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quarta-feira, 5 de abril de 2023

Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) de Glauber Rocha



por João Palhares

Glauber Rocha nasceu e morreu algures, é certo. Cruzou, confundiu e desmistificou os hemisférios. Quis fazer o mesmo com o primeiro e o terceiro mundo, com a riqueza e a pobreza, com deus e o diabo, com a vida e com a morte. Será para sempre a presença nunca descansada, nunca satisfeita, nunca pacificada e maior que a vida que caiu de pára-quedas na revolução dos cravos e se pôs a espicaçar os populares e os militares com enérgicos “acriditá ná révulução?”, “Há quanto tempo você lútá?”, “O sénhô sofreu com á ditadura?”, “O quê achá dá situação atuau?” “Porque é qui não foram ao primeiro di Maio, porqui não estão ná Práça?” Pela mesma altura no congo, em cuba, no peru, em itália, na frança, no chile, em todas as revoluções e em todas as frentes, quem é que o alcança? Também foi ele que, em 1976, aterrou sem cerimónias e sem aviso no velório e no funeral do amigo Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque e Melo, com uma câmara na mão e como um poeta apaixonado que usa uma caneta, ou um pintor um pincel. Na curta Ninguém Assistiu ao Formidável Enterro de sua Quimera, Somente a Ingratidão, Essa Pantera, Foi Sua Companheira Inseparável. (1977), que foi o resultado dessas filmagens ainda infames para alguns, diz que aprendeu a filmar com Rossellini, que fazia o mesmo, fazia da câmara uma extensão do próprio corpo e da própria cabeça, dos neurónios criativos (“… fui destacado para entrevistar o Roberto Rossellini, e lá conheci o Di Cavalcanti que me apresentou o próprio Roberto, com a caméra de dezésseis milímitros, saindo pela rua na Bahia e filmando rapidamente lá um sarcófago e outros batuques das ruínas portuguesas barrocas da Bahia com uma rapidez impressionante. Nunca vi ninguém filmar tão rápido, aliás, ali eu saquei o que é que era realmente o negócio de “ideia na cabeça e caméra na mão”. Quer dizer, o Rossellini realmente fazia com a caméra de dezésseis o que Di Cavalcanti faria com um pincel.”), da parcela redentora do ser humano, aquilo que o pode projectar na eternidade. Mas entrou no velório, escrevemos, e fez daquilo um carnaval celebrando a vida e a obra do amigo Di Cavalcanti nem lhe faltando trazer o morto para a festa também (“Agora dá um close na cara dele… barba por fazer, calça Benim azul-marinho, casaco azul claro, camisa esporte quadriculada, sapatos marrons… o cineasta Glauber Rocha está parado ao lado do caixão de Di Cavalcanti no velório no museu de Arrrrr-ti Moderna.”). Realizou treze longas-metragens e seis curtas-metragens ao longo duns meros vinte anos, viveu quarenta e dois, escreveu certamente milhares de textos e foi uma personalidade fogosa, apaixonante, instigadora e imprescindível para as décadas de 60 e 70. 
 
Também foi ele, claro, que nos anos 60 decidiu partir para o sertão brasileiro com pouquíssimos meios para encenar uma alegoria política e religiosa fundadora, uma mitologia nova para o terceiro mundo. Plena de fúria e de sangue, como nos mitos que se conhecem da bíblia sagrada ao sagrado capital, chamou-lhe Deus e o Diabo na Terra do Sol e deu-lhe forma de western para se apropriar doutro mito, o do cinema. E assim dois fazendeiros incautos, um homem e uma mulher como no paraíso, encontram um deus negro e um diabo louro e são perseguidos por um carrasco de cangaceiros chamado António das Mortes. Pontuado por comentários escritos por Glauber Rocha e cantados à guitarra por Sérgio Ricardo, nos termos mais directos possíveis, o filme torna-se um grito primordial de revolta desde muito cedo. “Vou contar uma estória, na verdade é imaginação. Abra bem os seus olhos, para prestar bem atenção. É coisa de deus e diabo, lá nos confins do sertão.” À medida que avançamos assistimos aos pecados e aos sacrifícios que se cometem para tentar erigir uma ideia de civilização, a sociedade atrás de homens e mulheres que se tornam criminosos por não se contentarem nem terem de se contentar com o quinhão que lhes é alotado por meia dúzia de iluminados privilegiados. Deus e o diabo acabam por não parecer assim tão diferentes e os homens descobrem que têm de lutar por si próprios para transformar o sertão em mar e para o paraíso lhes ser devolvido. Como em qualquer epopeia ou mito, há algo de verdadeiro, de factual, e a acção situa-se na época de Corisco e Dadá, cangaceiros conhecidos por esses nomes mas que em tempos se chamaram Cristino Gomes da Silva Cleto e Sérgia Ribeiro da Silva. São personagens do filme e fizeram parte das fileiras do rei do cangaço, Virgulino Ferreira da Silva, o famoso Lampião. Foram todos o pesadelo das autoridades brasileiras, entre as duas grandes guerras, mas para um povo fustigado e cansado representaram um sonho e a esperança de que algo mudasse nas suas vidas. Projectando as suas mordaças e as suas amarras nas que tentavam pôr nos cangaceiros, livres no sertão, seguiram as suas aventuras e torceram por eles como libertadores anunciados. Como quem percebe que as coisas não estão bem, ainda hoje, líderes mundiais sempre a gerir um equilíbrio talvez impossível entre a ordem e a liberdade, quando não é a mera subsistência, milhões de pessoas presas ao trabalho e ao dinheiro podem gritar com Corisco quando chega António das Mortes e lhe diz para se entregar: “Eu não me entrego, não. Não me entrego ao tenente, não me entrego ao capitão. Eu me entrego só na morte de parabelo na mão.” E a ambição de contar uma Odisseia ou uma Ilíada do século XX, realiza-se, não se sabe se os séculos não transformarão Manuel em Ulisses e Corisco em Aquiles, perdendo-se o filme e os seus negativos mas sustendo-se o mito. Dezenas de decanos e decanas perdidos no deserto em peregrinação num fim do mundo longínquo qualquer a debitar de memória emprestada os planos e os versos de Glauber Rocha, que viveu e morreu como um cangaceiro e deu novos mundos ao mundo. E nem na morte descansou ou nos deixa a nós descansar.



sábado, 12 de novembro de 2022

Le Journal d'une femme de chambre (1964) de Luis Buñuel



por António Cruz Mendes

Na sequência do ciclo “A Literatura e o Cinema Francês”, exibimos hoje Diário de Uma Criada de Quarto, a adaptação de Luis Buñuel do romance de Octave Mirbeau. 

