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sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Sambizanga (1972) de Sarah Maldoror



por Estela Cosme 

Sarah Maldoror é uma realizadora com uma história pessoal que marcou afincadamente a sua filmografia. Nascida em Gers, na França, como Sarah Ducados, adotou mais tarde um nome artístico com base nos Cantos de Maldoror do conde de Lautréamont. O seu pai era um homem negro de Guadeloupe, nas Antilhas Francesas, onde alguns dos seus filmes foram rodados, nomeadamente Un homme une Terre e Regards de mémoire, filmes exibidos na sessão da passada terça-feira do Lucky Star. Neles o tema do anticolonialismo está bem presente, e é através da voz do poeta Aimé Césaire que Maldoror demonstra a identidade negra em conflito com o domínio francês. Para além das suas raízes caribenhas, Maldoror foi casada com Mário Pinto de Andrade, escritor e sociólogo angolano e um dos membros fundadores do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). 

Foi juntamente com Andrade e com Maurice Pons que Maldoror adaptou a obra do escritor angolano José Luandino Vieira A Vida Verdadeira de Domingos Xavier para o guião do seu filme Sambizanga, considerado a sua obra-prima. Foi a primeira longa-metragem produzida, quer em Angola quer na África Lusófona, e foi também a primeira longa-metragem africana realizada por uma mulher.1 A sua importância cultural é apenas igualada pela sua proeza cinematográfica, onde a luta contra o colonialismo está bem demarcada. Aliás, o filme foi rodado no Congo e não em Angola, onde certamente o regime colonial teria impedido a sua produção. O filme só seria exibido em Angola e em Portugal após o 25 de Abril de 1974. A sua produção contou ainda com a participação ativa do MPLA, como Maldoror explicou em 2008: "O MPLA pôs toda a estrutura à minha disposição. Explicámos aos militantes que este filme era importante, porque ia incidir sobre Angola. Expliquei-lhes o que era o cinema e o que queria do filme. Todos participaram sem hesitar." 

Sambizanga é o nome de um dos distritos do norte da cidade de Luanda, onde fica a prisão da PIDE na qual Domingos Xavier acaba por ficar preso. Um tratorista com interesses no movimento revolucionário angolano, Domingos é levado um dia por agentes da autoridade que o removem de forma violenta de sua casa num musseque. A assanha impiedosa não impede que a sua mulher Maria parta à sua procura, com o seu filho às costas, determinada a encontrar o seu marido, que acredita ser inocente. O caminho é longo e árduo mas Maria é destemida, e quando sabe que Domingos foi levado para Luanda, Maria parte para a capital, cheia de mágoa e de garra, e com a ajuda da comunidade consegue visitar várias prisões da cidade e questionar sobre o seu paradeiro. É bem recebida em todas menos em Sambizanga, onde Domingos é cruelmente humilhado e torturado quando se nega a dar informação sobre o movimento revolucionário aos seus captores. A tragédia é inevitável e a viagem de Maria acaba em desgosto, uma mulher inconsolável com a morte do marido. Ele, por seu lado, torna-se um herói na causa da libertação angolana. 

O cruel destino de Domingos é desumano e é captado de forma feroz por Maldoror, que certifica que o público não fica indiferente aos horrores do colonialismo português, levado a cabo não só pela brutalidade branca de figuras como o português Pereira, mas também pelos homens negros que servem o regime colonial. No entanto, Maldoror também enfatiza a solidariedade que surge entre os revolucionários quando se sabe que Domingos é preso mas não se conhece a sua identidade, levando vários dos seus camaradas a grandes esforços para encontrá-lo. 

Embora seja Domingos quem sofra mais diretamente pelo regime colonial, é Maria que é o rosto do filme e, como consequência, o rosto da libertação angolana. Maria é uma mulher arrasada pelas ações das autoridades e que mesmo assim junta a coragem para sair do seu porto seguro para bater nas portas dos estabelecimentos mais temidos pela sociedade. Mesmo quando os seus gritos são mais fortes do que o choro do filho que leva às costas, Maria não se cansa de procurar o seu marido e de protestar a barbárie a que é sujeito. Maria é uma manifestação andante de uma sociedade cativa que começa a revolucionar-se contra o seu colonizador. Maldoror refletiu sobre a questão na mesma entrevista: "O filme mostra que as mulheres também participaram da luta. Mulheres com filhos nos braços, que lhes tinham que explicar porque é que o pai partiu, quais os riscos e a própria realidade."[2] Em retrospectiva, Maria simboliza a força e determinação que levou à independência das colónias e à reformulação de Angola como país livre. 

