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domingo, 29 de maio de 2022

Edipo re (1967) de Pier Paolo Pasolini



por André Miranda

Um homem atravessa as montanhas áridas dum espaço por nomear. Atado a uma vara leva uma criança que chora. É-lhe ordenado que a atire do precipício condenando-a à morte quando a vida ainda é princípio. Incapaz de tamanha atrocidade comete outra talvez maior ainda: abandona-a à sorte, que os elementos façam o que ele não consegue. Mas em vez do fim, surge quem salva a criança. Leva-a ao rei Políbio que a ergue o máximo que os braços permitem e grita: “Eis o próximo rei de Corinto.” 

Este filme Pasolini afirma-o autobiográfico. Filho de um tenente do exército italiano, convicto fascista, que Pasolini descreve como invejando a atenção e o amor dedicados que a mãe lhe dedicava. Por isso os dez minutos iniciais na Itália dos anos vinte do século passado. Dez minutos como expressão dramática da vida do realizador. O pai que vê no filho um usurpador, o veículo da sua extinção. O pai que entra no quarto penumbroso e agarra os pés do bebé indefeso. 

Édipo fecha os olhos e lança-se ao acaso pelo deserto. Informado pelo oráculo do seu destino, o de matar o próprio pai e casar com a própria mãe, o quanto quer é afastar-se o mais possível de Corinto. Escolhe não confrontar, sabendo que se aproxima. Mata o pai e, depois de libertar Tebas da maldição da esfinge, desposa a própria mãe, dando início a nova maldição. A cidade é castigada por surto de peste. Corpos estendidos no chão, apodrecendo. O que fazer? Assassinar ou exilar o criminoso, assim anuncia Creonte depois de visita a Delfos. Mas quem é ele? É Édipo, sentencia o cego Tirésias. Fazendo com que Édipo revolva em descida, em procura pelo crime seu que ignora. Descendo descobre a verdade da sentença da esfinge: “O precipício é o destino que levas dentro.”



quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Yadon ilaheyya (2002) de Elia Suleiman



por Alexandra Barros

Nalguns países, Intervenção Divina tem associado o subtítulo Uma Crónica de Amor e Dor. É entre estes dois pólos que E.S., a personagem principal, vive o seu dia-a-dia. E.S., interpretado pelo próprio realizador do filme, Elia Suleiman, é (como este) um árabe que habita nos territórios de Jerusalém sob ocupação israelita. O pai vive em Nazaré[1] e é hospitalizado após sofrer um ataque cardíaco causado pela depressão económica e psicológica decorrente da ocupação. Do outro lado da fronteira, em Ramallah[2], vive a namorada de E.S.. Impossibilitada de atravessar a fronteira, que está aberta só para quem vive no “lado certo”, é E.S. quem a atravessa. Estaciona junto ao checkpoint e é aí que os dois se juntam. Entre as visitas ao pai hospitalizado e os encontros com a namorada, percorremos uma teia de histórias de palestinianos cujo quotidiano é marcado pelas consequências da invasão política e militar. 

Intervenção Divina tem poucos diálogos, mas Suleiman deixa os temas musicais falar (I put a spell on you, de Screamin’ Jay Hawkins, numa versão de Natacha Atlas, é particularmente eloquente). O tom geral é de humor negro e essencialmente visual. Frequentemente comparado a Jacques Tati ou Buster Keaton, Suleiman mantém-se (quase) impassível em (quase) todas as circunstâncias. De olhar melancólico e intenso, não diz uma única palavra durante todo o filme. 

Os movimentos coreografados sempre deliciaram Suleiman, de acordo com uma entrevista que deu ao The New York Times, e algumas cenas do filme são pura coreografia. Os encontros entre E.S. e a namorada, por exemplo, com os seus pas de deux executados literalmente a duas mãos, são das mais belas cenas de expressão muda de desejo amoroso do [3] cinema. Nessa entrevista Suleiman disse também desejar comunicar através do humor porque “dessa forma, sentimo-nos menos sós.” “Não faço filmes por razões politicamente correctas, mas para encontrar mais espaço para o amor.” 

Há mais umas quantas cenas memoráveis em Intervenção Divina: um Pai Natal aterrorizado por um bando de rapazes que o persegue por uma encosta de Nazaré acima; um balão subversivo, com a cara sorridente de Yasser Arafat estampada, a atravessar pelo ar fronteiras fechadas em terra; um confronto surreal, com balas paradas à la Matrix, entre uma ninja palestiniana e um grupo armado israelita; um semáforo que desencadeia uma tensa medição de forças. 

A violência latente e o absurdo percorrem esta(s) história(s) de um povo sob ocupação. Há quem espere todos os dias por um autocarro que nunca vem; há insultos murmurados por baixo de acenos sorridentes e aparentemente amistosos; há caroços de fruta que rebentam tanques militares como granadas; há lixo lançado para o quintal do vizinho e re-lançado de volta para o primeiro... 
- Vizinho, porque é que atira o lixo para o meu quintal? Não tem vergonha? 
- O lixo que atiro para o seu quintal é o mesmo que atirou para o meu jardim. 
- Não deixa de ser uma vergonha. Os vizinhos deviam respeitar-se. Deveria falar comigo sobre isso. 
Com estas três linhas, Suleiman traça um esboço do eterno conflito israelo-palestiniano: um sem-fim de apenas perdas. 

O filme foi muito bem recebido em todo o mundo e tentou candidatar-se aos Óscares. No entanto, a Academia rejeitou a candidatura com um argumento que parece escrito para o próprio filme: os filmes têm que ser nomeados pelo país de origem e a Palestina não é oficialmente um país. 

Desta loucura trágica e infindável só parece ser possível sair de uma forma: intervenção divina.

[1] Cidade israelita, com um grande número de habitantes árabes.
[2] Cidade palestiniana.
[3] meu