Logo nas primeiras linhas do romance, lemos uma entrada do Diário de Célestine: “Hoje, 14 de Setembro, às três da tarde, por um tempo ameno, cinzento e chuvoso, dei entrada no meu novo emprego. Em dois anos, é já o décimo segundo. Já não falo dos que tive nos anos anteriores. Não tinham conto possível. Bem me posso gabar de ter visto por dentro muita casa, muita cara... muita alma imunda...”. Em Paris ou na província, em casas aristocratas ou burguesas, Célestine experimenta o menosprezo dos patrões, que tratam a “criadagem” como coisas, e testemunha as perversões e ódios dos abastados, numa França onde o reacionarismo monárquico, o nacionalismo revanchista e o anti-semitismo fazem o seu caminho. A França do “caso Dreyfus”. 
 
Luís Buñuel, adapta o romance permitindo-se algumas alterações. Os acontecimentos já não se passam na viragem do século, mas trinta anos mais tarde, concentra-os numa só casa e acrescenta-lhes os episódios do velho fetichista e da violação e assassinato da pequena Claire. Mas, o propósito de denúncia social do romance de Mirbeau, continua presente, ainda que tratado sob a óptica singular do cinema de Buñuel, com a sua ênfase particular na feição erótica dos acontecimentos narrados. 

A casa dos Monteil é um microcosmos que a lupa de Buñuel nos vai desvendando. Monteil dedica-se à caça e compensa a frigidez da sua esposa assediando e engravidando as criadas que passam por lá. Madame Monteil, que se dedica a velar pelos seus preciosos objectos decorativos, não tem ciúmes do marido. De facto, as suas aventuras têm até a vantagem de ele, “demasiado forte e vigoroso”, a deixar mais facilmente em paz. O diálogo com o padre esclarece-nos acerca da moral sexual da Igreja. Porém ela exige que elas não lhe tragam despesas. O seu pai é um velho “encantador”, apenas tem os botins das mulheres como fetiche sexual. E Joseph, cocheiro e guarda-caça, é um militante da Action Française que aspira à condição de dono de um botequim. 

Pelo meio, uma criança é violada e morta. A tentativa de incriminar Joseph engendrada por Célestine não resulta. Falhado o assalto a Célestine, Monteil contenta-se com a pobre Muni. E Célestine emancipa-se da sua condição de criada, substituindo a velha Rose na cama de um caricatural capitão, de quem aceita um pedido de casamento. 

Na sequência final, uma manifestação da Action Française desfila pelas ruas, passando à porta do botequim de Joseph, bradando contra os “metecos” – os judeus e os imigrantes. Às suas palavras de ordem, Joseph acrescenta uma outra, desde logo adoptada: “Viva Chiappe!” Buñuel não quis deixar escapar esta oportunidade para se vingar do prefeito da polícia de Paris que, em 1931, a instâncias da extrema-direita, mandou fechar a sala de cinema onde se exibia o seu segundo filme, A Idade do Ouro

O filme termina com uma imagem de um céu ameaçador, carregado de nuvens negras. É difícil ignorar a sua actualidade.



domingo, 10 de julho de 2022

Dr. Strangelove, or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb (1964) de Stanley Kubrick



por André Miranda

Olho o cursor piscando, acusando-me de falta de criatividade: não sei o que escrever, ilude-me a folha de sala. E por isso principio lamentando-me da minha falta de jeito e garantindo, entretanto, que os próximos parágrafos consistirão da mesma essência. Uma essência pura como os líquidos que ingiro: água destilada e álcool. Só não fumo charutos. Quanto aos comunistas, tenho as mais sérias dúvidas sobre a veracidade dos seus maquiavélicos planos. Afinal já não vivemos uma guerra fria. Ou vivemos? O planeta aquece com desfaçatez e as mangas compridas das camisolas esboroam-se. Não falta muito até que todos andemos de camisolas de alças. 

Se me pusessem na mesma sala que o general Jack Ripper o mais provável é que me subjugasse ao seu porte e voz robusta. Acenaria que sim a todas as lérias por ele ditas como se as suas palavras fossem as únicas pedras num deserto de areia movediça. Ao contrário do Capitão Lionel Mandrake, seguraria as balas e alentaria com gritos delirantes o trovejar contínuo da metralhadora. E quando tudo desmoronasse à nossa volta, alçaria o meu braço sobre os seus ombros caídos e murmuraria: meu general, não há quem esteja mais certo do que o senhor e o mundo inteiro percebê-lo-á no segundo seguinte a não poder percebê-lo. Não vos iludo: a minha coragem é de nuance estapafúrdia. 

Imagino-me agora na sala de guerra, ocupando um lugar naquela mesa oval imensa; farda polida, postura vertical, rosto garboso. Ouço os arrazoados gerais. Concordo com uns, discordo de outros. Tenho uma opinião, mas guardo-a. É necessário salvar a vida e se a salvando podermos obliterar o nosso inimigo, melhor ainda. O essencial é que nenhuma lacuna entre nós e eles exista: mais armas, mais tanques, mais mísseis. Tudo em nome da paz. Esta só existe se mutuamente apontarmos uma pistola à testa. Quem me parece um tipo impecável é este indivíduo com o cabelo desgrenhado; é verdade que por vezes grita, Mein Fuhrer, e a mão insiste em esticar e saudar: há tiques do passado que custam a emendar, mas com tempo tudo vai ao sítio. Vejam lá que até alterou o nome e agora se chama Estranhoamor, Dr. Estranhoamor. 

