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quinta-feira, 17 de julho de 2025

Cansaço do Canto


As gentes no mercado os locais na praça
os irmãos de guerra pedem-me poesia dizem
se és poeta deves ter em ti poesia.

Mas isso é tão ilógico quanto dizer de alguém
que se é médico deve ter em si humanidade
ou se bate-chapas amor pela folha-de-flandres.

Perdoai, amigos, não sou nenhum animador de rua
nenhum entretém de ocasião nenhum rigoletto –
ponderai se o vosso negócio não será antes rosas
e eu providenciarei os espinhos.

Conjurais-me por beleza. Pois passai ao largo.
Que ideia tão disparatada
que um poeta cante a paixão e por pintassilgue
levando ao chilique peitos arfantes
por cardaços torturados. Estais enganados.

A lua ela mesma pode inspirar
tanto o romântico como o assassino (esse romântico)
e uma florista merca tanto o decesso como o enlace.

Oh pelos cardos me comovo – evitai-me! – e pintassilgo sim
eu canto o cansaço do canto.

Autor : Daniel Jonas

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Velho Mestre

 

O silêncio
de um fruto sobre a mesa,
apenas ferido
por um gume de luz
no meridiano.

Mas nenhuma ameaça,
nem o arnês de dedos
formando-se no horizonte,
apenas o golpe do sol
afiado na vidraça.

Um fruto
é um velho mestre
esperando na luz
as trevas
do amadurecimento.

O vinho só me lembra o não olvido.
Assim serei silêncio de uma história.
És breve. Já te esquece...

Ignara, ali sorrindo na memória,
Dum tempo que futuro hoje é já ido.
Quem ama anoitece.

Autor : Daniel Jonas
 in Passageiro Frequente, Língua Morta, 2013

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Roma


Roma
é como as ruínas
de uma relação amorosa
restos de
beleza
a céu aberto

Autor : Daniel Jonas
Imagem :Pinterest 

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Ele Teme Não Ter Amor Para o Tanto que Ama


O que te faço desta alegria com que te olho?
Perder-te seria inglório, cuidar-te parece pouco.
Que faço, o que te faço,
se ultrapasso o que me sinto,
da transfusão me transbordando,
e mais temo o fracasso
de não saber chamar o nome
ao que desamo de tanto amar?

Talvez que eu em mim já não exista...
Que vivas, provas que há vida
p'ra lá de mim;
porém não podes tu apenas ser quem sejas
e seres, resplendente,
a sombra de perdão.
O que fazer às coisas que eram antes...
Que te olho de lá de mim!

Que a alegria tomou conta das alegrias,
esboroou a crosta ao pão da noite
e deu a ver o miolo azul do dia
e um girassol de luz por entre as nuvens!
Que o pouco de mim que eu era
entornou-se e se fez grande
e a baleias quis pulmões no lento mar
p’ra respirar-se em se afundar de si...

Não sei o que me faça deste tanto que me apouca.
Que fazer? Que as montanhas são tão altas!
Como dançar com gigantes?
Que loucura de se ter!
Quando me esqueceres, por Deus, não me esqueças!
O espelho fez-me novo já tão velho...
Desliga a máquina a este sonho.
O meu coração mais puro do que eu!

Autor : Daniel Jonas
Imagem : Colin Roberts

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Não sei o que fiz antes de te amar

 

Não sei o que fiz antes de te amar.
Não sei que vão comércio ou vã empresa,
Que Estrada percorri, que luz acesa
Deixei pra que voltasse pra apagar.
Foi tudo um sono, um rente entorpecer.
O que fizemos nós, tão sós no mundo?
Não sei que vão pensar meditabundo
Tornou sua razão razão de ser.
Nem lembro... somos breves, uma onda
Que quebra no olhar sua saliva
E a renda delicada rende aos seixos...
Mas hoje a minha vida quero-a viva!
Pensei que eram vigílias meus desleixos...
Agora a minha noite o dia ronda.

Autor : Daniel Jonas

sábado, 24 de outubro de 2020

Jamais tive eu amor senão por ti


Jamais tive eu amor senão por ti.
Paixões o vento as trouxe e as levou
Qual ave migratória que pousou
Em temporário ninho onde vivi. 

Amor, porém, é ave que povoa
O coração da gente e nele exulta
E ocupa de outra ave mais estulta
O coração partido e o perdoa. 

Mas que fazer, se amor o dei ao vento
E sinto o coração ninho vazio
E sinto um grão calor e grande frio 

E amo em oração no meu convento?
Eu amo quem amei e me deixou;
Não amo quem pousou — só quem voou.

Autor :Daniel Jonas
Imagem : 

Nota : Neste seu mais recente livro de poesia Daniel Jonas regressa ao soneto, num livro desconcertante e surpreendente. Como nos diz o poeta, «Assim no meu soneto aqui gravei / Quem não sou nem fui e menos serei.»

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

O meu poema teve um esgotamento nervoso.

O meu poema teve um esgotamento nervoso.
Já não suporta mais as palavras.
Diz às palavras: palavras
ide embora,
ide procurar outro poema
onde habitar.

O meu poema tem destas coisas
de vez em quando.
Posso vê-lo: ali distendido
em cama de linho muito branco
sem perspectivas ou desejo

quedando-se num silêncio
pálido
como um poema clorótico.

Pergunto-lhe: posso fazer alguma coisa por ti?
mas apenas me fixa o olhar;
fica a li a fitar-me de olhos vazios
e boca seca.

Autor :  Daniel Jonas
Imagem : Ira Zhuyka Dzhul