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sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Guia para um run-commute bem-sucedido

Isto era uma coisa que queria fazer desde o verão, quando voltei a trabalhar num escritório regularmente, que ainda para mais tinha cacifos: correr nos meus percursos casa-trabalho-casa.* Dois grandes problemas se me afiguraram:

1. Não tenho chuveiro no escritório, logo correr casa-trabalho não era opção. O combo toalhitas-champô seco nunca foi verdadeiramente opção.

2. Mesmo que ignorasse a questão do chuveiro ou passasse só a correr trabalho-casa, o meu trabalho implica usar o computador portátil sempre, sem exceção, algumas vezes com um livro ou outro atrás. A marmita é importante também, mas até poderia ser ignorada se todas as outras condições fossem perfeitas. Ora isto implica uma mochila grande o suficiente para transportar um Macbook Air dos maiorzitos, que embora levezinho e fininho, ocupa espaço considerável em comprimento e largura. Problema acrescido: sou uma pessoa baixa e magra, assim a modos ao que aqui nas roupas se apelida de "petite", de maneiras que a mochila teria que ser grande o suficiente para acomodar o portátil, mas pequena o bastante para não passar da cintura e poder correr confortavelmente com ela. Problema acrescido ao acrescido: aqui a modos que chove bastante, pelo que waterproof seria uma característica imperativa para conservar o portátil durante mais uns bons anos.

Passei dias e dias obcecada a procurar a mochila ideal. Há muitos modelos, de vários materiais, tamanhos (em litros) e para várias bolsas. Não queria gastar 100 libras numa mochila sem saber se esta era uma rotina à qual ia realmente aderir, mas para ter o conforto necessário para considerar aderir à rotina run-commute, a mochila tinha de ter boa qualidade, ao nível do tecido respirável, do design para amortecer os abanos das coisas que lá vão dentro, e do formato da mochila em si para evitar que comecem a aparecer bolhas, raspões ou dores com o atrito dos saltitos que a corrida implica.

O problema maior com que me deparei foi o problema mestre do nosso mundo: homem como padrão. 90% das mochilas no mercado são desenhadas com a fisionomia do homem médio como padrão: acabam portanto a passar a cintura da maioria das mulheres, o que se torna muito desconfortável quando vamos na corrida sempre com a porcaria da mala a bater no rabo, largas demais nas costas, o que implica mau ajuste no que se queria um fit adequado das várias alças à volta dos braços e dos ombros, e finalmente, nenhuma consideração por mamas, pelo que as fitas que prendem as alças uma à outra pelo peito, crucial para impedir a mala de abanar e descair, estão normalmente no sítio errado.


Esta não é má em relação ao que às mamas diz respeito, já que tem uma fita por baixo e outra por cima, mas continua a ser desproporcional nas alças para uma pessoa pequena: iam-me roçar no pescoço. Acabei por me focar nas poucas marcas que têm modelos desenhados para mulheres, o que me limitou francamente as opções (mochilas de run-commute já são um nicho bastante reduzido de mercado, mochilas de run-commute de preço acessível ainda mais; agora imaginem mochilas de run-commute de preço acessível para mulheres!) A Osprey tem umas catitas.

O maior quebra-cabeças no entanto foi tentar decidir o tamanho da mochila, a tal combinação perfeita portátil-costas pequenas, o que sinceramente com tudo em litros não ajudou. Sei lá eu quanto mede uma mochila de 42l ou de 20l! Fui a uma loja de corrida mas não tinham grande oferta de mochilas, pelo que fiquei um bocado na mesma.

Entretanto comecei a trabalhar no meu escritório atual e cheguei à conclusão que havia uma possibilidade de fazer o meu run-commute sem andar com tralha às costas: deixar as minhas coisas lá! Ideia revolucionária, eu sei. Mas o problema sempre foi deixar o portátil pessoal para trás. Mas sendo que tenho pelo menos dois dias fixos e seguidos por semana em que trabalho a partir do escritório, posso fazer com que o trajeto trabalho-casa do 1º seja feito a correr. Passar uma noite sem o portátil não me vai matar.

Foi portanto isso que experimentei ontem: levei para o escritório a roupa de correr e a minha mochila de hidratação sem a bolsa de água, para poder transportar a carteira, chaves e telemóvel na corrida para casa, deixei o portátil fechadinho a sete-chaves no escritório, e a roupa de dia na mochila debaixo da secretária. E pronto, foi esta a simplificada logística com que tive que lidar.


Eu aqui toda feliz após o meu primeiro run-commute.

Isto não me irá funcionar todos os dias porque só tenho os tais dois dias seguidos garantidos no escritório e uma noite é o máximo que fico sem o portátil (não tenho televisão, todo o meu trabalho e lazer e admin geral de vida é feito através do menino), pelo que só posso fazer run-commute uma vez por semana (e quando há reuniões fora do escritório é para esquecer, já não consigo partir dele, já não consigo deixar a tralha lá). Numa situação mais normal de trabalho num sítio fixo das 9 às 5, cinco dias por semana, é possível correr trabalho-casa às segundas, terças, quartas e quintas (de manhã leva-se a roupa de correr para a tarde, num saco, para não acumular 4 ou 5 malas numa semana no escritório) e na sexta à tarde traz-se tudo o que ficou no escritório para casa. Fácil! Quem tem chuveiro no escritório pode ainda optar por correr as idas também, garantindo só que à segunda de manhã leva a tralha toda necessária para o resto da semana, incluindo mudas de roupa para correr e mudas de roupa para o dia-a-dia.

E pronto, é isto. Lamento não ter uma resposta mais definida e baseada na experiência de uso em relação ao problema das mochilas para run-commute, o que torna o título um pouquinho enganador, mas esta é a minha experiência com um run-commute light e parcial, só trabalho-casa levando apenas carteira, chaves e telemóvel (mas já cheguei a usar esta mochila de hidratação para ir buscar e devolver livros a bibliotecas por esta cidade fora e funcionou muito bem! Imagino que a marmita pudesse substituir o livro. Infelizmente só não cabe é o portátil.)

Experiências, sugestões ou dúvidas nisto do run-commute muito benvindas nos comentários!


ADENDA: uma coisa que me agrada francamente nas corridas trabalho-casa é o facto de ser um treino feito em linha reta: vou de um ponto ao outro, sem ter que voltar para trás e isso mentalmente para mim é muito melhor. Odeio treinos/corridas que passam por pedaços do caminho à volta. A maratona de Lisboa, de Cascais ao Parque das Nações, nesse aspeto ganha muitos pontos.


S.



*Não existe expressão para isto em português, uma palavra que traduza commute. Pensava que os movimentos pendulares que se aprende em Geografia era o mais próximo que havia mas não está correto; um movimento pendular implica que o sítio onde se viva e o sítio onde se trabalha sejam em duas cidades e/ou regiões diferentes, o que não é necessariamente o caso com a palavra commute. Um fenómeno tão importante nas vidas diárias de quase toda a gente, à volta do qual se determinam tantos outros - tempo de lazer, orçamento mensal, decisão sobre onde viver, que transporte utilizar - não tem expressão em português. Está certo.   

