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terça-feira, 13 de julho de 2021

Inquietude (1998) de Manoel de Oliveira



por Alexandra Barros

Inquietude é construído a partir de três obras: a peça de teatro Os Imortais de Prista Monteiro, a novela Suzy de António Patrício e o conto A Mãe de Um Rio de Agustina Bessa-Luís.

Um médico-investigador, outrora famoso e estimado, vive angustiado com o esquecimento e irrelevância actuais. O seu filho, médico e investigador também, atingiu já o auge da sua carreira e vive actualmente o seu grande momento de glória. Para que o filho não tenha um destino igual ao seu, o pai tenta convencê-lo a suicidar-se, mas ele recusa. Dedicou a vida ao trabalho e agora quer viver: viajar, ir ao teatro, fazer com uma senhora bonita “tudo o que fazem os jovens”. Porém tudo isso são ilusões, está demasiado velho, especialmente para mulheres, para as quais só lhe resta olhar, diz o pai. A única recompensa possível para os seus sacrifícios é perdurar na memória colectiva através daquilo que mais impressiona as massas: a morte. O pai vê-se obrigado a resolver o assunto pelas próprias mãos e não hesita: “Um imortal não morre.” Cai o pano. Entre o público que vai ao teatro tanto para ver e ser visto como (ou mais que) para ver a peça estão dois amigos que, durante os aplausos finais, se encantam por duas mulheres que avistam num camarote vizinho, Suzy e Gabi. 
 
Um dos amigos, o narrador desta nova história, apaixona-se por Suzy, mulher de muitos homens, por ela silenciosamente desprezados, como confessa ao seu amante especial, o único com quem pode ser ela mesmo. Suzy é uma mulher triste, apesar de ter tudo o que sempre quis: homens ricos que a adulam, automóveis, vestidos das melhores modistas, jóias. “Tudo menos a felicidade.”, nota o amante amado. “A felicidade c’est un détail.” responde Suzy. “Parece-me que nasci para isto. Sofro [o horror, o nojo, a humilhação] como se não houvesse destino melhor. Com a volúpia de um sacrifício.” Suzy morre durante uma operação cirúrgica e para arrancar o apaixonado à sua desolação, o amigo conta-lhe a história de Fisalina. “O que tem a ver com Suzy?” / “Tem e não tem. A vida é um mistério. Lá no fundo tudo se liga. [...] É desse enigma que nos fala a Mãe de Um Rio.”

Incapaz de aceitar a vida que lhe querem impor, Fisalina dispõe-se perante a Mãe de Um Rio a trocar o seu destino por um outro, mesmo que amaldiçoado. De filha presa numa aldeia que a sufoca torna-se então mãe de um rio que lhe nasce aos pés, libertando a anterior Mãe. “Os vigilantes do espírito humano devem ser rendidos e as águas da sabedoria devem ser habitadas por novos mestres”, diz a Mãe de Um Rio, que aprendeu com a natureza aquilo que uma vida de estudo académico não ensinou aos dois afamados cientistas: a aceitação dos ciclos da vida. Nunca nos podemos banhar duas vezes no mesmo rio. Fisalina não pode voltar nem para o seu apaixonado nem para a sua comunidade por causa dos novos dedos de ouro, que a fascinam, mas simultaneamente a denunciam. Uma solidão de mil anos é o preço que tem que pagar por eles e pela sua libertação. 
 
Tanto Suzy como Fisalina se colocam à margem das convenções sociais e são renegadas pela sociedade, mas isso pouco importa. “C’est un détail.” Para elas, executar as missões a que se sentem destinadas é o que dá sentido às suas vidas. Esse espírito de missão é o único gozo que têm, por ele renunciam a tudo o resto, por ele sofrem com prazer. 
 
Habilmente interligadas pela estrutura narrativa, as três histórias têm em comum personagens que se debatem com as questões: “Para quê viver?”, “Como viver?”. Quando não encontram saída para situações insuportáveis, a angústia existencial empurra os protagonistas para soluções em que são obrigados a renunciar a bens tão preciosos como a vida, a felicidade e o amor. 

