AREIA
A noite
é uma lua diurna sem chama.
O meu rio
é um mar de estrelas sem praia.
O silêncio
é um remanso sem rua de palavras.
A nova que se renova,
mas não mostra a outra face.
No chão,
vejo-a nua na distância
do seu véu de luz usual.
A noite ofega
e a lua nega-se cheia, sem ânsia.
O mar, com tanto isco,
mareia sem moliços no papel.
As estrelas, já orvalhadas,
dançam na rua feia sem nada.
Corro o risco, mas arrisco,
risco estes versos na areia
(Jaime, 19 Julho 2018)
                                                                         (Chica,  blogue "Fincando raízes...", 12 Agosto 2019)

UMA PLANTA, FRÁGIL QUE SEJA
Uma planta, frágil que seja,
move-se,
agita-se,
retorce-se e pode até perder folhas e ramos,
mas aproveita acção do vento
para afundar as raízes no solo
e ganhar mais equilíbrio,
enfrentando-o sempre mais forte.

Cambaleias e dobras-te
no vendaval dos lençóis escuros da insónia,
com o sabor adormecido na boca em desejo,
e maldizes os cardos que o teu corpo
teima em abrir na solidão do teu peito.
Magoas-te desgrenhada no sonho
à procura do equilíbrio,
mas cresces.

Enquanto isso acontece,
nada mais devo fazer que fabricar prateleiras
para que organizes
a tua lucidez e os teus gestos.
(Jaime, 14 Junho 2018)

Se não os conhece (duvido!), espreite os blogues:

Agora, peço que atentem no magnífico poema meu (!) feito com títulos de nove poemas do Jaime, publicados em 2015 e 2016.

Os poemas podem ser
O eco do silêncio
A seiva que nos percorre
O oposto do sol-posto
Madrugadas de pétalas marinhas
Um beijo sonante
Dança de pássaros
Cravos vermelhos
(Um) Rio sem margens

Hum, talvez lhe falte um bom título! 
(Não te zangues, poeta!)

Obrigada, amigos!

21 fevereiro, 2020

Poemas & Poetas: Eugénio de Andrade


PROCURO-TE
Procuro a ternura súbita, 
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo, 
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.

Oh, carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.
Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa, 
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado de luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos ao peito
uma flor ávida de orvalho.
Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém, eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre - procuro-te.


Eugénio de Andrade (pseudónimo de José Fontinhas), poeta, prosador e tradutor,  nasceu na Póvoa da Atalaia, concelho do Fundão, Portugal, a 19 de Janeiro de 1923.
Estreia-se em 1939 com a obra "Narciso", torna-se conhecido em 1942 com o livro de poemas "Adolescente", afirma-se definitivamente com a colectânea "As Mãos e os Frutos" (1948).
"Marginal a grupos ou movimentos, a sua obra traduz com sobriedade os momentos de plenitude que ocorreram na vida, sejam eles de sensualidade ou de dor, sem inibições nem camuflagem, numa sinceridade contida por uma elegante reserva." Considerado um dos grandes poetas portugueses contemporâneos, tem poemas seus traduzidos em vários línguas.
Faleceu no Porto, a 13 de Junho de 2005.

"Entre lábios e lábios não sabia
se cantava ou nevava ou ardia."
(Eugénio de Andrade)

(fotos da net)

24 janeiro, 2020

Espaço dos amigos (1): poemas da Graça, olhares da Gracinha!

Graça e Gracinha são duas amigas da blogosfera que eu admiro muito.
A Graça, pela sensibilidade poética e beleza dos versos que falam de amor, solidão, mar, pássaros, casas, lugares da infância, das «coisas da vida», como ela diz.
A Gracinha, pelo perspicaz olhar fotográfico, garra de viajante incansável, generosa partilha de momentos seus. Com ela já «olhei» lugares belíssimos de Portugal, e elaborei roteiros para próximos passeios meus.

(Gracinha, 11 Dezembro 2019 )

Foram embora os pássaros.
Foram embora,
procurando um tempo
onde a luz deflagre em suas asas.
O seu inevitável regresso 
há-de acompanhar
a rotação dos ventos.
E quando, nos seus ombros, 
nenhum excesso de solidão
me mutilar os braços,
eles hão-de chegar, de novo,
como um incêndio.
Os pássaros.
(In "Uma extensa mancha de sonhos", 2008)

(Gracinha,  24 Novembro 2019 )