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

O frio está nos ossos de quem o sente

Hoje acordei e deparei-me com este cenário:


Aaaah, que bonito, tudo branquinho! Mas só é bonito porque hoje não tenho que sair de casa. E só tenho planos para correr na rua no sábado.
 
Por falar nisso, este fim-de-semana fui outra vez à floresta correr. Sheffield estava com bocaditos de neve nos passeios por isso o meu destino foi fácil de decidir. Os senhores do tempo disseram expressamente que ia nevar durante a noite mas "will not accumulate". Que mentira. Não acumulou como a foto em cima, mas havia brancura nos passeios. E eu fui os 15 minutos entre minha casa e a floresta a correr à pinguim, devagarinho e a levantar muito os pés com medo de escorregar.
 
Mas, caneco, se valeu a pena. A entrada da floresta tem um caminho de alcatrão e esse estava gelado. Mais um bocadinho de pinguinismo e uma ou outra escorregadela imperceptível.


Para cá logo aprendi e vim pela erva nevada.
 
Mas quando aquilo passou para terra batida foi o céu. Correr na neve fofa é espetacular. É divertido, não tem o impacto que o alcatrão ou os passeios têm nas articulações, e o treino passa a correr porque uma pessoa fica deslumbrada com as paisagens à volta.






É um treino mais lento, não só porque o caminho por entre a floresta é sempre a subir, mas porque ando sempre a parar para admirar a vista e tirar fotos. Ainda por cima estava um sol brilhante e bonito, com tanta gente a passear os cães, a passear-se a si e aos filhos, a correr, a fazer BTT, ou na esplanada (!). Os Sheffieldianos apreciam o ar livre, quer-me parecer, e estão se a marimbar para o frio, só felizes porque não chove.
 
Quanto mais me embrenhava na floresta mais abundante era a neve, até que comecei a achar que estava num postal de Natal.




Era hora de voltar para trás mas só me apetecia continuar porque queria descobrir o que estava além daquela curva, além daquele morro, além daquelas árvores.
 
E depois ganhei tanta sede que queria água e não tinha, ainda por cima com o rio a correr ao meu lado o tempo todo. O rio! pensei eu, É isso mesmo! E fui beber água gelada ao riacho que ali passa. Soube mesmo bem, quem precisa de bebedouros ou garrafas de água à cintura quando se tem água pura aos pés. Fiquei foi o resto do caminho com a mão que fez de tacinha gelada, mas who cares.
 
Saltei mais uma vez as pedras do rio, bebi mais um bocadinho de água fresca e passei por um lago congelado, antes de sair da floresta e subir para casa.
 


 
 
Foi um dia bom. Enlameado, apercebi-me ao fim, mas bom.
 
 
 
 
S.


 

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

A Velocidade e a Distância entram num bar e dizem à Altimetria: ...

- "... ah, e tal, a ver se estás quieta!"

A minha mania é que 13 km aqui são iguais a 13 km em Bruxelas. Não são. Especialmente se também vou com considerações de tempo.
 
Pois o que voltou a acontecer? Voltei a ficar manca.
 
Nos primeiros meses de corrida, por esta altura há um ano, andava só feliz que conseguia aguentar cada vez mais quilómetros a correr. Era um percurso plano, planíssimo, a minha volta pela Avenue Louise e mais tarde pelo bairro de Etterbeek. Nunca me ralei com o tempo que demorava, só queria não parar de correr durante N-km. Veio a meia-maratona, veio a lesão, veio a paragem. Veio a viagem de bicicleta, manteve-se a paragem.

Há 3 meses quando recomecei novamente a correr decidi que só a distância já não metia pica, queria ser mais rápida. Como disse há 9 meses, queria voltar a correr os 21 km, mas desta vez em bom.
 
O problema foi que mudar-me para Sheffield dos Picos mudou as condições desta equação. Não só ando a aumentar a carga de quilometragem, como a carga da velocidade, como a carga da altimetria. E o meu corpo não aguenta isto tudo ao mesmo tempo. Vou repetir isto novamente para ver se me convenço a mim própria: NÃO. AGUENTA. TUDO. AO MESMO. TEMPO. 
 
"A semana passada corri 10, esta quero correr 11 ou 12", é sempre a minha lógica. Mas mantendo a velocidade, se possível melhorando. E metendo-me por caminhos desconhecidos que envolvem sempre subidas longas e íngremes como um raio, e descidas semelhantes (o que também é muito amigo das lesões). Ignorar sempre os treinos em que é suposto correr a uma velocidade e distância moderadas porque, oh, se já fiz esses km e tempo antes, o que é que vou estar a treinar, então? Boooring.
 
Nunca dou tempo nem espaço ao meu corpo para se habituar às três novas coisas, mantendo-as as três constantes uma vez ou outra. E o que acontece? A perna do costume a acender-se com as lesões do costume, tipo árvore de natal: canela, PLIM!, joelho, PLIM!, anca, PLIM!. E lá fica a corrida suspensa por uns tempos.
 
A medida não pode ser só o fôlego, a mecânica da coisa ainda é mais frágil e importante. Tenho que ser mais esperta do que isto, e aprender deu uma vez por todas que a paciência é uma virtude. E dar um bocadinho mais respeito ao meu corpo do que isto. Ele merece. E ele chega lá, eu sei.
 




S.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Último estado da evolução

Vamos lá ver: eu sou uma pessoa que ama dormir. Mas ama, mesmo, do género não ter vontade de sair da cama quando não tem nenhum horário a cumprir. Abraçar a almofada, enroscar no edredão, estas são duas das minhas coisas preferidas neste mundo. Um bocadinho abaixo de crepes com Nutella, mas não muito, e bastante acima de correr.
 
Em quantos e quantos domingos, o meu dia semanal da corrida longa, eu adiei a hora da partida para além do meio-dia para conseguir dar mais um abraço à almofada, mais um suspirozinho de contentamento por estar deitadinha sem fazer nenhum. Por quantos e quantos fins de tarde esperei eu este verão até que estivesse fresco o suficiente para poder ir dar uma corrida, sem nunca ter esperado por uma madrugada para obter o mesmo efeito. Quantas e quantas vezes olhei com a admiração reservada a heróis atletas que se levantam às 5, 6 da manhã para irem correr por essas estradas e matos afora, especialmente no inverno.
 
Por isso, quando, hoje, pela primeiríssima vez na vida, me levantei da cama às 7 da manhã para ir correr antes das aulas, percebi que a minha evolução está completa. Tornei-me uma daquelas pessoas.
 
 
 
 
 
"Completing a PhD is a marathon", disse o outro, numa das primeiras coisas que ouvi quando cheguei à universidade. Hahahaha, ai é? Então já são duas! :D





S.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Correr uma maratona será a coisa mais feminista que já fiz


Já dizia a Simone de Beauvoir que uma das coisas que mais contribui para a aparência e sentimento de inferioridade e fragilidade das mulheres é o facto de não lhes ser estimulado o lado físico durante a infância e adolescência. Coisas como subir a árvores, jogar futebol nos intervalos e afins são experiências ainda de rapaz. Tenho a impressão que as coisas estão a mudar devagarinho mas o cunho de "maria-rapaz" ainda é demasiado usado para rotular crianças que gostam destas coisas e que por acaso não são rapazes. A rapariga quer-se sossegada, bem-comportada, enfeitada, não de calças rotas e pés sujos.
 
