Por falar em representação de mulheres nos media: Disney. A Disney deve ser uma das marcas mais conhecidas e amadas no mundo inteiro. Há muito que deixou de ser apenas uma empresa de filmes de animação; desconfio mesmo que hoje em dia o filme anual de desenhos animados que a Disney lança seja apenas o pau de lenha com que atiça a enorme fogueira do seu sucesso. Ou seja, é apenas o que inicia uma nova explosão de peluches, bonecos, fatos de mascarar, copos, toalhas, canecas, pijamas, canetas, mochilas, babetes, legos, etc, etc. Toda a parafernália de merchandise que toda a gente que já visitou uma loja da Disney sabe. Um novo filme de animação gera também novos bonecos, diversões temáticas e desfiles para acrescentar em todo o parque que a Disney tem espalhado pelo mundo. Resumindo e concluindo, a Disney é uma mega-marca mundial que gera milhões e milhões todos os anos, e que é hoje muito mais do que os filmes.
E o que é facto é que a Disney deve ser das marcas mais bem-amadas deste mundo: não há pessoa que eu conheça que não goste dos filmes da Disney, que não olhe para aquele castelo branco sobre fundo azul com olhos sonhadores e um sorriso estúpido nos lábios, e que sinta uma nostalgia da infância a descer sobre si. Mesmo quando a pessoa em causa não cresceu com aqueles filmes; em Portugal, pelo menos, só as crianças de finais da década de 80 - eu incluída - é que cresceram a ver os filmes da Disney. Isso não impede que pessoas da geração dos meus pais amem os filmes da Disney menos do que nós. Só aqui está bem refletido o sucesso da Disney em associar-se com a própria ideia de infância: até pessoas que não a tiveram durante os seus anos de criança a associam fortemente a essa fase da vida.
Eu, estando ciente de todo este poderio de marketing e da máquina geradora de milhões, culpada me confesso: adoro a Disney. A minha evolução nos anos foi proporcional com o número de cassetes de vídeo da Disney que eu tinha, passei boas horas da minha infância colada a um ecrã a ver os mesmos filmes repetidamente, a primeira máscara de Carnaval que me lembro era da Branca de Neve, o primeiro filme que vi no cinema foi o Rei Leão, sei-lhe as falas todas de cor, e continuei a acompanhar os filmes da Disney - ainda que intermitentemente - durante a minha adolescência e idade adulta. Apetece-me dar gritinhos de histeria sempre que entro numa loja Disney e começo a ver peluches do Bambi, da Nala, do Nemo, do Timon, da Marie, do Sebastião. O meu primeiro gato chamava-se Tulose em honra ao gato mais rebelde dos Aristogatos e - confesso com vergonha - fiz um dia uma jura de quando tiver um filho (e for rica, só pode) só o vestir com as roupas mais-que-fofinhas para recém-nascido que se vendem nas lojas Disney. Entretanto, e em minha defesa, voltei a pôr os pés na terra e deixei-me de parvoíces. Acho que o facto de se pôr o pé fora dessas malditas lojas ajuda; aquilo a modos que droga uma pessoa e faz-nos alucinar e jurar estas coisas absurdas.
Entretanto, comecei a ler sobre estas coisas da representação de mulheres na TV, nos filmes, nas revistas, nos anúncios, e a chama-Disney foi-se apagando um bocado. Numa rápida pesquisa mental sobre as histórias Disney duas personagens (e aqui nem são personagens-tipo, são mesmo personagens dos filmes, tal e qual) aparecem distintivamente: a princesa em apuros e o príncipe encantado. Convenhamos: esta é uma dualidade que está tão enraizada na cultura ocidental que até na lógica das relações entre os dois géneros ela se entranha. Não foi a Disney que a inventou, é bom que seja esclarecido. Cheira-me que esta dualidade vem do tempo dos trovadores, dos castelos e das conquistas, dos reis, príncipes, cavaleiros e princesas, dos vestidos longos de veludo e do tempo das trevas (vulga Idade Média. Uma professora de história do liceu tentou provar-nos que a Idade Média não tinha nada sido idade das trevas como por vezes é apelidada, que não tinha nada sido uma época de estagnação ou mesmo de retrocesso no conhecimento, isto por causa dos mosteiros e dos monges que copiavam os livros e porque tinha sido na Idade Média que se inventaram os óculos (??). A mim nunca me convenceu. Entalada entre a época Clássica dos gregos e romanos e o Renascimento, com as suas descobertas do mundo, da matemática, da física e da astronomia, a invenção dos óculos torna-se risível.). Vem da altura em que os homens e as mulheres tinham papéis muito bem distintos e definidos, segregados, e com diferenças extremamente exacerbadas. As mulheres queriam-se passivas, dóceis, puras, os homens queriam-se valentes, ativos, corajosos. O casamento era a salvação da mulher e a sua máxima aspiração; daí que todos os contos de fadas acabem dessa forma, o final feliz que não é mais que a abençoada paz matrimonial.