O caminho de Maria é árduo e ingrato dado o seu final, mas não por isso menos poético ou valente. É um caminho motivado pelo amor, justo e nobre, tal como ilustrado no poema de Agostinho Neto, que é cantado enquanto assistimos ao percurso de Maria:

Caminho do mato 
caminho da gente 
gente cansada 
ó ó ó-oh 

Caminho do mato 
caminho do soba 
soba grande 
ó ó ó-oh 

Caminho do mato 
caminho de Lemba 
Lemba formosa 
ó ó ó-oh 

Caminho do mato 
caminho do amor 
amor do soba 
ó ó ó- oh 

Caminho do mato 
caminho do amor 
do amor de Lemba 
ó ó ó-oh 

Caminho do mato 
caminho das flores 
flores do amor."[3]

[3] "Caminho do Mato" de Agostinho Neto: https://agostinhoneto.org/poesias/caminho-do-mato-2/



quarta-feira, 3 de maio de 2023

Aguirre, der Zorn Gottes (1972) de Werner Herzog



por António Cruz Mendes

Herzog foi um dos expoentes do novo cinema alemão e Aguirre, a cólera de Deus é, possivelmente, a sua obra-prima. O filme baseia-se numa história real, mas o seu argumento afasta-se dos factos narrados pelo padre Gaspar de Carvajal para poder salientar nessa expedição em busca do El Dorado a sua dimensão metafórica. Nesse sentido, ele tem sido, por vezes, referido como uma alegoria do III Reich ou como uma variação do tema nietzschiano da “vontade de poder”. Parecem-me interpretações redutoras ou mesmo abusivas. É verdade que o filme debruça-se também, como nota Claude Beylie, sobre a questão do poder e do seu abuso e sublinha a ambígua e doentia relação de fascínio e repulsa que Aguirre exerce sobre os que o seguem na sua suicidária expedição. Mas, aquela dimensão metafórica, remete-nos antes para o esplendor e a estranheza dos significantes erráticos de que nos fala Jean-Pierre Oudart. 

Mais interessantes parecem-me ser as opiniões daqueles que, como Jean Tulard, vêm Herzog como o mais romântico dos realizadores alemães da sua geração e destacam o seu gosto pelos marginais e pelos solitários. Teremos a oportunidade o confirmar nos outros filmes que completam o ciclo que lhe dedicamos. 

Aguirre, interpretado por Klaus Kinski, um actor com quem Herzog manteve uma longa e conflituosa relação, é o protagonista do filme. Mas, a floresta, sumptuosa e inacessível barreira onde se ocultam todos os perigos, as ameaças invisíveis que pendem sobre a vida humana, não tem nele um papel secundário. É penetrada pelo rio, primeiro tumultuoso, depois, assustadoramente silencioso. Por ele erram as balsas dos aventureiros que ousaram desafiar o seu poder. Comanda-os Aguirre. Ursúa, a voz do bom senso, e Guzman, a mediocridade que se compraz em possíveis riquezas, são eliminados. O que motiva Aguirre é o poder, o desejo do absoluto. Aguirre quer conquistar o desconhecido, submete-lo à sua força. Vê-o render-se a si tal como os mortais se rendem à “fúria dos deuses”. É essa húbris que o perderá. Como na mitologia e nas tragédias gregas, a sua arrogância, a sua desmedida, será punida pela ira dos deuses. 

É verdade que a sua expedição se faz também em nome de deus. Atesta-o a presença do padre Carvajal. Mas, não é desse deus que se trata. Ele nada diz ao indígena que leva a Bíblia à orelha para ouvir a sua voz. Os deuses que condenam Aguirre são deuses muito mais antigos, deuses que podemos entender personificados nessa natureza selvagem que os homens querem domar. 