"Cette impuissance physique se traduit pour une timidité plus générale: elle ne croit pas avoir une force qu'elle n'a pas experimenté dans son corps; elle n'ose pas entreprender, se révolter, inventer: vouée à la docilité, à la résignation, elle ne peut qu'accepter dans la société une place toute faite."
 
"Esta incapacidade física traduz-se numa timidez mais geral: ela não crê ter uma força que nunca experimentou através do corpo; ela não se atreve a empreender, a se revoltar, a inventar: votada à docilidade, à resignação, ela não pode aceitar na sociedade mais do que um lugar pré-determinado."
 
O corpo feminino é sobretudo feito para ser visto e admirado como um objeto, não para ser sujeito e ativo. A atividade, em havendo, é para servir o propósito de o melhorar para admiração, seja perdendo peso, seja tonificando-o, seja combatendo a odiada celulite, nunca sendo um fim em si mesma. Por isso mesmo durante tanto tempo o desporto feminino foi quase um oxímoro, algo indesejado porque masculinizava as mulheres, associando-lhes características tão horríveis e tão não-femininas como competição, força, determinação, liberdade.
 
Pois, a liberdade. Descubro agora que é exatamente isso que me move a mim - e, suspeito, muitos outros corredores amadores - a voltar uma e outra vez à estrada mesmo quando no dia anterior os pulmões quase explodiam, o coração quase saltava da caixa toráxica e o estômago quase se revoltava com o esforço desconhecido. Não é masoquismo, é amor animal à liberdade que pôr um pé à frente do outro e repetir o mais rápido possível nos dá. É saber que só com os meus pés consigo fazer um caminho que durante toda a minha vida fiz de carro, milhares de vezes. Saber que hoje sou capaz de correr daqui à Ericeira. E para a semana sou capaz de ir e voltar. E que daqui a um ano conseguirei correr até Lisboa, se quiser. Só com o meu esforço, com o meu corpo, mais nada. Há lá ideia mais libertadora do que esta?
 
Não admira que até há menos de 40 anos não houvesse maratonistas. Até aos anos 60 não havia nenhuma prova olímpica feminina de corrida com mais de 200m. Havia a ideia de que não era apropriado as mulheres correrem longas distâncias. Apesar de uma mulher, Stamatis Rovithi, ter corrido uma maratona pela primeira vez em 1896 e de nesse mesmo ano Melpomene ter corrido a maratona olímpica estando registada mas sendo-lhe negada a entrada no estádio para a meta, estávamos em 1972 e a mundialmente famosa Maratona de Boston proibia formalmente mulheres de correrem a distância mítica dos 42195 metros. Proibir, vejam bem. Não bastava desencorajar (pensar em 42 km já é desencorajador o suficiente, ainda mais para uma mulher de meados do séc. XX, bem consciente da sua inferioridade física e das características que uma mulher de bem deve possuir, sendo que a destreza e resistência físicas não eram duas delas). Uma das mulheres que desafiou essa proibição só foi descoberta uns quilómetros depois de começar e escapou à perseguição dos organizadores com a ajuda dos colegas de equipa que lhes bloquearam o caminho. Outra escondeu-se atrás de um arbusto perto da linha de partida e zás, largou a correr quando a prova começou, outra foi puxada mesmo antes de meta e impedida de acabar. Em 1972 lá os organizadores da Maratona de Boston permitiram que mulheres também corressem na prova, após estas persistentes corredoras e a proibição da sua ambição terem ido parar à primeira página dos jornais americanos.
 
Mesmo assim foi só em 1984 que a maratona feminina se estreou como prova olímpica. 30 anos. 30 ANOS. Há pouco mais de 30 anos ainda andavam os paspalhos do comité olímpico a arranjar desculpas como "não é aconselhável as mulheres correrem tanto, faz-lhes mal" (mesmo depois de vários médicos terem emitido comunicados a dizer que não havia nenhum entrave físico a que mulheres pudessem correr maratonas) para não deixarem atletas correrem uma maratona olímpica. A condescendência sempre foi um aliado da resistência à emancipação feminina. No desporto não seria diferente.
 
Ide ler sobre a luta pela instauração da maratona olímpica feminina, que é de uma novidade que eu não fazia ideia. A luta pela igualdade num sítio inesperado.
 
Posto isto, não é surpreendente que uma feminista e apaixonada recente disto do meter um pé à frente do outro e repetir rápido tenha decidido que o seu próximo objetivo é correr uma maratona. Quero engordar as fileiras femininas das maratonas, quero ser mais uma a desafiar o que é suposto uma mulher fazer ou não fazer, conseguir ou não conseguir, gostar ou não gostar. Porque a verdade é que eu falo de liberdade animal, da ânsia de comer estrada com os pés e de saber que consigo ir até ali, mas a corrida deu-me outra liberdade, inesperada: a liberdade de desafiar as amarras do meu género. O meu corpo é o meu maior aliado, sou eu, não é nenhuma máscara inerte e exterior a mim, fonte de ansiedade por não corresponder a padrões impossíveis. A minha perspetiva sobre o que posso fazer com ele mudou irremediavelmente, e com ela a minha perspetiva sobre o que me faz feliz. Deixei de ter paciência para enfeites, adornos, roupa restritiva, calçado que me impeça de saltitar se me apetecer (ainda não apeteceu, mas gosto muito de caminhar durante horas, o que em termos de calçado vai dar ao mesmo). Não desdenho nenhuma destas coisas, simplesmente agora aceito de uma vez por todas que não as quero, elas não me servem. Isto sempre foi verdade, a diferença que a corrida trouxe foi levar-me a admitir isto de uma vez por todas. Por outro lado, agora amo vestidos, calções e saias rodadas como nunca. A minha dicotomia não é feminino-masculino, é restritivo-confortável. Só acontece que as duas coincidem demasiadas vezes e não por acaso:
 
"Les coutures, les modes sont souvent apliquées à couper les corps féminin de sa transcendence: la Chinoise aux pieds bandés peut à peine marcher, les griffes vernies de la star d'Hollywood la privent de ses mains, les hauts talons, les corsets, les paniers, les vertugadins, les crinolines étaient destinés moins à accentuer la combrure du corps féminin qu'à en augmenter l'impotence."
 
"As costuras, os padrões são frequentemente aplicados para privar o corpo feminino da sua transcendência: a chinesa com os pés enfaixados mal podia andar, as unhas envernizadas da estrela de Hollywood privam-na das suas mãos, os saltos altos, os espartilhos, as cestas, a armação dos vestidos, as crinolinas foram destinados menos a acentuar o corpo feminino do que a aumentar a sua impotência."
 