Gosto de objectos geométricos desenhados
a compasso por mãos intransigentes.
A multiplicidade dos traços povoa
e despovoa a beleza dos lugares
que nos pendem como se fôssemos árvores.
Preciso e exacto será o momento
 em que regressaremos ao silêncio
com passos de cinza.
Calados nos hão-de vigiar os deuses e os homens.
(In "O silêncio: Lugar habitado", 2008)

(Gracinha,  31 Outubro 2018)

Desenrola-se em nossos olhos
a vertigem transparente
que agride o declínio do dia
quando a lua se encosta nos vidros
e temos o nevoeiro da espera colado nos sonhos.
Há muito que sabemos como é intocável a luz
do orvalho na raiz da mágoa.
Palavras em estilhaços flutuam sobre os móveis
como fantasmas ou como as fadas
da mais antiga infância.
Respiramos devagar o sopro errante do vento.
(In "A incidência da luz", 2011)

A escolha dos poemas e olhares para esta publicação não foi tarefa fácil: todos os poemas da Graça merecem destaque; as centenas de fotos da Gracinha também.
Para quem ainda não as conhece, deixo aqui os seus cativantes blogues:
Graça - http://ortografiadoolhar.blogspot.com/
Gracinha - https://crocheteandomomentos.blogspot.com/

"O fotógrafo tem a mesma missão do poeta: eternizar o momento que passa."
Mário Quintana, poeta brasileiro (1906-1004).

Obrigada, amigas!

13 dezembro, 2019

Árvores e Poemas de NATAL..."up-to-date"!


NATAL UP-TO-DATE
Em vez da consoada há um baile de máscaras
Na filial do Banco erigiu-se um Presépio
Todos os pastores são jovens tecnocratas
que usarão dominó já na próxima década

Chega o rei do petróleo a fingir de Rei Mago
Chega o rei do barulho e conserva-se mudo
enquanto se não sabe ao certo o resultado
dos que vêm sondar a reacção do público

Nas palhas do curral ocultam microfones
O lajedo em redor é de pedras da lua
Rainhas de beleza hão-de-vir de helicóptero
e é provável até que se apresentem nuas

Eis que surge no céu a estrela prometida
Mas é para apontar mais um supermercado
onde se vende pão já transformado em cinza
para que o ritual seja muito mais rápido

Assim a noite passa E passa tão depressa
que a meia-noite em vós nem se demora um pouco
Só Jesus no entanto é que não comparece
Só Jesus afinal não quer nada convosco
(David Mourão-Ferreira, 1927-1996)


O ESPÍRITO DO NATAL
Ano após ano em Dezembro a
árvore artificial
deixa o encerro da cave para ser
a luz no frio. É um pinheiro da China. Quem
se deitar a fazer contas ao ágio
dessoutro negócio
(vinte e quatro mil escudos: já
lá vão nove invernos) a
coisa 
está mais ou menos por
dois contos e tal
o natal. Mau grado à sua copa (inerte
e inodora) falte
o olor a caruma dos natais da minha infância
nela escudo a floresta que ficou por abater
todo um mundo de plástico que
me sobreviverá.
(João Luis Barreto Guimarães, 1967-)


ORATÓRIA DO NATAL CÓSMICO
Natividade. Um deus rompe e sai 
sai da terra no romper da haste
seu presépio é uma flor de urânio
a vaca, tractor branco
o burro, um guindaste

carpinteiro de astronaves seu pai

reis magos em nuvem supersónica

harpas electrónicas

e o anjo que ao sol despia
o resplendor, as asas e o véu
às gentes descrentes anuncia:

- quando ele volta, livre, do cosmos
deuses morrem à míngua de céu
(Luís Veiga Leitão, 1915-1987)


Retirei os poemas do livro "NATAL... NATAIS", a Antologia de Vasco Graça Moura que reúne oito séculos de poesia  em língua portuguesa relativa ao Natal
Inclui 202 textos de 130 poetas. "Inicia-se com Afonso X, o Sábio, cujas Cantigas de Santa Maria foram escritas em galego-português no século XIII, e termina com Rui Lage e Pedro Sena-Lino, poetas que começaram a publicar em livro em 2002 e 2005."
Nesta época do ano gosto de folhear este livro. Encontro sempre pérolas poéticas encantadoras!
Como esta de José Saramago  (1922-2010), o nosso romancista distinguido com o Prémio Nobel da Literatura em 1998.

NATAL

Nem aqui, nem agora. Vã promessa
Doutro calor e nova descoberta
Se desfaz sob a hora que anoitece.
Brilham lumes no céu? Sempre brilharam.
Dessa velha ilusão desenganemos:

É dia de Natal. Nada acontece.



BOA SEMANA!

(Árvores de Natal, fotos da net.)