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quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Play Time (1967) de Jacques Tati



por Jorge Silva Melo

“Tudo o que sei, tudo o que podia e tudo o que sonhava está em Play Time”, dizia Jacques Tati a “A Capital” em Março de 1968. Tudo, pode dizer-se agora. E, claro, a própria morte de Tati. 
 
Na manhã de 16 de Março de 1968, na companhia do Eduardo Paiva Raposo, do Fernando Guerreiro e da Maria Antónia Palia, ouvia-o eu declarar: “Os jornalistas foram bastante duros comigo e eu sei porquê. Porque, com o dinheiro que gastei em Play Time, toda a gente pensava que se podiam ter feito mais filmes.” 
 
Depois, foi a história que se sabe: o público não foi, o filme caiu. Tati que, após o êxito de O Meu Tio, poderia ter prosseguido uma carreira de poesia à francesa, um pouco de Marcel Marceau, um pouco de Jacques Prévert, conheceu a desgraça. Ainda faria mais dois filmes, mas em condições e com resultados precários. E havia um projecto que lhe era agora proposto in extremis por Jack Lang. E que a morte matou. 
 
Eu conheci Jacques Tati nesse Março. Tinha, dias antes, saído da cadeia de Caxias, onde fora parar mais por falta de ligeireza nas pernas para apoiar Ho Chi Min do que por constituir perigo político que se visse contra um Governo que combatia noutro hemisfério, em nome de sete séculos. 
 
Foi logo a seguir a sair da cadeia que vi Play Time e que percebi que fora preso exactamente porque, na estupidez dos meus dezanove anos, eu achava possível um mundo de filmes assim. Não estou a mentir agora. Escrevi-o n’ O Tempo e o Modo que saiu em Abril de 1968, com aquele inconfundível estilo de miúdo há muitos anos míope e que já carregava o seu Barthes, Campo Grande abaixo: 
 
“Se soubermos que, em Play Time, o direito à observação é privilégio daqueles que como outsiders são definidos — Hulot e Barbara — e que ele é o jogo ou a livre actividade que se atinge colectivamente em momentos plenos [...] temos que nele, por dois lados, se movimenta o mesmo conceito, essa forma de viver livre que é, segundo Godard, regarder autour de soi e que essa actividade se processa e define simultaneamente dos dois lados da tela. [...] Nós próprios somos também integrados no tempo do jogo. [...] A nossa actividade de espectador alarga-o e transforma-o no filme-total. Assim se coloca o problema da oportunidade desta opção — e aqui se observaria como filmar assim é exigir dos espectadores aquilo que o jogo social anotado em Play Time lhes destrói: o direito de olhar. Fórmula em que se inscrevem outros tantos direitos: o da informação, o da escolha, o do julgamento. Outros tantos direitos que Play Time nos confere ainda. ” 
 
(Apesar do estilo de garoto convencido que já vivia entre frequências de Linguística, perceberam, não perceberam?) 
 
Em resumo: exercendo o seu absoluto direito à liberdade, Tati propunha-nos a liberdade, filmando pessoas que olhavam para aqui e para ali, e nós ora podíamos ir olhando para a direita ora para a esquerda, ora para esta ora para aquela personagem, feitos que éramos espelhos transportados ao longo de um filme. 
 
Tati propunha-nos a liberdade, mas só o podia fazer exercendo-a ele próprio, arriscando-a ele próprio. E assim fez este filme impossível; 70 milímetros, esse formato de epopeias que a cada esquina nos mandava ver o Coliseu de Roma, um orçamento até então inultrapassado, uma cidade inteira construída em estúdio, arranha-céus, auto-estradas, uma história deambulatória, uma planificação ultra-elaborada que combatia a montagem de frente e que assim se batia com Griffith e a origem do cinema, como só Brecht se quis bater com Aristóteles e me contam que Marx com Hegel. 
 
Mas os espectadores não foram ver. E o poder económico, político, cultural, impediu-me finalmente de viver num mundo em que houvesse mais filmes de Jacques Tati. Os senhores produtores, os senhores exibidores, os senhores ministros e os senhores jornalistas acharam que já bastava, que o melhor era Jacques Tati acabar por ali, que já tinha gasto dinheiro de mais. E assim o censuraram. E me censuraram. 
 
