Mostrar mensagens com a etiqueta Irene Lisboa. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Irene Lisboa. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

chuva

Chuva nos vidros.
Nada, chuva nos vidros!
Espaçadas, casuais, agudas, oblíquas, agulhadas.
Chuva que se anuncia, que apenas se anuncia.
Pingas que vão secando. Se vão arredondando,
tornando imateriais e invisíveis.
Vagas coisas. Como quê?
Como as coisas da minha vida.
Nem já chuva nos vidros…
Já não de vêem os sinais.

Autor : Irene Lisboa

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Não era a minha alma que queria ter


 
Esta alma já feita, com seu toque de sofrimentoe de resignação, sem pureza nem afoiteza.
Queria ter uma altura nova.
Decidida capaz de tudo ousar.
Nunca esta que tanto conheço, compassiva, torturada
de trazer por casa.
A alma que eu queria e devia ter…
Era uma alma asselvajada, impoluta, nova, nova,
nova, nova!

Autor : Irene Lisboa
Imagem : Aykeit Aydogdu

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

até o próprio vento

Mas o que é a cidade? Que é? Tudo, até o próprio vento.
Note-se que o vento e outras coisas que nos parecem do campo, dos espaços livres, são extraordinariamente citadinos.
Passa gente a gritar na rua, a soltar aqueles apelos tão entrados na nossa vida doméstica, e é o vento, afinal, que também tem um timbre usual e que é de toda a parte, que se ouve com mais delícia. Nesta cidade de sons, o do vento é muitíssimo antigo e poético, muito particular.

Autor : Irene Lisboa
Imagem : Kyli Sparre

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Fio de Olhar

E aquele olhar seguiu-me.
Era curto o caminho, um corredor, uma porta.
Olhar curioso.
Vale uma parábola?
Uma mulher andando, um homem olhando.
Mais nada?
Mais nada.

E lá ficou o corredor e a porta.
E a mulher...
Sou eu.
Não valia mais que um olhar, embora curioso e
gracioso.
O homem...
Lá está, estará, interrogativo a olhar uma e outra
que passam.

Aquele olhar, aquele olhar!
Queria-o... como uma coisa que se agarra e que
se possui.
Mas para quê e como?
Fio de olhar, pura curiosidade.
Não é disparate lembrá-lo e tê-lo até notado?
.
 Autor : Irene Lisboa Volume I, Poesia I: um dia e outro dia.../ outono havias de vir. Lisboa: Editorial Presença, 1991, p 304 (Organização: Profª Paula Morão).
Imagem : Xénia Lau

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Penso

 

Penso às vezes que fazer romances é difícil... e de outras vezes que é fácil. Fácil, fácil? Quero eu dizer, acessível.

Aqueles romances de psicologia muito construída, uns bons e outros maus, não me parecem realmente dificílimos de elaborar, mas não me tentam. São artes, regalos ou luxos do espírito. O que me tenta... Bom, será melhor deter-me aqui porque levaria longe o meu fio de ideia. Neste momento reconheço perfeitamente que não estou escrevendo um romance, ou aquilo a que vulgarmente se dá esse nome. Reconstruo e não invento. Investigo a minha vida passada, sacudo-a com curiosidade, e às circunstâncias que a acompanharam. Tudo isto para mim é tema que exploro com indizível e inclassificável interesse. Tudo esteve dormindo comigo longuíssimo tempo, à espera do minuto de despertar, para naturalmente se sumir depois para sempre...

Como disse, não estou trabalhando uma ficção, estou a desfiar sedimentos e raízes; de uma vida ou de várias.

Autor : Irene Lisboa
 Obras de Irene Lisboa, Volume III - começa uma vida. 

sexta-feira, 2 de abril de 2021

...



 Sinto-me subitamente ferida, agastada. Não seria assim tão subitamente... Mas, enfim, uma bagatela, uma pinga a mais no vaso cheio fá-lo transbordar: dá corpo e força às minhas velhas fantasias de revolta...

