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domingo, 9 de julho de 2017

Uma Londres desconhecida

Há dois dias, porque o dia de trabalho foi eficiente e acabou cedo e porque Londres me chama para a rua com uma intensidade inescapável, decidi finalmente ir apresentar a Queeny Papa-Léguas à cidade. Parti sem rumo porque numa cidade que se desenrola à nossa volta com uma planeza a que ainda não me acostumei depois de 2 anos no Pico do Distrito, não é preciso recear esforços despropositados. Tira-se a altimetria da equação do esforço, fica só a simplicidade dos quilómetros. Fui seguindo ciclovias e outros ciclistas, até ver.

O até ver tornou-se Torre de Londres assim que me dei conta de que tinha chegado ao Big Ben e que a ciclovia onde estava se partia em duas: ou passar a Westminster Bridge para o outro lado do rio, ou virar à esquerda e continuar ao longo do Tamisa para leste, onde iria eventualmente chegar ao meu monumento britânico favorito.

O que eu não contava era ir estrear a rede londrina de auto-estradas de bicicletas, uma maravilha do planeamento urbano que não existia quando aqui vivi da última vez há 7 anos.

Como é que eu hei-de descrever isto... Basicamente é como se existisse uma Londres alternativa para bicicletas, como se os ciclistas tivessem a sua própria cidade, sem terem que se chatear com carros ou peões. Eu estou numa das estradas mais movimentadas da cidade, a zona do Embankment, mas ciclo com uma velocidade e um descanso que só imaginado em planos utópicos de cidades sustentáveis ou sonhos molhados de cycling freaks.


Isto que é uma animação a computador, tornou-se realidade o ano passado. Uma ciclovia de dois sentidos, completamente individualizada da parte onde passam os carros e do passeio dos peões. E há umas 8 como esta, senão me engano, que cruzam a cidade de umas pontas a outras.

Ora vide mais imagens e imaginai a trabalheira que não foi precisa para renovar estas estradas todas numa metrópole cheia de tráfego:




O cuidado posto no planeamento é notório nas fotos acima e abaixo, que ilustram como as cycle superhighways evitam as zonas onde param os autocarros.


E como as auto-estradas chegam a bifurcar em diferentes direções, no caso da CS3 para quem quer continuar pelo rio ou para quem quer entrar para dentro da City. Em baixo acho que foi onde me enganei ao seguir os ciclistas da frente e cortar para dentro da cidade, em vez de continuar em frente para leste na direção da desejada Torre.


Lá corrigi o meu erro pouco depois e cheguei à Tower Bridge, onde a apresentei à Queeny PL.


Eu ainda estou parva como esta rede gigante de ciclovias, que inclui as 8 auto-estradas mais ciclovias adjacentes e quiet roads para quem quer pedalar longe da confusão, se desenvolveu nos últimos anos sem eu dar por isso! Ainda em 2013, a primeira e última vez que pedalei na capital, a minha experiência foi a de uma cidade em que se ciclava pior do que em Bruxelas. Que puxão político que isto levou.

(a parte onde pedalei, de Westminster à Torre de Londres, está a roxo)

E por isto, ainda que o odeie pela parte hipócrita e de auto-serviço que desempenhou na campanha para o Brexit, o Boris Johnson, iniciador disto tudo, vai ter sempre a minha gratidão.



É que até túneis individuais estas ciclovias têm, porra! Um túnel para os carros e outro túnel ao lado para as bicicletas. Ainda hoje andei noutra das superhighways e lá estava um. (Não encontrei foto, vão ter de confiar.)

Ainda assim, é notório que muitas zonas da cidade, mesmo centrais, ainda não estão convenientemente servidas de boas ciclovias. Por exemplo, de sul para norte, de Westminster até ao Regent's Park, não há linhas de jeito. Mas o passo da evolução, e os trabalhos a decorrer por troços das superhighways planeadas, fazem-me estar muito otimista pelo futuro ciclável da cidade dos meus sonhos.

E quão demente seria isto, se se viesse a realizar?



Aqui fica o único mapa com as auto-estradas que encontrei - curiosamente num site japonês, que o tfl.gov.uk, para minha grande surpresa e frustração, não tem nenhum mapa da rede em condições.



Boa sorte agora em tentar me tirar daqui, Theresa May.




S.

sábado, 18 de abril de 2015

A pé, de comboio, de avião e de carro: a saga da Queeny PL

Quando estava no processo de escolher que bicicleta arranjar para me deslocar em Sheffield, depressa ficou arrumado que teria que ser uma dobrável para poder ser o mais portátil possível. Já me imaginava a fazer viagens de comboio a Londres e afins, e deslocar-me na metrópole com a minha própria bicicleta, para não precisar de passar um mês sem comer para carregar o Oyster para ir a todos os sítios que queria ir. Era uma prospetiva que me deixou de estrelinhas nos olhos desde que vi duas belgas de meia-idade a embarcar no Eurostar em direção a Bruxelas com as suas Brompton muito compactas ao seu lado.

O uso da Queeny PL para visitas a cidades inglesas nunca chegou a acontecer, mas ela fez jeito em algumas das minhas deslocações em Sheffield. Não tanto jeito como deveria, porque o frio e a neve chegaram entretanto e eu perdi a vontade de enfrentar as colinas sheffieldianas no pós-inverno. Mas o potencial está lá. Quando se tornou claro que ainda não seria Sheffield que seria casa permanente, percebi que não estava preparada para a vender e portanto teria que arranjar maneira de a levar para Portugal.

Fartei-me de correr fóruns por essa internet fora para ler testemunhos de pessoas que já tinham viajado com as suas bicicletas de avião e as ditas cujas sobreviveram à aventura. Bastantes, foi o que acabei por descobrir.

Para bicicletas normais, o que muita gente aconselhava era levá-las sem desmontar nada, apenas com um plástico a toda a volta, sendo que a lógica era que quanto mais óbvio for que ali vai uma bicicleta, mais cuidado os senhores das malas têm com elas. E realmente foi isto que eu vi no aeroporto de Manchester da última vez que tinha viajado para Lisboa: um senhor a dirigir-se ao balcão de check-in com uma bicicleta pela mão enrolada em plástico.

Mas para o meu caso não era o ideal por duas razões:

- a minha bicicleta é dobrável, por que não utilizar essa vantagem para a transportar mais facilmente;

- queria poupar algum dinheiro transportando-a como bagagem normal ao invés de taxa extra de equipamento desportivo.

Rapidamente descobri que a Ryanair tem uma política muito simples de transporte de o que eles chamam equipamento desportivo. Por €50/£50 eles transportam qualquer instrumento musical ou equipamento desportivo até 20 kg (30 no caso de bicicletas). Basta adicionar online como se adiciona bagagem normal de porão. Mas o meu problema é que a minha dobrável caberia nos limites de uma bagagem normal, visto ter o peso e as dimensões adequados. Para quê dar então 20 ou 30 libras a mais só porque o conteúdo da minha bagagem de porão calhava ser umas barras de ferro e dois pneus em vez de roupa e cosméticos?... 