A primeira bomba está prestes a rebentar. Porventura ainda haja tempo de preservar uma réstia de vida: descer uns quantos humanos até a uma mina, onde lhes fosse possível resistir às radiações mortíferas e persistentes. Dez mulheres para cada homem, sugere o Dr. Estranhoamor. Perfeito, acenam as mais altas figuras hierárquicas, os que seriam salvos, com uma avidez mal disfarçada. Entretanto, o militar cowboy de chapéu erguido é consumido pela explosão nuclear. Mais seguir-se-ão. Quantas? As necessárias. Até que nada seja.



segunda-feira, 16 de maio de 2022

Il vangelo secondo Matteo (1964) de Pier Paolo Pasolini



por António Cruz Mendes

“Não creio que Cristo seja filho de Deus porque não sou crente. Mas creio que Cristo é divino: creio que nele a humanidade é tão alta, rigorosa e ideal que vai para além dos termos comuns da humanidade”, disse Pasolini. 

Este filme, dedicado ao Papa João XXIII, “lança um olhar moderno sobre a palavra de Cristo, inscrevendo-a numa paisagem intemporal que tanto se refere ao passado como ao presente, com um Cristo reivindicativo, quase duro. Se em Accattone e Mamma Roma, Pasolini sacralizou os subproletários, no Vangelo talvez tenha feito de Cristo um porta-voz dos danados da Terra” (Cinemateca Portuguesa). 

Nele, impressiona-nos, desde logo, o rigoroso realismo. Os actores não são profissionais e, em algumas cenas, e o recurso à câmara subjectiva oferece-nos a perspectiva das pessoas que nelas participam. Somos convidados e entrar num mundo onde a humanidade, a simplicidade e o despojamento contrasta de forma flagrante com a espectacularidade das superproduções “bíblicas” realizadas em Hollywood. 

A imagem de Cristo não é a da figura seráfica, de barba crescida e longos cabelos loiros que nos habituamos a ver noutras representações, mas a de um jovem com quem nos poderíamos cruzar na rua. E o mesmo podemos dizer de José, de Maria, a jovem mãe ou a mulher já idosa que sobe ao Calvário, ou de qualquer um dos apóstolos. Grandes planos apresentam-nos os rostos das figuras que dão corpo a esta história. Magníficos planos panorâmicos dão-nos a conhecer as terras pobres e áridas do sul da Itália e somos levados a pensar que aquelas personagens podiam ser as pessoas que, hoje, aí vivem e trabalham. Por outro lado, a solene música de Bach vai pontuando o filme e as palavras proferidas por Cristo reproduzem exactamente as do Evangelho de Mateus. A dimensão poética do Evangelho de Pasolini resulta deste encontro da simplicidade e da pobreza com a grande arte do cinema, da música e da palavra. 

Ele é, evidentemente, herdeiro do cinema neo-realista que se realizou em Itália depois da 2a Guerra Mundial. Podemos vê-lo não só nessa narrativa “rente ao chão”, quase documental, da vida de Cristo, que enjeita uma perspectiva mais abstracta, mais alicerçada em interpretações teológicas, mas também nas suas implicações políticas. Pasolini, como se sabe, sempre se afirmou comunista, embora a sua homossexualidade tivesse tido como consequência a sua expulsão, em 1949, do PCI por “conduta moralmente imprópria”. Porém, o seu comunismo, não se apoia fundamentalmente no “socialismo científico” desenvolvido por Marx e dogmaticamente fixado pelos seus seguidores, mas antes num sentimento de justiça, de fraternidade, de dádiva e de amor, cujas raízes são muito anteriores ao desenvolvimento do capitalismo moderno e que aqui podemos encontrar na mensagem de Cristo. 

Obra de um ateu que se considerava cristão e de um comunista marginal, o Evangelho segundo São Mateus é o resultado poético desse encontro ou desencontro de crenças cuja origem nos remete para um passado mítico que, para Pasolini, ecoará ainda, por vezes, nas mais simples comunidades populares. 

Melhor do que eu di-lo este seu poema publicado em Poesia em forma de rosa
Eu sou uma força do Passado. 
Só na tradição está o meu amor. 
Venho das ruínas, das igrejas, 
Dos retábulos, das aldeias 
Abandonadas sobre os Apeninos e os Pré-alpes 
Onde viveram os irmãos. 
Percorro a Tuscolana como um doido, 
Pela Ápia como um cão sem dono. 
Tanto contemplo o crepúsculo, a aurora 
Sobre Roma, sobre a Ciociaria, sobre o mundo 
Como os primeiros actos da Pós-memória 
A que assisto, por privilégio censitário 
Da orla extrema de qualquer idade 
Sepulta. Monstruoso quem é nascido 
De vísceras de mulher morta. 
E eu, feto adulto, cirando, 
O mais moderno de todos os modernos, 
Procurando irmãos que o não são mais.


quarta-feira, 27 de abril de 2022

Lilith (1964) de Robert Rossen



por António Cruz Mendes

O que quer dizer HIARA PIRLU RESH KAVANI? Nunca saberemos. Lilith criou a sua própria linguagem, a linguagem de um mundo que só a si pertence. Criou-o para se proteger e para proteger os outros, porque Lilith, como Deus, queria amar a todos, mas o seu amor leva à morte aqueles de quem gosta. Responsabiliza-se pela morte do irmão, que a amava e lhe oferecia presentes, e vive desde os 18 anos reclusa no seu mundo-quarto-caverna donde quase nunca sai. Até que, da sua janela protegida por uma rede, observa a chegada de Vincent que a convida a participar num pic-nic. 