Aguirre é derrotado. Contudo, nas imagens finais, ainda o veremos, sozinho, na sua jangada, coberta pelos corpos dos seus companheiros e invadida por pequenos macacos, de pé, olhos no horizonte, a proclamar os seus sonhos de glória.



quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Nathalie Granger (1972) de Marguerite Duras



por Mathilde Ferreira Neves

(...) Já avançada a sinopse no preâmbulo deste trabalho e antes de explorar questões propriamente cinematográficas em relação ao filme Nathalie Granger, devem ser abordadas as três linhas condutoras do filme: a casa associada à ocupação do tempo das mulheres, a violência associada ao silêncio, e a invasão do vendedor e o que isso representa. Estando todas estas linhas ligadas entre si, mesmo intricadas. (…) 

Para MD, fazer um filme a partir da casa é assumir uma contestação profunda. Por um lado, é reagir ao modo como, ao longo dos tempos, as mulheres foram sendo encerradas nesse espaço pelos maridos; por outro, é um meio de contar a história das mulheres que nas gerações anteriores passaram por aquela mesma casa (que data de 1750), caladas, vivendo numa espécie de equivalência ao que estas mulheres do filme vivem. 

Porém, se a casa é encarada primeiramente enquanto prisão, logo percebemos que ela funcionará igualmente enquanto refúgio, enquanto reduto e lugar de resistência das mulheres, onde estas poderão começar por exercer a sua liberdade, como mais à frente se tornará claro. 

Quanto à segunda linha condutora, que relaciona violência e silêncio, podemos explorá-la sob vários prismas. (…) 

Esta classe da violência de que autora nos fala não é um problema de classe, abrange todos os níveis sociais e de instrução. A violência é aqui a natureza mesma da infância e da adolescência confrontadas com a sociedade contemporânea; é afinal a violência que se torna em si mesma uma classe. Curiosamente, a violência nunca é verdadeiramente mostrada no decorrer do filme: chega-nos pelos blocos informativos da rádio, pelos relatórios de avaliação da directora da escola, pela tensão que perturba o semblante da mãe. Surge-nos, portanto, em alusão ou em modo silencioso, exceptuando quando vemos Nathalie empurrar com toda a força o seu carrinho de bonecas contra as pedras do quintal. (...)

O silêncio surge, então, enquanto política, enquanto estratégia de resistência da mulher contra uma cultura patriarcal (aqui, nomeadamente, representada no discurso do vendedor). O próprio filme nos surge um pouco como um filme mudo: o modo como a câmara se move, a composição dos planos, a montagem, transmitem as intenções da realizadora sem que seja necessário explicá-las, estendê-las por palavras. Através da própria forma, MD concretiza a ruptura com as normas, as convenções, colocando em causa a comum representação da realidade. (…) 

Neste filme tumultuoso, a violência é inaudível ou quase, é invisível ou quase (…). 

No que diz respeito à última linha condutora do filme, o vendedor de máquinas de lavar roupa (Gérard Depardieu, no seu primeiro grande papel no cinema), que surge na casa inadvertidamente e tenta convencer as duas mulheres (Lucia Bosè e Jeanne Moreau) a comprarem uma Vendetta Tambour 008, é ainda Heathcote que melhor nos explica a sua função: 
First, his most important feature seems to be his maleness. (...) Secondly, the way he personifies this order is through his language, a language which is insincere, repetitive and unconvincing. (...) Finally, he personifies not only masculinity but male-dominated commerce with his sales pitch (...). His language is therefore not only that of the male but of patriarchy – that of the bankruptcy of institutional discourses. (2002: 78-9)  
No entanto, assim que o vendedor se depara com aquelas duas mulheres, que o enfrentam com um olhar inquietante e penetrante, compreende que veio perturbar um domínio que, para além de lhe escapar, o desestabiliza por inteiro, até lhe ser negada a sua própria função social (a de vendedor porta a porta, profissão, entre tantas outras, que, para MD, não é sequer uma profissão); surgindo-nos, então, e ao contrário do que se previa com a sua intrusão e a anterior explicação de Heathcote, como um negativo do que veio representar (...).