Inquietude é forte nos textos e nas imagens. As (belas-)artes das primeiras duas partes cedem o lugar à beleza da natureza, das construções vernaculares e dos rituais rurais ancestrais, na terceira parte. Entre os cenários e as personagens há sempre fortes associações visuais. O pai e (em breve) o filho da tragi-comédia inicial são tão relíquia de outros tempos como os objectos decorativos e antiguidades que os rodeiam, embora os representados nas estatuetas, pinturas e fotografias que os cercam não envelheçam, ao contrário deles. No romance trágico da segunda parte, a própria casa de Suzy é uma obra de arte e Suzy, cuja beleza excede a dos frescos das paredes, nelas por vezes parece estar pintada. No realismo mágico da terceira parte, da sombra das árvores emerge um rosto e umas mãos que seguram um galho com pequeninas flores malvas, mas o corpo da Mãe de Um Rio é indistinguível da escuridão. 
 
Na última história são muitas as imagens que ficam impressas na memória: a aldeia labiríntica, ruas e casas construídas com a mesma pedra, uma entidade única, uma grande casa em que Fisalina está presa; a escuridão que rodeia a Mãe do Rio cortada pela cor das flores que carrega ou pela natureza verde vibrante que a janela da sua casa sombria enquadra; o túnel subterrâneo onde a Mãe de Um Rio transmite a sua missão e os dedos de ouro a Fisalina; a procissão do Senhor Morto, pontuada pelas chamas das velas transportadas pelas mulheres e depois essas mesmas chamas a perseguir Fisalina, flutuando “sozinhas” na escuridão absoluta.  
 
Imagens que existem por causa de uma outra, mas mesma, inquietude. No texto de apresentação do ciclo “Manoel de Oliveira, O Visível e o Invisível”, que a Cinemateca dedicou ao realizador em 2018, pode ler-se: 
 
E a alma o que é?”/“A alma é um vício.” O vício que todos os filmes de Oliveira perseguem, afirmou João Bénard da Costa a partir deste extraordinário diálogo de Francisca.

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

O Rio do Ouro (1998) de Paulo Rocha



por João Palhares

Na mata de Roquelanes, três irmãos despojados das vidas abastadas que acreditavam ser suas por direito matam-se durante as horas do dia pelas três chaves de um tesouro que viu morrer centenas de outros antes deles. Noutro século e noutras paragens, onde as árvores brotam sangue e a água é de mil fontes, nascem três meninos reais com estrelinhas na testa que são trocados por cães e cadelas e se tornam filhos de moleiros. Mais à frente na estrada, uma fada vestida de velha troca os corpos da filha feia e da enteada bonita de uma mulher ruim, trocando também as voltas à mulher que passa a tratar muito mal a filha amada e muito bem a enteada que odeia. Uma pomba encantada é laçada com ouro por um príncipe e aliviada do alfinete que tinha na orelha, transformando-se em mulher. A filha de um ministro entra num palácio ao lusco-fusco com uma camisa fina de cambraia às cavalitas de um criado para responder à adivinha de um rei. Na sétima encruzilhada de um bosque perdido, uma mulher vira uma camisa e umas calças ao contrário e veste-as a um lobo que se transforma no seu irmão. Mas antes de tudo isto acontecer, três rios irmãos combinaram encontrar-se no mar mal acordassem na manhã seguinte, uma das manhãs da Criação. O Guadiana foi o primeiro, “escolheu lindos sítios e partiu de seu vagar. O Tejo acordou depois, e como queria chegar primeiro ao mar, largou mais depressa, e já as suas margens não são tão belas como as daquele. O Douro foi o ultimo que acordou, por isso rompeu por montes e vales, sem se importar com a escolha, e eis porque as suas margens são tristes e pedregosas.”[1] 