Chove torrencialmente. Um grupo de pacientes tenta abrigar-se debaixo de uma árvore. Vincent procura Lilith e Steven que se afastaram e encontra-os à beira de um rio de águas revoltas. Os dois jovens parecem fascinados pela beleza da rapariga que as desenha convulsivamente. Steven está apaixonado. Ela é a única razão de ser da sua existência. Suicidar-se-á quando se julgou rejeitado. 

Lilith olha, absorta, a corrente de água tumultuosa que corre aos seus pés. A montagem intercala uma sucessão de imagens dos três, dos seus olhares que se cruzam, com as do rio indomado, numa vertigem que nos arrasta para as belas e ameaçadoras profundezas daquela torrente. Lilith atirou-lhes o pincel e Steven arrisca-se perigosamente pelos rochedos para o tentar recuperar. 

Nas imagens da sequência do pic-nic, condensa-se o tema do filme de Robert Rossen, Lilith e o seu Destino. Quem viu o Esplendor na relva, o filme da última sessão do cineclube recordar-se-á daquele outro rio de águas selvagens, onde Bud e Juanita saciam o seu desejo e onde Leslie tenta afogar a sua paixão. 

A tentativa de suicídio de Leslie condu-la a um hospital psiquiátrico e também é aí que se encontra internada Lilith, diagnosticada como esquizofrénica. O amor torna-se numa doença quando transgride as normas que são socialmente aceitáveis. 

Em Lilith, o rio está sempre presente. Na sua cena de amor com Vincent, à imagem dos seus corpos, sobrepõe-se a dos reflexos do sol sobre a sua superfície; nele, se vê a imagem distorcida dos rostos de Lilith e da paciente com quem se vai unir num celeiro; e é nele que Lilith vê sua imagem reflectida, imagem que desaparece quando se debruça para a beijar. Destruímos sempre o que amamos. 
 
Na história do cinema, não faltam exemplos de “mulheres fatais”, seres sedutores que, como as sereias da Odisseia, arrastam os homens para a perdição. Lilith é um nome com ressonâncias bíblicas que sublinham essa ideia. Mas, será esse o caso da Lilith de Robert Rossen? 

Vincent é um jovem errante e vulnerável que, desmobilizado depois da guerra da Coreia, procura um rumo para a sua vida. O que é que o terá levado a procurar trabalho num hospital psiquiátrico? Até que ponto as evidentes parecenças de Lilith com a sua mãe explicam a sua paixão? Quem é a aranha esquizofrénica, autora da teia perturbadoramente assimétrica que se vai tecendo diante de nós? 

Foram os doentios ciúmes de Vincent que levaram Steven ao suicídio, replicando a morte do irmão de Lilith, e destruíram o frágil equilíbrio do mundo que ela construiu para si própria. Por onde passa, afinal, a fronteira que separa a sanidade mental da loucura?

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Charulata (1964) de Satyajit Ray



por António Cruz Mendes

De todos os filmes realizados por Satyajit Ray, Charulata era o seu preferido. O único, diz-nos ele, do qual não alteraria nada se tivesse que o filmar outra vez. Estamos, de facto, perante um exemplo do mais puro cinema, de uma narrativa contada, não tanto pelas palavras que se dizem, mas pelas imagens que nos são dadas a ver. Imagens dos protagonistas, com certeza, mas também as das coisas e dos ambientes onde eles se movem. Um bastidor de bordar, uns binóculos, as máquinas de uma tipografia, um jardim abandonado, um baloiço, um caderno, as ondas do mar, o vento… Tudo isso nos conta uma história de sonhos reprimidos, de amores impossíveis. 

Numa das primeiras sequências do filme, vemos Charulata a deambular pela sua agradável mansão. São cerca de 10 minutos onde, salvo uma furtiva e silenciosa passagem de Bhupati, só ela está em cena. Não se ouve qualquer diálogo, mas basta-nos seguir os seus passos, observar as coisas para onde se dirige o seu olhar, aquelas que toca com a ponta dos dedos, para ficarmos a conhecer as circunstâncias da sua vida. O mundo exterior, vê-o ela através das frestas das persianas que protegem do sol os seus aposentos. Charulata vive numa gaiola dourada. 

Bhupati ama-a sinceramente, mas está totalmente absorvido pela publicação do jornal que edita e pelas causas políticas que defende. Charulata parece condenada a uma vida confortável, mas solitária. Os dias passam-se, monótonos e ociosos, entre os bordados, os livros, o piano… Porém, quando uma grande ventania varre as varandas da casa, a gaiola com pássaros oscila perigosamente – e Amal, alegre e espalhafatoso, entra em cena. 
 
Estamos à entrada do último quartel do século XIX e a Índia faz parte do Império britânico. Amal faz gala do seu desprezo pelos aspectos materiais da existência. O seu projecto de vida é descansar, escrever e… descansar. O seu mundo é o da poesia de Shakespeare, de Shelley, de Byron. Tem 23 anos e vive despreocupadamente. “Trabalho” é uma palavra amaldiçoada e o casamento uma perspectiva desagradável e felizmente longínqua. 

Numa sociedade em mudança, mas ainda presa a velhos costumes e tradições, Charulata, com Amal, descobre um mundo com novos horizontes. Os outros residentes na casa são familiares sem recursos, protegidos por Bhupati. Umpada, irmão de Charulata, é o contabilista do jornal “A Sentinela” e Manda, a sua mulher, é, para Charulata, uma companhia enfadonha. Mas, Amal, pelo contrário, é alegre e divertido. Canta, escreve, declama. Charulata encontrou alguém a quem pode falar dos seus gostos literários e entre os dois vai-se forjando uma relação de cumplicidade. As imagens da cena do baloiço oferecem-nos um momento de libertação e, no final, Amal decide escrever e Charulata oferece-lhe um caderno com a condição de que aquilo que aí for escrito não seja publicado. Será apenas deles os dois. 