Compreendemos, então, que quer insiders (as mulheres), quer outsiders (o homem) são frágeis e vítimas do medo. Na verdade, no entender de MD, a violência diz respeito a todos: todos nós somos receptores, transmissores e reprodutores, de uma maneira ou de outra, de violência (sendo a própria representação uma das suas formas). 

Depois de termos assistido às tarefas domésticas mais comezinhas do quotidiano daquelas duas mulheres (o levantar da mesa, o lavar e limpar da louça, o cozer e passar da roupa, assim como a manutenção do lago e do quintal); depois de termos assistido à eliminação dos perigos do exterior (a função do vendedor é desconstruída, o jornal, conta da electricidade e cadernetas escolares das crianças são queimados); depois de percebermos que afinal a mãe de Nathalie recusa enviá-la para uma instituição disciplinar (estando talvez a sua única possibilidade de salvação no aprender música/piano), e depois de o vendedor nos informar que mudará de emprego, o filme termina na deambulação do homem pela casa. (…) 

O filme termina exactamente onde termina o perímetro explorado pelo vendedor, que foge assustado daquele espaço que não consegue apreender. As mulheres, longe de aparecerem enquanto vítimas, venceram-no, sem se saber claramente no quê ou como. (…) 

À classificação do filme como feminista, MD resiste e considera tal etiqueta uma facilidade. Para ela, Nathalie Granger é, antes disso, o trabalhar da matéria do feminino: da função que as mulheres têm tido e mantido ao longo dos séculos, das angústias da mãe de Nathalie, que são, no fundo, as angústias de qualquer mãe. (...)

Mas o que é, efectivamente, importante para a realizadora é que o filme, muito para além de ser uma afirmação do feminino, é uma negação da sociedade tal como a conhecemos: 
[L]a grandeur du film: elle est là, dans cette espèce de sauvagerie rendue à la mère à partir de l’exemple de son enfant, de cette petite fille sauvage, qui ne veut rien entendre et qui est l’image même de la désobéissance, du refus de la société. Et la mère suit l’exemple de la petite. C’est ça qui me touche beaucoup dans Nathalie. (idem: 44).

in “Nathalie Granger | Le Camion | L’Homme Atlantique - Três Filmes Durasianos para Abordar a Escrita Branca, a Imagem Negra e a Não Voz da Voz”, 2011

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

The New Centurions (1972) de Richard Fleischer


por José Oliveira

The New Centurions é um dos mais belos e comoventes filmes alguma vez feitos sobre a amizade. Logo, uma dolorosíssima visão sobre os trabalhos e a fatalidade da solidão. Se acompanhamos grupos de polícias na cidade dos anjos que escalda, metodicamente e detalhadamente, o que vai sendo cada vez mais apurado e vincado é o tempo a actuar. Amizade, solidão, e logo o medo... porque as coisas passam, envelhecem, desaparecem, tanto a paisagem como as pessoas. E chega a morte, que é a do inesperado final de Roy Fehler, e perfeitamente esperado pois tanto ele como o seu mestre - ou o seu pai, irmão, esse anacrónico e artista Kilvinski que soube desde sempre que a melhor das leis é a do interior - acreditaram demais e amaram demais o que porventura já assim não pode ser sentido pois demasiado já aconteceu por estas terras desde tempos demasiado remotos que vão ser evocados aquando das mais negras dúvidas. Amaram demais e viciaram-se demais no que lhes tocou em sorte, na missão sanguínea, e as duas tornaram-se indestrinçáveis. Quando julgaram que poderiam começar a afastar-se e a viver os contos de fadas que sempre puseram em perspectiva, tombaram. O mais triste dos contos, com a moral que Kilvinski não se lembra na hora do seu apagamento - no mais secreto e justo dos planos sacrificiais - e o mais alegre, num mundo onde em tão violentas crostas e cheiros todos parecem ser igualmente bons, muitas das vezes anjos - ou todos terem as suas razões - todos menos esse mercenário que explora os trabalhadores mexicanos e que arranca do bom Kilvinski a mais enraivecida das justiças. Justiça, que será outra dos centros e demandas, precisamente, sacrificiais. 