Os rios são testemunhas das andanças do mundo há centenas e centenas de milhares de anos, ora fazendo vogar calmamente quem viesse por bem e respeitasse o seu curso ora precipitando a perdição dos seres impulsivos que aí procuravam a morte. Quanto não pode um rio, ainda, das enchentes mortais e cascatas a pique às correntes e caudais que nos alimentam as casas e a vida em comum? “Sou um rio injusto, com margens de labaredas”, escreve Mário Cesariny de Vasconcellos na sua Pena Capital, “se me navegam, gelo, se me fogem, queimo.” O Rio Douro vela há quase trezentos anos pelas belíssimas vinhas que parecem escorregar pelas suas margens, alimentando as gentes que povoavam as redondezas de enguias, de escalos e de trutas, irrigando as margens em profundidade e fazendo brotar carvalhos, estevas, zimbros e sobreiros. Mas também afogou as milhares de almas portuenses que tentavam fugir das forças napoleónicas em 1809 pela Ponte das Barcas, abandonadas pelo comandante das forças portuguesas, D. António de São José de Castro, que saiu cobarde e sorrateiro pela noite; também reclamou para si o barão de Forrester, que deixara a sua Inglaterra natal pelo seu amor desmedido ao rio Douro apenas para encontrar a morte nas suas águas em 1861. Os cadáveres dos tripulantes foram todos encontrados e enterrados, menos o do barão, que ficou para sempre no leito do rio[2]. 

“O rio Douro não teve cantores”, escreveu Agustina Bessa-Luís no início da sua Fanny Owen. “Teve-os o Mondego e o Tejo também. Mas, para além das cristas do Marão, em vez do alaúde e da guitarra havia o repique dos sinos ou o seu dobrar espaçado. Havia o tiro certeiro dos caçadores de perdiz, lá pelas bandas da Muxagata e do Cachão da Valeira. E o clarim das guerrilhas ouvia-se através da poeira de neve que cobria os barrancos de Sabroso. O rio Douro ficou banido da lírica portuguesa com a sua catadura feroz pouco própria para animar os gorjeios dos bernardins, que são sempre lamurientos e que à beira de água lavam os pés e os pecados. E, no entanto, trata-se de um rio majestoso como não há outro. Eu vi-o em Zamora e não o reconheci; diz-se que as margens eram carregadas de pinheiros e daí o seu nome dum que quer dizer madeira. Mas entra em Portugal à má cara. Enovela o caudal sobre penhascos, muge e ressopra como um touro com molhelha de couro preto a subir uma calçada. Não creio que os poetas o habitem; e, no entanto, Dante tê-lo-ia amado e preferido; como preferiu os estaleiros incandescentes de Veneza e os túmulos abertos das arenas de Arles, para descrever o inferno. Por cá, são brandas as liras; com o aguilhão da fome, às vezes saltam umas revoltas que vibram na Calíope alguma bordoada. Com o ferrão do amor, não se cometem senão delitos em forma de soneto ou de sextilhas. Epopeias são raras, as musas são mimosas e não ardentes.” 