Pensem em todas as personagens femininas disneyanas: essa tropa de princesas de sorriso sonso e muito cor-de-rosa que invade os corredores das lojas de brinquedos, secção menina. Personagens tão unidimensionais que nem a grande diversidade de cor de cabelo, cor de pele e vestidos consegue disfarçar o facto de serem todas uma só. O argumento que os defensores da Disney atiram é que filmes como a Branca de Neve e os Sete Anões, a Bela Adormecida, a Cinderella e afins são todos muito antigos, feitos numa época em que as mulheres tinham outros deveres e a única expectativa era que agradassem ao seu futuro marido, fossem boazinhas e não levantassem a voz. Hoje os filmes da Disney já são um bocadinho diferentes, já há Mulans que salvam a China e Pocahontas que ficam na sua terra junto do seu povo enquanto o seu amor parte para Inglaterra.
Certo, é verdade que a Disney tem as suas heroínas que fogem ao estereótipo da dama indefesa. Mas é das suas princesas que a marca mais lucro tira. Ainda há poucos anos a Disney criou as "Princesas Disney", um sub-merchandising que junta todas as princesas de personalidade mais diluída e as transforma em "amigas" das meninas apanhadas de surpresa, sob a forma de diários (o que elas possam ter de interessante para contar sobre as suas vidas pós-casamento-com-príncipe-encantado supera-me), fatos de Carnaval, roupa cheia de lantejoulas, kits de maquilhagem, varinhas mágicas carregadas de brilhantes, muita boneca tipo Barbie, e muito, muito cor-de-rosa. Isto, muito honestamente, faz-me ter pavor perante a ideia de vir a ter uma filha.

E a Ariel é quem mais odeio, porra. A gaja é uma sereia e mete-se em drogas para ficar humana, só porque um homem com quem ela nunca falou na vida é giro e tal. E depois abandona o seu mundo, o pai, as irmãs e os amigos para ir viver com o camafeu. A Pequena Sereia: a ensinar desde 1989 a todas as meninas que por um homem se deve abandonar não só tudo o que temos e quem mais amamos mas também - e literalmente - QUEM somos. Ela era uma sereia e transformou-se em humana para poder viver com o seu amor. Todo o sacrifício é pequeno para agradar a um homem.
Mesmo tendo em conta a Mulan, a tal heroína da Disney que se disfarçou de homem para tomar o lugar do pai doente no exército e acabou por salvar a vida do seu capitão e da própria China, já depois de ter sido descoberta como mulher. Bad-ass, sim senhora. Dizem-me também que o Entrelaçados é um bocadinho assim, uma espécie de twist ao conto da Rapunzel e cuja personagem principal não é a típica princesa submissa e dócil. Ou o Rei Leão II, cuja história se centra na cria do dito cujo, a Kiara, e também é uma princesa rebelde. Mas ainda assim, há sempre qualquer coisa de repetitivo nestas histórias: tudo tem que acabar num apaixonamento e consequente casamento. Ou seja, não importa o quão rebelde ou ousada a personagem feminina tenha sido, a sua história só é validada na medida em que acaba bem - e aqui o acabar bem é a eterna felicidade conjugal. Sabe a pouco. Reparem que com personagens principais masculinas isto não é assim; o Toy Story, por exemplo, não tem por base nenhum apaixonamento nem casamento. É apenas a história de dois brinquedos rivais e depois amigos e a fidelidade ao seu dono.

Foi por isso que quando hoje me sentei finalmente a ver o Brave (ou devo antes dizer "a" Brave), o último filme animado da Disney, e aquilo ia superando as expectativas que eu tinha para filme-de-Disney-que-quebra-os-estereótipos-de-personagem-femina a cada minuto que a fita rolava, eu decidi exclamar: "Disney, estás perdoada!". E porque este post já vai longo e o meu rant sobre a Disney foi mais comprido do que eu esperava, aproveito para inaugurar uma nova rubrica chamada "Media, é assim mesmo". O primeiro post é sobre a Brave e vem já, já a seguir. Tenho mais uns quantos já esboçados mas ideias e sugestões sobre personagens, filmes ou programas são muito benvindas ;)
S.