Faz sentido que a dupla Irwin Winkler e Robert Chartoff tenha pegado no projecto e o tenha acarinhado tanto como acarinharia os contos Caprianos da saga Rocky ou outras produções com Robert De Niro em deslize, parecendo ser coisas destas em ligação a Paraísos Perdidos o que realmente lhes interessa. Como as afeições alvas de Frank Borzage ou os miminhos das irmãs Gish nos Griffiths, como Pat Garrett & Billy the Kid, Scarecrow ou o Ed Wood de Tim Burton para todo esse amador genial, Richard Fleischer cria, na aparência do género policial cinematográfico com que Kilvinski goza a certa altura para efeitos de realismo e verdade, um grande ciclo que vai do nascimento e aprimoramento ao fim, deixando entrever nas bordas os eternos-retornos e mais uma vez os princípios dos fins. É assim que quando um verde agente diz aos experientes que apenas quer fazer o bem, só obtém destes silêncio, e medo, e muita estupefacção de quem reconhece tais traços e crenças e possivelmente já destino. Numa cena que corta e monta para outros trabalhos, os do casal com Roy que ainda não sabe controlar esse tipo de amor. 

Como Kilvinski, homens sempre à deriva num mar turvo que lhes promete a terra firme, mar de onde não poderão sair pois só nele se espraiam realmente. Um veterano que recolhe as prostitutas da rua e as protege, oferecendo-lhes whisky e leite e tratando-as como rainhas, que se delicia no que elas têm de genuíno e de júbilo em comparação com as aparências do bem e do normal, ficando muitas saudades de ambas as partes, tem obrigatoriamente, na podridão circundante que teima em velar o brilho do mundo, de ser castrado. Que o seu discípulo lhe siga os passos mesmo que o contradiga perto da hora negra por ter descoberto outro tipo de ilhas, são as linhas e os caminhos da tragédia que este filme é. 

Tragédia que Fleischer tece sem exaltações mas como sempre muito naturalmente, muito humanamente. Não imita nada, não copia ninguém, não vai buscar a cinematografias alheias ou a fatos à medida de outras artes ou sociologias, mas observa, toma o pulso, segue, tenta perceber ou aceita o que assim tem de ser. Kilvinski nunca pôde dizer ao seu filho que parasse aquela rotina estupefaciente e voltasse para o lar, mesmo quando esse tocou nas matérias do outro mundo; assim como voltou ao antigo local de trabalho depois do retiro oficial, à sua única família, sem nada para fazer como uma criança que exulta e suplica por brincar com os outros garotos. Essa suspensão, esse calamento. E é este o movimento capital destes Centuriões modernos e de todos os que acreditam numa coisa em algum tempo e lugar, no que quer que seja, na sua arte, até ao fundo, sem freios - a solidão, a saudade que afinal é universal. Faltando o tudo a que se agarrou, não se tendo as bóias ou as margens alternativas, morre-se facilmente.  

É assim, sem efeitos ou enfeites. Secamente. Ao osso. O olhar vazio, a tal moral. 

(texto inédito e que será publicado na próxima edição da Foco – Revista de Cinema)



por João Palhares

Eis-nos chegados e atracados a Richard Fleischer, poeta silencioso das fileiras da RKO, maestro imperturbável mas discreto do grande espectáculo a partir das 20,000 Leagues Under the Sea (1954). Só que rotulá-lo e decifrá-lo, se não é impossível (e bem me quer parecer que sim), é muito difícil. Resta olhar para os seus filmes com vontade de os ver, e arriscar atirar frases e parágrafos na esperança (ou ilusão) de se chegar a algum lado. É o que aqui se vai tentar fazer. 