A forretice é a mãe do desenrascanço. 

Falei com o atendimento ao cliente online da Ryanair, num serviço de chat muito catita que eles têm, para expôr o meu caso e perguntar se se poderia tratar uma dobrável como bagagem normal. A resposta que obtive - e que prontamente imprimi como prova para o check-in - foi que, desde que não excedesse os limites da bagagem normal de porão e que a acondicionasse de forma segura, poderia fazer check-in da bicicleta como bagagem normal de porão.

A segunda dor de cabeça foi saber o quão preciso era acondicionar a bicicleta. Uns diziam que pouco, uns diziam que muito e contavam histórias de terror de bicicletas recebidas nas passadeiras à chegada amolgadas ou com raios de roda partidos, outros que não era importante o acondicionamento mas sim fazer o mais visível possível que dentro daquela bagagem ia uma bicicleta, na lógica do saco de plástico e do bom coração do pessoal das bagagens.

Acabei por me decidir a encomendar uma mala de transporte de dobráveis até 20 polegadas de roda e depois acomodar arestas que ficassem com plástico de bolhinhas.

Escolhi a mala que me pareceu mais resistente e encomendei-a:



Quando chegou constatei que a bicicleta cabia à vontade no saco, que ele era mais mole do que parecia, e que seria impossível carregá-lo de casa à estação e da estação ao aeroporto. Nunca na vida, já que o saco não tem pegas que dêem jeito e não tem rodinhas para puxar.

Não tem rodinhas mas há uma coisa que tem: a bicicleta. Por isso ficou decidido que a levaria montada até ao comboio, desmonta-la-ía no comboio, e depois levava-a montada da estação ao balcão do check-in, onde a poria dentro do saco.

Impossível acondiciona-la com o plástico previamente, portanto. Ainda pensei em levar o plástico na mala, mais a fita e uma tesoura, para depois lá tapar arestas mais salientes, mas depois logo pensei 'que lixe, se não a consigo enrolar toda em plástico qual é o sentido de acondicionar certas partes, sei lá o que é que está mais atreito a partir-se, vai à confiança'. Sendo que uma vez dobrada a bicicleta parece tão robusta, deixei-a nas mãos do pessoal das bagagens.

Os pneus já estavam um bocado embaixo, pelo que não foi preciso esvazia-los um pouco para transporte em avião, como vi recomendado em alguns fóruns.


Comboio

Os comboios em Inglaterra têm uma carruagem com espaço para se transportar bicicletas, normalmente numa das carruagens da ponta. Vi inúmeras pessoas a transportar bicicletas - normais e dobráveis - pelas estações e pelos comboios pelo que sabia que bicicleta no comboio não seria um problema. Normalmente eles recomendam comunicar à operadora que se vai transportar uma bicicleta, porque o espaço para bicicletas é limitado, mas no caso das dobráveis não é necessário porque podem ser transportadas nos sítios das malas. 

Entrei com a Queeny comboio e arrumei-a no sítio das bicicletas de qualquer forma, por ter mais espaço e ir mais segura.


Aquilo tem umas fitas de velcro para se prender as bicicletas e não caírem durante a viagem.



Basicamente o 'cycle storage' é um espaço com bancos que se auto-arrumam, e que portanto também dá para pessoas em cadeiras de rodas ou passageiros sentados sempre que não há bicicletas a bordo. Uma coisa tão simples de se ter e que facilita a vida aos ciclistas e encoraja a utilização de bicicletas.


Avião

Chegadas ao aeroporto, lá percorri os corredores desde a estação até ao terminal do check-in com a Queeny a rolar ao meu lado (não tivessem sido os pneus esvaziados e eu teria sido menina para tê-los percorrido montada na bicicleta, que aquela porcaria é longe que se farta). Devo dizer que a atenção de colocar rampas e elevadores em tudo o que é mudanças de piso, quer nas estações quer em todo o aeroporto, me facilitou enormemente a vida (imagino então o alívio que não é a pessoas com mobilidade reduzida). Seria de esperar que colocar rampas e elevadores, ou pelo menos escadas rolantes, em sítios onde o pessoal normalmente anda carregado fosse óbvio mas Bruxelas ensinou-me que não é. Muita bagagem com metade do meu peso alombei eu pelas escadas das estações do metro bruxelense.

Chegada à zona do check-in tratei de desenrolar o saco que trazia dentro dos alforges para embalar a bicicleta e despachá-la para o porão. 


Embalada e pronta a viajar 2000 km.



Estava com medo que surgissem problemas se fosse óbvio que o saco levava uma bicicleta e obrigarem-me a pagar a taxa de equipamento desportivo (que no aeroporto seriam £60) e a brincadeira acabar por me custar quase tanto como a bicicleta no final de contas. Mas não. Correu tudo bem, o senhor no check-in indicou-me só que levasse o saco ao balcão da bagagem fora de formato para que a mala fosse tratada com mais cuidado, já que era um saco mole.

Perfeito. Relaxei e comecei a acreditar que ia chegar a Portugal com uma bicicleta inteira. 

À chegada, estava ansiosa para ver o tratamento que a riquinha tinha levado. Quando a mala foi ter ao tapete do bagagem fora de formato, desembalei a Queeny PL, respirei de alívio por a ver inteira e sem mazelas, desdobrei-a, e lá fui eu até onde a família me esperava com a menina a rolar ao meu lado.


Cá está ela já em Lisboa pronta para a última etapa da viagem :)


Carro

Ainda a surpresa maior foi a bicicleta não caber na mala do carro, mesmo dobrada, e ter que se ter aberto o banco para a frente. Mas a vontade de tentar que ela coubesse não era muita à uma da manhã, pelo que acredito que a culpa foi minha, não da Queeny ou do espaço da bagageira do carro.


Moral da história: correu tudo muito melhor do que eu antecipava e agora que vi a simplicidade que é viajar com a bicicleta, as voltas pela Europa que me aguardem. 




S.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Despertares, bicicletas e alarmes

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O alarme soou ainda não eram oito da manhã. Estridente e omnipresente, é das piores maneiras de arrancar o cérebro à terra dos sonhos. Estremunhada e aflita, sabia o que fazer: calçar os primeiros sapatos que encontrasse, vestir o roupão, resgatar a chave do fundo da mala, e dirigir-me para a rua o mais rápido possível. Sob pena de a universidade achar que o pessoal desta residência é demasiado lento para seu próprio bem e decidir repetir a simulação de incêndio à surpresa. Tive sorte: houve pessoas que foram apanhadas pelo alarme a meio do banho. A manhã fria não convidava a cabeças molhadas e chinelos enfiados à pressa nos pés nus.
 