Mas não foram só eles. E é precisamente porque não foram só eles, porque a ditadura não tem só um lado, porque foi “em nome de”, que eu pedi ao Vicente Jorge Silva que me publicasse este artigo. E que a carreira de Jacques Tati foi censurada (o meu prazer de espectador foi censurado) em nome dos espectadores que não foram ver Play Time. E é a esses que eu queria acusar, e sem passar de hoje. Porque vos tenho raiva. A todos os que se resignam ao cinema que existe, a este teatro, a esta literatura do toma-lá-cem-paus-dá-me-tempo-livre. Porque são os mesmos que deixaram que Play Time não chegasse a estar três semanas no Monumental. E em nome de quem o exibidor ia cortando bocadinhos todos os dias a partir do terceiro dia de projecção, a ver se aquela obra de génio lá conseguia ir vendendo gato por lebre, que é o que me dizem sempre que é do que vocês gostam. Ou não é? Então, por que é que não foram? 
 
Por que é que não vão ao que é novo? Ao que é tentativa? Ao que é falhado? Ao que oferece risco? Por que é que se resignam ao velho, se o novo vos bate tanta vez à porta? Tanta vez e com que esforço de Sísifo! Com que esforço para ser digno de vocês! É por que não querem olhar, não é? 
 
E vocês, os críticos, que depois de terem navegado pelos escombros das ideologias, sempre entre a Cila e a Caríbdis de ora-Freud-ora-Barthes-ora-Marx, sabem o que andam a fazer, neste vosso frenesim de identificação com o gosto do grande público? E por que é que se resignam? Ou julgam que se pode servir a dois cinemas? Ou têm é medo de ficar sós em salas geladas? Não estão ainda a censurar Play Time
 
Repito: tenho-vos raiva. 
 
Tati chamava-me mon jeune ami. E por isso quis escrever isto assim, de um jacto, na altura em que mon vieil ami morre. Porque é isto a morte. 
 
Foi Mozart, claro, quem soube qual era o som humano da palavra libertá. No Don Giovanni. E eu estou convencido disto: foram vocês, os resignados do capitalismo, ou, pior ainda, foi em vosso nome que assassinaram Mozart. 
 
in «Monsieur Tati, não nos deixam olhar, pois não?», Expresso, 13 de Novembro de 1982.



quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Mon Oncle (1958) de Jacques Tati



por Alexandra Barros

Monsieur Hulot vive num bairro onde todos os vizinhos se conhecem e relacionam amistosamente. Juntam-se regularmente no mesmo café, nos tempos de lazer. Têm relações de familiaridade com os comerciantes locais e cuidadores das ruas do bairro (o varredor do lixo e quem faz a sua recolha e transporte para o aterro, numa carroça puxada a cavalos). Abastecem-se e convivem num mercado de rua, onde os clientes chegam a servir-se a si próprios e a deixar o pagamento devido na banca, quando o vendedor está a tomar café, na esplanada próxima. Na parte moderna da cidade, há “casas inteligentes”, fábricas onde os trabalhadores parecem tão automatizados quanto as máquinas que operam, e estradas com várias faixas de rodagem, onde na hora de ponta os carros avançam num lento e ordenado cortejo. 

O prédio onde vive Hulot é o equivalente a uma manta de retalhos. Blocos que parecem vindos de diferentes habitações encaixam uns nos outros, como um Lego montado cooperativamente por várias crianças. Apesar disso, ou talvez por isso, possui o encanto próprio dos enigmas não decifráveis ao primeiro olhar. No prédio, todos parecem viver de portas abertas, como uma grande família. Hulot oferece doces à menina que vive no rés-do-chão, desvia respeitosamente o olhar de uma vizinha em roupa interior, com quem se cruza nas escadas, e mima o canário do vizinho da frente, utilizando o vidro da sua janela para redirecionar os raios de sol para a gaiola do pássaro. Este retribui, cantando. 