 
Já aqui tinha falado disto mas näo resisto porque afinal quase tudo nisto da desigualdade dos sexos vai parar ao mesmo: a visão do corpo feminino como objeto, para ser olhado, admirado, possuído, e nunca como um sujeito.
 
Assim, e para terminar, fico contente que duas paixões que me surgiram paralelas se complementem tão bem e agora até se alimentem uma à outra. Correr uma maratona não é a coisa mais feminista que se pode fazer (até porque há as ultras, haha) mas será sem dúvida a coisa mais feminista que eu já fiz. Desafiarei os meus limites, desafiarei as amarras do meu género e manter-me-á na linha da pessoa que eu quero ser. E eu quero ser a pessoa que chora ao ver Lisboa a aproximar-se, só que desta vez pelo chão. Maratona EDP de Lisboa de 2015, me espera.
 
 
 
 
S.       

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Ele há coisas... #46

Estou a ver pessoas a correr na televisão. Profissionais. Só me ocorre uma coisa:
 
Mas será que a humanidade ainda não evoluiu o suficiente para inventar um melhor método para prender dorsais do que com alfinetes de dama?




S.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Ir ao fundo e voltar

Na quarta-feira voltei aos treinos de corrida, após dois meses desde o último. Eu considero-me uma pessoa em forma - ando a pé vários quilómetros todos os dias, ando de bicicleta, de vez em quando vou ao ginásio - mas a corrida confirmou-se-me mais uma vez como sendo qualquer coisa à parte. Foram só 5 km mas o meu corpo manifestou todas as manhas como se tivessem sido 15 ou 20, manhas essas que já lhe conheço à distância. É o "ai que isto custa", dramáticozinho e cedo demais para que eu lhe dê algum crédito, é a dorzinha num tornozelo qualquer ao início que em insistindo desaparece como por magia, é o desconforto na barriga quando descobre que os pontos anteriores não funcionam, é o aborrecimento por ver que a coisa ainda não vai nem a meio. Já tinha saudades da luta constante entre corpo e mente tão típica deste meu hobby. Não consigo perceber quem desdenha das pessoas que se dedicam de corpo e alma a estes desportos, que fazem deles sua vida e profissão. Como se houvesse uma dicotomia entre intelectualidade e forçar o corpo aos seus limites, como se para este último não fosse preciso um uso incrivelmente poderoso da mente, como se superar barreiras físicas não fosse algo sublimamente humano e nobre. Amo as Rosa Motas e Carlos Lopes desta vida tanto quanto amo os Saramagos e Stephen Hawkings. O que fazem é o mesmo na sua essência: elevar a humanidade a novos picos de conquistas.
 
Voltando ao relato mais sóbrio do meu humilde regresso às corridas, pela primeira vez treinei com o relógio contador dos quilómetros. Foi uma espécie de revolução porque agora posso correr de forma espontânea pela cidade, posso virar aqui ou ali, onde quer que me dê na gana, não estou presa a percursos pré-calculados e repetidos ao infinito só porque indo por eles sei exatamente os quilómetros que corri. E é importante saber quanto se corre. Tanto para se ir aumentando como para estabelecer "hoje corro X, não vale a pena o corpo se meter com manhas". Posso descobrir novas ruas, novos bairros, gravar a cidade no coração porque a sofri com as minhas passadas e o meu suor. Aliás, duvido que tenha sido coincidência ter começado a gostar de Bruxelas ao mesmo tempo que a palmilhava nos treinos longos para a meia-maratona. Passou a ser cidade minha.
 
 
 
 
S.

domingo, 18 de maio de 2014

Um quinto de meia maratona

E o que é que calha mesmo bem após 4 dias de trabalho intenso fora do país e mais de um mês sem correr? Ir correr os 20 km de Bruxelas, claro está.
 
O dorsal já estava descartado num lado qualquer, a cabeça já tinha aceitado que 25 euros iam mais uma vez ao ar e que eu simplesmente não estava em condições de ir correr uma meia maratona ainda lesionada e a um mês da grande viagem de bicicleta. Estava cheia de pena, não de mim mesma, mas de ir perder uma corrida tão icónica aqui do burgo e de me ir embora sem nunca participar numa corrida aqui em Bruxelas. Mas já estava decidido.
 
Até que tive a brilhante ideia de antecipar o meu retorno aos treinos, planeado para amanhã, para a corrida de hoje. Um treino de 20 km seria impensável mas o km 4 era quase à porta de minha casa... Que tal fazer só essa parte da corrida? Participaria à mesma, não haveria desperdício, e já não me sentiria tão indigna da próxima vez que vestisse a t-shirt oficial da corrida. Brilhante ideia.
 
Só havia um senão que era a possibilidade de eu não querer parar. Estou familiarizada com a felicidade barra loucura que a corrida inflige no cérebro, especialmente em corridas oficiais. E o km 4 era extamente o início da avenida plana e linda onde costumo treinar. Temia que o acordo acordado comigo mesma do "podes ir mas só até ao km 4" fosse destruído pelas endorfinas a circular por estar novamente a correr após tantas semanas e numa prova tão querida. O D. foi então recrutado para me puxar da multidão caso isso acontecesse.
 
Gostei muito quando 300 metros antes de passarmos a minha meta arranjada começo a ver os corredores a encaminharem-se para o túnel que passa por debaixo da avenida, em vez de corrermos pela estrada como pensava. Ai, ai, ai, que já fui, sei lá onde é que este túnel agora termina. Não terminou muito mais além do km designado e eu portei-me bem e encaminhei-me para o passeio para terminar por ali a minha prova. Não foi muito estranho, embora soubesse que estava a desistir e não porque estivesse quase a morrer. Mas acordos são acordos, especialmente connosco próprios, e eu tenho mil qilómetros para pedalar daqui a um mês.


Ainda assim, ter visto isto com os meus próprios olhos, numa rua tão familiar, e ter feito parte, valeria quase todos os tipos de lesões que pudesse ganhar.



S.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Venham a mim, ténis por estrear

Não corro há um mês. Faz amanhã um mês que corri os Sinos, desde aí que não voltei a calçar os ténis.
 
Quer dizer, voltar, voltei. Levei-os para o fim-de-semana inglês, levei-os para o ginásio, sou capaz de os ter calçado por aí também. Só não os voltei a calçar para correr. Isto porque ganhei uma bonita lesão na anca durante a meia-maratona. Nunca a expressão "too much, too soon" ganhou tanto significado.
 
Então adeus, 20 km de Bruxelas.
 