O zelo que os britânicos têm pelo health and safety roça a paranóia. É o cobertor apaga-fogos na parede da cozinha. As simulações de incêndio anuais, pré-avisadas e com passos muito detalhados que têm que ser cumpridos sob pena de repetição. As reuniões que começam com a informação à la assistente de bordo de onde se encontram as saídas de emergência. É o não poder usar a sala de estudantes fora de horas sem primeiro tirar um curso online sobre segurança e o que fazer em caso de emergência. São as inspeções aos apartamentos para medir a temperatura dos quartos e da caldeira. É o autocolante que todos os aparelhos elétricos (até o ferro de engomar, até a torradeira, até a chaleira) aqui de casa têm em como foram inspecionados em maio de 2014. É o terem enviado um email a avisar que o alarme de incêndio da residência tinha que ser arranjado e que NINGUÉM podia usar qualquer aparelho elétrico durante a hora e meia que durou o arranjo.
 
Eu gosto muito do controlo sistemático que eles têm sobre o caos logístico do dia-a-dia - especialmente depois da experiência belga, que continua a infiltrar-se nas nossas vidas de formas inesperadas - mas isto é um bocadinho demais.
 
 
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Hoje saltei da cama sem precisar de nenhum alarme estridente de incêndio, só pela prospetiva de ir pedalar pela primeira vez na minha nova bicicleta, na minha nova terra, até às minhas novas aulas. Estava nervosa; não pegava numa bicicleta desde Sagres.
 
Mas não precisava de estar. Descida a rua e assim que curvei para a agora especial Manchester Rd, o nervosismo foi-se embora e o júbilo instalou-se. Estava a cair aquela chuvinha irritante, as minhas pernas estavam a ficar todas molhadas e o trânsito foi maior do que o que eu estava à espera, mas a alegria francamente primária de estar novamente a pedalar numa cidade abafou o desconforto. Também porque o caminho foi quase todo a descer. Mas isso não é para aqui chamado; o que importa é que já regressei aos meus commutes de bicicleta e eles funcionam.
 
A Queeny Papa-Léguas portou-se muito bem; é leve como um raio, a miúda, e responde demasiado rápido aos meus movimentos. E é tão pequenina e maneirinha. Deve ser uma vista muito gira, eu, com o meu metro e meio, capacete de patins de criança, a conduzir uma mini-bike pela cidade fora. Quem me dera ter mantido a capa de dementor, para dar um ar mais sério (mas depois talvez ficasse só a parecer um hobbit azul, teria o efeito contrário). Considerações de aparência à parte: é a coisa mais parecida com voar. A rolar num objeto tão pequeno por aí fora, deve ser muito parecido com voar numa vassoura (baixinho).
 
Nota-se muito a euforia ainda?
 
Para cá já não me senti a voar numa vassoura, a força da gravidade já não estava do meu lado. As colinas de Sheffield mostraram que não estão para mariquices de viagens de bicicleta facilitadas e eu cheguei ao meu destino sem fôlego, a suar e com os músculos por cima do joelho a latejar. Pensei que fosse pior, ainda assim. É só porque estou destreinada, nada a apontar ao outro bicho. A QPL está aí para as curvas, e para os altos, e para os baixos.





S. 

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

A barraca das bicicletas


Assim que soube que nos iamos mudar para Sheffield comecei a procurar formas de manter o hábito de me deslocar para o trabalho de bicicleta. Em Bruxelas ganhei-o e reconheço que é das formas mais baratas e fáceis de uma pessoa se deslocar numa cidade. Especialmente uma cidade relativamente pequena e sem metro, como Sheffield.  
 
Bruxelas tem a rede maravilhosa e incrivelmente extensa de bicicletas de aluguer, o Villo!, que torna a combinação de transportes muito fácil e útil. Às vezes ia de bicicleta e vinha a pé, ou ia de metro e vinha de bicicleta, ou ia a pé uma parte do caminho e de bicicleta o resto, conforme me desse na real gana e consoante o que a meteorologia ditasse. Alugar as bicicletas nas estações espalhadas pelas ruas da cidade tornava a coisa mesmo cómoda e sem a obrigação do "se levar a bicicleta, depois tenho de a trazer". Preocupações com roubo, zero; com arranjos, idem, uma vez que era só estacionar a bicicleta numa das estações e rodar o assento para trás, de forma a sinalizar às carrinhas de manutenção que aquela bicicleta tinha qualquer coisa de errado. Era mesmo uma situação perfeita.
 
Ora, Sheffield não tem nada disto. Soube logo que se quisesse manter os meus hábitos de ciclista urbana teria que comprar a minha própria bicicleta. A questão principal, claro está, foi: que tipo de bicicleta? Gostei especialmente que o website da universidade tivesse uma secção com conselhos aos ciclistas, e mais concretamente que dissesse que em Sheffield todas as bicicletas têm que ter mudanças. Que essas pessoas que vêm das flatlands não pensassem que aqui uma bicicleta urbana de mudança única servia. Ri-me muito porque pensei logo em Londres e na incrível planez de que estive consciente o caminho todo na minha experiência londrina de ciclismo urbano. Caramba, que ali nunca se toca mesmo no manípulo das mudanças! Basicamente o website quase nos advertia que deveríamos escolher uma bicicleta de montanha.
 
Mas a minha dúvida sempre esteve fundamentalmente entre comprar uma desdobrável ou uma normal. Desde que comecei a pedalar na cidade que sonho com uma desdobrável. A desdobrável promete portabilidade, comodidade, combinação de transportes, mais uma vez. Podia levá-la no comboio quando fosse a Londres, podia levá-la no avião quando fosse a Portugal, podia levá-la no autocarro se não me apetecesse fazer o caminho universidade-casa a pedalar. É só desengatar um manípulo e lá está ela dobrada ao meio.
 
Claro que o problema de uma desdobrável é a fragilidade da coisa. Uma coisa que se desengata e volta a engatar muitas vezes tem que ser mesmo boa ou corre o risco de se desengatar quando menos queremos. Nomeadamente quando estamos a pedalar, no meio da estrada. Neste sentido, uma bicicleta normal é mais robusta e dá uma sensação de maior segurança. Estava ciente de que as desdobráveis mesmo boas começam nos mil euros para cima. Estava também ciente de que nunca daria esse dinheiro por uma bicicleta. Muito menos com orçamento de estudante. Mais: estava ciente de que uma bicicleta boa normal também vai parar acima dos 500 euros, pelo menos. E que nunca daria esse dinheiro por uma bicicleta, ainda por cima que não me oferecesse portabilidade. Portanto a decisão foi tomada rapidamente, para dizer a verdade.  
 
Ganhou a desdobrável. Não a de mil euros, bem entendido, mas uma das mais em conta e depois de uma extensa pesquisa e avaliação de prós e contras e do quanto estava eu disposta a pagar a mais por específicos prós. O marketplace da Amazon acabou por ser o escolhido para encomendar a nova riquinha.
 
Chegou ela numa caixa enorme, dobrada a meio e com pneus vazios. A salvação foi uma coisa maravilhosa de que cedo descobri a existência: o Cycle Hut.