  Mas a minha revolta é calma, calada, fica só comigo. Entretenho-me com pensamentos mais crus e concretos que os meus habituais, quase sempre flutuantes e desinteressados. Mais nada. Mas aos poucos sereno.

  Não, ninguém me quis molestar! Todo o meu mal é apenas de situação, um mal de acaso. É um mal sem consciência, o mal da miséria; absolutamente incerto, inocente e irresponsável. E por tudo isto vou readquirindo o meu ar distraído e indiferente. Filosófico.

  Mas a minha indiferença, fruto de uma vida anormal, desaproveitada, não consegue amortecer de todo uma certa curiosidade, um distractivo apetite de me confundir com os que me cercam, e de os julgar. Não consegue!

  E assim, vegetando tranquilamente quase a um canto, pressinto ou noto que todas as criaturas se encobrem e se defendem das suas próximas! Que nós, afinal, somos como as coisas ou como os detritos do mar: chocamo-nos e apartamo-nos continuamente, vivemos num puro, permanente jogo de escondias...

  Cada ser que vive é um mistério! A sua rota é obscura e sinuosa, sempre complicada...

Autor: Irene Lisboa 
In Obras de Irene Lisboa, Volume II - Solidão. 
Imagem : Katie Eleonor

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Amor

Lauri Blank
Aqueles olhos aproximam-se e passam.
Perplexos, cheios de funda luz,
doces e acerados, dominam-me.
Quem os diria tão ousados?
Tão humildes e tão imperiosos,
tão obstinados!

Como estão próximos os nossos ombros!
Defrontam-se e furtam-se,
negam toda a sua coragem.
De vez em quando,
esta minha mão,
que é uma espada e não defende nada,
move-se na órbita daqueles olhos,
fere-lhes a rota curta,
Poderosa e plácida.

Amor, tão chão de Amor,
que sensível és...
Sensível e violento, apaixonado.
Tão carregado de desejos!

Acalmas e redobras
e de ti renasces a toda a hora.
Cordeiro que se encabrita e enfurece
e logo recai na branda impotência.

Canseira eterna!
Ou desespero, ou medo.
Fuga doida à posse, à dádiva.
Tanto bater de asas frementes,
tanto grito e pena perdida...
E as tréguas, amor cobarde?
Cada vez mais longe,
mais longe e apetecidas.

Ó amor, amor,
que faremos nós de ti
e tu de nós?

Autor : Irene Lisboa
in 'Antologia Poética'

sábado, 19 de maio de 2018

Meados de Maio

laura lee zanghetti

Chuvoso maio!

Deste lado oiço gotejar
sobre as pedras.
Som da cidade ...
Do outro via a chuva no ar.
Perpendicular, fina,
Tomava cor,
distinguia-se
contra o fundo das trepadeiras
do jardim.
No chão, quando caía,
abria círculos
nas pocinhas brilhantes,
já formadas?
Há lá coisa mais linda


que este bater de água
na outra água?
Um pingo cai
E forma uma rosa...
um movimento circular,
que se espraia.
Vem outro pingo
E nasce outra rosa...
e sempre assim!

Os nossos olhos desconsolados,
sem alegria nem tristeza,
tranquilamente
vão vendo formar-se as rosas,
brilhar
e mover-se a água...

Autor : Irene Lisboa

in 'Antologia Poética'

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Solidão

Sarah Jarret

Cai chuva, chora.
Chora, chora.
Solidão, solidão!

Já não canta o pássaro.
Calou-se a voz, a alegre, a rara.
A que se ouvia solitária.
Cai chuva.

Não sou freira e estou num convento.
A paz, o silêncio, a chuva, os claustros...
Ser freira!

O sequestro, cantar, rezar.
Cai chuva, rude e sem dor.
Tu não choras.
Sou eu que choro.

Que é do pássaro, como cantava?
Voltou, voltou. Pia!
Bendito pássaro, onde estás?
Acompanha-me, já não chove.
Solidão, melancolia.

Autor : Irene Lisboa
in 'Outono Havias de Vir'