Hulot tem uma irmã, Madame Arpel, que vive, juntamente com o marido e filho (Gerard), numa casa “inteligente”, na zona moderna da cidade. Na casa tudo tem uma forma geométrica precisa e Madame Arpel não deixa que um grão de pó macule o aspecto lustroso do conjunto. As janelas circulares do quarto dos Arpel dão à casa o aspecto de um rosto voltado para a casa vizinha. À noite, as silhuetas dos Arpel enquadradas pelas molduras das janelas parecem as pupilas de olhos que espiam. O jardim tem um caminho desenhado que obriga as pessoas a realizar um percurso elaborado e longo entre o portão e a casa, ao longo do qual encontram: uma fonte, com um peixe metálico que deita água pela boca, só acionado quando a casa é visitada por alguém que se quer impressionar; uma mini-esplanada com mini-mesa e mini guarda-sol; arbustos “gémeos” milimetricamente alinhados e canteiros cobertos de gravilha. No interior, as peças de mobiliário têm formas arrojadas, mas não são adequadas às suas funções. As cadeiras e sofás são desconfortáveis ou só utilizáveis quando colocados em posições inusitadas. As escadas interiores minimalistas (só com um corrimão) não são seguras e as tecnologias de que tanto se orgulham os Arpel chegam a colocá-los em situações perigosas, como quando ficam fechados na garagem por causa de um sensor mal concebido. Quem visita os Arpel é orgulhosamente levado a percorrer a casa, como se de um museu se tratasse. Madame Arpel destaca o facto de todos os compartimentos comunicarem entre si. “Tudo comunica!”, diz infalivelmente. Se na casa tudo comunica, o mesmo não acontece com os seus habitantes. Entre os pais e o filho existe uma distância que nem os brinquedos oferecidos pelo pai diminuem. Gerard mostra total desinteresse pelo comboio sofisticado que o pai lhe traz de presente. Quando, logo a seguir, o tio chega com umas figuras de papel, animadas por cordéis, o miúdo não contem as gargalhadas. Noutra cena, Gerard, ouvindo o som do aspirador na sala, corre ao encontro da mãe, mas sai desiludido ao encontrar apenas o aspirador, que foi deixado a trabalhar de forma autónoma. 

Hulot está desempregado. Monsieur Arpel, que trabalha numa fábrica que produz tubos de plástico, tenta arranjar-lhe emprego. Hulot, no entanto, não está formatado para um mundo onde todos os gestos têm que obedecer a coreografias específicas e os homens são complementos das máquinas. Estas aproveitam as distrações e inépcia de Hulot para “saírem da rotina”, produzindo quilómetros de “salsichas” de plástico ou “serpentes” com vida própria, em vez dos tubos programados. Na casa da irmã, Hulot sente-se igualmente confuso e mesmo ameaçado pelos electrodomésticos autónomos, que parecem procurar uma oportunidade para atacá-lo. As visitas de Hulot são, porém, uma alegria para Gerard, que não aprecia a vida na casa-museu e só se diverte quando o tio o leva a passear ou nos encontros com amigos que vagueiam livremente, improvisando diversões inspiradas nas situações com que se deparam. O cão da família também gosta de fazer umas escapadelas e juntar-se a grupos de cães vadios que percorrem a cidade, procurando comida e brincando. 

No final do filme, máquinas de demolição avançam sobre as habitações degradadas do bairro de Hulot e a praça do mercado está vazia, indicando que o desenvolvimento imobiliário alcançou o bairro. 

Neste filme, em que os diálogos são escassos, o contraste marcado e caricatural entre o velho bairro e a cidade moderna é conseguido através dos cenários primorosamente projectados por Tati, incluindo a casa dos Arpel, concebida com a colaboração de Jaques Legrange, argumentista com background em arquitectura e ligações a Le Corbusier. Além de um olhar crítico sobre a modernidade e a homenagem nostálgica a um estilo de vida prestes a desaparecer, o filme reflecte a importância que os espaços onde habitamos, trabalhamos e passamos os tempos livres têm no nosso bem-estar e no modo como nos relacionamos com os outros. Os edifícios e espaços urbanos determinam modos de vida pela forma como se deixam ou não habitar. A configuração do bairro de Hulot proporciona proximidade e a existência de uma comunidade. Nos subúrbios modernos, os vizinhos mal se conhecem e a casa dos Arpel mais do que servi-los, parece ser servida por eles.

quinta-feira, 10 de maio de 2018

Parade (1974) de Jacques Tati



por João Palhares

Voltamos a Jacques Tati, o homem que se sentava horas a fio dentro de cafés para observar o mundo em silêncio através das vitrinas, o realizador que erigiu um dos maiores monumentos do cinema, em que um cenário gigante se transformava num imenso aquário que espelhava as pequenas excentricidades de todos os seres humanos, os belos trânsitos da vida e as frustrações da vida moderna; o francês que transformou o gag e a comédia numa altura em que o ofício parecia desligado dos grandes ensinamentos do cinema mudo, estimulando ainda a imaginação e o talento de Blake Edwards e Jerry Lewis, do outro lado do Atlântico. Depois do desastre financeiro de Playtime, a obra-prima que se conhece, com um desvio pelos engarrafamentos de Trafic, em que Hulot parecia encontrar a felicidade e o amor por baixo de um guarda-chuva, Tati regressa às raízes da sua comédia, situadas nos números populares de circo e de vaudeville que fizeram a fama dos seus grandes mestres, bem como a sua, antes de enveredarem pelo cinema. É em Parade, o filme feito para a televisão sueca que hoje vamos ver. 