Os rios como forças, motivos e parábolas primordiais atravessam também as obsessões apaixonadas do grande Paulo Rocha, que os menciona em várias ocasiões. Sobre Jean Renoir, com quem trabalhou em Le caporal epinglé (1962) como assistente de realização e a quem chamou mesmo o “Rio Renoir”, menciona “a água (sacra) dos rios sem destino”, “o rio das ilusões e dos desejos que fazia flutuar os corações dos homens”, “a lógica cega e flutuante daqueles rios obscuros onde se escondiam as pulsões de morte”[3]. Sobre Agustina e no que parece uma carta de amor escreve que “através da tua boca falam pedras e plantas, animais e água, o rio, a luz do dia e a luz do céu”, que “as respostas da Sibila são anteriores à invenção da escrita. É uma lufada, uma palavra oral, rio sem barragens, águas primordiais.”[4] Estas comparações podem muito bem revelar a grande amizade e o grande amor que Rocha tem pelas pessoas de quem fala, pois também há rios na descrição de António Reis, que “morava num apartamento em Gaia com vista sobre o rio. As paredes estavam cobertas de bonecos de pano, de todas as cores, feitos pelos loucos de um manicómio. Os bonecos eram monstros com várias patas e cabeças e prenunciavam os desenhos de Jaime. Naquelas janelas viradas para a bruma do rio, havia uma energia irracional, um sopro de vida à beira do abismo.”[5] Em A Ilha de Moraes (1984), filme belíssimo em que Rocha continua na pista de Wencesleau de Moraes depois da Ilha dos Amores (1982), há uma monja japonesa que lhe diz que “Tokushima é famosa pelos seus rios e pelas suas mulheres. Encontramos mulheres belas perto de belos rios por todo o mundo.” Na mesma cena, com o rio em relevo, a mulher indaga sobre a palavra “mujô”, que se pode traduzir e explicar como a mutabilidade e a impermanência das coisas, dizendo que “é uma palavra que é muito cara aos japoneses. O rio corre sempre no mesmo sentido e nunca sobe a encosta. A água que corre à nossa frente nunca é a mesma. Essa palavra está gravada no fundo dos nossos corações.” Por fim, e em 1987, numa apresentação de O Desejado ou As Montanhas da Lua (1987) na Cinemateca Portuguesa, Rocha remata a questão e parece mesmo descrever o seu fabuloso Rio do Ouro (1998) ao dizer que “quando nos banhamos no rio do prazer absoluto, morremos, porque descobrimos a outra face da realidade, a realidade absoluta. A água do rio não recusa ninguém.” 

O Rio do Ouro é então o culminar das grandes paixões de Paulo Rocha, o culminar de uma forma trabalhada e ensaiada com os melhores técnicos no Japão, mantendo a impulsividade, a frescura e a curiosidade inata de sempre. Três saltos no eixo incríveis na cena do comboio, quando o “Zé dos Ouros” vê algo que não quer nem deve ver e que a Carolina de Isabel Ruth quer descobrir à força toda. É o princípio do fim. Se se descobre o efeito de certas coisas, porque não pô-las em prática, porque não insistir e repetir até ser só beleza em perfeita continuidade? O chamado erro técnico pode ser uma decisão consciente de dramaturgia. E pode ser preciso calcar horas e horas os arredores de Lisboa, conhecer pescadores, filmar em cabanas com pulgas nas meias, ler O Romance do Genji[6], passar anos no Japão, aprender a língua e servir de adido cultural entre dois países que tão misteriosamente e tão paradoxalmente se ligam para a tomar. O rio Douro da infância de Paulo Rocha é também o rio dos amores de Wencesleau de Moraes, do martírio dos pescadores do Furadouro, das mulheres invioláveis de Manoel de Oliveira, da ferocidade de Agustina, do apartamento em Gaia de António Reis com vista sobre as águas, das mortes poéticas de barões assinalados e das mortes trágicas de populares a fugir pela sobrevivência das tropas do general Junot, do teatro da vida do “Rio Renoir”, das vidas dilaceradas de Mizoguchi e das míticas imprudências do rei a quem chamaram “O Desejado”. Uma hora e quarenta que contém o mundo, um rio que se transforma em mar sem ter de chegar à foz, da mente indomável e continuamente mutável de Paulo Rocha, sem barragens ou diques sociológicos que a detenham. Há quem faça a recolha muito necessária de narrativas e músicas milenares para a posteridade, há quem as sintetize com movimentos de câmara desarmantes à volta de barcos rabelos e guindastes afiados, rodas populares com coreografias fascinantes, madrinhas ciumentas com poderes para lançar feitiços, sereias inocentes cujos salvamentos provocam a fúria das águas, fogo e sangue, pragas de abelhas e alpendres voadores, quedas de carros por falésias, comboios descarrilados e sacrifícios aos deuses pagãos ou aos quatro elementos naturais. Há quem faça O Rio do Ouro e nos continue a deixar pasmados com o resultado. Passaram vinte anos e o mergulho e a viagem são os mesmos, fontes inesgotáveis de sobressaltos e descobertas.