Mais uma vez, oscilei entre o "vou estar sossegadinha até isto passar" e o "sossegadinha o cara***, tenho saudades de correr", passando pelo orgulho de ter uma lesão desportiva e ter que usar coisas como cremes musculares e cenas com gel azul congelado por dentro. A verdade é que ainda não me tinha apercebido do quanto me mexo aqui em Bruxelas e do quanto não me poder mexer mais do que andar para apanhar o metro até ao trabalho me podia soar a tortura. E depois era só dias bonitos, parecia que a cidade gozava comigo, eu a sair e olhar o parque lindo à beira do meu trabalho, todo soalheiro e verdejante, com a prospetiva de 5 km de caminhada pelas ruas lindas de Bruxelas até casa, e ter que fazer o caminho oposto até aos calabouços malcheirosos bruxelenses vulgarmente apelidados de metro. Parecia uma criança de castigo que não pode ir brincar para a rua, mas como era uma criança sozinha em casa, a resolução do ficar em casa sossegadinha até isto passar não durou muito, está claro. O fim-de-semana inglês, em que andei a tentar bater record de quantas cidades se consegue ver em três dias, foi o descalabro e a minha anca ao terceiro dia já fazia "criiick, criiiick" a cada passo. Não estou a exagerar, aquilo estalava.
 
Veio a fase nervosa por ver os planos de preparação para a grande viagem sairem furados por não poder correr nem andar de bicicleta com a velocidade necessária para isto se parecer com um treino em vez de um passeio de vez em quando. A fase nervosa ainda não acabou, mas aliviou bastante assim que descobri que andar de bicicleta a uma velocidade moderada, mesmo que durante mais de uma hora, não influencia a dor/lesão. Nem que tivesse que ir assim, já amanhã, dava. Nada a temer, portanto.
 
Já tinha finalmente decidido ir a médico especialista quando o meu especialista voltou para casa e é bem verdade que duas cabeças pensam melhor do que uma. Nunca pensei eu que a anca tivesse tanto músculo com potencialidade para doer, nem que eu precisasse de todos eles, mas os diagramas googláveis mostraram-me que sim, que são muitos e têm todos nomes muito lindos. Estou agora sob tratamento personalizado e afetuoso, é capaz de ser desta que me curo.


 



S.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Já só faltam 21 (II)

Ontem encontrei uma Londres cheia de sol, pessoas e um grande sorriso amigo.
 
Também encontrei isto:


Uma meta maratonista ali mesmo em frente ao palácio.
 
Juro que não fiz de propósito. Só lá fui apanhar o comboio para casa.
 
É capaz de não ter sido coincidência, mas foi a primeira vez que admiti que um dia vou correr uma maratona. Foi em voz alta, para outra pessoa, por isso agora é real.
 
Pronto, era só isto.




S.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Quebrar glass-ceilings, um de cada vez

Por falar em pressupostos.
 
No domingo corri a Corrida dos Sinos, uma corrida em plena terra natal, com companhia, por uma estrada que conheço como a palma da minha mão. Esta era uma corrida que eu costumava ver passar todos os anos, desde que me lembro de mim, e olhava os seus atletas com um misto de admiração por serem capazes de correr tantos quilómetros, pena porque aquilo era gente que só podia ir em sofrimento, e assombro por claramente haver tanto maluco e deixarem-nos ali à solta, a correr, ainda por cima.
 
Aquilo há duas provas em simultâneo e os 3 primeiros quilómetros de trajeto são iguais. Há a dos Sinos, de 15 km, e a dos Sininhos, de 6, na qual muitas pessoas vão a caminhar. Quando me dirigi ao balcão para levantar o dorsal da prova, levei com a observação seca de "Isto aqui é para os Sinos" do simpático senhor que estava a distribuir os envelopes para a corrida dos 15 km. Certo. E as meninas pequeninas, podem participar ou isto é só para os homens grandes?
 
Como coincidência, recebi um panfleto no dia da corrida com algumas curiosidades sobre o atletismo e o 25 de abril. De como as provas eram proibidas durante o Estado Novo (é realmente um ajuntamento com algumas semelhanças aos motins, especialmente no arfamento e na passada rápida), e de como as mulheres particularmente eram desencorajadas a correr, visto que era uma coisa muito pouco feminina (a teoria da mulher como objeto para ser admirado/possuído e não como sujeito, explicada n'O Segundo Sexo, assenta aqui que nem uma luva). O panfleto explicava depois como tinham surgido os primeiros grupos de atletismo em Mafra e, consequentemente, esta corrida emblemática.   
 
No outro dia, enquanto deambulava pela Internet fora à procura da próxima sessão de masoquismo corrida, descobri os 20 km de Bruxelas. É um percurso espetacular, que passa por vários sítios icónicos aqui do burgo, e grande parte deles são meus percursos habituais de treino. Seria a minha última oportunidade de participar numa corrida aqui na Bélgica, e, não fosse dar-se o caso de aquilo calhar num domingo de manhã após uma semana de trabalho intensivo fora do país, seria perfeito. Mas o cansaço antecipado dessa semana é um grande travão no meu entusiasmo por isso a corrida estava já a modos que descartada.
 
Até que uma coisa me chamou a atenção:



Que desequilíbrios são estes?! Onde estão as meia-maratonistas?? A decisão foi imediata. Pois se o percurso familiar não chegar para o sacrifício, a vontade de contribuir para desconstruir pressupostos servirá. 




S.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Isto nem é uma metáfora feminista mas podia ser

Notei há uns tempos, por puro acaso, que após uma corrida longa não há nada melhor do que andar de saltos altos.







(Alonga as palmas dos pés. Quem diria...)



S.

terça-feira, 18 de março de 2014

Sexismo onde menos se espera #2

Uma pessoa fêmea vai levantar a t-shirt oficial da meia-maratona a que tem direito. Em não havendo o seu tamanho nem o acima, decide levar a t-shirt reservada ao outro sexo porque dessas há das pequeninas. Uma pessoa diverte-se com a cena que está a acontecer mesmo ao seu lado em que um distribuidor de t-shirts tanta convencer uma pessoa macho a fazer o mesmo e a levar a t-shirt do outro sexo porque já não há o seu tamanho nem perto das para machos. Uma pessoa começa a ficar estupidamente consciente das suas raízes feministas quando a pessoa macho até leva as mãos à cabeça em dramatismo quando o distribuidor de t-shirts, ainda a tentar convencer que as t-shirts não são assim tão diferentes diz “ela nem parece de mulher, acredite, quem não souber que era para mulher nem vai adivinhar”. Uma pessoa decide instigar um bocadinho de bom-senso naquela cena e declara meio a sério, meio a brincar (o bom senso tem que ser instigado meio a brincar porque egos masculinos destes são frágeis) um “Eu vou levar uma t-shirt de homem porque também não havia o meu número. E não me importo.” seguido de sorriso convencido. Os distribuidores de  t-shirts juntam-se num coro de “pois”, e “exato”, e “está a ver!” mas eu lanço outro sorriso satisfeito e vou-me embora antes de saber se a pessoa macho desceu ao nível de aceitar a t-shirt de pessoa fêmea ou não. Porque é disto que se trata, não é? Da vergonha. A vergonha instigada desde muito cedo que fazer coisas de gaja é degradante, des-masculinizador, quase um crime. Vou constatando agora, que até para certas mulheres o é. Uma atitude muito “eu sou gaja mas não sou «dessas» gajas”. Isto não é igualdade. É o contrário de igualdade porque é a demonização de tudo o que é estereotipicamente feminino. Considerado mau porque, lá está, tem o cunho do “feminino”.