Tal como a solidão, o amor não se exprime em palavras. Charulata é um filme de silêncios. Quem fala são as imagens. Enquanto Amal se debruça sobre o caderno e começa a escrever, Charulata perscruta a natureza com os seus binóculos. O acaso leva-a a descobrir uma mãe que dá o colo a um filho pequeno. Os binóculos desviam-se e focam-se no rosto de Amal. O plano seguinte é o do rosto de Charulata e uma sombra toma conta do seu olhar. A sequência termina num anti-climax quando ela fica a saber que foi o seu marido que pediu a Amal que a incentivasse a escrever. 

O não-dito percorre todo o filme. Não são precisas palavras para expressar os sentimentos da Charu quando assiste, mergulhada na sombra, ao diálogo entre o seu marido e Amal a propósito de um casamento que o levaria à terra de Shakespeare e a um sonhado Mediterrâneo. Aliás, elas contradizem-nos quando regressa à luz, irradiando felicidade, quando essa conversa termina com um “não”. Ou aqueles que perpassam Amal quando vê a amargura de Bhupati diante da traição de Umpada e que decidem a sua partida. 

Na sequência da praia, o ritmo das ondas que beijam o areal onde Bhupati e Charulata fazem planos par o futuro parecem anunciar uma possível futura, serena, felicidade. Mas, de novo, o vento traz notícias de Amal e a leitura da carta onde ele se despede do casal de amigos destrói os últimos diques que continham uma paixão durante tanto tempo reprimida. 

Bhupati ama de facto Charu e ela respeita-o e admira-o. As últimas imagens dizem-nos que a reconciliação é a única saída possível. Mas, a imagem que se congela no momento em que as suas mãos quase se tocam, revela-nos as fronteiras onde, para sempre, há-de ficar confinado o seu casamento.

quarta-feira, 24 de abril de 2019

Les parapluies de Cherbourg (1964) de Jacques Demy



por João Bénard da Costa

Mabília, chamava-se ela. Nome de criada antiga e criada antiga foi ela. Dessas, doutras eras, doutras vidas, doutros romances, doutros filmes. Aquelas de quem só nos lembramos já velhas, não conhecendo nada e percebendo tudo, sábias de ignorantes ou ignorantes de sábias. 

Uma tarde de verão, em que, como em todas as tardes de verão, acompanhou os meninos à praia, deixou cair na areia uma arcada de ouro que era o mais precioso dos bens dela. Deu por isso quando chegou a casa. Não se apoquentou nada. Àquela hora já ninguém ia à praia. No dia seguinte, de manhã, iria buscá-la. Sabia perfeitamente onde lhe podia ter caído. Pacientemente, os patrões tentaram desenganá-la, explicando-lhe o fenómeno das marés. Sorriu, absolutamente tranquila. Então o mar haveria de ser algum ladrão para roubar ouro às criaturas? Riram-se da santa ingenuidade dela. Ela não riu nem chorou. Dissessem o que dissessem. A arcada lá estaria. 

No dia seguinte, ao chegar à praia, foi direita ao sítio onde tinham estado na véspera. Curvou-se e apanhou a arcada. Ninguém queria acreditar. «Eu não dizia?» foi o único comentário. E nunca percebeu os espantos que se fizeram à roda do caso. 

Quando a Rita me contou esta história, lembrei-me da tarde, que nunca mais hei-de esquecer, em que, num Março de Paris, um Março de 1961, conheci Jacques Demy, através de Lola. «Rit qui veut, pleure qui peut» era a epígrafe do filme, dedicado à memória de Max Ophuls. Era a história de uma pega – não, não consigo chamar-lhe puta – que uma noite, em Nantes, tinha engraçado especialmente com um cliente americano, marinheiro de passagem. Ele prometera-lhe que um dia voltaria rico para casar com ela. Passaram os anos, a criança de quem ficou grávida nessa noite já estava crescidota. Lola teve alguns bons partidos, a acabar (com ele começava o filme) num tal Roland Cassard (Marc Mitchel), muito, muito bom rapaz. Mas a todos – como a todas as colegas – contava que estava à espera do regresso do americano. Para toda a gente, a história era da carochinha. Mas para «moi, Lola, celle qui rit à tout propos», histórias da carochinha eram as dos outros. E um belo dia, como tinha ido, o americano voltou. Todo vestido de branco, num grande carro branco, com um grande chapéu texano branco. Para casar com Lola e tomar conta da filha. As outras meninas choravam. Só Lola, como Mabília, com nada se espantou. Nunca duvidara. Ao som da 7ª Sinfonia de Beethoven, nós também não. Desde o princípio do filme, tínhamos visto o carro branco, o americano branco e sabíamos que era ele

Entre putas e marinheiros, Lola era um filme de anjos e, metaforicamente, um filme dançado. «Moi j'étais pour elle.» Ela era Anouk Aimée, no papel da sua vida. O mundo encantado de Jacques Demy – tão encantado como o mundo de Mabília – começou aí e acabou vinte e sete anos depois no fabuloso Trois Places pour le 26 (1988), dois anos antes de Demy morrer de sida aos 58 anos. Não me espantei nada que ressuscitasse duas vezes – Jacquot de Nantes (1991) e Les Demoiselles Ont Eu 25 ans (1993) – nos filmes realizados pela mulher, Agnès Varda. Tão belos como. 

Tão belos como La Baie des Anges (1963), onde, em vez de Nantes, havia Nice, em vez de Anouk Aimée, Jeanne Moreau, e onde o casino ia à glória por por força do amor entre Jacqueline e Jean (Claude Mann). 

Tão belos como os filmes, não só encantados como cantados (en-cantados, dizia-se nos anos 60), que foram Les Parapluies de Cherbourg (1964), Les Demoiselles de Rochefort (1967) ou – já lá iam, já lá iam os anos 60 – Une Chambre en Ville (1982). 