[1] in «Contos Tradicionaes do Povo Portuguez», de Teófilo Braga. 
[2] Joseph James Forrester amou o Douro como ninguém. Foi o primeiro estrangeiro a conseguir o título de barão em Portugal, conseguido pelo seu excelente trabalho cartográfico, nomeadamente um mapa completo do rio Douro que ia desenhando com grande rigor científico e ao largo das muitas horas em que ancorava entre as águas no seu barco rabelo com cozinha, quartos, casa-de-banho e sala de jantar. Esse amor e esse episódio não passaram despercebidos a Paulo Rocha, que os queria incluir num dos seis episódios do primeiro rascunho do filme, na altura chamado A Balada do Rio do Ouro.
[3] in «O Rio Renoir», a grande ilusão – revista de cinema, nº15-16, Abril de 1994.
[4] in «A Sibila do Campo Alegre», Público Magazine, nº189, 9 de Setembro de 1990.
[5] in «Uma figura luminosa – António Reis, poeta do cinema», Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 480, 17-23 de Setembro de 1991. O rio era o Douro.
[6] O Romance do Genji é um épico escrito no início do século XI por Murasaki Shikibu, mulher da corte imperial japonesa. Foi editado em duas partes pela Relógio d'Água em 2008.

sábado, 28 de julho de 2018

The Big Lebowski (1998) dos irmãos Coen



por João Palhares

Pronto, passaram-se. Estava tudo a correr tão bem, os programadores pareciam tão cultos e tão informados, respeitavam e divulgavam a grande história do cinema, os artistas e as correntes que o fizeram, a opinião dos críticos e historiadores que a comentavam: como é que agora se lembram de programar lixo americano dos anos 90 depois de ciclos dedicados ao cinema francês, a Kenji Mizoguchi e a Pedro Costa? Estava tudo a correr tão bem. O caso torna-se tema de conversa em todos os cafés de Braga e de Lisboa, amizades desfazem-se, os sócios revoltam-se, os espectadores boicotam a sessão, convocam-se reuniões extraordinárias ao mais alto nível, as distribuidoras e os realizadores portugueses recusam-se a negociar com os responsáveis do cineclube: escândalo! sacrilégio! violação! homicídio! estão a equiparar os Coen aos grandes génios do cinema, informem as entidades reguladoras, chamem as forças de segurança pública! 

O "caso Coen" enche as manchetes dos jornais, abafando o interesse dos meios de comunicação pelos incêndios florestais, pela contratação de Cristiano Ronaldo e pelas conferências de imprensa de Bruno de Carvalho: Augusto M. Seabra, António Guerreiro e Alexandra Lucas Coelho escrevem extensos ensaios a acusar o cineclube de Braga de crimes contra a cultura. Os responsáveis vão-se tentando defender das acusações, mas acabam por citar João Soares e, como lição, são escoltados pela polícia para o Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus, onde terão de aguardar julgamento. A lição não sai muito bem à sociedade pois os responsáveis são declarados intocáveis por Paulo Raposão, homicida e traficante de droga, fã confesso de O Grande Lebowski, que se compadece com a situação dos programadores bracarenses. Depois de recitarem com ele o filme inteiro no pátio da prisão, e enquanto os seus advogados (Luís Tarroso Gomes e Mário Fernandes) preparam a defesa, os cineclubistas redigem um depoimento conjunto para a imprensa:
"Nem sempre é fácil descartar os grandes encontros com filmes vividos durante a infância e a adolescência, e que vão de Fievel - Um Conto Americano (1986) a Nova Iorque 1997 (1981), passando por Space Jam (1996), Hook (1991) ou Con Air: Fortaleza Voadora (1997), decidir hoje se são bons filmes ou não, se merecem palavras de apreço que passem por mais do que a mera descrição da já imensamente meritória qualidade de nos terem feito os dias meses a fio. Mas há excepções em que a confusão se dissipa, e de que convém dar sempre conta, quando um filme e certas personagens nos acompanham ao longo dos anos, quando os diálogos vão saindo de cor e adaptados a quase todas as circunstâncias da vida (“Fuck it, Dude, let’s go bowling”, “yeah, well, that’s just, like, your opinion, man”, “this agression will not stand” ou “the Dude abides”), quando revisitar o filme é quase como voltar a ver velhos amigos, na acepção dos “filmes de personagens” de Howard Hawks ou dos “hangout films” de Quentin Tarantino, ou quando se começa a ver um caldo geracional riquíssimo e que documenta perfeitamente um local e uma era, dos hippies descontraídos dos anos sessenta aos milennials retraídos e fechados nos quartos dos anos 90, dos veteranos da Coreia aos do Vietname, dos pederastas aos fascistas, dos surfistas aos cowboys, dos niilistas às feministas, do submundo dos pornógrafos que tiveram de competir com a explosão do VHS aos grupos elitistas e poliglotas que frequentavam a cena artística nos anos 80. 