Esta espécie de contentor onde se arranjam bicicletas é um serviço gratuito da Universidade de Sheffield aos seus alunos e empregados para incentivar o uso da bicicleta na cidade. Basicamente os mecânicos diligentes fazem reparações e check-ups de segurança às bicicletas dos alunos, de forma gratuita, às terças e quintas-feiras. A iniciativa e os próprios mecânicos especializados são financiados pela política de transportes da universidade. Ou seja, basicamente funciona assim: o dinheiro que a universidade ganha com as tarifas dos seus parques de estacionamento vai para aqui. 
 
Há lá como não amar isto?


Entretanto já levei a Queeny Papa-Léguas ao senhor doutor, e em boa altura o fiz, já que o manípulo que prende o guiador na posição vertical está a modos que precário. Não me apetece muito estar a pedalar e de repente ficar sem guiador, de maneira que ainda não a estreei. Mas nunca a comodidade de dobrar a bicicleta a meio e a enfiar no autocarro será mais apreciada do que quando a levei ao Cycle Hut.
 
Entretanto, e enquanto a peça nova não chega, tenho andado, num processo lento e estupidamente contra-intuitivo, a mentalizar-me de que aqui se conduz do outro lado da estrada. A palavra-chave aqui é ESQUERDA: lado esquerdo da estrada, encostada sempre o mais à esquerda possível, nas viragens de direção, voltar a encostar à esquerda. Ainda tenho a sensação inconsciente - demasiadas vezes - de que este carro vai em contra-mão, ou de que devo esperar os carros daquele lado da estrada e ficar surpreendida quando um passa rente a mim quando caminho no passeio esquerdo da estrada. Sinto-me canhota ao quadrado.




S.



quinta-feira, 26 de junho de 2014

Indo eu, indo eu, a caminho de Caminha

Já estamos em Portugal e já estamos de partida. Ainda não acredito que vamos mesmo embarcar nesta viagem de bicicleta e as minhas pernas nem suspeitam da sova que vão levar. Provavelmente, nem a mente está ainda consciente do que vamos fazer. Ignorância é bênção, deixa-as estar.
 
A partir de amanhã e durante o próximo mês vamos estar aqui.


Desejem-nos sorte e força nas canelas. :)




S.
 

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Sucesso balnear

Há duas semanas fomos à praia. A intenção principal de ir até à beira-mar era fazer um passeio de bicicleta de vários quilómetros pela costa flamenga e holandesa, que me haviam dito ser lindíssimo. Andava a sonhar com Knokke há mais de um ano. Como todas as previsões meteorológicas apontavam para um dia soalheiro e de mais de 25 graus naquela cidade costeira, permitimo-nos sonhar.

Começámos a rir maniacamente quando, ainda no comboio, cai uma carga de água enorme. Não faz mal, já estamos habituados, declarámos nós, os fatos-de-banho vieram vestidos mas bom, temos o pedalanço na mesma para fazer. Não seria em vão como há dois anos.  

Fomos então pedalar, eu sempre de antena no ar para descobrir o momento em que passássemos a fronteira com a Holanda. Nem uma placazinha azul com estrelas amarelas a anunciar, nem bandeiras holandesas em lado nenhum, mudança de língua nicles porque já estávamos na Flandres de qualquer das formas, olhar para as matrículas dos carros não me elucidou porque havia igual número de BEs e NLs, e as pessoas como é óbvio não têm escrito na testa de que país são. Cheguei a procurar desesperada anúncios em edifícios ou paragens de autocarro que tivessem um website com .nl, cheguei ponderar perguntar a alguém na rua se já estava na Holanda, mas senti-me ridícula e tive medo de ofender nacionalismos desenfreados caso ainda estivesse na Flandres. Lá vislumbrei uma caixa de correio amarela que dizia qualquer-coisa-qualquer-coisa-Nederland mas acabei por nunca vislumbrar a linha divisória como esperava. Só em casa, com o mapa GPS do percurso feito transferido para o computador pude ver que tínhamos avançado 10 km para dentro da Holanda sem nunca nos apercebermos. 

Apanhámos chuva e fresquinho, como era esperado desde a forte chuvada no comboio. O que não era esperado foi o sol que de repente brilhou em toda a sua glória no pedalanço de regresso a Knokke, e que me garantiu um lindo bronzeado à camionista que ainda hoje apresento com alguma vergonha. Apanhar escaldões aqui nestas costas do norte é uma verdadeira humilhação para pessoas Europa-sulistas como eu.

Ainda fomos à praia, o único final lógico de um pedalanço debaixo de sol quente (aqui isto não é uma redundância). E tomei banho! Fiquei mesmo feliz, felicidade essa que se esbateu um bocadinho quando dei um pontapé sem querer numa alforreca*. Acabaram-se os banhos de Mar do Norte que foi uma beleza. Secar é que não deu. Para fornecer um inesperado escaldão lá esteve ele, para secar uma pobre alma após banho de mar é que já seria pedir demais. Tentei mas não pedi, porque fique a sentir-me uma privilegiada por ter conseguido em dois anos apanhar um dia de praia digno desse nome.  






S.

* diz que este ano há lá muitas, mas inofensivas, aprendi agora.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Guia de Portugal para o não-viajante

Já temos trajeto completamente definido.

Foi só agora, num cálculo mental rápido para ver quanto tempo tínhamos demorado a decidir o caminho, que me apercebi que foi no dia um de fevereiro que ficou decidido que iamos mesmo pedalar por Portugal afora. Demorámos pouco menos de duas semanas, portanto. Tenho a certeza do dia exato e tudo porque estivemos juntos e falámos que nos fartámos da coisa, tanto que tivemos que ir procurar num instante um mapa de Portugal à tabacaria mais próxima (que acabou por ser um Continente, as tabacarias já não vendem dessas coisas. Se calhar nunca venderam, não sei, nunca precisei de um...). Foi também quando informámos terceiros sobre a nossa ideia louca. E quando se informa terceiros sobre a nossa ideia louca ela deixa de ser ideia e passa a realidade. Pode continuar a ser louca à mesma, mas fica a pressão de se a concretizar.

Bom, mas dizia eu que comprámos o tal mapa porque nos estava a fazer falta na conversa um guia exato da linha de costa do nosso país. Para sabermos se daqui até ali é mesmo perto ou se tem que se guardar dois dias para lá chegar, como é.

Claro que um mapa de papel não chega nem de perto nem de longe para o ultra-mega-planeamento pormenorizado que queríamos, um que incluísse distâncias exatas (escalas e medir cenas com régua é aborrecido e demasiado dispendioso de tempo. E lamento mas somos criaturas jovens, que cresceram à medida de um Google Maps e não pensam abrir mão da sua mega conveniência.)

Posto que o mapa de papel foi muito útil para se abarcar a ideia geral, mas o trabalho todo de cálculos de distâncias, decisões de dormidas e terras a visitar foi feito através do nosso amigo precioso.

Assim que acabámos eu tive a brilhante ideia de pegar no livro que tinha comprado há uns anos e que teria sido bem mais útil ler antes de termos sequer começado a desenhar o trajeto...