Para mim, e suspeito que para a maioria da população feminina, usar uma camisola de homem não é nenhum problema. Às vezes até aparecem aquelas peças de roupa que se chamam “boyfriend cardigan” ou “boyfriend jeans” e assim. Uma mulher usar calças é aborrecidamente banal e absolutamente nada digno de nota. E um homem usar uma saia? Nop, não é possível. Quem usa saias são as mulheres.

Isto sem entrar na questão de para que raio é que se tem que diferenciar tudo segundo o género. Para quê que hão de criar uma t-shirt para mulheres e uma t-shirt para homens para uma corrida? É a porcaria de uma corrida, o objetivo é ser confortável e ir tudo de igual, não é nenhum desfile de novas tendências. E ainda se poupavam problemas de tamanhos a mais num modelo e tamanhos a menos noutro.


Eu acabei por levar a minha t-shirt preferida, uma coisa muito verde fluorescente, muito (da seleção) portuguesa, muito de homem, mas que me serve como nenhuma outra, orgulhosamente oferecida pela cara-metade. Garanto que os meus ovários ainda funcionam.






S.

segunda-feira, 3 de março de 2014

A máscara de atleta

"E tu, S., de que te mascaraste ontem, domingo de Carnaval?"

Ora, eu vesti a minha máscara de corredora e lá fui eu por esses caminhos bruxelenses afora, armada em atleta.

Agora a sério. Se há coisa que eu agradeço por viver em Bruxelas é não ter que levar com o Carnaval aí pelas ruas, gente mascarada, apitos, música sambaesca e afins característicos da época. Nem preciso de saber que é Carnaval, posso deslizar por esta festividade numa inconsciência abençoada que muito agradeço.

Mas vesti-me de corredora, sim senhora. Foi o meu último record de distância antes da meia-maratona em Lisboa, a corrida da ponte, como a gosto de pensar, que é já daqui a duas semanas. Foram 17.85 km (eu ainda não me dignei a arranjar uma coisa para medir caminhos. Calculo-os antes de sair para correr e confirmo quando volto, no site muito catita do Mapmyride. Aqueles 150 m deixaram-me um bocadinho piursa na altura de confirmar o que tinha mesmo corrido).

Estes praticamente-18-km significam praticamente-2-horas a correr e eu ainda não sei o que sinto realmente em relação a isto.

A corrida entrou na minha vida como um vendaval e eu tenho com ela a relação mais estranha que já tive com qualquer outra coisa. E não faço ideia onde ela vai culminar. Já fiz as pazes com o facto de ter sido uma batata de sofá durante tanto tempo, de odiar as aulas de educação física, de odiar desporto, de ter tentado tantas vezes incorporar exercício na minha vida e continuar a odiá-lo, e de agora ter metido na cabeça que ia correr uma meia-maratona porque sim. Já não me interessa que não me conheça, e agora a surpresa deste compromisso virou confiança absoluta de que se eu consigo fazer uma coisa tão fora da minha (antiga) zona de conforto, então consigo fazer qualquer coisa que possa imaginar. Pior (ou melhor, vá): o meu corpo consegue fazer coisas incríveis. E eu não fazia ideia. E precisamente por causa disto ganhei-lhe um respeito imensurável, tenho por ele uma admiração e carinho tão grandes que só me apetece é continuar a correr mais longe, a correr mais rápido para continuar a puxar-lhe os limites, a fazê-lo feliz, a cumprir-lhe o destino biológico para o qual ele foi feito, animal que é.

Isto parece um bocadinho esquizofrénico, falar do meu corpo na terceira pessoa, até porque é mais como a gralha disse há pouco tempo: a minha relação com o meu corpo mudou desde que eu percebi que o meu corpo sou eu, não é um trambolho que arrasto de má vontade, e que portanto fazê-lo feliz, metendo-o a mexer e recompensando-o, só me fará a mim feliz.

E eu digo que a corrida é a relação mais estranha que eu já tive com alguma coisa porque eu não sou só feliz a correr. Aliás, eu raramente sou feliz a correr. Geralmente sou derrotista, às vezes sou aborrecida, tantas vezes penso "o que é que estás a FAZER?! vai para casa, JÁ!", muitas vezes aperto as luvas que levo na mão com tanta força que quase sinto as unhas a cravarem-se na palma, já me deu vontade de chorar com o esforço. Mas há mesmo muito poucas coisas tão boas nesta vida como o primeiro passo que dou na rua antes de começar um treino quando me sinto leve, leve, leve, ou receber olhares esbugalhados de pessoas encasacadas por ver uma menina de sorriso maníaco a correr de t-shirt quando estão pouco mais de zero graus, ou a vista da minha porta, já mesmo ali, 17 km depois e quase a chorar de alegria. E acordar nervosa antes dos treinos de maior distância, ao fim-de-semana porque sei que vem aí luta física e, muito provavelmente, quase duas horas que custam a passar. Nervosa! Como se fosse algo que não dependesse de mim absolutamente só, algo que só a mim me dissesse respeito, para o qual não tenho absolutamente nenhuma amarra.

Já tive dias que não me apetecia ir, manhãs que prolonguei na cama até quase ao limite da tarde porque já sabia o que me esperava assim que me levantasse. Já lamuriei ser dia de ir correr e temi que o meu entusiasmo com a corrida estivesse a desvanecer-se, como é tão normal com estas paixões explosivas mas efémeras. Houve dias em que me respeitei a mim própria, quando a vontade era tão negativa, e não fui, ficou para o dia seguinte.

Porque isto foi o que eu descobri e que me surpreendeu ainda mais do que se a paixão se tivesse desvanecido: eu acabo sempre por ir. E eu não sei explicar porquê nem o que me impele. A saúde não é, a perda de peso muito menos, a competição ainda menos. Diz que é a adrenalina. Talvez. Confissão um bocado envergonhada: às vezes dou por mim a vir do trabalho a pé e apetecer-me desatar a correr pela rua, qual cavalo galopante, só porque sinto falta da corrida e porque aquelas ruas são-me familiares do treino. É uma vontade um bocado desconcertante, de tão animalesca.

Uma rapariga que eu mal conhecia mas com quem falei entusiasticamente durante meia hora sobre isto das corridas, e que já tinha corrido quatro maratonas só no ano passado (!!!) disse-me assim: se tu queres correr uma maratona, fá-lo. Mas fá-lo por ti própria, aliás, tens que querer fazê-lo apenas por ti própria porque mais ninguém vai querer saber. Ninguém vai querer saber da distância que tu correste, do tempo que demoraste, nem do que te custou. Por isso só podes fazê-lo por ti.

E eu acho que é exatamente por isto que eu acabo por ir. Porque ninguém me obriga, nem eu tenho um compromisso com ninguém. Tem que ver única e exclusivamente com o que eu sinto, e com o que sei que sentirei assim que terminar a prova/treino.