"É possível que em Portugal, país em que a resposta à pergunta "Mas onde é que tu estavas no 25 de Abril" ainda pode pôr termo a uma amizade, pareça estranho, inconcebível ou mero macguffin narrativo que um hippie, que nos anos sessenta podia perfeitamente ter recebido os soldados do Vietname com gritos nada pacíficos de "baby killers" ou "make love, not war", e um veterano dessa guerra, que depois das notícias dos massacres da comuna de Charles Manson e dos desacatos trágicos no concerto de Altamont podia perfeitamente passar a ver a "geração do amor" com outros olhos, sejam amigos para a vida. Não há explicação para esta amizade no filme dos irmãos Coen e também não é preciso, porque acreditamos sempre nela, mas sabendo do destino dos ex-combatentes do Vietname e dos últimos resistentes do "flower power" (e partindo do princípio errado que os grupos definem os seus membros), do desprezo a que a sociedade e a opinião pública americanas os votaram durante os anos setenta e oitenta, das demonstrações gratuitas de violência a que foram submetidos pelas autoridades ou por consórcios criminosos como os Hells Angels, não é difícil imaginá-los a encontrarem-se e a conhecerem-se num recinto perdido de bowling qualquer nos subúrbios de Los Angeles, a curar as suas frustrações derrubando pinos como se fossem inimigos ou perseguidores políticos com uma bola pesada de plástico rígido. 

"Pode ser essa a grande lição do Grande Lebowski, entre o muito de surreal que acontece na demanda por um tapete (o verdadeiro macguffin do filme) por essa Los Angeles fora: ser possível encontrar um amigo na pessoa mais improvável e sem pensar nas suas afinidades políticas ou na possibilidade vergonhosa de ser visto com ele em certos círculos e em certos contextos. Numa altura em que as convicções e as palavras das pessoas estão sob vigilância máxima, à custa de empregos e imagem pública, nunca é demais lembrar que não vale mesmo a pena terminar uma amizade por razões políticas, que a vida é curta demais para isso. É sempre preferível resolver as diferenças com um “Walter, I love you, but sooner or later you’re going to have to realize the fact that you’re a god damn moron” ou então um “Fuck the tournament? Okay, Dude, I can see you don’t want to be cheered up, here. Come on, Donny, let’s go get ourselves a lane”. 