Isto porque a ignorância por vezes é uma benção. E eu acho que era uma pessoa mais abençoada quando não sabia que Portugal tinha tanta coisa fascinante para ver. Mas saber não é ter uma ideia vaga, do género "gostava de visitar Aveiro, ou o Gêres, dizem que a costa alentejana é muito boa também...". É ver mesmo fotos ou ler descrições de sítios específicos, concretos, saber-lhes o nome e ver-lhes a cara. Por exemplo, sabiam que Portugal tem uma coisa destas?



Eu não sabia! E estou num misto de estupefação e indignação, mas mais indignação porque não sei quem é que nos anda a esconder estas coisas.

Nós decidimo-nos pela viagem pela costa abaixo e graças a isso vamos ver coisas magníficas, a antever pelas poucas terras que googlámos (há que manter algum suspense) e porque a costa portuguesa é extremamente diversificada para um país tão pequenino. Mas isso significa também que vamos abdicar de muita coisa interessantíssima que valeria tanto a pena quanto o resto, só foi azar ter calhado a mais de 20 quilómetros do mar.

Por isso mesmo, para não se falar mais do que poderia ter sido e cortar pela raiz os arrependimentos, vou deitar cá para fora tudo aquilo que eu queria tanto ver mas que não cabe na viagem. Para depois poder falar do que realmente vamos visitar já com a alma purgada.


Monserrate

Sintra, realmente... Mete raiva. Mete raiva pela quantidade de coisas que tem para ver, pela mistura de paisagens naturais e monumentos lindíssimos com que foi agraciada, pela aura de mistério, até pelo micro-clima marado e chuvoso. Algures lá para o meio da serra está o Palácio de Monserrate, uma construção exótica rodeada de plantas de todo o mundo e que, ao que parece, está um bocado ao abandono. Está na minha imaginação como uma Regaleira II.



Buçaco

E por falar em Regaleiras II... Grande filha da mãe, esta floresta, hã. Então nós temos toda uma espécie de floresta encantada e mística ali para os lados de Coimbra e eu só soube disto há dois ou três anos?! Como é possível?! Tem mosteiros e casas de retiro com mais de mil e quatrocentos anos, tipo casas escavadas no meio da rocha, tem vales de fetos, tem igrejas pequeninas cobertas de musgo, eucaliptos centenários e monumentos a batalhas das invasões francesas e eu sem nunca lá ter metido os pés. Parece impossível.



Batalha

Este não posso dar a desculpa de que nunca tinha ouvido falar, que me andaram a esconder e não sei quê. É mesmo uma falha grande e pronto. Mas é um grande mosteiro, provavelmente o nosso mais bonito (rivaliza ali taco-a-taco com o dos Jerónimos) e está na minha lista de coisas para ver em Portugal há muuuuito tempo. Ainda não vai ser este julho.



Tomar

Ali perto está outro monumento assim daqueles hard-core da história portuguesa que é o Convento de Cristo de Tomar. Segundo este senhor, é ali que está escondido o Santo Graal, que não é cálice nenhum mas sim um globo terrestre de madeira feito por Jesus Cristo carpinteiro e dado aos Templários para estes desbravarem o mundo. Foi por isso que os portugueses foram pioneiros nisto dos descobrimentos, e que sabiam que o Brasil estava lá onde estava muitos anos antes de 1500. É uma teoria muito linda, muito divertida, à la Dan Brown, mas que me espicaçou ainda mais a curiosidade de visitar esta cidade. Até porque é lá que está enterrado o nosso Pai Fundador, o Sr. Henriques, e a cidade diz que também é muito bonita.



Castelo de Arouce

Algures perto da Lousã, nos arredores de Coimbra, existe um castelo num vale. Um castelo construído num vale, ao invés de no monte mais alto que conseguiram arranjar. Quão intrigante é isto?...



Biblioteca da Universidade de Coimbra

Portanto, eu estive em Coimbra em dezembro, sabia que a universidade é centenária e tinha ouvido umas coisas sobre como a biblioteca é qualquer coisa de especial, mas ainda assim não a fui visitar. Por esta só me tenho a mim própria para culpar.



Ponte da Barca

Epá, adoro vilas com pontes romanas. São lindas. Pensar que os senhores de camisolas vermelhas, sandália no pé e capacetes com penugem estiveram ali e construíram aquilo que estou a ver e que mais de dois mil anos depois ainda é útil e utilizado, deleita a historiadora clássica que há em mim. E esta paisagem é lindíssima.



Citânia de Briteiros

E por falar em cenas bué antigas... Nós temos toda uma aldeia da Idade do Ferro reconstruída algures no Minho. E ninguém me ter dito nada, está certo? Não acho que esteja muito certo.





Braga

Braga está-me atravessada há já bastante tempo. Uma das cidades portuguesas mais bonitas e eu não a conheço. Vergonha, só vergonha.




Parque Nacional Peneda-Gerês

Deste nem vou falar para não me enervar...



Marvão

Como quase todos os vilarejos, vilas e cidades de fronteira, o Marvão é bad-ass. O que mais me fascina quando li sobre esta vila é o contraste entre o tamanho e o nível de fortificação: ultra-proteção para uma coisa tão pequenina. E vejam como se camufla ali na rocha:



Miróbriga

No Alentejo, perto de Santiago do Cacém, existe uma cidade romana encontrada e escavada que apresenta ruínas de coisas como dois templos, um fórum e um circo com capacidade para 25 mil pessoas. !!! Quem precisa de Romas com coisas destas a duas horas de Lisboa de carro?



Museu Regional de Beja

Este museu é o antigo Convento de Nossa Senhora da Conceição, que fiquei há dias a saber foi onde a freira Mariana, das Lettres Portugaises (1669), viveu. Está lá a janela da cela dela e tudo. Estas Lettres Portugaises foram mais tarde reproduzidas com um twist nas Novas Cartas Portuguesas, um livro chave do feminismo português e que, como bom livro feminista, irritou profundamente a censura do Estado Novo.


Tem ainda salas arabescas como esta, de azulejos intricados lindíssimos como estes, de maneira que vale mais a pena uma visita do que eu consigo exprimir:



Tour dos megalitos


Por último (quero crer que é o último...), entre Évora e Santiago do Escoural, existe tanto megalito, menir e dólmen que os senhores que escreveram o meu guia de Portugal criaram a tour dos megalitos, que deve durar um dia inteiro. Tem coisas como isto, a gruta do Escoural, carregada de pinturas rupestres com mais de 15 mil anos:


Ou isto, o Cromeleque de Almendres:


Não sabia que tínhamos celticidades e druidarias destas.