“Even the romans had centurions to keep the peace. And they were unsupported, unhonored, disliked, just like us. But they held the line, for a while… until Rome was finally overrun by barbarians.” Esta frase aparece a meio do grandioso (do belíssimo, do estratosférico, do…) The New Centurions (1972), dando algumas luzes sobre o que por lá se passa, quando Kilvinski (o personagem de George C. Scott), poucos meses depois da reforma, regressa de uma terrivelmente elíptica estadia em casa da filha e da neta e passa um bocado tão preciso com o antigo colega e amigo, Roy Fehler (o fabuloso Stacy Keach), depois de tantas rondas, turnos e patrulhas partilhadas nas ruas de Los Angeles. Só eles, que viram os olhares estilhaçados das vítimas, horrores domésticos, pesadelos durante a noite, acordados, ora sóbrios ora bêbados, é que percebem que se podem mudar todas as leis para melhorar as percentagens e sondagens do crime – que servirão para ganhar eleições e a adulação barata de certo povo e de certas elites -, “but they can’t get rid of evil”. Eles nunca ouviram falar da “Kilvinski’s law”, que pode também levar o nome de “consciência” e implica saber chegar a um quarteirão com ar de favela e perceber que às vezes é quem é respeitável que tem a culpa no cartório. Como saber que não é preciso levar ninguém para a esquadra certa noite, bastando pagar uma garrafa de whisky e leite às putas que enchem a carrinha da polícia e pedem – só uma o pede, de forma belíssima – palmadas no cu para para ela subirem, contando histórias de banhos de leite macabros em Beverly Hills, decapitações de galinhas feitas só pelo receio de não agradar ao cliente… Acabar a noite a tomar o pequeno-almoço num diner qualquer, sabendo que foram o álcool e os cigarros e as palmadas e os favores oferecidos a esta gente que tornaram as ruas seguras por mais um dia… Sem quotas de encarceramentos, sem vistos nas folhas de apreensão, sem adições no registo criminal. Como manda aquele bichinho na cabeça que tanto importuna ao cair do dia, no breu das várias noites possíveis (das noites do caçador às noites na alma) a perguntar que parte fizemos nós nesta coisa redonda a que chamamos mundo. 

É o mundo de tanta película que rodou, projectou e disparou, serena à volta das mesmas paisagens. De Electra Glide in Blue (1973), de Fort Apache, the Bronx (1981), de Colors (1988) e do tão próximo de nós – só 9 anos nos separam dele -, We Own the Night (2007). As mesmas dúvidas, as mesmas tristezas, os mesmos azares, a mesma solidão, as mesmas viagens ao fundo da alma, as confissões e monólogos regados a whisky que antes nem às paredes se confessavam. Tudo para “hold the line” e “in the line of duty”. 

E entre as tantas prodigiosas sequências deste prodigioso filme, falo agora só de uma, deixando de fora a do hospital, quando Fehler é atingido no estômago e dispara as suas confissões ao amigo Kilvinski, que fora até ali pai e é agora irmão; deixando de fora a do tiro involuntário do polícia ainda verde que se desfaz em pranto à frente do decano parceiro de patrulha que lhe diz que teria feito o mesmo na mesma situação; deixando de fora a da perseguição nos túneis que apagam toda a luz e toda a coragem; e que dizer dos encontros lindíssimos de Fehler com a enfermeira e que abrem caminho para o terrível “Can’t happen now, I was beginning to know…” e para o “Santa Maria, madre de Dios, ruega señora, ruega por nosotros. Ahora y en la hora de la nuestra muerte. Amén” do Sergio de Erik Estrada, que é protagonista de outras tantas prodigiosas sequências? Falo então do plano extraordinário sobre George C. Scott que, pela sua discrição, nem se julga à primeira vista de tanta duração. Conta ele a história de um homem que telefona todos os dias à esquadra de polícia porque está alguém no alpendre. Conta que chegava lá e não via ninguém, mas confortava o homem fingindo que tinha expulsado esse alguém, até ao homem telefonar no dia seguinte e Scott fazer o mesmo que tinha feito no dia anterior. Que será feito desse homem, pergunta ele a Fehler. E a câmara aproxima-se, aproxima-se e sondam-nos os abutres fantasmas dos “dont’s” e das leis da conversa no bar de strip e da filha e da neta de Kilvinski e do polícia reformado que também tem que visitar a esquadra e arranjar um emprego para não ver ninguém no alpendre de sua casa. Volta-se aos grandes monólogos de grandes filmes, num só plano na cara de grandes actores que contam histórias de fins do mundo e nos contaminam só com o seu olhar e com a sua voz… Presos nos olhares e nas vozes, não reparamos em absoluto se há cortes ou se se passa o quê ou o que quer que seja, a não ser aquele pesar na voz e aquele arrependimento de se ter testemunhado novos tempos a destronar outros tempos, novos tempos se calhar nem piores nem melhores, mas em que não há lugar… 

E, “well, here’s to the New Centurions. Let’s hope they do a better job than the old ones.” 