“O que vocês vão ver não é um filme”, disse Tati em entrevista, “é um espectáculo feito para que eliminemos um bocado o vidro entre o ecrã e os espectadores. Porque se fala muito de "participação" nos dias de hoje. Fala-se muito mas não se a vê muitas vezes. Há um tipo que se faz matar, ele faz-se matar, muito bem, e não se participou de todo. Aqui, é ao contrário: estamos num circo. Um circo é redondo, e os espectadores do circo tornam-se um bocado vocês mesmos. Enquanto como é costume, não paramos de fazer "chiu!", é um dos raros filmes em que o realizador fica encantado que as pessoas falem na sala; temos o direito de aplaudir, como os espectadores do circo. Temos o direito de assobiar. Até temos o direito de ir embora se não acharmos isto agradável. 

"Acho que seria pretensioso dizer: "Eu defendo o circo, eu sou um literário! Para mim, o palhaço é uma personagem assim ou assado!". De qualquer forma, Parade não tem absolutamente nada que ver com a arena das estrelas. É mais teatro de variedades do que circo. Se quiserem, o que eu quis mesmo foi devolver a pista às crianças. Deixei-as e disse-lhes: "aqui estão os acessórios todos" e eles começaram a refazer os números todos que tinham visto, começaram a tentar fazer malabarismo, a interpretar e a tornar-se pequenos artistas de circo. Quando se vê um pintor - foi o que eu observei - apercebemo-nos que ele ficaria muito contente se soubesse fazer uns pequenos malabarismos com o seu pincel. E porque é que não o havia de fazer? No meu espectáculo já não se sabe quem é malabarista, pintor, espectador, artista, palhaço ou não-palhaço.  

"As pessoas vêem este filme com uma grande tristeza, embora ele seja optimista. O circo é uma escola extraordinária de simplicidade e de gentileza que pode parecer hoje ridícula, nestes tempos modernos. Não teria havido Chaplin, nem Keaton, nem Laurel & Hardy se o circo não tivesse existido. É certo que ele é absolutamente necessário para as crianças: o ambiente, os olhares, os sorrisos destes jovens que vêem o espectáculo, são indispensáveis. E peço desculpa, mas nunca encontrarão isso à frente de um aparelho de televisão. Eu acho que o cinema é um todo: temos o direito de disparar, de matar, temos o direito de nos despirmos, temos direito a fazer tudo. E eu acredito também precisamos de alguma alegria. Quer tenhamos dinheiro ou não o tenhamos, temos direito a rir das mesmas coisas, de nos comovermos com o esforço físico e perigoso de um trapezista. É uma necessidade. Podemos muito bem não gostar disso, dizer que o circo nos chateia, que é triste, que não leva a lado nenhum, mas os movimentos, a câmara, o conjunto, foi dessa maneira que eu tive que filmar o espectáculo." 

Aqui têm as regras e as recomendações. 

Uma boa sessão para todos!

quarta-feira, 11 de abril de 2018

Les vacances de Monsieur Hulot (1953) de Jacques Tati



por João Palhares

Manuel António Pina: E não morremos crianças? 

Agostinho da Silva: Bom, alguns conseguem isso, não é? Ou porque são hábeis na acrobacia da vida ou porque a vida, por grande favor, os poupou. Mas são raros aqueles que conseguem morrer crianças... 

in « Conversas Vadias », ep. 12. 