É também por estas palavras sábias da minha mal-conhecida das maratonas que eu termino o post. Já chega, e ninguém quer saber. ;)




S.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Motins, viagens-sonho e leões

Acho que o meu corpo - e, desta vez, o meu espírito por arrasto - ficou traumatizado com os 15k de domingo. Não foi assim tão mau, acho eu, mas se calhar só afirmando em retrospetiva. Isto porque eu estive a tentar convencer-me, ao corpo e ao espírito, (já somos três, não sei quem é este terceiro, talvez a consciência), até hoje, que tínhamos que nos fazer à estrada novamente. Foi a semana toda nisto:




A consciência lá acabou por ganhar, depois de ter mandado um murro na mesa e exclamado: "Mas qu'ésta merda, afinal quem é que manda aqui?! E tu 'tás-te a preparar para uma meia-maratona ou não, minha menina?? Olha que já só faltam 6 semanas, aquilo vai ser para acabar ou para fazer figura triste e desistir? Calça-me esses ténis e vam'embora, vá!"

Corri pouco mais que uns míseros 6 km porque percebi que as minhas pernas não estavam para ali viradas.



Ainda tiveram o desplante de me mandar este sorriso cínico do "eu bem te avisei". Estúpidas.

Sou agora uma pessoa muito infeliz depois de ter constatado que são as minhas pernas a parte fraca disto tudo. Muito infeliz. Às vezes correm três quilómetros sempre a chorar, canelas a parecer que se abrem, enquanto pulmões e coração olham atónitos, para aquela mariquice toda, e confusos pela dificuldade que estão a presenciar mas que não sentem. Quem é que percebe que às vezes corram 15 km e outras mal 6 aguentem? Bipolaridade física, ou caraças.

Ora, o que acontece então é que tenho que esperar impacientemente que o esforço acumulado se vá embora das patas antes de voltar a fazer-me à estrada, mas sem saber exatamente quanto tempo posso esperar sem que comece a perder resistência. É um equilíbrio tão delicado que me põe nervosa, às portas da prova dos 21.

Anseio que passe a Meia-Maratona e a Corrida dos Sinos para poder voltar a correr sem pressões durante os treinos de quilómetros a conquistar. Apetece-me voltar a correr na minha zona de conforto, durante um tempinho, para depois me começar a concentrar na velocidade em vez de na distância. Porque a chatice com as distâncias é a longa duração do passeio e o auto-entretermo-nos enquanto vamos em esforço. Costuma ser esse o papel da música mas começo a ficar farta da minha playlist e um álbum de Arctic Monkeys já não chega para os passeios mais longos. E estava a começar a estragar as músicas por associá-las ao esforço, muito ao jeito do cãozinho do Pavlov. De maneiras que hoje parti sem phones nos ouvidos, pela primeira vez. Não me aborreci. Mas foi pouco mais de meia-hora...

Um dia destes vou a Waterloo. É a minha viagem-corrida de sonho. Fica a 14 km da minha casa e desde que cheguei à Bélgica que lá quero ir, mesmo, mesmo muito. Palmilhar o caminho a patas deve elevar a experiência ao quadrado. Terei que me embrenhar na Fôret de Soignes para lá chegar, já que a estrada até lá não tem sempre passeio (sim, já andei a stalkar o caminho no Street View. À séria. É o quanto quero ir lá). Nunca corri pelo meio de florestas daí que estes 14 km ganhem outra dimensão dantesca. A parte do vir para cá é que é pior... Se me inspirar no Napoleão não consigo. Haha.

Vou lá dar um beijinho ao leão e volto.


Hahaha, ou então não. Escalar uma rampa daquelas após arrastar-me durante hora e meia?? Não me parece. Mando cá de baixo.



S.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Egocêntrica, much?

Ontem tomei duas decisões, com potencial de mudança de vida, que me fizeram constatar que eu não me conheço. Ou não me conheço, ou estou a evoluir* para outra coisa qualquer mais depressa do que o meu ego consegue desvendar.

- Inscrevi-me na Meia-Maratona de Lisboa. Vou em março a Portugal, de propósito correr uma prova que insisti durante uma hora, ainda há dias, nunca me meter. Em retrospetiva, após os últimos meses de treinos continuados nem sei bem em nome de quê, faz todo o sentido. Do ponto de vista de quem eu sou (era? sempre fui?), juro que não faz. Não foi preciso a Gralha me espicaçar muito para ficar com o bichinho desta prova, depressa anui. O que revela, mais uma vez, que eu não me conheço.

- Recusei uma perspetiva profissional em Londres. Ainda não acredito. Não acredito é no alívio que senti após o decidir, sabendo, aqui algures mas que não era só na cabeça, que tomei a decisão correta. Afinal tenho instinto ou coisa que o valha... (Mentira, a lista dos prós e contras também esteve presente e foi o teste final. Se bem que o alerta veio das entranhas.) Eu amo Londres, eu fui lá tão feliz, eu cheguei a sentir-lhe mais a falta, tantas vezes, do que a pátria materna, e recusei conscientemente, livremente e aliviadamente me mudar para lá, trocando esta cidade pela qual não tenho carinho especial pela minha amada Londres. 

Desculpem-me os clichés mas isto é aquilo do rio não passar duas vezes pelo mesmo sítio? Ou do outro que dizia que o difícil não é ir atrás dos nossos sonhos, é saber e ter a coragem de largá-los quando já não são os nossos sonhos? 

É por estas e por outras que eu tenho um medo terrível de ter filhos. Não é pelas mudanças do corpo, não é pelos vómitos, não é pelos horrores do parto, não é pela alteração do ritmo de vida, não é por ter que cuidar de outro ser humano, não é pelas manhãs a dormir até ao almoço que se acabam, não é pelo aperto financeiro, não é pelo We Need To Talk About Kevin, não é pelo fim do tempo e espaço pessoais, não é pela adolescência da prole, não é pelo mudar de fraldas, não é pela incerteza do futuro. É simplesmente porque o meu eu de hoje não sabe que eu vai encontrar do outro lado da maternidade. E eu ainda tenho tanta coisa que quero concretizar neste estado mental do presente.






S. 

*Atenção que quando digo evoluir não é como sinónimo de progresso, é mais no sentido de como os Pokémons evoluíam: chegavam a determinada altura, após não sei quantas batalhas e skills adquiridos tinham a possibilidade de evoluir para uma criatura diferente. Mas quantas vezes o estádio anterior não era bem mais poderoso...

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Finalmente o batismo

Já tive o meu batismo de corrida. Foi há uns dias, mas tinha que vir aqui registar. Foi com os meus primos, nos Olivais. A cada nova subida só pensava "Nunca hei-de correr uma meia-maratona, nunca hei-de correr uma meia-maratona, nunca hei-de correr uma meia-maratona". Não num jeito derrotista, mais como um pré-aviso para mim própria para nunca me meter numa coisa dessas, se 10 km já custaram tanto. Mas uma prova do vício estupidamente irracional que isto das corridas é foi termos vindo até casa todos entusiasmados a falar da próxima, que será em abril e para a qual virei cá de propósito. Outra prova foi ter-me levantado mais cedo, no dia de Natal, para ir correr. Eu não estou habituada a estas irracionalidades em prol de esforço.



Entretanto estamos em 2014. Gosto do número.