Pronto. Estão exorcizados de mim os sítios que não visitarei este julho mas que ainda assim quero tanto, tanto, tanto visitar. O tempo é curto, a vida é pequenina para se estar em todos os lados que se quer. O Fernando Pessoa tinha aquela ideia - parva - de que não é preciso ir aos sítios para os visitar, muito pelo contrário, que a ideia de visitar coisas é mil vezes mais interessante em si mesma do que o ato concreto de o fazer. Eu como sou uma pessoa mais rude e simplezinha, e como o Fernando claramente viajou pouco, fico-me pela vontade de querer mesmo pisar estes sítios e vê-los com os meus próprios olhos, sem intermediários. Ainda assim, acho que o Fernando Pessoa teria gostado de conhecer o Google Images.




S.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A grande viagem (ou, como quem diz, já não há juízo entre nós)

Há uns meses valentes, dizia-me o D. assim: "Eh, 'bora de Bruxelas a Portugal de bicicleta!" Eu acho que na altura não disse nada porque fiquei muito ocupada agarrada à barriga a rir. Mas nos tempos seguintes comecei a ponderar, a admirar a coisa de diversos ângulos e a magicar maneiras de a tornar possível. Como acontece aliás sempre que ele vomita uma ideia estrombólica deste tipo (cofvamosviverparalondrescof). Depois a coisa já era "Eu hei-de ir a Portugal de bicicleta..." E eu tornei-me condescendente: "Hmm-hum, claro que vais, se nem em Bruxelas andas, deves ir." Mas a ideia, na sua teoria, vá, até era fixe e seria uma mega conquista e uma oportunidade perfeita para palmilhar, quase literalmente, um bom pedaço da Europa, e eu até ia todos os dias para o trabalho de bicicleta e tal, comecei a dar algum crédito à coisa. Seria difícil mas não impossível e inesquecível decerto. Depois até descobri a rede EuroVelo e fiquei fascinada com a prospetiva de uma Europa toda ciclável e ganhei balanço. Chegámos a estimar dias e quilómetros, se faríamos pela costa francesa e espanhola ou cortando caminho pelo interior (eu dizia-lhe: "Há PIRINÉUS pelo meio" mas ele não queria saber), estivemos quase a comprar bicicletas para começar a visitar cidades belgas aos fins-de-semana (sempre Waterloo...), chegámos a sonhar visitar uma cidade de cada país aqui à volta só para dizer "Eu fui a [inserir país vizinho da Bélgica] de bicicleta e voltei!", eu sempre a insistir em irmos a Londres dando ao pedal e quase morrendo de desgosto por saber que o ferry de Calais-Dover ou Ostende-Southampton só transporta carros (sempre a Inglaterra...).

Entretanto a nossa partida definitiva da Bélgica chegou mais abruptamente do que o previsto e a ideia foi posta de parte. No final de junho iremos para Portugal, em setembro este blog voltará para o sítio que lhe deu o nome. A univ/cidade ainda não está escolhida mas a volta para a ilha já é uma certeza.

Mas... Mas. Há outra coisa. Surgiu a ideia (ou ressurgiu, nem sei com certeza), tão repentina mas tão avassaladora - e as melhores ideias surgem assim, já percebi - de uma volta a Portugal em bicicleta. "Se não dá a viagem maior, faça-se esta por Portugal, já que vamos ter umas férias mais alargadas do que o previsto", disse-me ele. E eu, contra todo o meu instinto dos "mas" e "se"s compulsivos disse: "'Está bem." É que, entendam, depois de termos passado meses e meses a considerar distâncias de 2000 e tal quilómetros e ver como enfiar aquilo em três semanas, olhar para o mapa do litoral português e ver que de cima a baixo são 700, a coisa parece uma brincadeira de crianças. E eu agora até corro fixe e tal, há-de dar, pensei eu. É a confiança de que o meu corpo é imparável e os seus limites serão apenas os que eu lhe impuser. Ou isto é uma revelação extremamente sábia ou a corrida queimou-me o cérebro todo, ainda não sei dizer.

Assim, e porque já sei que é certo e já temos um percurso (em rascunho), as datas alinhavadas e as linhas gerais de logística traçadas, eu posso dizer, com certeza, que o próximo julho será passado numa bicicleta (duas). Iremos de Viana do Castelo a Vila Real de Santo António, em 29 dias, sempre pela costa portuguesa (os emigrantes querem é praia e sol, of course). O entusiasmo é enorme, a antecipação também, o nervoso miudinho é que nem por isso. E isto é estranho. Tenho assim novo objetivo para lá da Meia-Maratona/Corrida dos Sinos: convencer as minhas pernas que pedalar 50 km por dia durante um mês é very nice.

Escusado será dizer que este blog em julho vai estar a abarrotar irritantemente de descrições de quilómetros feitos, dores nas pernas, escaldões no pescoço e outros pormenores que provavelmente só a nós interessarão. Escusado será também dizer que todas as dicas, experiências, conselhos e coiso serão extremamente bem acolhidos por estes dois jovens amadores que não têm nenhuma experiência com viagens de bicicleta, só uma pancada muito grande nestas duas cacholas.



Era para ser uma destas mas eu sou fraca demais para puxar pelos dois e control-freak demais para me deixar ser puxada.



S.

domingo, 29 de setembro de 2013

Desportos radicais em Londres

Foi após muito remoer de prós e contras, em que dois tornozelos me andam a lixar planos de corrida mais uma enorme curiosidade versus uma condução à esquerda endiabrada, que finalmente andei de bicicleta em Londres. Sinto-me uma pessoa diferente e sei que amanhã o meu commuting a pedalar vai parecer uma brincadeirinha de crianças.

Peguei na bicicleta a tremer mas decidida porque queria mesmo muito experimentar bicicletar na amada cidade e porque tinha pouco mais de duas horas para matar as saudades. E eu quando vou a Londres tenho uma espécie de sítios ritualescos por onde tenho que passar e dizer olá, tenha o tempo que tiver. Daí que a bicicleta me pareceu boa ideia.

Coisas que me deviam ter gritado "nããããooo...!" na altura (e até gritaram, eu é que escolhi fazer de surda):

-  conduzir do lado esquerdo da estrada: esta foi a que me gritou "nãããoo" de forma mais audível. Os cruzamentos sabia que eram a parte mais lixada porque é quando se muda de direção e o instinto mais fortemente diz para posicionar do lado normal, ou seja, à direita. Fui o caminho todo a gritar mentalmente "esquerda, esquerda, esquerda, ESQUERDA", especialmente quando era altura de virar numa rua qualquer. Problemas adicionais: às vezes, há estradas com três ou mais faixas no mesmo sentido e, se quero ir em frente, tenho que ir na faixa do meio. Faz engolir mesmo muito em seco uma pessoa estar numa das ruas mais movimentadas de Londres, na faixa do meio e não saber se deve encostar à esquerda ou à direita nessa faixa porque entretanto já se baralhou toda e deve-se ir encostadinha é o mais à direita possível, certo? Ou era à esquerda? Vrrrroooom, e o autocarro que acabou de me rasar a esquerda. Ok, calma. Semáforo vermelho.

- conduzir na hora de ponta: hah, essa também foi boa. Começar a bicicletar numa metrópole a sério (cá Bruxelas, quais quê) às 19h da tarde. Nunca me pesou tanto o capacete que não levava como naqueles 20 minutos que durou a coisa.