"Podemos não gostar da obra dos Coen como um todo, o que até é verdade, concordar que Barton Fink, Miller’s Crossing ou Fargo são filmes afectados e muitíssimo ostensivos, mas isso não nos pode impedir de admitir que às vezes as coisas resultam (ou "sometimes there's a man...", como atira Sam Eliott nas suas divagações de narrador), consegue-se realmente criar uma ligação perfeita entre intérpretes, um ambiente ideal para a criação e para a naturalidade nas relações e nos diálogos, imagens icónicas e originais que dependem de aparatos técnicos muito complexos, como carros telecomandados com câmaras especiais a seguir bolas de bowling ou plataformas gigantes que simulam o ponto de vista dessas bolas, perfeitamente justificados pelos desmaios recorrentes da personagem de Jeff Bridges e da sua apetência por charros e pelo “occasional acid flashback” a que por vezes não resiste. São as pequenas coisas que nos fazem gostar muito deste filme, e por isso o mostramos. Não nos censurem."

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Snake Eyes (1998) de Brian De Palma



por João Palhares

Snake Eyes acaba e começa com planos-sequência. Melhor dizendo, começa com um falso plano-sequência e acaba com um plano-sequência. Esse primeiro "plano-sequência" introduz-nos na acção, é a representação distanciada do acontecimento que vai contaminar todo o filme: a morte do ministro da defesa. Segundo Brian De Palma, o realizador deste filme, há três ou quatro cortes muito subtis (pessoalmente só reparei em dois, deixo o exercício para quem os quiser contar: parece que são quatro ou cinco, os planos), no trajecto do personagem de Nicolas Cage, Rick Santoro. Mas a minúcia a lidar com a logística (centenas de figurantes, percursos complicados dos actores) não deixa de surpreender. Começo por escrever isto porque a comoção que se segue só tem o poder que tem por causa da fluidez, diria até que acalmia absoluta, desses primeiros minutos. Quando a multidão desata a correr em pânico, nós sentimos a transição profundamente. De facto, atravessa-nos um grande desalento, mais intelectual, mais teórico, e enquanto os cortes se seguem uns atrás dos outros a grande velocidade, também estamos completamente desnorteados. 

O que se segue, ou o cerne do filme, é a dissecação obsessiva (narrativa, do som, da montagem) daqueles cinco primeiros planos, ou daquele falso plano. Repetem-se os “Tyler!” efusivos de Santoro, o “Here comes the pain!” e o tiro final, constantemente. 

Rick Santoro é o otário que investiga o assassinato, percebendo as coisas aos poucos. E De Palma parece que adequa o trabalho de câmara e de montagem ao Q.I. da personagem. Slow motions, split screens, escalas em sintonia, música; nunca a arte de De Palma, parece-me, fez tanto sentido num filme seu, confundem-se a percepção e a montagem, constantemente. 

E porque sempre achei que há um momento em filmes brilhantes em que percebemos que são brilhantes, falo da sequência do flashback de Tyler, o boxer: confrontado por Santoro pelo K.O. duvidoso, conta a sua história, uma das primeiras peças do puzzle. A dificuldade em ser vencido por tão fraco adversário, está à nora; vêm então os acordes belíssimos da banda-sonora de Ryuchi Sakamoto. Tudo lentíssimo, contemplativo. Retenha-se o plano do homem vencido (talvez o mais belo de toda a obra de De Palma), perfeitamente consciente da sua ruína e do seu destino, pausa necessária da profusão de reviravoltas e de informação – tudo isto prova que De Palma também é humano, o momento é belíssimo, mas não se força a isso, flui extraordinariamente. 

Ao ver o resto do filme, conforme Santoro vai decifrando o resto do puzzle, apercebêmo-nos do gozo que deve ter dado a De Palma ter feito o filme, continuando a dividir e a talhar minuciosamente aquele assassinato até às últimas consequências, encontrando novas câmaras e novos pontos de vista, novos ângulos e novos testemunhos – a história pela imagem – habilidosamente. Reviravolta atrás de reviravolta. Até ao plano final, com Santoro e Julia (onde andas tu, Carla Gugino?). 

Dos chamados “filmes com twist” (e para este filme acho que isso pouco interessa), só gosto dos de De Palma. 

texto publicado no terceiro número da revista FOCO, com algumas modificações para esta folha