S.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Conversas entre egos e ténis

O Mak diz que por vezes mete conversa com os seus ténis; a mim, são sempre os meus ténis que metem conversa comigo. E a conversa é sempre a mesma. É coisa de meninos mimados e birrentos e com todos os estratagemas habituais de tais criançolas para alcançarem o que querem. Inútil, muito inútil. Porque perdem sempre.



Mas a conversa, de tão regular que se tornou previsível, é uma coisa notável. Envolve caretas internas, cartoons de diabos e anjos cada um a puxar para o seu lado, lágrimas e gritos arreliados de uma das partes. Porque os meus ténis não entenderam ainda que a minha alma viciou naquele sentimento incrível que é levá-los ao limite. Pronto, se calhar porque são eles que têm que fazer esse esforço, sem benefício nenhum, enquanto a alma arrecada a parte boa disto tudo sem mexer uma palha. Limita-se a pairar neste aglomerado de ossos e chicha a ver as vistas enquanto os ossos e a chicha trabalham como nunca. Se calhar é normal que haja tentativas de manifestação de vez em quando (sim, tentativas, isto aqui é uma ditadura e não há cá protestos para ninguém. Quem manda é o ego.)

Dizia eu que a conversa é sempre a mesma. E desenrola-se mais ou menos assim:

Véspera da corrida
Alma/Ego: "Oh joy! oh joy! oh joy! Amanhã é dia de corrida! Mal posso esperar! Tornozelos, tudo ok? Joelhos, não inventem, hã!... Anca, 'tás fina? Hahaha, brincadeirinha! A sério, pessoal, 'tá tudo em ordem?"
Ténis/Corpo: "'Bora!!!!" *grande sorriso*




No início da corrida:
Alma/Ego: "Oh, espetacular, este fresquinho na cara, os pés na estrada, só eu e os meus ténis, e estas pessoas todas no passeio a pastelar, EXCUSE MOI, MOVE!"
Ténis/Corpo: "Oh, espetacular, este fresquinho na cara, eu na estrada, só eu e a minha alma, e estas pessoas todas no passeio a pastelar, EXCUSE MOI, MOVE!"



2-3k:
Alma/Ego: "Oh, olha para mim, um pé à frente do outro, sempre a seguir, que sensação de outro mundo, 'tou quase a chegar ao arco lá do fundo. E a felicidade que me faz rimar!"



Ténis/Corpo: "Eer... Ok, isto 'tá a ficar desconfortável. Não 'tou a gostar disto. Pára lá, vá, vamos para casa."


5-6k:
Alma/Ego: "É daqui a meia-hora, daqui a meia-hora é que chega a descarga do sentimento de limite ultrapassado, aguenta!"
Ténis/Corpo: "O QUE É QUE ESTÁS A FAZER, CHEGA, CHEGA!!! EU NÃO AGUENTO MAIS!! PÁRA, PÁRA!!! CHEGA, NÃO GOSTO DISTO, 'BORA PARA O SOFÁ, 






*muda para voz lânguida e meiga* lembra-te da mantinha fofinha que lá temos, o puff, sim, isso, o puff, gostas tanto daquele puff!... Esticar as pernas... Lencinhos para te assoares, um banhinho quentinho..."



E é aqui, nestes dois quilómetros, que reside a ciência toda da matreirice do bicho porque é quando ele se faz mesmo de infeliz e de extremamente cansado e de ai-ai-ai-que-eu-não-aguento-mais. Mas aguenta, ai aguenta, aguenta! Se eu não soubesse melhor caía na esparrela. Porque a seguir vem a fase do esforço verdadeiro, mas do esforço dominável:

6k:
Alma/Ego: "*respira fundo (sim, a minha alma também respira fundo)* 'Bora lá. Já 'tá mais de metade. Não custou nada a primeira, e já vamos aqui, oh! *vai alencando as ruas paralelas à Avenida Louise:* "Rotunda grande, torre do coiso, Vleurgat, Bailli, o Workshop Café..."
Ténis/Corpo: "AAAAAARGGH!!!" *tenta arrancar os fones dos ouvidos porque já lhe irrita toda e qualquer música de motivação. Tenta cuspir para o chão só por despeito (e porque já não aguenta a gosma que se acumula com o esforço). Não chega a pisar esse risco vergonhoso.*


7-8k:
Alma/Ego: "Estás a ir lindamente, S., ainda corríamos mais 2 ou 3 depois dos 10, hã?"
Ténis/Corpo: *chora baixinho, vencido, e finalmente sem os dramas do esforço falso os 5-6k, mas admitir que se calhar, se calhar, até corria mais esses 2 ou 3.*


9-10k:
Alma/Ego: "Ui, afinal não, vamos até aos 10k e vai-se lá saber como!"
Ténis/Corpo: "Um, dois, um, dois, um, dois, um, dois, um, dois, um, dois, um, dois" *os ténis já não me falam. Irão provavelmente ignorar-me o resto do dia, e no dia a seguir também, até à sessão longa dos alongamentos, manifestando o seu desagrado com uma dor no joelho, um ardor na anca, ou uma valente picada no tornozelo. É quase sempre fita, também.*



10k:
Alma/Ego: "A PORTA DE CASA, JÁ VEJO A PORTA DE CASA!!!"
Ténis/Corpo: "A PORTA DE CASA, JÁ VEJO A PORTA DE CASA!!!" *lembram-se que não me falam, cruzam os braços, e empinam o nariz.*



E pronto, é com isto que tenho que lidar. Um senhor corpo que tem sempre a mania que a meio já não aguenta mais e grita e esperneia e quando não funciona finge-se de meigo para me tentar convencer que é verdade. Não sei se isto se passa com todos os corredores, se sim, desconfio que se torne numa conversa cíclica, estou-bem-isto-está-a-ficar-desconfortável-chega-CHEGA-estúpida-pronto-'tá-bem-bora-estamos-a-ir-bem-isto-está-a-ficar-desconfortável-chega-CHEGA-estúpida... ad nauseum. Prefiro acreditar que se torna numa conversa mais pacífica, mas tenho as minhas dúvidas.



S.    

domingo, 10 de novembro de 2013

Já oiço os sinos a dobrar

Da minha lista de Ano Letivo Novo até ao Ano Novo:

- É mesmo desta que vou recomeçar a minha aprendizagem do alemão. 

- Em dezembro vou correr nove quilómetros numa hora. 

- Antes de 2013 acabar, terei a minha candidatura a doutoramento completa. 

- Terei acabado de ler o European Feminisms 1700-1950.

- Terei acabado o meu primeiro curso da Coursera.  

- Terei aprendido a gostar de mais um legume cru. . 

- Terei visitado Bruges. 

- Conseguirei acompanhar um episódio de uma série qualquer dobrada em francês sem fazer cara de nojo.

Adivinhem qual completei hoje mesmo e que me deixou com um sorriso gigante. 10k. 54 min. O meu corpo continua a surpreender-me. Máquina linda, pá. Agora venham os 15k e o cumprir de um sonho que eu nem sabia que tinha:

 
Correr a corrida da minha terra no próximo abril.



S.