Sempre com Michel Legrand à sua beira (Legrand compôs a música para todos os filmes de Demy à excepção do «inglês» The Pied Piper de 1972), Demy desafiou-o, em 1963, para um filme em que os personagens cantassem em vez de falar. «Não acredito na ópera, porque não se percebe o que é dito. Tentemos encontrar o equivalente da ópera no cinema, mas em que cada palavra seja clara, compreensível.» O musical americano? Não tanto, porque se personagens não desatavam a cantar a páginas tantas, cantavam sempre mesmo quando Guy (Nino Castelnuovo), empregado numa bomba de gasolina, tinha de perguntar aos fregueses se eles queriam «super ou ordinaire». Em verso ou em prosa, em discussões domésticas ou em arrebatamentos amorosos, na alegria ou na tristeza, na saúde ou na doença, num caso, até (Tante Élise) na morte. Personagens com os pés bem assentes na terra, burguesinhos ou burguesinhas («escale cherbougeoise») com preocupações narrativas muito concretas e referências históricas precisas (a guerra da Argélia). Personagens protegidas pelos chapéus de chuva, esses mesmos, os da loja de Mme. Emery (Anne Vernon) em Cherbourg, a mãe de Geneviève, o papel que transformou a carreira de Catherine Deneuve. 

No fundo (espanta-me que à época não se tenha reparado muito nisso) Les Parapluies de Cherbourg é uma espécie de Splendor in the Grass[1], de sexo menos aparente e com tensões dramáticas menos explosivas. Mas Geneviève e Guy amaram-se de um amor tão novo e tão carnal como os heróis de Kazan e também não foram capazes de resistir às famílias, às separações e às ausências. O tempo deles passou sem que eles se apercebessem da passagem. Casaram-se trocados, com o «boy next door» ou com a «girl next door», os que souberam durar mais e persistir mais. E quando, no fim, se reencontram, ela de casaco de peles, ele na estação de gasolina, há a mesma tristeza inenarrável do último encontro de Natalie Wood e Warren Beatty. Passou o tempo do «esplendor na relva» (aqui «esplendor no mar») e nunca mais, nunca mais voltará. As magias ou permitem todos os milagres (Lola) ou transformam os enfeitiçados em estátuas de sal. Este filme encantado é o filme do grande desencantamento, conto de fadas para quem deixou de acreditar em fadas. Geneviève a cantar que houve um tempo em que era capaz até de dar a vida por Guy e a perguntar-se por que é que não morreu. Morrer, morreu – nesse casamento filmado como um enterro – só que morreu como a maior parte de nós um dia morre. A vida deixa-nos, mas sobrevivemos. Passamos a con-viver. 

O mais misterioso neste filme em que o encantamento funciona no sentido contrário ao de Lola (ou, depois, ao de Les Demoiselles de Rochefort, presidido por Gene Kelly para as irmãs Catherine Deneuve e Françoise D'Orléac) é que o canto parece existir para sublinhar a duração das personagens, ou, melhor dito, o excesso de duração das personagens que lhes roubou o instante em que pareceram voar, como no plano em que Demy filma Geneviève e Guy em cima do charriot, aquando do primeiro passeio de ambos. 

Quando o filme se estreou em Portugal, entre acesos ataques e valentes defesas, o António-Pedro Vasconcelos, o Gérard Castello-Lopes, o João Paes, o Nuno de Bragança e eu passámos uma noite a discuti-lo em casa do João Paes, com gravador ao lado, para um longo debate que saiu no nº 22 de O Tempo e o Modo (eram possíveis coisas dessas nesse tempo). A certa altura, o Gérard Castello-Lopes, que embirrou bastante com o filme, disse que, de cada vez que o diálogo cantado procurava fugir ao convencional para se tornar «natural», lhe parecia estar a ampliar-se «aquele momento, horroroso entre todos, em que nas comédias musicais sentimos que as personagens “vão cantar” ou em que o locutor da televisão já disse “boa noite” e a imagem ainda não se cortou.» 

Sem o querer – e como lhe notei na altura – estava a tocar no cerne da razão de ser do canto neste filme tão triste que é Les Parapluies de Cherbourg. É exactamente porque as personagens se prolongam para lá das suas imagens e sentimentos que o canto se substitui ao diálogo. Se falassem, a duração era muito mais reduzida e, como tal, muito menos sentida. Com a duração à sobreposse a que o canto obriga e exige, Demy traduziu precisamente o horror da sobrevivência para além do que é milagroso na vida e reforçou a convenção dos comportamentos que se esvaziaram de intensidade. Deu-nos a sensação do limbo, de pessoas desfeitas. Mudou o canto em desencanto, a vida em morte e o fulgor do instante em exaustiva duração. 

Como os temas musicais de Geneviève e Guy se perdem no final, nos temas das personagens que acabam por os aprisionar, as imagens e as vozes deles também são imparavelmente desgastadas, como se a coreografia inicial (a prodigiosa e festiva abertura do filme com as linhas de chuva) se imobilizasse pouco a pouco num espaço e num tempo que já não consentem qualquer retorno. 

Um tempo, um tempo há, em que a co-naturalidade prodigiosa da Mabília e de Lola se perdem e nunca mais se encontram arcadas nem voltam, em manhãs de nevoeiro, amores perfeitos de uma só noite. Les Parapluies de Cherbourg é o filme desse tempo. No princípio, Geneviève diz a Guy: «Tu sens l'essence» e, depois, acrescenta, em referência à vida futura deles: «Oh quel bonheur, tu sentiras l'essence toute la journée.» No fim, na última cena nas bombas de gasolina, a palavra Essence está cortada ao meio. Felicidade e essência foram coisas de um tempo, um tempo muito breve. Mas não acabaremos nunca de o dizer, de o cantar ou de o fixar. E essa é a nossa condenação.