(texto publicado no site À Pala de Walsh, a 17 de Dezembro de 2013)

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Ulzana's Raid (1972) de Robert Aldrich



por João Palhares

Sabia-se pelo menos desde Fort Apache (1948), filme extraordinário do John Ford de Stagecoach (que vimos em Janeiro deste ano), entrevisto nessas brumas míticas que faziam os apaches de Cochise desaparecer do campo de batalha, que os Índios tinham muito mais que se dissesse do que o que se fazia passar na maior parte dos filmes, que alguns eram guerreiros orgulhosos, cruéis e estrategas geniais, que sabiam quais eram as fraquezas dos colonos que os expulsaram e enfiaram em reservas governamentais - não por serem mais fortes e corajosos mas sim por serem em muito maior número - e que eram um povo ligado pelo sangue à natureza e às suas tradições, capaz de as defender até à morte. No seguimento deste novo interesse pelos Índios (particularmente pelos Apaches) e até Ulzana's Raid, o que se via em Ford através das brumas foi-se dissipando em filmes como Apache Drums (1951) de Hugo Fregonese, Escape from Fort Bravo (1953) de John Sturges ou Garden of Evil (1954) de Henry Hathaway, obcecados com processos e estratégias militares Índias e em que o respeito e o medo dos colonos e dos soldados americanos para com eles se iam confundindo e entrelaçando numa rede complexa de relações que, com o passar dos anos, só se intensificou, tentando ir no caminho da compreensão. 

Em The Last Wagon (1956) de Delmer Daves, a personagem de Richard Widmark ('Comanche' Todd), que cresceu entre Índios, avisava os sobreviventes de um ataque dos Apaches que não podiam enterrar os seus mortos porque senão os nativos ficavam a saber que havia sobreviventes e atacavam. Também em Ulzana's Raid os valores cristãos e a boa consciência são aproveitados e explorados pelo pequeno exército de bravos de Ulzana num jogo de recuos e investidas fabuloso na extensão do Oeste. Dizem que o verdadeiro Ulzana percorreu 1.800 quilómetros quando escapou da reserva em que o puseram. Mas Alan Sharp, argumentista deste filme e também de Night Moves (1974) de Arthur Penn, falando de inspirações reais para o guião disse que “além de ser a minha homenagem sincera a Ford... uma tentativa de exprimir alegoricamente a malevolência do mundo e o terror que os mortais sentem diante dela. Todos temos as nossas próprias noções do que constitui o medo derradeiro, de fobias pessoais a períodos na história... As três paisagens históricas que me fazem estremecer mais ao pensar nelas são o Terceiro Reich, a Turquia durante a Primeira Grande Guerra e o Sudoeste Americano durante os anos 1860-86... Em Ulzana's Raid não pretendo apresentar uma análise fundamentada da relação entre os aborígenes e o colonizador. Os acontecimentos descritos no filme são exactos no sentido de terem equivalentes factuais, mas a consideração final foi apresentar uma alegoria em cujas características aumentadas pudéssemos distinguir os contornos do nosso próprio drama, caricaturado, mas não falseado... O Ulzana de Ulzana's Raid não é o Apache Chiricahua da história, cuja incursão foi mais demorada e impiedosa e ousada do que aquela sobre a qual eu escrevi. Ele é a expressão da minha ideia do Apache como o espírito da terra, a manifestação da sua hostilidade e aspereza.” 