- ausência de pistas cicláveis: sinceramente, fiquei desiludida. Pensava que Londres tinha uma muito maior consideração pelos seus ciclistas do que vi. Ruas fundamentais e largas no centro da cidade sem vias designadas para bicicletas, que não precisam de ser vias individualizadas, apenas uma coisa deste género:



Todas as ruas em Bruxelas, mesmo as mais insignificantes, têm símbolos de bicicletas no chão que indicam onde estas devem circular e mesmo que não constituam uma faixa diferenciada, estão lá. No caso de ruas mais estreitas, o símbolo da bicicleta está no centro da estrada, indicando que o ciclista se deve posicionar no meio da faixa e o carro que espere. Foi um choque enorme descobrir que Bruxelas está bem mais à frente que Londres em alguma coisa.

De resto, admirável como aquela cidade é plana de fazer inveja e que nunca precisei sequer de olhar para as mudanças (mas olhei e eram só três. Em Bruxelas as bicicletas de aluguer precisam de sete). Gostei muito do sistema de aluguer Barclays, mais fácil de usar e com bicicletas mais leves do que o aqui do burgo. Pena o movimento tão intenso nas artérias centrais e a ausência de espaços exclusivamente cicláveis. Próxima experiência: Lisboa. 



S.

domingo, 22 de setembro de 2013

Fora com as quatro rodas!

Fiquei um bocado triste quando ouvi no telejornal português que hoje, Dia Europeu Sem Carros, em Lisboa havia mais carros do que em anos anteriores. Que a tradição já não é o que era, e várias entrevistas a ciclistas desiludidos por verem que a circulação dos carros se mantinha igual aos outros dias do ano. Eu tinha acabado de vir de uma corrida por uma das artérias mais movimentadas de Bruxelas e fiz o caminho quase todo no meio da estrada, sem necessidade de parar em semáforos (a minha velocidade média agradece) e tinha tido como única preocupação desviar-me de vez em quando de uma bicicleta mais desgovernada. Por isso fiquei triste que em Lisboa não fosse o caso.

Esta foi apenas a segunda vez que o vivi mas já se tornou facilmente no meu dia preferido do ano. Ao contrário do ano passado, que nem estava a contar com ele, nem sabia o que era, desta vez esperava ansiosamente este penúltimo domingo de setembro porque já sabia o que aí vinha: uma cidade completamente transformada a muitos níveis. Um silêncio impensável (só nos apercebemos do barulho constante dos carros quando ele desaparece), um ar bem mais puro (fizeram análises em vários pontos da cidade o ano passado neste dia e foi incrível a diferença dos níveis de poluição no DESC comparativamente ao normal), uma alegria contagiante nas ruas. Em Bruxelas, é proibido carros circularem neste dia dentro da cidade. Apenas carros da polícia, ambulâncias, táxis, autocarros e trams percorrem as estradas. É possível obter uma autorização para andar de carro no DESC, mas a justificação tem que ser mesmo muito boa, e a circulação só pode ser feita para essa coisa em especial. Aqui não estão com voluntarismos nem à espera que sentidos cívicos maiores se levantem: é dia sem carros, é proibido circulá-los e ponto final.

Há-de haver muitos resmungos, não duvido, mas para a vasta maioria das pessoas compensa. E se compensa! Nunca vi tanta bicicleta junta na minha vida nem tanta gente a usufruir das ruas da cidade. A Avenue Louise parecia uma parte da Volta à Bélgica em Bicicleta, tal era a quantidade de ciclistas a dominar a estrada. Centenas e centenas de pessoas a pedalar, a caminhar, a andar de patins-em-linha, de trotinete, de skate. Mas um silêncio anormal numa avenida tão movimentada. A cidade parece um parque gigante. Estivemos meia hora sentados num café mesmo à beira de um semáforo a observar e vi a quantidade de bicicletas mais diversa da vida. A cada semáforo vermelho, era ver umas vinte bicicletas a agrupar à espera da luz verde. E ali ficámos nós a admirar as fornadas constantes de bicicletas a chegar e mais uns quantos transportes estranhos que normalmente só podem ver a luz do dia em parques construídos para o efeito.

Não me lembro de isto no ano passado ter sido assim, apesar de ter estado mais calor do que hoje. Talvez haja cada vez mais gente a aderir a este dia, e, espera-se porque afinal é essa a intenção, a largar de vez o carro no seu commuting diário dentro da cidade. O Dia Europeu Sem Carros aqui em Bruxelas mostra tudo o que uma cidade poderia (poderá?) ser, se se tirar aos motores a primazia que infelizmente ainda detêm. A imagem é maravilhosa, bem real neste dia, ainda que utópica nos outros 364.
      





S.

sábado, 14 de setembro de 2013

A Simone e as bicicletas

Há um ano, quando comecei a ir para o trabalho de bicicleta, foi todo um novo mundo que se me abriu. Estou a ser um bocadinho dramática, mudei só a minha perspetiva do commuting diário. Mas houve uma coisa inesperada que também tive que mudar: a minha roupa.

A primeira preocupação que tive - até porque a necessidade não demorou a manifestar-se e, vivendo onde vivo, soube logo que seria uma constante - foi descobrir a melhor maneira de contornar a chuva. Descobri aqueles ponchos muito largos e impermeáveis, analisei atenta mas disfarçadamente os companheiros ciclistas (especialmente nos semáforos vermelhos, ocasião preferida para olhar de soslaio o tipo de equipamento que o pessoal do ciclismo urbano utiliza) e cheguei à conclusão que não havia melhor que aquilo. Encomendei, usei, descobri que os pulsos e mãos ficavam molhados que era uma desgraça, e estava sempre um bocado com medo que um carro passasse mais rente a mim e prendesse sem querer o espelho do pendura ao meu poncho esvoaçante e lá fosse a S. de cabeça ao chão. Mas bom, era o que havia e fazia o seu trabalho razoavelmente bem. Até que num dia de chuva em que só tínhamos um chapéu, eu vesti aquilo quando fomos ao mercado de Natal e reparei (ele também não tentou disfarçar) que o D. estava um bocadinho, er... desconfortável. E aqui desconfortável é eufemismo para com vergonha de estar ao pé da minha pessoa. Os meus protestos de "Estás a exagerar um bocadinho, não? Esta capa não é assim tão esquisita..." foram abafados pela foto que ele tirou onde eu não pareço um dementor - como pensei e o que seria estranho mas respeitoso - mas sim um duende azul zangado num dia de chuva. A capa é mesmo muito grande para mim. De maneiras que agora ando à procura de um blusão impermeável ou assim, como as pessoas normais usam. 