[1] Ver Os Filmes da Minha Vida / Os Meus Filmes da Vida, 1º Volume, pp. 79-83.

in «Os Filmes da Minha Vida», 2º Volume, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2007, pp. 219-224.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Marnie (1964) de Alfred Hitchcock



por José Oliveira

Marnie, para muitos o último grande filme de Alfred Hitchcock, para tantos outros ou mais, o princípio do fim, causou sobretudo estupefacção por não se reconhecer o esperado em Hitch, a sua marca de génio, a mais valia de mercado. Ainda hoje é uma obra difícil pois para ela os chavões e a teoria feita não chegam, muito menos as expectativas. Tal e qual como aconteceu com o John Ford de Donovan's Reef ou o Nicholas Ray de We Can't Go Home Again. Manter quem gostamos ou simplesmente apreciamos na rota reconfortante ou nas temperaturas mornas é uma boa maneira de não exigirmos de nós grande coisa. Só que Marnie está construído e respira sobre perigosas temperaturas e em altas tensões, carregado de materiais opacos e desconhecidos, em solos não fiáveis e não legalizados. 

Sobre a grande questão da psicanálise e da sua utilidade – o remédio do mal e o mal do remédio – o grande Jean Douchet - muito para além da crítica: de uma só vez cruamente vândalo, poeta, padre falhado e aristocrata belo – já nos disse tudo o que há para dizer, deixando em elipse ou em irrisão um outro tanto perturbador que está dentro de cada qual. Na sequência capitular do filme – esse flashback a dilatar-se para a tela em extracção das entranhas e dos fundos da menina atormentada – o vermelho da tormenta evidencia-se a cor do sexo, do sangue e da morte. E o sexo, o sangue e a morte são assim as três entidades da negação do amor. Depois de tudo ser rememorado, vomitado entre raios e trovões, a menina pode finalmente tornar-se mulher. Largando a mãe, saindo de casa, virando as costas às criancinhas e à sua cantilena persistente, tornando-se indecente, nova ou acabada. E foi esse o trilho do filme, a sua via-sacra, que corresponde e é imagem da perda da inocência e da assunção do desejo. A menina decente que era uma fraude, uma mentirosa e uma ladra morre para entender que todo o amor comporta no seu âmago os monstros que o vermelho lhe escondia. Que todo o amor é necessariamente daquela cor, sem chance de coloração. O agigantamento da bocarra da morte e a entrada nela como em visita guiada sempre foi a base da fábula, do melodrama ou dos quintos dos infernos. 

Assim, o cabelo que a criança passa o tempo a pintar, os roubos substitutos, as associações imediatas, a ambivalência protectora e sugadora do cavalo de estimação, a literatura escandalosa e o niilismo do marido, a sua perdição também, estão interligados com o trabalho de câmara com que Hitchcock segue e perscruta a impossibilidade da compartimentação do sexo, do sangue, da morte e do amor; com a partitura com que Bernard Herrmann cria as distâncias do medo e o combate dos tempos; tudo na batalha principal e primordial que está no rosto de Tippi Hedren, sempre a extravasar para o mundo e para a construção social ou reconfortante, resumindo: puramente humana – o fogo e o gelo, o amor e a morte. Com as cores neutras e desbotadas do respeito sempre a trabalharem no apagamento, no disfarce, no travestir do encarnado garrido, delirante e sem regra, pobre água na fervura. 

Trilho e posta em cena dessa aceitação ou do suicido imediato é o resumo e o peso incomensurável deste arco-íris da existência onde o famoso suspense do mestre não chega de nenhum super-estilo da aventura extraordinária que os homens ousam e inventam melhor do que qualquer argumentista, mas sim do interior em escavações e em revelação antediluviana: da fixidez de um rosto e da paisagem perfeitamente vectorizada manifestam-se os incêndios e os naufrágios que se querem nas sombras. E são essas sombras que proporcionam um suspense raramente sentido porque raramente olhado: o terror do início e o terror do fim. Delirante estilo que em pouco mais de duas horas ousa filmar o que não se pode ver, o que não se deve ver. Atingindo a claridade das claridades: é o plano final. Cristalino e indecente. Boa viagem pelo mais torcido dos mapas, o ápice do grande mestre.

quarta-feira, 6 de julho de 2016

A Distant Trumpet (1964) de Raoul Walsh



por João Palhares

É mais ou menos a meio de Along the Great Divide, de 1951, que o pequeno grupo encabeçado por Kirk Douglas é atacado por um bando de fazendeiros que querem vingança pela morte do filho de um deles – e que é quem os lidera. Querem que Douglas lhes dê Walter Brennan para o poderem enforcar. O irmão do fazendeiro abatido tenta surpreender o grupo de Douglas e Brennan por trás, por uma ravina, mas Douglas vê-o e vai ao seu encontro. Walsh filma os contornos e as medidas à ravina de tal maneira que percebemos perfeitamente o que está em jogo, no que é de resto uma situação com percursos e pontos de vista muito complexos mas que Walsh consegue descrever de forma agudamente pragmática. Em Distant Drums, Objective, Burma! e The Naked and the Dead o nosso interesse, a nossa empatia pelas personagens e pelos seus destinos só podem resultar deste talento para tornar movimentos, demandas e missões perfeitamente visíveis e palpáveis. Demonstráveis. É o que não falta nas grandes sequências de embates entre índios e o exército em A Distant Trumpet, reflexo de uma enorme vontade de ilustrar (tentando ser o mais fiel possível) às grandes aventuras por espaços abertos que aparecem nos anais da nossa história. Quando lhe pediram para explicar como conseguia coordenar toda esta gente em todo este espaço, Walsh respondeu modesta e elipticamente (característica que partilhava com John Ford e Howard Hawks) que “I come from a large family”.