Estranho nenhum a esta expressão do Apache como “espírito da terra”, Robert Aldrich tinha filmado Apache (1954) nos anos 50, também com Burt Lancaster, de que Ulzana's Raid será a transposição ou reinvenção mais próxima da verdade histórica. Nesse filme, era Lancaster o Índio revoltado que deixava a reserva igual a tantas reservas injustas e precárias espalhadas pela América fora, cada vez mais pequenas e atulhadas, e que empurravam o Índio para o pé de batalha. Questionado sobre as diferenças entre os dois filmes, Aldrich respondeu que “em Apache não havia nenhum homem branco para falar da força e da integridade do Índio. Havia apenas uma afirmação por Índios e sobre Índios que se auto-justificava. Em Ulzana, esperava que por ter Lancaster a falar pelos Índios se tivesse um ponto de vista experiente e educado sobre a cultura deles e o que isso significava. Funcionou, mas não para o público. Sentavam-se e sabiam do que é que ele estava a falar mas não se relacionaram emocionalmente com isso. Não sabem se ele é o herói ou o vilão. Têm pena de o ver morrer mas não percebem mesmo se ele representa o bem ou o mal.” 

Como os filmes citados de Fregonese, Sturges e Hathaway, Ulzana's Raid também se debruça sobre tácticas, movimentações e emboscadas, descrevendo-as com o vigor e a frieza necessárias. Apache Drums mostrava o cerco de Apaches Mescaleros a uma cidade, obrigando os habitantes a refugiarem-se numa igreja fria durante grande parte do filme, o que permitiu ao realizador argentino e a Val Lewton, o produtor (responsável, nos anos 40, por uma revolução dentro dos filmes de terror através das suas produções para a RKO, realizadas por Jacques Tourneur, Robert Wise e Mark Robson), levar a cabo belas experiências com a luz e com a tensão (os Índios são invisíveis, estamos sempre em interiores e do lado dos colonos mas sem nunca deixar de perceber o que se passa lá fora, num efeito e numa tensão que não são nada fáceis de produzir); Escape from Fort Bravo dá-nos a ver um trajecto bem parecido com o do filme de Aldrich, que envolve um grupo de soldados da União e da Confederação, em plena Guerra Civil, presos numa ravina e rodeados de invasores que os atacam de forma lenta e calculada, ilustrada pela realização segura de Sturges, que no ano seguinte faria um filme extraordinário, Bad Day at Black Rock, e depois não fez mais nada que se comparasse; Garden of Evil talvez se sirva dos Índios, que são muito secundários, para falar de outros medos e de outras forças, como muitos dos filmes atormentados dos anos 50, mas Hathaway não resiste a filmar os ataques e as investidas com a força e energia necessárias, como tantas vezes na sua carreira. 

Como The Last Wagon e outros filmes de Daves, ou o belo Run of the Arrow (1957) de Samuel Fuller, Ulzana's Raid subverte as regras do western clássico ao desfazer por duas vezes, por exemplo, o mito do milagre e da beleza do som do clarim da cavalaria em terras inóspitas como som da salvação de último minuto (como se vê, por exemplo, e com belos efeitos, em tantos filmes de Cecil B. DeMille), que acabam por levar à morte um fazendeiro e por deixar Ulzana escapar. Ou os actos cristãos que separam regimentos e facilitam os ataques de Ulzana (“divide et impera” já vem do Latim). É algures por aqui que Ulzana's Raid se insere, belo western de movimentos e desvios estratégicos onde se enfrenta uma força que é tão antiga como a Terra e a simboliza. Não se pode odiar o deserto por não ter água, diz-se a dada altura no filme. Bastavam estes pensamentos difíceis e justos para colocar Ulzana's Raid na grande tradição deste género maior, mas como Sam Peckinpah, que quando fez Pat Garrett & Billy the Kid confessou não conseguir descartar por completo o mito, quando tinha um argumento de Rudy Wirlitzer documentado e pesquisado o suficiente para destruir por inteiro a imagem de Billy, Aldrich também se perde em momentos líricos como aqueles em que Ulzana e McIntosh dão o último suspiro, perdendo-se também nas brumas de Ford e em certos mistérios que, por tudo o que se faça, hão-de continuar mistérios. 

Ainda bem.