Mas isto tudo para introduzir um problema que eu nunca tinha pensado seriamente até ali - nem sabia que era verdadeiramente um problema - até começar a andar de bicicleta no dia a dia: a roupa feminina. De repente, quase todas as minhas saias deixaram de servir, vestidos idem, e a algumas calças tive que dizer bye-bye. Entendam: o meu guarda-roupa não era nem especialmente fashion, porque nunca tive muita paciência, nem particularmente feminino-formalesco. Mas de repente cheguei à conclusão que, para além dos sapatos altos que são a cruz mas a alegria de tanta mulher, a roupa de mulher é extremamente restritiva a qualquer atividade física que esteja acima do caminhar curtas distâncias. Comecei a observar à socapa mas mais atentamente as outras ciclistas e de facto, se entre os homens via muita vezes fatos completos de trabalho, nas mulheres muito raramente descobria alguma saia travada, que faz parte de muito uniforme de trabalho de escritório.

Comecei a ter que ter cuidado especial na procura de roupa que me deixasse as pernas livres para pedalar e no comprimento das saias que me piscavam o olho nas lojas de roupa (elas têm uma mania irritante de subir perigosamente cada vez que se dá ao pedal. E irrita-me solenemente estar preocupada em a ir puxando quando tenho mais com me preocupar quando ando de bicicleta, como, sei lá, não ser abalroada por um carro). Concluindo: uma mulher, para fazer o seu commuting de bicicleta, ou abandona as saias e as calças justas no trabalho, ou passa a levar muda de roupa para trocar assim que chega. 

Já a Simone Beauvoir dizia, falando de roupas de uns e de outros:

"Uma mulher que não pretenda chocar, que não tencione desvalorizar-se socialmente, deve seguir a sua condição de mulher. (...) Mas se o conformismo é para o homem bastante natural - os costumes regeram-se pelas suas necessidades de indivíduo autónomo e ativo - é necessário que a mulher, que também é sujeito, atividade, se mova num mundo que a votou à passividade. É uma servidão tão mais pesada quanto as mulheres confinadas à esfera feminina lhe aumentaram a importância: a toilette, as lides domésticas, a mulher fez delas artes difíceis. O homem tem pouco com que se preocupar relativamente às suas roupas; são cómodas, adaptadas à sua vida ativa."

"Une femme qui ne désire pas choquer, qui n'entend pas socialement se dévaluer doit suivre en femme sa condition de femme (...) Mais tandis que le conformisme et pour l'homme tout naturel - la coutume s'étant réglée sur ses besoins d'individu autonome et actif - il faudra que la femme qui est elle aussi sujet, activité, se coule dans un monde qui l'a vouée à la passivité. C'est une servitude d'autant plus lourde que les femmes confinées dans la sphére féminine en ont hypertrophié l'importance: de la toilette, du ménage, elles ont fait des arts difficiles. L'homme n'a guère à se soucier de ses vêtements; ils sont commodes, adaptés à sa vie active."

E os meus cismas sobre indumentárias próprias para um dia-a-dia que inclui profissão e pedalanço passam a fazer sentido. A roupa de mulher, especialmente aquela roupa que vem à cabeça quando se pensa em mulheres que trabalham em escritórios, simplesmente não está pensada para a mobilidade, está pensada para a passividade e o objeto. É por isso que quando estas mulherzinhas do séc. XXI se metem com a mania de inventar novos meios de transporte que envolvem mais do que colocar um pé à frente do outro, alguma coisa tem que ceder. No meu caso, não há dúvida: entre o meu lado mais girly ou a facilidade e felicidade que é pedalar até ao trabalho, cai o primeiro. Mas com uma pontinha de pena.



Aparentemente, já houve quem pensasse nisto de forma mais prática do que eu.



S. 


 

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Volta à Europa em bicicleta

Há muito que o D. me tem vindo a tentar convencer a irmos a Portugal de bicicleta. Ideias mirabolantes é com ele por isso a minha reação standard é olhar para ele muito séria (ele todo sorridente porque sabe que a ideia é extravagante mas está a falar a sério e sabe que eu sei que ele está a falar a sério e sabe o que vai acontecer a seguir), eu desato a rir, reviro os olhos, e lanço uma tirada de razões por que a ideia é impossível: são quase 2000 kms, há Pirinéus pelo meio, eu não tenho resistência assim, ele nem na cidade anda de bicicleta, quanto mais atravessar países. Rimos um bocadinho e o assunto morre por ali. Até à próxima vez em que ele se lembrar.

Por isso foi com enorme surpresa que eu descobri que existe uma iniciativa - já bem adiantada, diga-se de passagem - para tornar o continente europeu ciclável de umas pontas às outras. 

Vejam esta maravilha:


No fundo a ideia é criar estes circuitos de vias rápidas para bicicletas que atravessem a Europa e liguem capitais, costas, etc. De notar que nenhum dos 15 percursos está ainda completo (o nº1, chamado "Costa Atlântica" e que liga o Algarve à Noruega, ainda não está realizado no território português). Segundo o website do EuroVelo, a ideia é que até 2020 a rede que vemos no mapa esteja substancialmente completa.

E uma pessoa começa a ficar com ideias...

Reparem na maravilha da rota 9, "Rota Mediterrânica": partir de Sevilha e ir Espanha acima, fazer a Côte d'Azûr francesa, depois ali um bocado de Alpes, vamos saltar aquilo, depois, Eslovénia, Croácia e Balcãs abaixo até à Grécia... Isto é que é o verdadeiro interRail, o verdadeiro périplo pela Europa.

Não faço bem ideia de quanto tempo demoraria a viagem, sendo que também não é preciso fazer uma rota de uma ponta à outra. Há que contar com paragens e demoras em sítios particulares, especialmente capitais ou outras cidades/vilas interessantes, para se ver o que merece ser visto. Tenho noção que isto seria uma viagem para ser preparada em vários anos - especialmente a parte da resistência - mas tenho perfeita consciência que é possível. Faz-se, não está só ao alcance de atletas de alta competição. Se há dois anos me dissessem que eu passaria a fazer commuting de bicicleta eu rir-me-ia muito na cara dessa pessoa, por isso acredito que isto, sendo a viagem monumental que é, é possível. 

Pensando agora assim um bocado por alto. Por exemplo:

- de Bruxelas a Lisboa são 1800 km. Para fazer o percurso num mês equivaleria a 60 km por dia; 

- tendo em conta que neste momento faço cerca de 8 km por dia de commuting (total ida-e-volta) isso significaria, er... um ou dois anos intensivos de treino?

(Acho que não estou bem a ver o que são 60 km por dia de bicicleta durante um mês...)

Bem, mas a ideia de base aqui é que é possível. Não agora, não para o ano, mas talvez daqui a uns 3-5, se a preparação começasse brevemente. Poderia começar por treinar para o objetivo de fazer Lisboa-Algarve. É tudo razoavelmente plano e tal, podia ser que sim. 

Acabei de descobrir novo objetivo de vida. Há que começar agora por descobrir a bicicleta alma-gémea. Já comecei as pesquisas por aqui.

Umas imagens para dar forçazinha:








Opáá... Tinha-me esquecido do pormenor da bagagem...






S.