Walsh sempre gostou dos espaços abertos e de filmar o máximo possível bem longe dos estúdios, que era outra maneira de fugir ao policiamento dos produtores e dos investidores e desfrutar da liberdade de olhar para os céus e para as montanhas cumprindo e alcançando os horizontes dos seus próprios desejos. Mas era também - como disse o recentemente falecido, eterno (e tão próximo de Raoul Walsh, como viu muito bem Jacques Lourcelles) Michael Cimino a Bill Krohn em 1982 - porque “há uma corrente que flui quando se filma em exteriores que não se consegue atingir facilmente num estúdio: sais à noite para ir para casa, não trabalhas aos fins de semana, é quase trabalho de secretária. Algumas pessoas gostam disso; eu, eu gosto de me sentir longe de casa, satisfaz-me; consegue-se qualidades daí, texturas, que são duas vezes mais difíceis de conseguir em estúdio. E depois, em estúdio, não tens pessoas reais, tens figurantes profissionais, o que é completamente diferente. Em cada um dos meus filmes, usámos muitos locais e um número reduzido de actores. O estado de espírito das pessoas que vivem lá nunca foi mesmo mostrado nos filmes. Trouxeram uma característica excepcional ao filme. Por exemplo, na cena do casamento em The Deer Hunter, aqueles são os verdadeiros paroquianos; era muito difícil encontrar essa corrente, essa vida, de pessoas que tinham os hábitos de um figurante; podia-se obter um resultado perfeitamente satisfatório, mas não o mesmo resultado. Aquelas pessoas eram mesmo russo-americanos, que falavam mesmo a língua, dançavam mesmo aquelas danças, que passaram as vidas deles todas naquela comunidade, tinham certas expressões faciais. Não podias criar isso com figurantes profissionais.”

Como soube Cimino e também Abbas Kiarostami (que esta semana o acompanhou na descoberta do segredo eterno), como souberam os nossos conhecidos John Ford, Budd Boetticher e Anthony Mann e como, claro, soube Raoul Walsh, nas palavras de Victor Hugo sobre as ofensivas e contra-ofensivas de Quatrevingt-treize, imenso fresco sobre a Revolução Francesa, “a configuração do solo aconselha ao homem muitas acções. Ela é mais cúmplice do que se julga. Em presença de certas paisagens ferozes sente-se a tentação de desculpar o homem e de incriminar a criação, sente- se uma surda provocação da natureza; por vezes o deserto é nocivo para a consciência, sobretudo para a consciência pouco esclarecida (...), as matas sombrias, as silvas, os espinhos, os pântanos parados sob os ramos, têm nela uma influência fatal – ela sofre nesses lugares a misteriosa infiltração das más persuasões. As ilusões de óptica, as miragens incompreendidas, os desnorteamentos da hora ou do lugar, produzem no homem essa espécie de terror, meio religioso, meio bestial, do qual brota, em tempos comuns, a superstição, e nas épocas de violência a brutalidade. As alucinações contêm o facho que ilumina o caminho do assassino. Há a vertigem do bandido. Há nos prodígios da natureza um duplo sentido que deslumbra os grandes espíritos e cega as almas entorpecidas. Quando o homem é ignorante e o deserto é visionário, a obscuridade da solidão junta-se à obscuridade da inteligência – e produz abismos no homem. Certos rochedos, certas ravinas, certos taludes, certas clareiras sinistras ao entardecer, impelem o homem às acções loucas e atrozes. Quase se podia dizer que há lugares celerados.”

Pode-se ver isto tudo na descida e elevação desesperada de Joel McCrea, dando as mãos a Virginia Mayo nessa aventura impossível, quimérica e belíssima que é Colorado Territory, quando as autoridades lhe fecham as saídas e o cercam no sopé da montanha que lhe dita o destino. Ou no final de The Big Trail, em que as grandes sequoias do Oregon que selam o amor de Wayne e Marguerite Churchill se sucedem ao gelado e abismal confronto daquele com as personagens de Charles Stevens e Tyrone Power, Sr. na floresta sombria. Como nos vales que recebem as movimentações de gado de The Tall Men ou nos verdes montes tosquiados pelo vento e percorridos pelos soldados atormentados de The Naked and the Dead...

Mas insistir demais nisto, por muito fascinante que seja, pode eclipsar bastantes das outras coisas que atestam a genialidade de A Distant Trumpet: uma história que ao contrário do que se disse, e infelizmente ainda se repete, não tem nada de banal e arrisca intercalar destinos pessoais com movimentos em massa, situando-os e contextualizando-os nas grandes mudanças e transições históricas dos Estados Unidos da América; a bela cena na gruta, depois do resgate de Kitty pela mão do tenente Hazard, em que este cuida dela e ambos descobrem através desse isolamento temporário que no forte e na vida estão sozinhos a tempo inteiro; a flor que cresce no deserto (“a gentle reminder that life can exist in this god-forsaken place”) e é tantas vezes tema de conversa e é por tanta gente regada e tratada, como se ao fazê-lo estivessem antes a tratar de si mesmas e das suas próprias vidas, supersticiosamente; as conversas à noite no cimo do forte e sob as estrelas, lembrando o dito wildiano de Lady Windermere's Fan tão caro a Walsh e citado abertamente em The Man I Love (“We are all in the gutter, but some of us are looking at the stars”), em que Hazard e Kitty se vão dando por inteiro um ao outro; a extraordinária música de Max Steiner, irmão de armas de Raoul Walsh desde os tempos áureos da Warner, e os achados de imagem fabulosos de Walsh e William H. Clothier; a personagem de James Gregory, mentor, profeta, declamador de Virgílio, Tácito e Cícero que, com esse latim, inscreve esta aventura em quadros épicos...

O cinema diz-nos que um horizonte é uma coisa bela mas só se houver alguém que o atravesse e passe por grandes provações para o alcançar e para o merecer. Walsh, Cimino e Kiarostami mostraram-no e são agora parte dos elementos e dos astros que nos regem e velam por nós. “Kindred of the Dust”... “Espíritos do sol”... “O Vento Levar-nos-á”...