Verão. Férias. E parece não haver outro filme que consiga abarcar totalmente o que um Verão pode ser a não ser este. Que pode ou não ser uma comédia. Se fosse só pelo resumo ou pela sinopse de Les Vacances de Mr. Hulot, julgar-nos-íamos num drama existencial, em que um homem vem do nada e ruma ao nada. Se soubéssemos o que é isso do "nada". Às vezes parece só uma coisa que serve para atirarmos culpas uns aos outros. "Não fazes nada", "não se passa nada", etc, etc. Se calhar uma semana numa estância balnear é o melhor que uma pessoa consegue engendrar para se isolar dos acontecimentos que se diz "valerem a pena" no nosso calendário. Ir para Carreço, para Moledo ou Vila Praia de Âncora e comer uns caracóis, ver celebridades da nossa praça a passear tartarugas à beira-mar, não conseguir uma boleia para casa e passar a noite dentro do Multibanco para ser expulso cordialmente pela polícia na manhã seguinte com um “nós percebemos, nós percebemos”, apanhar o comboio e ir saindo nos vários apeadeiros antes de chegar o revisor para beber umas cervejas e apanhar o próximo comboio, jogar dominó ao som de Bob Marley, sair de carro de um sítio qualquer com o My Way do Frank Sinatra aos berros... Esquecer o máximo possível as responsabilidades e os trabalhos que nos ocupam o resto do ano e apreciar a vida na sua futilidade, sem coisas para fazer, sem calendários e sem horas para cumprir, sem documentos ou contratos para assinar... 

O Sr. Hulot, nestes dias, está-se completamente a marimbar para isso tudo. Para comer a horas certas, para o dinheiro, para as aparências, para os estratagemas sociais que parecem existir num mundo à parte da realidade. Bem, não se estará a marimbar, especificamente, porque simplesmente ignora ou não acredita que a profissão e o trabalho façam ou definam o homem. Vem só no seu chaço apreciar os pequenos nadas que aquela semana em Saint-Nazaire lhe vai oferecer. (Não falo para já dos gags geniais que aparecem ao longo do filme, que como Playtime é uma enciclopédia do gag). E os nadas têm todos um peso e respiram como se tivessem forma. Um cão a dormir no meio da estrada, o caramelo a cair do gancho do carrinho dos gelados, as crianças a serem crianças (a tarefa hercúlea de levar um gelado, por escadas e portas - muito devagar, para não cair - até ao irmão que nos espera). As coisas que nos esquecemos de contar quando contamos uma história. Queremos tanto que (nos) aconteça alguma coisa que nos esquecemos do que acontece e não vemos nada, somos só pessoas ocupadas demais, vividas demais, chatas demais... Ah! se não falássemos tanto, conseguíamos apreciar o silêncio. Como neste filme. É como se aqueles planos do Ford em cadeiras e em alpendres durassem 90 minutos... Faça-se nada só um bocadinho... 

É se calhar por este avanço civilizacional em relação ao comum dos mortais que o Sr. Hulot está sempre à frente da imagem e sempre à frente do olhar. As pessoas fiam-se na primeira impressão que aquele carro velho e carcomido dá e ele faz de tudo e passa completamente despercebido. Antes que todos percebam o que se passou, já está ele na clarabóia do seu quarto a admirar a obra, como um miúdo traquina. Pegadas e partidas que um raccord não apanha, como quando Hulot vê o empregado à porta do hotel, vira subitamente para a direita e vemos as pegadas que vão na direcção da porta, com o empregado a coçar a cabeça do lado de fora, a olhar para elas e a tentar resolver o puzzle. O cinema foi inventado para se estar além do plano. 

E porque não é só o Playtime que é um filme novo de cada vez que se volta a ver, que dizer daquelas corridas de Hulot em segundo plano espalhadas pelo filme? Ou da sequência dos quadros? De cada gag que foi usado e reciclado mil vezes depois deste filme (a porta do restaurante que voltaremos a ver na Festa de Blake Edwards e Peter Sellers, o jogo de ténis que poderá ter inspirado o Jerry Lewis de The Big Mouth, os passeios por estações balneares de Billy Wilder e Éric Rohmer, em Quanto Mais Quente Melhor e Conto de Verão, etc.). De um filme em que pouco se diz, e o que se diz muito rápido se esquece, talvez não se deva dizer muito (mas não é tudo visual, há imensos gags sonoros espalhados pelo filme). Admirar, só, e passar os dias a tentar pagar a alegria de volta com assobios e pequenas excentricidades. 

A porta que range na ida e na volta, no restaurante. O empregado que tenta decifrar tudo e arregaça uma manga para pôr a outra no aquário. Se basta uma corda esticada para um gag funcionar, o que é feito da comédia? Trocas de identidade, pneus fúnebres, modernidade atrasada. E se Hulot é um exemplo, muito mais que um palhaço? 

- "Então o que tens feito?" 

O que aconteceu a responder a isto com um "nada" e um sorriso na cara?